O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista

Georg Lukács


Capítulo I - O período republicano do jovem Hegel
2 – O que significa “positividade” para o jovem Hegel?


A verdadeira questão central do período de Berna do jovem Hegel é a da “positividade” da religião especialmente da cristã. Entretanto, para imediatamente deixar clara a ideia central de Hegel é preciso acrescentar: para o jovem Hegel, a religião positiva do cristianismo é uma coluna do despotismo e da opressão, enquanto que as antigas religiões não-positivas foram as religiões da liberdade e dignidade do homem. Sua renovação é, de acordo com as ideias do jovem Hegel, um objetivo revolucionário cuja realização está posta diante da humanidade de sua época.

É preciso, pois, esclarecer, sobretudo o que entende o jovem Hegel por positividade de uma religião. Formula seu pensamento em diversos lugares dos seus escritos de Berna, e acrescentaremos algumas citações para que o leitor fique familiarizado com este conceito do jovem pensador, expresso tanto quanto possível em suas próprias palavras: “Uma fé positiva é um sistema de proposições religiosas que pretende ter verdade para nós pelo fato de nos ser imposto por uma autoridade sem que possamos nos negar a submeter nossa fé à esta. Neste conceito se apresenta, sobretudo, um sistema de proposições ou verdades religiosas que têm ser aceitas como verdades independentemente de nosso juízo, proposições que seguiriam sendo verdade mesmo se nenhum homem nunca as tivesse conhecido, mesmo se nunca qualquer homem as houvesse considerado como verdadeira, e que, neste sentido, se chamam amiúde verdes objetivas; tais verdades se nos impõem então como verdades também para nós, como verdades subjetivas.”(1).

O essencial dessa caracterização hegeliana é a independência das proposições ou verdades religiosas positivas com relação ao sujeito, junto com a exigência que se faz ao sujeito de reconhecer como vinculativas para si essas proposições que ele não citou. Positividade significa, pois, para o jovem Hegel, sobretudo a supressão da autonomia moral do sujeito. Neste sentido, a concepção estaria intimamente aparentada com a da moral kantiana, e efetivamente contêm muitos elementos desse parentesco. Entretanto, teremos que chamar a atenção sobre o fato de que o sujeito moral de Kant é mais exatamente sempre algo histórico-social. Sua determinação é no jovem Hegel extraordinariamente apagada e oscilante. Pois o conteúdo de sua concepção – na medida em que trata do helenismo não-positivo. Quer dizer, do ideal histórico-moral – é a coincidência de autonomia moral do sujeito individual, com a coletividade democrática do povo inteiro. A contradição entre subjetividade do indivíduo e a atividade social da totalidade social surge, segundo a concepção de decadência produzida por a religião cristã. A religião cristã se contrapõe então ao sujeito como algo objetivo, positivo, e a obediência a seus mandamentos são, por um lado, consequência da perda da liberdade, e por outro, a constante reprodução da opressão e do despotismo.

Segundo a concepção do jovem Hegel, este período do despotismo dura até o presente e penetra por todas as manifestações da vida social e da ideologia. O jovem Hegel conceitua a decadência do homem principalmente segundo a medida na qual o homem se adaptou à perda da liberdade, segundo a medida na qual as questões ideológicas se resolvem na direção da liberdade ou a submissão sob a positividade. Uma passagem do diário de viagem de Hegel, do período de Berna (julho-agosto de 1796) caracteriza a muito exatamente esse estado de ânimo e ilumina ainda mais claramente a caracterização de positividade que já citamos. Hegel fez naquele período uma rápida viagem pelas montanhas de Berna e observou a natureza pobre da região, as grandes dificuldades dos homens para se realizar pelo trabalho como base vital, uma existência. De acordo com os interesses que então o moviam, coloca-se o problema de qual religião, qual concepção do mundo deveria surgir dessa condição de vida. “Nestes desertos solitários, alguns homens letrados haveriam descoberto antes todas as teorias e ciências, exceto aquela parte da fisioteologia que pretende demonstrar ao orgulho do homem que a natureza o preparou toda para seu desfrute e bem-estar; um orgulho que também caracteriza nossa época, a qual tende mais buscar satisfação na ideia de que um ser alheio fez por ela que a achar em sua consciência que foi ela a que impôs a natureza todos esses fins”(2).

