Os Romances de Willi Bredel

György Lukács

1931


Primeira Edição: Publicado originalmente em Die Linkskurve, III, 11, 1931, pp. 23–27.

Fonte: https://medium.com/katharsis/lukacs-romance-willi-bredel-378b0b240643

Tradução: Bruno Bianchi

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Os dois romances de Bredel(1) ocupam um lugar importante na literatura proletária e revolucionária da Alemanha. Ao se colocar do ponto de vista da luta de classes, Bredel escolheu com inteligência alguns temas que não só estão no centro dos interesses de todos os trabalhadores, mas que revelam ao mesmo tempo uma terra incognita aos leitores. Tanto os efeitos da racionalização incipiente sobre os trabalhadores, quanto a vida e as lutas cotidianas de um bairro proletário ainda não foram descritos na Alemanha do ponto de vista classista do proletariado.

Tudo isso não é pouco. E contudo não é ainda suficiente para esgotar os méritos de Bredel. Ele revela uma mão feliz, um seguro instinto político, uma prontidão combativa para distribuir e estruturar a matéria dos seus romances. Já na sua primeira obra a descrição da fábrica era polarizada muito habilmente em torno dos preparativos, da efetivação e da derrota de uma greve. Assim são delineadas as linhas de uma ação dinâmica de modo a resolver em elementos e etapas da luta de classe as particularidades da vida cotidiana dos trabalhadores: a ação mesma aparece aqui, no seu conjunto, como um momento da grande luta de classes que é iniciada antes do romance e que segue com não menos violência depois da batalha perdida cujos acontecimentos o romance narra. Esse é um esquema verdadeiramente válido para um romance proletário. Ele oferece a possibilidade de representar de modo verdadeiramente épico, dentro de limites definidos — e todavia sem um “início” e um “fim”, mas como um processo, como uma parte da totalidade do processo — a evolução classista que ocorre no interior da fábrica e inserir os seus diversos momentos (a luta dos trabalhadores contra os capitalistas, a intervenção do Estado, a composição e a diferenciação política dos operários dentro da fábrica, o papel da socialdemocracia e dos sindicados, a vida da célula comunista em relação à fábrica, etc.) em um contexto esteticamente orgânico.

A estrutura do segundo romance marca um posterior passo adiante nesta direção. Neste, Bredel estende ainda mais o seu próprio horizonte temático. Ele se propõe a representar a vida dos trabalhadores na concreta interação com as outras classes, particularmente com a pequena burguesia. Esta intenção, além de revelar um essencial progresso em relação à obra precedente, é absolutamente correta tanto do ponto de vista político quanto do artístico. A maior parte das obras da nossa produção proletário-revolucionária é caracterizada por um horizonte muito limitado, por vezes mesmo do ponto de vista “economicista”, porque se detém na representação do contraste entre os produtores e os trabalhadores dentro das fábricas ou daquele entre o movimento operário e o estado burguês na fase mais aguda da luta de classes. Não há dúvida que o problema exige, pela sua própria forma, uma impostação nacional, mas esta deve abraçar a nação na totalidade das suas manifestações: aqui, ao invés, o horizonte político é reduzido a um momento, enucleado e isolado do contexto, que não tem então toda a importância que lhe é atribuída. Do ponto de vista artístico, tudo isso se traduz forçosamente em uma representação do mundo muito limitada e insuficiente. A esta tendência Bredel reage energicamente e corajosamente. O objeto deste romance é a vida de um bairro proletário. Operários e pequeno-burgueses de estratos sociais e de tendências políticas muito diversas — comunistas, socialdemocratas, nazistas, apolíticos, etc. — habitam lado a lado e, durante a sua vida de cada dia, entram em contato de diversas formas. Uma greve dos inquilinos e, no final do romance, as eleições de Hamburgo constituem o núcleo da ação: em torno dele são coletados de várias maneiras os episódios da vida política proletária e pequeno-burguesa (provocações nazistas, manifestações, etc.) e da vida privada (um trágico abordo, o nascimento dos filhos, o Montepio, etc.). Também neste caso se trata de um tema concebido corretamente e projetado, em suas linhas essenciais, de modo verdadeiramente épico. Também aqui temos uma estrutura, um esquema para um bom romance proletário-revolucionário.

