O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista

Georg Lukács


Capítulo II - A Crise das concepções sociais de Hegel e os começos do seu método dialético (Frankfurt, 1797-1800)
1 – Caracterização geral do período de Frankfurt


Não havia ponte alguma que unisse as concepções do período de Berna com a realidade social do presente alemão. A inatualidade objetiva e a impossibilidade de uma revolução burguesa na Alemanha privavam por antecipação as tentativas de pôr em prática aquelas concepções. E a natureza de Hegel estava desde o primeiro momento orientada energicamente para a prática. Hegel teve sempre a esperança de poder intervir na vida política de seu tempo, É, por exemplo, característico, que depois da composição a Fenomenologia do Espírito haja aceitado agradavelmente e cheio de esperanças o cargo de redator que lhe ofereceram em Bamberg; a decepção começou no curso desse trabalho, sobretudo em consequência de extraordinárias limitações do campo de atuação desta publicação sob as condições da censura da época.

É um fato que uma camada relativamente grande da intelectualidade burguesa alemã simpatizasse com as ideias da Revolução Francesa. De acordo com toda probabilidade, essa camada era bastante maior do que pode se crer baseando-se nas tendenciosas exposições da historiografia burguesa. Mas, de qualquer forma, não foi suficientemente ampla e influente de modo a possibilitar material e moralmente uma difusão editorial, filosófica ou poética das ideias da Revolução Francesa. Assim o prova o trágico destino do amigo juvenil de Hegel, Hölderlin.

A defasagem entre as concepções de Hegel no período de Berna e a realidade social fica aprofundada pelo desenvolvimento da Revolução Francesa. E isso em dois sentidos: por um lado, por causa do desenvolvimento interno das lutas de classes em França; por outro, em consequência dos efeitos das guerras da República Francesa contra a intervenção absolutista-feudal.

O grande ponto de inflexão na história da Revolução Francesa, Termidor (1794), esse ainda no período bernense de Hegel. Parece que o acontecimento não impressionou imediatamente ao filosofo de um modo decisivo. Vimos que estava de acordo com as repressões contra os robespierristas; mas isto nada mais prova que sua separação por princípio da ala plebeia radical da Revolução Francesa. Em suas concepções republicano-revolucionárias não podemos apreciar nenhuma diferença correspondente a Termidor. Este fato, que é sem dúvida surpreendente à primeira vista, tanto pelos desenvolvimentos da própria Revolução Francesa quanto pelos pontos de vista estimados pelo jovem Hegel. A história interna da França sob o Diretório foi uma constante oscilação dos republicanos burgueses — que queriam conservar e desenvolver as conquistas da Revolução Francesa necessárias ao avanço da burguesia —, entre as pretensões da reação monarquista e os esforços dos partidos plebeus radicais que tentavam seguir a anterior linha radical da Revolução. Os dirigentes dos republicanos burgueses tentavam realizar acordos constantemente, algumas vezes com sua direita outras com sua esquerda. A instável situação das lutas de classes em França suscitou o desejo de uma ditadura militar pelo lado da burguesia francesa (9 de novembro de 1799: golpe de estado de Napoleão Bonaparte).

Ainda mais importante para a compreensão deste período é a qualificação social de Termidor. Diferente da historiografia liberal e de seus repetidores trotskistas, Marx exprimiu com extraordinária clareza o conteúdo social de Termidor: “A queda de Robespierre, o iluminismo político (...) que havia sido poeticamente inchado, começa a realizar-se prosaicamente. Sob o governo do Diretório irrompe a sociedade burguesa em poderosas torrentes de vida: a própria Revolução a havia liberto dos laços feudais e a havia reconhecido oficialmente, ainda que o Terror houvesse quisto sacrificá-la segundo uma vida pelo modelo antigo, Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto – n.do t.], por empresas comerciais, avidez de enriquecimento, atividade intensa da nova vida burguesa, cujo gozo de si era ainda fresco, alegre e despreocupado, frívolo, embriagador; real clareza da situação da terra francesa, cuja articulação feudal havia sido despedaçada a golpes de marreta pela Revolução e que fica agora submetida pela primeira febre de muitos novos proprietários a um cultivo polifacético; primeiro movimento da indústria liberta: tais são alguns dos sinais vitais da sociedade burguesa recém-surgida. A sociedade civil fica positivamente representada pela burguesia. Assim a burguesia começa seu domínio”(1).