Pode-se avaliar nestas linhas muito claramente o subjetivismo radical do jovem Hegel. Também Kant combateu com argumentos da rude e dogmática concepção da teleologia na chamada fisioteologia. Entretanto, o faz apelando para a contraditoriedade interna dessa concepção teleológica, mostrando as antinomias que surgem dela. Nada disso interessa ao jovem Hegel. O interessa nisso outras perguntas: que tipo de homem é o que acredita na fisioteologia, e que tipo de homem a rejeita? se sente orgulhoso o homem do que faz, do que criou, ou busca a satisfação na ideia de que um poder alheio a ele (Deus) o guarda!? Hegel quer, pois, depurar a moral de todos os elementos teológicos - positivos - , mas, não porque – como Kant – considere incognoscível os objetos da teologia mas porque crê incompatível a fé como tal com a liberdade, e com a dignidade do homem. O jovem Hegel recusa, pois, muito energicamente a concepção kantiana que tende a reintroduzir na concepção do mundo, com ajuda de “postulados” da Crítica da razão prática, todos os elementos teológicos da Crítica da razão pura dissolveu epistemologicamente e declarou incognoscíveis.

Nesta luta contra a renovação da teologia com ajuda da ética kantiana não se acha só no jovem Hegel, mas que ocorre na mesma linha que seu amigo de juventude Schelling. Em sua carta do ano de 1795 Schelling escreve a Hegel, lamentando-se que na Crítica da Razão prática se converteu em Tubinga, onde ele morava à época, em ponto de apoio de uma revitalização da teologia reacionária ortodoxa. “Todos" os dogmas possíveis e imagináveis receberam o selo dos postulados da razão prática, e quando não bastão os argumentos histórico-teóricos da razão prática tubinguesa desata os nós. Que prazer contemplar o triunfo destes heróis filosóficos! “Passaram os tempos da tristeza religiosa, da que está escrita.”(3) Nesta luta o jovem Schelling se apoiou essencialmente na filosofia de Fichte.

Hegel está completamente de acordo com a luta de Schelling contra os teólogos de esta nova observância kantiana. Mas sua resposta, manifesta alguns traços muito característicos que vale a pena considerar. Sobretudo, segue sendo bastante indiferente aos problemas filosóficos em sentido rigoroso, e ao mesmo tempo mostra este propósito uma atitude muito crítica a respeito de Fichte. Após declarar a Schelling sua concordância, escreve: “Mas a essa indecência da qual tu me escreves, - e cujo ultimo ato posso imaginar pelo que dizes – contribuiu Fichte indiscutivelmente, abrindo as portas com uma Crítica da revelação. O mesmo fez uso moderado de seus princípios mas uma vez aceitos não há jeito de por uma barragem nem meta à lógica dos teólogos. Fichte construiu partindo da santidade de Deus o que haveria podido e devido fazer com sua simples natureza moral, e deste modo reintroduziu o velho modo de demonstrar da dogmática. Valeria a pena talvez precisar com mais detalhes é em que medida, depois de haver consolidado a fé moral, necessitamos retrospectivamente a necessidade da ideia de Deus, por exemplo, na explicação da relação finalística, etc. e em que medida estamos autorizados a passar da ético-teologia a físico-teologia, para trabalhar aqui com ela”.(4) Se recordamos agora o texto acima citado sobre a físico-teologia, veremos claramente que Hegel tentou expurgar muito mais radicalmente que todos seus contemporâneos a razão prática kantiana a autonomia moral do homem, dos elementos teológicos, que em todas as tendências de Kant e de Fichte viu uma continuação da positividade com uma nova forma.

A resposta a Schelling contem outra passagem tão característica do jovem Hegel que tivemos forçosamente que aduzi-la. Enquanto Hegel enfrenta com bastante indiferença os aspectos epistemológicos do problema da positividade na religião e na teologia, aprofunda por outro lado os fundamentos sociais do conflito, oferecendo uma categórica caracterização naturalista das reais bases daquele renascimento teológico:

“Não posso me assombrar com o que contas da marcha que segue – si Diis placet – a filosofia teológico-kantiana em Tubinga. A ortodoxia é incomovível enquanto professá-la é uma atividade que significa vantagens materiais e está entrelaçada em todo o Estado. Este interesse é demasiado grande para que renunciem sem mais nem menos a ele; pelo demais, é um interesse que opera sem que se tenha completa clareza sobre ele”(5).