Mas mesmo aqui, como no romance precedente, infelizmente há apenas uma estrutura, um esquema, um esboço. Nos romances de Bredel, a elaboração do material não supera em muito a preparação do projeto. Querendo expressar concisamente qual é o defeito básico da obra de Bredel, poderíamos dizer: nele há uma contradição não resolvida entre o amplo quadro épico da “história”, um quadro que contém o essencial, e a sua forma de narrar, em parte modelada no estilo da reportagem, em parte no dos relatórios dos congressos. O esqueleto da ação está correto, mas é apenas um esqueleto. Ele carece de tudo que poderia lhe conferir uma alma e uma vida: homens vivos, relações inter-humanas que vivem e se transformam em um processo. Claro, Bredel dá uma certa caracterização de seus personagens, os descreve externamente (às vezes de modo magistral), destacando certas peculiaridades psicológicas. Mas tudo isso conserva sempre uma certa fixidez. Seus personagens não evoluem. Ou sua evolução ocorre repentinamente. Em princípio, não está excluído que isso possa acontecer, mas só acontece se a transformação for precedida de uma certa preparação artística, se não for um golpe repentino da arma, mas uma conversão da quantidade (das muitas pequenas modificações, às vezes imperceptível mesmo para aqueles que as sofrem) em qualidade. Uma transformação repentina, desprovida de preliminares, é artisticamente improvável, mesmo quando é abstratamente possível do ponto de vista do conteúdo. Os personagens de Bredel são quase sempre semelhantes aos atores que já foram chamados de “atores de personagens”: eles possuem um certo número de traços psicológicos fixos que são reafirmados e enfatizados em todas as ocasiões possíveis e impossíveis. E mesmo quando esses traços psicológicos são descritos de forma irrepreensível, nestes personagens não corre a vida. Um romance requer um método representativo diferente daquele da reportagem: um tipo de caracterização que pode satisfazer as exigências da reportagem, caso o romance se mostre de todo inadequado.

Esta inadequação tem a sua manifestação mais evidente na linguagem. Com algumas raras exceções, ela quase sempre é uma crônica. Aqui e ali este uso é legítimo. Quando se descreve, por exemplo, um congresso ou uma reunião da célula, é legítimo apresentar os fatos com um estilo simples, seco, semelhante ao de um relatório, destacando o conteúdo puramente político das intervenções, das interrupções, etc., No entanto, deve-se notar que, mesmo neste caso, a vida política é mais rica, mais viva, mais complexa do que parece nesta imagem dela. Se, por exemplo, os camaradas Thälmann e Neumann falam sobre o mesmo tema, desenvolvendo-o de acordo com a mesma linha política, a estrutura, a linguagem e o tom de seus discursos certamente serão muito diferentes. Bredel, ao invés, dá sempre aos seus discursos políticos o mesmo tom, e a eventual adição de ingredientes “característicos” no sentido indicado certamente não melhora as coisas. Do ponto de vista linguístico, ele não está à altura daquela realidade que deveria representar e da qual, em vez disso, dá apenas uma reprodução turva.