Esta nova orientação no desenvolvimento da classe burguesa em França se reflete, como é natural, na Alemanha atrasada de modo ainda mais deformado, mediado e ideológico que os acontecimentos heroicos da própria Revolução. Não poderia produzir-se na Alemanha um florescimento econômico comparável com o que ocorreu em França. Poucos foram os observadores alemães que entenderam, ou que poderiam entender os aspectos econômicos do desenvolvimento francês depois de Termidor. Tanto mais profundamente arraigam as manifestações ideológicas coerentes. Seja pelo fato que a maior parte dos humanistas burgueses alemães careceu de toda compreensão para o ascetismo plebeu da extrema esquerda revolucionária e o rechaçaram, tinha que produzir neles a simpatia por este regime burguês que recusava o feudalismo e a reação, mas atuava com grande energia contra os “extremos” revolucionários, e constituía-se num regime burguês risonho e alegre afirmador da vida. Esta simpatia, que mais tarde se concentra na pessoa de Napoleão Bonaparte, contém uma transfiguração e uma idealização humanístico-idealista do período posterior a Termidor.

As novas ilusões esperam que o ideal humanístico do homem plena e harmonicamente desenvolvido seja plenamente realizável na sociedade burguesa do presente. Certamente os representantes mais importantes desse humanismo burguês viram também as contradições do novo desenvolvimento, especialmente os obstáculos e inibições que a sociedade capitalista opõe à verdadeira implantação da personalidade. A discussão desses problemas constitui um dos conteúdos capitais da literatura clássica alemã. E no curso da análise das concepções de Hegel poderemos observar que seus posicionamentos correm em paralelo com o dos principais representantes do humanismo clássico alemão, Goethe e Schiller. Os neohegelianos imperialistas aproveitam principalmente a confusão, a obscuridade e o misticismo do pensamento e a terminologia de Hegel no período de Frankfurt para fazer dele um precursor ou partidário do romantismo reacionário, colocam também aqui invertida a imagem do desenvolvimento real.

Esta etapa dos acontecimentos franceses põe, pois, em primeiro lugar a discussão da sociedade burguesa. Como correspondem ao atraso econômico, político e social alemão, a discussão se produz de acordo com uma linha quase exclusivamente ideológica. Não se trata de propor politicamente os problemas da sociedade burguesa, como acontece em França, nem tampouco de analisar cientificamente as leis econômicas subjacentes a ela, como fizeram em Inglaterra, mas se trata simplesmente de um estudo da situação do homem, da personalidade e de seu desenvolvimento é sem dúvida um eco do desenvolvimento francês pós-termidoriano, e este eco se lança a uma considerável culminância de realismo na poesia da época, especialmente na de Goethe.

Na filosofia do jovem Hegel se apresentam, naturalmente, muito mais acentuados e dominantes, os traços idealistas. Mas, já aqui – antecipando uma tendência básica do desenvolvimento de Hegel – é preciso sublinhar que o filósofo é o único pensador alemão da época em que a discussão da sociedade burguesa chega a se ocupar seriamente dos problemas da economia. E isto se manifesta não pelo fato de que Hegel seja o único pensador alemão importante da época que estudou seriamente aos economistas ingleses clássicos, mas também a circunstância de que o estudo se estenda inclusive, como veremos, à situação econômica concreta da Inglaterra. Enquanto em Berna levanta sua construção histórico-filosófica sem basear-se mais do que ao fato histórico-universal da Revolução Francesa, a partir deste momento o desenvolvimento econômico da Inglaterra se converte em outro elemento básico de sua concepção histórica, de sua concepção de sociedade. Seguramente não fará falta detalhar que também neste caso Hegel continua sendo um filósofo alemão de seu tempo, cujas concepções fundamentais estão decisivamente determinadas pelo atraso da Alemanha.