Esta passagem mostra claramente que o conceito do prático é em Hegel muito mais amplo e social do que em Kant, Fichte e no próprio jovem Schelling. Hegel tomo, sem dúvida, como ponto de partida de suas exigências de liberdade e dignidade humanas o conceito prático kantiano de liberdade, mas seu conceito de realização de suas exigências passa a seguir ao social. E neste período não se preocupa minimamente com o problema de como possam ligar-se epistemologicamente com o ponto de partida subjetivo-idealista as consequências sociais e historicamente reais que ele faz desprender-se do referido principio. Como é sabido, no posterior curso de seu desenvolvimento Hegel submeteu a severa crítica o subjetivismo da ética kantiana, e pretendeu resolver sobre a base do idealismo objetivo – da dialética objetiva da vida social, concebida de modo idealista – os problemas sociais reais contidos naquela ética

Mas, no período de Berna, Hegel pretende uma interessante elaboração histórico-social do dualismo kantiano-fichteano, dualismo que tem como resultado também para Hegel na concepção subjetivista-idealista do núcleo moral. Para Kant existem dois mundos radicalmente separados entre os quais não há transito algum: o mundo da ética, do eu inteligível (númenon), no qual não tem vigência das categorias do mundo fenomênico (causalidade, etc.) e o mundo do conhecimento do eu empírico (fenômeno), no qual regem aquelas categorias. Fichte, com sua teoria do “não-eu” (o mundo externo inteiro) posto pelo “eu”, situa esse problema num plano filosófico geral, convertendo a fundamentação kantiana da ética em fundamento e ponto de partida também da teoria do conhecimento. Como a seguir como veremos esta concepção exerce sua influência decisiva na filosofia do jovem Schelling.

O jovem Hegel concebe de modo muito diferente a relação entre a livre consciência moral e a realidade objetiva. Esta é também para ele um mundo externo estranho e contraposto à consciência moral, objetivo e “morto” em comparação com a viva subjetividade. Entretanto a contraposição não é aqui uma contraposição “eterna”, filosófica e epistemológica, como para Kant e seus sucessores, senão uma contraposição histórica. Trata-se só momento historicamente característico da Idade Média e a do Idade Moderna; mas não existiu nas antigas cidades-estados democráticas e republicanas, e a perspectiva de sua superação constitui o núcleo das esperanças do jovem Hegel em relação ao futuro.

Precisamente sob este esclarecimento nos torna visível em todo seu significado a questão central do período de Berna, a questão da positividade da religião cristã. Esta positividade é, segundo as concepções do jovem Hegel, a realidade social que corresponde ao dualismo kantiano na ética. Somente vendo claramente esta colocação podemos compreender que a indiferença do jovem Hegel para com a reforma fichteana da filosofia kantiana não procede de estados de ânimo alheios à filosofia. Não deixemos suscitar a impressão de que o jovem Hegel não haja tido problemas autenticamente filosóficos, nem de que a biografia de Hegel deva ser uma história de um despertar para a filosofia. Antes, pelo contrário, pode dizer-se que, como veremos mais tarde, a maioria das características de sua filosofia lançaram suas raízes nesta concepção da contraposição entre positividade e a subjetividade moral, e cresceram organicamente dela. Porém, os problemas epistemológicos da filosofia hegeliana não se manifestam, não se tornam conscientes como problemas filosóficos centrais, até o momento em que a contraditoriedade de sua primitiva concepção se apresenta ao filósofo como contraditoriedade interna e objetiva da realidade social; quando a teoria se converteu em dialética da realidade.

Por isso para o jovem Hegel esse caráter estranho, morto, “dado”, das leis morais é o principal traço da positividade. Hegel diz que é próprio da essência de toda moral o fato que o sujeito moral seja ele próprio o legislador; “a religião cristã, em troca nos proclama a lei moral como algo que existe fora de nós, como algo dado e tem portanto que tentar conseguir repetir a essa lei por outros caminhos. Já ao tratar do conceito de religião positiva põe ao homem a lei moral como algo dado”(6).