Mas o pior é que Bredel não se serve desta linguagem apenas para falar de congressos e de reuniões. Bastará citar alguns exemplos, escolhidos ao acaso. Dois operários discutem a literatura. Um diz, a respeito de Emil Ludwig: “É um historiador atraente e muito instrutivo”. O outro responde: “Não há dúvida de que ele, como literato, é muito interessante, mas como historiador é perigoso”. Ou, uma operária vai ao Montepio e Bredel descreve a sua comoção da seguinte forma: “No Montepio ela experimentou toda a dor da miséria humana”. Outro exemplo: enquanto alguns operários escutam o rádio, uma comunista observa: “O rádio é um porta-voz da classe dominante e, de hora em hora, entorpece milhões de homens a ponto de entorpece-los”. Por causa desse uso abstrato da linguagem, muitas tentativas, tão logo ganham concretude, se transformam em produtos frustrados e de mau gosto. Para dar ainda outro exemplo: para conhecer mais a fundo um apolítico, com o qual ele trabalha em um comitê, um comunista se detém para conversar com ele. Do conteúdo do diálogo, Bredel se refere apenas a alguns fragmentos, onde não se caracteriza nem o apolítico nem o tipo de relação iniciada entre os dois. E para resumir, ele observa: “Ele conheceu assim um homem interessante e fundamentalmente honesto, que se escondeu atrás de uma dura concha de generosidade e bom senso”.

Do que foi dito, seria obvio concluir que Bredel não possui a técnica da escrita. Mas mesmo assim, o que é óbvio não coincide necessariamente com o que é justo. Certamente, a Bredel também falta a técnica. Mas a crítica prestaria um péssimo serviço se lhe dissesse: os teus romances têm o que é preciso em termos de conteúdo, de ideologia e, portanto, do ponto de vista político e marxista; basta aprender a “técnica” da escrita, dominar a forma, e o grande romance proletário fica bem feito.

Não. A forma e o conteúdo são estreitamente interdependentes e, embora possa prevalecer o conteúdo classista, a sua interação dialética é muito mais interna, mais mediada e complexa do que pode parecer de uma solução tão simplista e mecânica do problema.

Em primeiro lugar: a representação dos homens não é um problema “técnico”, mas antes de tudo requer que saibamos manejar os instrumentos da dialética no campo da literatura. Nos cursos introdutórios ao materialismo dialético, costumamos chamar a atenção para a diferença que separa o pensamento dialético do metafísico, insistindo no fato de que o primeiro resolve a aparente rigidez das coisas em processos, no que realmente são. Este princípio elementar não se aplica também à literatura? Na práxis cotidiana da luta de classes, qualquer funcionário, se considerasse de modo adialético e metafísico o âmbito no qual deveria atuar, composta por homens singulares, grupos, massas, iria de encontro a um fracasso certo. Não é legítimo esperar que a literatura alcance precisamente no seu método criativo o nível que foi alcançado, ainda que de forma instintiva e através de muitos erros, na práxis cotidiana da luta de classes? Creio, pelo contrário, ser legítimo exigir algo mais, isto é, que os melhores produtos da nossa literatura, no que diz respeito ao uso da dialética, estejam ao nível dos resultados conquistados da teoria e da práxis revolucionária do Partido Comunista Alemão e do Comintern.

A falta de dialética que caracteriza este modo de formação se converte em falta de dialética também no plano do conteúdo. Devido ao estilo descritivo mencionado acima, Bredel é forçado, contra as suas próprias intenções, a subestimar as dificuldades contra as quais o desenvolvimento da revolução deve lutar. Tal dificuldade, de fato, só podem receber expressão artística se os nossos poetas forem capazes de dar vida e evidenciar aqueles obstáculos que afastam do movimento revolucionário muitos trabalhadores bem-intencionados, aquelas correntes que empurram o estrato inferior, proletarizado, da pequena burguesia para o campo da contrarrevolução; se eles puderem nos mostrar o quão duro é o caminho que as massas devem percorrer para chegar a uma clara tomada de consciência ideológica. Mas Bredel, e não apenas Bredel, ignora precisamente este ponto. Ele apresenta os resultados, e não o processo, com todos os seus freios, as suas dificuldades, os seus contratempos. E, consequentemente, a imagem que ele nos oferece também é falseada do ponto de vista conteudístico. Para descrever a verdade, Bredel deve representar a ascensão do movimento revolucionário, mas sua descrição é distorcida pela falta de representação dos obstáculos que impedem essa ascensão. O honesto apolítico torna-se “repentinamente” comunista; a célula que pouco tempo antes havia trabalhado mal assume “de repente” a responsabilidade de dirigir uma greve; nas reuniões, se afirma sempre a linha revolucionária contra as teses dos bonzos do partido, e assim por diante.