Esta componente se reforça muito no período de Frankfurt, e isso precisamente devido ao curso da Revolução Francesa. Hegel regressa à Alemanha depois de três anos de ausência, passa três meses em sua terra natal de Württemberg e depois se dirige para viver num dos principais centros comerciais da Alemanha, Frankfurt. Tem, pois, a possibilidade de observar de perto os efeitos da Revolução Francesa na vida alemã. Estes efeitos eram em Württemberg bastante consideráveis, e provocaram ali uma crise de governo que duraram anos, mesmo que não passara em suas dimensões dos marcos prescritos pelo atraso político da Alemanha. O problema de como tem de modificar-se a estrutura feudal-absolutista da Alemanha pela Revolução Francesa se põe, pois, agora para o jovem Hegel, não como um problema pura e genericamente histórico-filosófico, mas politico concreto.

Mas neste momento a influência da Revolução Francesa na Alemanha não se limita só ao terreno ideológico, a produzir o despertar que a formas de governo feudal-absolutista são insustentáveis. Exatamente nesta época as guerras defensivas da República Francesa passam a uma ofensiva quase ininterrupta. Isto significa que a França deixa de ser o campo de batalha, e passam a sê-lo Alemanha e Itália. Ao mesmo tempo, e em consequência das transformações subsequentes e coerentes a Termidor, a mistura de guerra ofensiva e guerra de propaganda política, que era característica dos primeiros anos da Revolução, se convertem preponderantemente em guerra de conquista, Conservam-se sem dúvida em todo o período, inclusivo sob o Império, alguns elementos da guerra de propaganda política. Todo governo francês da época se vê obrigado a liquidar ao máximo nos territórios conquistados os restos feudais, e se aproximar da situação econômica e política à francesa. Mas esta tendência vai se subordinando cada vez mais aos objetivos da conquista da República burguesa e a seguir do Império.

Assim as guerras com a França afetam direta e profundamente à vida dos alemães. Como veremos mais tarde minuciosamente, a influência resultante foi extraordinariamente contraditória. Por um lado, os ideólogos melhores e mais progressistas da Alemanha depositaram na influência da Revolução Francesa suas esperanças pelo que faz por uma renovação do país, e às vezes se puseram inclusive na intervenção armada francesa. Basta pensar na República de Maguncia e em sua relação com as vitórias transitórias das campanhas de Custine; esse mesmo estado de ânimo existia nos tempos da Federação Renana. Por outro lado, a conquista francesa complicou mais a profunda desagregação nacional de Alemanha. A unidade nacional, o nascimento do Estado nacional unitário, parece afastar-se ainda mais, e sua realização se faz ainda mais contraditória.

Ao estudar o período de Frankfurt veremos o quanto estava despreparado Hegel para dominar politica e filosoficamente as contradições surgidas desta situação. Mas também veremos como, precisamente esse aproximar-se dos concretos problemas da sociedade burguesa, do atual destino social e político da Alemanha, a contraditoriedade se pôs cada vez mais intensamente no centro de seu pensamento, e a contradição passou a ser vivida, por ele como fundamento e força motriz da vida. Pusemos em itálico a palavra “vivida” porque o desenvolvimento de Hegel não procede de passar de um sistema ao outro, como é em resumo o caso de Schelling. Teremos de lembrar o período de Berna, e especialmente aquele traço de seus trabalhos bernenses, que consistia no escasso interesse pelos problemas filosóficos, sobretudo os epistemológicos e lógicos. Ele queria dominar com o pensamento determinadas conexões temáticas e usava a filosofia para realizar as generalizações imprescindíveis nesta tarefa. Tal continua sendo de imediato, e em geral seu método de trabalho em Frankfurt. Mas veremos que paralelamente à concretização cada vez mais intensa de seus problemas sociais e políticos, a passagem a posicionamentos conscientes e diretamente filosóficos é cada vez mais curta e rápida, que os posicionamentos sociais e políticos, se transmutam cada vez mais diretamente em outros filosóficos. E é interessante observar que isto ocorre tanto mais violenta e diretamente quanto mais é precisamente a contradição o núcleo filosófico do problema concreto tratado em cada caso.