Disto resulta para a religião cristã uma complicada casuística da moral, diferente do livre funcionamento do sentimento moral ainda sadio que se encontra no estado social correspondente a uma religião não-positiva. A Igreja cristã possui um código em que está escrito “por uma parte (...) o que o homem dele fizer, por outro lado o que deve suceder e crer, por outra parte deve sentir. Todo o poder legislativo e judicial da Igreja se baseia na posse e manipulação de um código, e se é contrário ao direito da razão de cada homem o estar submetido a tal código alheio a ele, então todo o poder da Igreja é ilegítimo, e nenhum homem pode renunciar ao direito de se dar a si a lei, ao direito a não dar conta de seu manejo mais que a si mesmo, pois com essa renuncia deixaria de ser um homem”.(7)

Aí encontramos claramente formulada a contradição irreconciliável entre a religião positiva e a liberdade humana. No escrito mais importante do período de Berna – A Positividade da Religião Cristã, que já citamos e do qual acrescentaremos mais algumas passagens – Hegel estuda essa contradição em todos os terrenos da vida moral do homem, e em terrenos importantes dos problemas sociais. Aquele caráter positivo da religião, no sentido em que descrevemos, é para Hegel o momento que determina decisivamente a vida inteira da Idade Média e da Época Contemporânea. Essa determinação penetra naturalmente também no terreno do conhecimento, do entendimento e da razão. A perda de liberdade moral acarreta necessariamente, segundo Hegel, a perda do uso independente da razão. O objeto da religião positiva, que é alheio, ao sujeito, morto, dado, e , contudo, dominante, desgarra a unidade e conclusão da vida em que viveu o homem antigamente, na era de sua liberdade e converte as questões decisivas da vida em problemas transcendentes e inacessíveis para a razão.

A origem desse complexo de problemas é analogamente para o jovem Hegel consequência da religião positiva. O poder dessa repousa precisamente em que o homem reconhece um poder estranho acima de si para todo âmbito de seu ser e de seu pensamento; uma vez renunciada a sua liberdade moral, o homem não pode já eximir-se ao poder da religião positiva. Esta se estende então a todos os âmbitos da vida e agora em germe todo o usar livremente da razão.

“A capacidade de viver segundo ela [segundo a fé positiva G.L.] pressupõe necessariamente a perda da liberdade da razão, da independência da razão, a qual não tem que poder opor nada a aquela incredulidade a respeito de uma religião positiva, e ao mesmo tempo o ponto de apoio em torno do qual giram todas as discussões sobre ela, e mesmo não chegue claramente a consciência, constitui o fundamento de toda submissão à fé ou de toda resistência a ela. Este é o ponto que têm que se apoiar os ortodoxos sem conceder nada (...)”(8).

Esse domínio se refere, também no âmbito do conhecimento. A razão livre tem de emitir sobre as chamadas verdades históricas da religião – para não falar dos milagres, etc. – um juízo segundo o qual estes são meras fantasias, “poesias”, etc. A religião positiva não pode tolerar tal juízo; “tem, portanto, que por em jogo uma potência superior diante da qual tenha que emudecer o entendimento, e assim a fé se converte em questão obrigatória e fincada no terreno do sobrenatural no qual o entendimento não está autorizado a se apresentar: neste sentido, fé significa uma conexão de dados fornecidos à imaginação, e diante do qual o entendimento busca sempre outra coisa; aferrar-se por dever – ou seja por medo ao violento legislador – e obrigar ao entendimento a colaborar em um assunto que tem de repelir-lhe por natureza (...)”(9)

Apreciar-se-á que os escritos espontaneamente teológicos do jovem Hegel são na verdade um grande ata acusatória contra o cristianismo. Todo conhecedor da literatura achará nas passagens que citamos várias coisas nas quais ecoa a luta geral antirreligiosa da época.

Contudo é necessário destacar claramente, simultaneamente, que se recordam essas coincidências na tendência antirreligiosa, as diferenças metodológicas entre Hegel e o Iluminismo. Já chamamos a atenção sobre o fato de que Hegel, diferentemente de Diderot, Holbach ou Helvetius, nunca combateu a religião em geral, mas se limitou a contrapor polemicamente o cristianismo positivo a uma religiosidade não positiva. (E neste sentido seus maiores pontos de contato são com Rousseau). Mas a isto acrescenta mais uma divergência enquanto à metodologia geral da luta anticristã; os iluministas não importantes falam muitas vezes, como Hegel, dos efeitos escravizadores do cristianismo com sua destruição da liberdade e da dignidade humanas. Mas este motivo não constitui para aqueles como para Hegel o ponto central da polêmica. Para aqueles é pelo menos tão importante quanto isto o contrastar as doutrinas do cristianismo e de todas as religiões em geral com os fatos da realidade tal como este foram recolhidos pela ciência da época, para desmascarar deste modo a variedade e a contraditoriedade internas das religiões.