Não se trata de falta de “técnica”, mas de sentido para a dialética.

Para muitos camaradas, esta crítica certamente parecerá muito dura. O autor desta, no entanto, servindo-se das mesmas palavras pronunciadas pelo camarada Stalin precisamente sobre um problema literário, faz a seguinte pergunta: “Desde quando os bolcheviques temem a verdade?”. A nossa literatura proletário-revolucionária lutou para ser capaz de existir: somente no curso de amargas lutas ela conquistou o direito da existência. Os nossos escritores proletários-revolucionários são soldados da classe de fidelidade comprovada. Hoje, quando em todas as frentes da luta de classe são colocadas tarefas cada vez maiores, é necessário que eles não fiquem atrás do movimento como um todo. Em vez disso, eles devem — exercendo uma autocrítica inexorável, colocando a nu inescrupulosamente o seu próprio atraso e as suas causas, estabelecendo tarefas correspondentes ao estágio avançado de desenvolvimento da luta de classes revolucionária — reconhecer essa distância e tentar preenche-la o mais rápido possível com um trabalho tenaz e consciente, aprendendo a manusear os instrumentos da dialética materialista no âmbito da criação literária.

Esta crítica às obras de Bredel é também, no sentido mais amplo do termo, uma autocrítica. Não se trata aqui do fato de que Bredel não tenha atingido individualmente o nível de nossa literatura proletário-revolucionária, mas, ao contrário, do fato de que todos nós, com a nossa atividade literária, tanto crítica quanto criativa, não alcançamos o nível da situação objetiva da Alemanha, do movimento revolucionário geral na Alemanha; Bredel é um dos nossos escritores mais talentosos e promissores. Mais do que erros individuais, são os erros de todo o movimento literário. Ao expô-los com uma inexorável autocrítica, não devemos, portanto, cair no excesso oposto de subestimar a obra de Bredel, esquecendo que os seus romances, não obstante todos os seus erros, também têm grandes méritos. Não é verdade que a literatura proletário-revolucionária conquistou por meio da luta o direito de existir? E como poderia ter feito isso se fosse privada de qualquer valor poético? Sobre esse valor já foi dito no início. E aqui repetimos que os romances de Bredel, do ponto de vista do conteúdo, revelam uma terra desconhecida, e para quem quer conhecer a vida cotidiana, proletária, a vida real dos trabalhadores na Alemanha de hoje, eles permanecem uma leitura útil, instrutiva, estimulante, para não dizer indispensável. A dureza da nossa crítica implica também o reconhecimento dos resultados positivos alcançados até agora, entre os quais devem ser incluídas também as obras de Bredel. De fato, se ele fosse um modesto iniciante, sem fortes qualidades artísticas, teríamos que proteger e defender o tenro rebento da fúria do vento e das intempéries. Mas não estamos neste ponto, e Bredel também tem os seus méritos. Precisamente porque Bredel (como outros escritores proletário-revolucionários) é um autor muito talentoso, porque seus escritos têm uma certa estatura, porque eles, como são, valem a pena ser lidos, devemos exigir muito dele. E só podemos fazer isso criticando-o duramente, exercitando a autocrítica. Precisamente o que há de bom e de meritório nos escritos de Bredel nos permite e nos impõe a dar um ulterior passo adiante, exigindo dele, e de nossos outros escritores, provas mais exigentes, um efetivo domínio da dialética marxista e um nível que o nosso movimento, em outros campos, já alcançou. Podemos e devemos exigir isso, porque estamos convencidos de que ele é capaz de satisfazer os nossos pedidos.


Notas de rodapé:

(1)  Maschinenfabrik N. & K. — Ein Roman aus dem proletarischen Alltag, Berlin, 1930, 1960. — Rosenhofstrasse. Roman einer Hamburger Arbeiterstrasse, Berlin, 1931, 1960. (retornar ao texto)

Inclusão: 08/10/2022