A dificuldade de uma interpretação direta dos apontamentos e fragmentos de Hegel no período de Frankfurt se deve exatamente a que esta transmutação é na maioria dos casos extraordinariamente abrupta, sem mediação, sem dedução. O pensamento de Hegel durante seu período de Frankfurt, em violento contraste não somente com seu desenvolvimento anterior, mas também com o posterior, parte quase sempre de vivências individualmente matizadas, e chega estilisticamente tanto a impressão da paixão como da imprecisão e obscuridade da vivência pessoal. E a incipiente formulação filosófica das contradições vividas está diretamente ligada a vivencias individuais e carece quase sempre de real claridade e univocidade, tanto no conteúdo quanto na forma. As primeiras formulações filosóficas de Hegel se perdem frequentemente em uma mística abstração. A isso se acrescenta que a princípio sente pouca necessidade de compor sistematicamente as vivências ideais individuais. Hegel quer, sobretudo, resolver determinados problemas concretos históricos e políticos. As concepções filosóficas crescem ao longo desse esforço, cada vez mais robusto, intima e estreitamente ligados com suas análises dos fenômenos particulares. Ao final do período de Frankfurt realiza por ultimo a primeira tentativa em sua vida de compor em um sistema suas concepções filosóficas.

A primeira aparição do método dialético em Hegel é, pois, extraordinariamente confusa. As contradições vividas das manifestações individuais da vida ficam situadas em um mistificado contexto ao qual ele chama “vida” durante este período. Não rompeu ainda sistematicamente com a lógica e a teoria do conhecimento do pensamento metafísico. Por isso a contradição entre pensamento metafísico e dialética se manifesta primeiro como contradição entre pensamento, representação, conceito, etc., por um lado, e a “vida” por outro. Nesta contradição se manifesta a profundidade da posterior dialética de Hegel, aquela apaixonada tendência de aprisionar os concretos fenômenos da vida em toda sua contradição, a tendência pela qual, como assinalou Lenine, Hegel muitas vezes se aproxima da dialética materialista. Porém, no período de Frankfurt a concepção desta vida está desfocada por sua falta de clareza e está repleta de conteúdo místico. A oposição entre representação e vida leva, com efeito, Hegel a ver na religião a consumação plena da “vida”, e, portanto, a culminação do sistema filosófico.

Trata-se de uma inflexão importantíssima em relação ao período de Berna. Como veremos a seguir detalhadamente, o fundamento desta mudança de perspectiva consiste em que o posicionamento central de Hegel seja agora a posição do indivíduo, do homem na sociedade burguesa. Em Berna, Hegel tinha observado, de fora, por assim dizer, a sociedade burguesa de sua época, ou seja, havia considerado todo o desenvolvimento histórico que vai do final da república romana até o seu presente como um período de decadência, como algo historicamente transitório, apesar de que houvessem durado séculos, por algo que tinha de ser a renovação das antigas repúblicas; por isso, coerentemente, prestou mais atenção aos traços negativos deste período. Poderia dizer-se que no período de Berna Hegel havia considerado a sociedade burguesa como um fenômeno unitário da decadência.

A nova etapa de desenvolvimento de Hegel se caracteriza, sobretudo pelo fato de ver na sociedade burguesa um dado básico e imutável, com cuja essência e legalidade objetiva tem então que enfrentar no pensamento e na prática. Este confronto, esta ocupação nova, começa sobre uma base muito subjetivista. Quer dizer: Hegel não posiciona ainda o problema do ser objetivo da sociedade burguesa, como fará mais tarde em Iena. Seu problema é antes como deve comporta-se o homem individual com a sociedade burguesa, como entram em contradição os postulados morais e humanistas do desenvolvimento da personalidade com a estrutura e a legalidade da sociedade burguesa, e como apesar de tudo estes postulados podem se harmonizar com esta, reconciliar-se com esta. Com isto está dito que mudou radicalmente a atitude de Hegel em relação ao presente. Para qualificar sua nova atitude utilizamos a categoria de seu sistema que a seguir será célebre e terá a má fama, a categoria de ”reconciliação”. E não por acaso, pois esta categoria – contra a qual manteve o próprio Hegel, em Berna, como se recordará (ver Capítulo I – 5 - O cristianismo: despotismo e a escravidão do homem), a luta mais violenta, se apresenta neste período exatamente como um problema central do pensamento. A relação entre indivíduo e sociedade burguesa se estuda certamente agora na busca de suas contradições, ou mais precisamente, no curso do estudo concreto surgem constantemente novas contradições; mas o objetivo do pensamento de Hegel é agora superar e suprimir essas contradições leva-las a reconciliação. (Também a palavra Aufheben – superação e preservação -, tão importante a seguir, se preserva pela primeira vez no período de Frankfurt, e nele vai sendo uma categoria cada vez mais dominante de seu pensamento).