Este motivo desempenha, por outro lado, um papel totalmente subordinado no jovem Hegel. Este diz de vez em quando, como vimos, que os dogmas do cristianismo são incompatíveis com a realidade e com a razão; entretanto esta afirmação desempenha um papel episódico em suas exposições. Inclusive quando chega a falar explicitamente desta questão, o que lhe importa não é o aspecto científico dela – a discordância dos dogmas religiosos com a realidade -, mas a imposição imoral da Igreja a humanidade racional que consiste em apresentar estes dogmas positivamente e sem exame, como objeto de fé e sentimento religioso. Esta metodologia nos mostra com toda clareza porque e como os grandes iluministas franceses estão infinitamente acima de Hegel enquanto decisão de sua luta antirreligiosa. Porém também podemos observar, ao mesmo tempo, que o subjetivismo do jovem Hegel, que é o que leva a esse posicionamento mesmo surgido do atraso da Alemanha das características do Iluminismo alemão da filosofia kantiana, etc., do ponto de vista social e ideológico, constitui, por outro lado, o fundamento para a elaboração tanto do “aspecto ativo” quanto do historicismo de seu modo filosófico de ver.

Contudo teremos de nos ocupar outra vez detalhadamente neste capítulo dos fundamentos filosóficos e de suas consequências da concepção hegeliana da positividade. O que aqui nos importava era exclusivamente tornar visível a linha fundamental, o perfil básico deste conceito central de seu período de Berna, para que o leitor possa compreender corretamente a concepção geral histórico-filosófica do jovem Hegel.

O jovem Hegel é, como mostramos, partidário do “primado da razão prática. Para ele, o absoluto, o independente e o prático são simplesmente idênticos. Esse exclusivo apelo à razão prática é o traço comum de sua filosofia juvenil e a de Schelling. Já a propósito da questão das relações entre razão prática e a teologia pudemos apreciar os pontos de concordância e divergência entre o jovem Hegel e o jovem Schelling. E como a amizade inicial filosófica de Hegel e Schelling e seu posterior rompimento desempenharam um papel importante na história da constituição da dialética, consideramos inevitável expor resumidamente a atitude de Schelling neste período. Numa de suas primeiras obras – a Nova dedução do direito natural [primavera de 1796] - , Schelling, de acordo com Fichte e segundo concepções aparentadas com o conceito de positividade de Hegel, explica que o Incondicionado, o Absoluto, nunca pode ser objeto:” Enquanto me proponho aferra-lo como objeto, tornará a cerrar-se nos limites do condicionado. O que é para mim objeto não pode mais que aparecer-me; enquanto seja mais do que fenômeno, mais do que aparência, restará aniquilada minha liberdade (...) Por isso, se tenho que realizar o Incondicionado, este tem que deixar de ser objeto para mim.” O Absoluto é idêntico ao Eu.(10)

Mesmo mais claramente se apresentam essas concepções de Schelling, com todas as suas consequências no breve trabalho não destinado à publicação cujos fragmentos se conservaram em uma cópia manuscrita de Hegel do ano de 1796. A cópia começa com a parte ética do escrito de Schelling. Não sabemos como era o texto anterior. Talvez se tenha perdido a primeira parte da cópia: porém também pode ser – e isso seria bastante característico do jovem Hegel – que nosso filósofo houvesse copiado apenas a parte da ética. Schelling expõe neste texto que a filosofia inteira (ele diz “a metafísica”) é idêntica à ética; que Kant exprimiu o processo em seu sentido, contudo muito menos não o esgotou. E que partindo dessa concepção se chegará a novos conceitos sobre a natureza e as ciência dela. Aqui se anuncia, pois, os primeiros sonhos filosóficos naturais do jovem Schelling. Entretanto, para nosso problema importa mais sua concepção de sociedade e do Estado. Diz Schelling a este respeito: “Passo agora da natureza à obra do homem. Antes de tudo, a ideia da humanidade: quero mostrar que não existe uma ideia do Estado, porque o Estado é algo mecânico, e não há ideia de uma máquina. Somente o que é objeto da liberdade pode chamar-se de ideia. Devemos, pois, passar por cima do Estado e sair dele. Pois todo Estado tem que tratar aos homens livres como engrenagens mecânicas; e não deve fazê-lo; portanto, deve extinguir-se”. Partindo dessa reflexão o jovem Schelling quer formular os princípios de uma história da humanidade, “e despojar toda a desgraçada obra do homem do Estado, a Constituição, o Governo e a legislação, de todo o que não seja a pele”. A seguir é necessário expor as ideias do mundo moral e da religião. “Derrotar toda superação, perseguir com a própria razão ao sacerdócio que agora se faz passar por racionalidade. Liberdade absoluta para todos os espíritos, os quais levam em si o mundo intelectual e não deve buscar nem Deus nem a imortalidade fora de si.” O fragmento termina com a proclamação da estética como cume da filosofia do espírito, e com o pedido de criar uma nova “mitologia popular”(11).

Não é difícil reconhecer nestas observações desordenadas do jovem Schelling importantes ideias básicas de seu célebre período da filosofia da natureza (em Iena). E nem é difícil ver o quanto perto andam as aplicações e ampliações schellingianas da “razão prática” da concepção hegeliana da positividade. Por isso é compreensível que Hegel e Schelling se considerassem na juventude aliados filosóficos. Contudo tão importante ao menos com isso é compreender claramente que já neste período existem entre Schelling e Hegel contradições profundas, mesmo nunca abertamente expressas. Como vimos Schelling vai muito mais longe do que o jovem Hegel na recusa de toda “positividade”. Para ele é “positivo” no sentido de Hegel, e do primeiro momento, o Estado e tudo o que tem a ver com ele; a libertação da humanidade coincide para Schelling com a libertação a respeito do Estado como tal. Isto significa que já nesse período Schelling não compartilhe – ou deixou de compartilhar – as ilusões revolucionárias do jovem Hegel sobre uma radical renovação do Estado e da sociedade, renovação que teria como consequência a superação e supressão de suas características “positivas”. Com ela a utopia concretamente revolucionária do jovem Hegel se converte no que – utilizando um conceito de origem posterior – poderíamos chamar a utopia anarquista de uma libertação não-estatal da humanidade. E não é tampouco difícil ver que esta característica está em intima relação com o fichteanismo declarado do jovem Schelling, independente de que seja a causa ou consequência dele.

O jovem Hegel se distingue a principio de seu aliado filosófico por sua problematização histórica. Para ele, o positivo não é o Estado em geral e abstratamente, contudo somente o Estado despótico, desde a Roma Imperial até o presente. Porém o Estado Antigo, por outro lado, é produto e expressão da livre atividade dos homens, da sociedade democrática. Por isso o objetivo de Hegel e as perspectivas do desenvolvimento que considera não são a aniquilação do Estado enquanto tal, porém o restabelecimento da antiga cidade-estado – que não é positiva -, da antiga democracia livre e ativa.

Aparentemente e julgada segundo o critério dos costumes metodológicos da época, a problematização do jovem Hegel é menos filosófica do que a de Schelling. Este utiliza a contraposição kantiana-fichteana liberdade-necessidade, essência-aparência (pares contrapostos que nele e em Fichte, são muito mais sinônimos que no próprio Kant), de um modo que acarreta a plena resolução da teoria do conhecimento na ética. Tudo o que para a ética é objeto da prática, e não sujeito, se converte em “simples objeto” (é “positividade”, segundo a terminologia do jovem Hegel). Este mundo da morte da objetividade coincide simultaneamente com o mundo “fenomênico” kantiano, ou mundo do aparecer; somente a prática põe ao homem em relação com a verdadeira realidade, a essência. A conexão entre a teoria kantiana do conhecimento professada pelo jovem Schelling e a a-historicidade de seu ponto de vista se pode avaliar claramente aqui. E ao mesmo tempo se faz compreensível porquê o jovem Hegel, para o qual a positividade era antes de tudo um problema histórico, se interessou muito pouco por este aspecto epistemológico do desenvolvimento do kantismo por meio de Fichte e Schelling.

A indiferença de Hegel para com as construções ético-epistemológicas de seu amigo de juventude não significa, pois, em absoluto uma atitude a-filosófica. Em realidade, já nessa atitude podemos distinguir os primeiros brotos da grandiosa concepção posterior de Hegel que levou os problemas filosóficos, os problemas das categorias, a uma situação de intima relação com o desenvolvimento histórico da realidade objetiva. Ao colocar no centro de sua problematização o conceito de positividade – que havia sido até então um conceito a-histórico, o polo inverso da religião deista na teologia, ou do direito natural na teoria jurídica -, o jovem Hegel dá o primeiro inconsciente para sua posterior concepção dialética da história. Sem dúvida se deve repetir a este propósito que no período do jovem Hegel não somente ignorou o alcance filosófico de sua problematização, como que nem sequer se ocupou muito na fundamentação filosófica do mesmo ou de seus requisitos filosóficos.

Este caráter histórico da problematização central do jovem Hegel se desenvolve paulatinamente. Sem dúvida hoje já conatos dele do primeiro momento – na medida em que as de seu desenvolvimento -, especialmente o contraste entre a Antiguidade e o Cristianismo. Porém o historicismo propriamente dito da concepção se desenvolve passo a passo; no espírito seguinte, a propósito do período de Frankfurt, veremos em que grande medida se desenvolve mais elasticamente no sentido da historicidade, o conceito de positividade já central em Berna.

Na época de estudante em Tubinga, esta problematização tem, mesmo em Hegel um caráter acentuadamente antropológico-filosófico. Dissemos já que possuímos desta época abundantes anotações e citações de Hegel referentes ao tratamento antropológico das faculdades intelectuais, das diversas possibilidades físicas e mentais do homem, anotações nas quais se alude a quase toda a literatura do Iluminismo alemão sobre este tema e a as importantes obras do Iluminismo francês e inglês. Estas citações que se editaram nestes últimos decênios (primeiro na revista Logos, e depois no livro de Hoffmeister), não foram, contudo, aproveitadas nos estudos hegelianos. Em especial, carecemos mesmo de todo estudo sobre a medida na qual foram aproveitados por Hegel para as partes antropológicas da Fenomenologia e da Enciclopédia.

Tal investigação ficaria fora do âmbito de nosso estudo. Aqui nos limitaremos à observação metodológica geral de que a historização da antropologia é um dos traços característicos gerais do desenvolvimento de Hegel. Não só no sentido de que a Fenomenologia tente articular os problemas, da antropologia no processo histórico dialético, como também no sentido da estrutura global dos princípios do sistema. Assim a intuição, a representação e o conceito, tratados nas citações juvenis, como problemas antropológicos são para o posterior Hegel, por ouro lado, principio de sistematização (Intuição: estética; Representação: religião; Conceito: filosofia), e por outro lado, fundamentos simultaneamente da periodização (estética: Antiguidade; religião: Idade Média; filosofia: Idade Moderna).

É importante para nossa problematização a confrontação inicialmente antropológica, de memória e fantasia. Hegel contrasta nesta época a religião objetiva com a religião subjetiva: pelo que faz à religião objetiva, “as forças que atuam (...) são do entendimento e a memória (...). Podem também pertencer à religião objetiva conhecimentos práticos, mas na medida em que pertencem a ela são capital morto; a religião objetiva pode ser ordenada no cérebro, pode expor-se sistematicamente, expor-se num livro e a outras pessoas mediante o discurso; a religião subjetiva se manifesta em sentimentos e atos (..). A religião subjetiva é vida, sua eficácia no interior do ser e a atividade para o exterior”. E Hegel compara logo a religião subjetiva, com os seres vivos da natureza, e a objetiva com os animais dissecados dos gabinetes de história natural”(12). Esta contraposição se mantem em todo o período de Berna, e bastará com o que foi dito até agora para apreciar que a religião objetiva de Tubinga é o primeiro estudo da ideia da positividade do cristianismo tal como a encontramos no período de Berna. Limitar-me-ei a aludir um parágrafo dos estudos históricos de Berna para deixar claro como continua atuando aquela ideia: “a memória é forca em que ficam dependurados dos deuses gregos (...) . A memória é o túmulo onde se conservam os mortos. O morto descansa nela como coisa morta. E se classifica como uma coleção de pedras”. Segue a isto um ataque duro contra as cerimonias cristãs das quais diz: “É uma ação de mortos. O homem tenta nelas se converter plenamente em objeto, fazer-se delimitar totalmente por um poder alheio. Este serviço se chama oração”(13).

A atitude do jovem Hegel no período de Tubinga é uma duríssima polêmica de todo iluminista contra a religião objetiva. Somente a religião subjetiva tem valor para ele. Esta tem mesmo sem duvida um matiz a-histórico que procede da “religião natural” ou “racional” do Iluminismo; e a concepção do jovem Hegel está claramente sob a influência principal de Lessing: “A religião subjetiva se encontra no homem bom, enquanto que a objetiva pode ter a cor uniforme que quiser; o que faz do cristão para nós é o mesmo que faz de vós alguns judeus para mim, diz Natan (ato IV, cena 7, de Natan o Sábio, de Lessing, G. L.), pois a religião é um assunto do coração, o qual opera amiúde inconscientemente contra os dogmas admitidos pelo seu entendimento ou sua memória (...).”(14) Porém no jovem Hegel do período de Tubinga esta construção entre religião subjetiva e religião objetiva se entrecruza na distinção entre religião pública e religião privada; e há que observar que a este propósito que a unificação histórico-metodológica de ambos pares não se produz, até o período de Berna. Mas já no período de Tubinga a concepção de Hegel põe em estreito contato a religião pública com a subjetiva, e a privada com a objetiva.

Aqui pode afincar-se tangivelmente a dialética conatural ao jovem Hegel muito antes que o problema da dialética se apresente conscientemente em seu pensamento. Pois o marco de sua concepção formal e metafísica haveria que combinar melhor o subjetivo com o privado e não o público. O fato que Hegel rompa aqui espontaneamente os quadros do pensamento metafísico é, por outro lado, consequência do brotar progressivo de sua concepção histórica e, por outra parte, efeito do irresistível impulso para a liberdade que se desencadeia nele a Revolução Francesa. A religião subjetiva é em sua concepção uma verdadeira “religião popular” ou nacional. E o próprio Hegel resume do seguinte modo as exigências que devem pôr-se a tal religião: “I. Suas doutrinas tem de ser de tal natureza que se enlace diretamente com ela todas as necessidades da vida, as ações públicas do Estado”. E na parte seguinte, que é negativa e polêmica, Hegel recusa todo feiticismo, incluindo os feiticistas aos apologistas pseudoiluministas do cristianismo(15). O linguajar dessas manifestações está claro. O única coisa a acrescentar é a observação de que Hegel parte aqui explicitamente da racionalidade da religião subjetiva e da objetiva. Com isso basta para comprovar que todas as interpretações reacionárias do período imperialista que veem na contraposição hegeliana de fantasia e memória um sinal de seu “irracionalismo” são inversões da realidade numa calunia contra o filosofo. E pelo que faz ao conteúdo social das exigências postas à religião pública, Hegel se manifestou também inequivocamente neste período. O jovem Hegel sublinha que a religião pública não deve conter apenas mandamentos e proibições diretas – por exemplo, não roubarás – mas que “especialmente as prescrições mais indiretas são as que mais tem que se valorizar, porque são frequentemente as que de maior importância. Estas são principalmente as que constituem a elevação e o enobrecimento do espírito de uma nação: por elas se desperta em sua alma o sentimento de sua dignidade, tão frequentemente adormecida para que o povo não se desprenda dele nem permita que o arrebatem”(16). A religião subjetiva, a religião pública é, pois, já para o estudante de Tubinga a religião de autolibertação do povo.


Notas de rodapé:

(1) Nohl, pag. 233. (retornar ao texto)

(2) Rosenkranz, p. 482. (retornar ao texto)

(3) Plitt, Aus Schelling Leben in Briefen, Leipzig, 1869, vol. I, p 72. Citado a partir de agora como Plitt. (retornar ao texto)

(4) Rosenkranz, p. 67 e ss. (retornar ao texto)

(5) Rosenkranz, p. 67. (retornar ao texto)

(6) Nohl, p. 212. (retornar ao texto)

(7) Ibidem.(retornar ao texto)

(8) Nohl, p. 234. (retornar ao texto)

(9) Ibidem, p. 236. (retornar ao texto)

(10) Schelling Weke ed. por M. Schröter, Iena, 1926, vol I, p. 106. (retornar ao texto)

(11) Publicado por Hoffmeister, p 219 e ss. (retornar ao texto)

(12) Nohl, p 6 e ss. (retornar ao texto)

(13) Rosenkranz, p. 518 e s. (retornar ao texto)

(14) Nohl, p. 10.(retornar ao texto)

(15) Nohl, p. 20 a. (retornar ao texto)

(16) Ibidem, p. 5. (retornar ao texto)

Inclusão 12/11/2018