E preciso distinguir claramente essa nova forma do subjetivismo hegeliano do idealismo subjetivo do período de Berna. No primeiro capítulo analisamos este último, pelo quê nos basta lembrar ao leitor nosso resultado final naquele contexto, a saber, que naquele período o sujeito do acontecer histórico-social é sempre para Hegel um sujeito coletivo. O isolamento do individuo após a ruptura imediata da sociabilidade de sua vida nas antigas repúblicas-estado, o nascimento do “homem privado”, era então para Hegel o mais claro sintoma de decadência. O subjetivismo de Hegel em Frankfurt é, por outro lado, um subjetivismo em sentido literal. Ele parte real e diretamente do indivíduo, de suas vivências e destinos, e estuda a seguir as formas particulares da sociedade burguesa referindo-as a estas formas de destino individual, a sua interação com ele.

Lenta e progressivamente devolve o predomínio do estudo do mundo circundante objetivo do individuo, o estudo da sociedade burguesa. Partindo do destino individual, do “homem privado” tão depreciado antes, Hegel tenta surpreender as legalidades particulares gerais da sociedade burguesa, penetrar até o seu conhecimento objetivo. Neste esforço volta a apresentar-se o velho problema do período de Berna, o da “positividade”, mas agora recebe, no curso do estudo uma fórmula muito mais complicada, contraditória e histórica do que a de Berna. E exatamente este novo posicionamento induz a Hegel a um estudo cada vez mais detalhado das forças dominantes da sociedade burguesa, o estudo dos problemas econômicos. A tentativa de conseguir reconciliar filosoficamente os ideais humanistas do desenvolvimento da personalidade com os fatos objetivos e inelimináveis da sociedade burguesa leva Hegel a uma compreensão mais profunda dos problemas da propriedade privada primeiro e do trabalho como relação recíproca fundamental entre o indivíduo e a sociedade.

Por outra parte a atitude de Hegel em relação ao presente acarreta em comparação com o período de Berna uma mudança completa também na atitude em relação ao cristianismo. Após o pouco que dissemos esta última mudança já não pode surpreender. É sabido que toda concepção idealista da história relaciona diretamente as grandes inflexões de seu rumo com as modificações ou transformações religiosas; nem tampouco a concepção histórica de Feuerbach ultrapassou esse limite. No jovem Hegel, o juízo negativo sobre a sociedade burguesa, a sociedade dos “homens privados”, estava estreitamente relacionada com sua condenação ao cristianismo. Sem prejuízo de algumas tentativas de investigar as causas sociais da decadência do republicanismo antigo, para o jovem Hegel o cristianismo era o culpado essencial, a força impulsionadora daquela evolução. Dada esta concepção da história, não pode surpreender que uma alteração na estimativa do presente acarretasse em seguida uma modificação no juízo sobreo cristianismo. Pois é claro que para o jovem Hegel – cuja concepção básica idealista se conserva sem mudança em Frankfurt, e até aumenta enquanto ao misticismo religioso – o cristianismo segue sendo, mais resolutamente ainda, o fundamento moral do presente.

Não é preciso gastar palavras em destacar o caráter idealista desta concepção. Mas é preciso compreender ao mesmo tempo em que tal concepção não é casual nem carece de raízes; daí sua tenacidade e indestrutibilidade em Hegel. Sua raiz, cujos defeitos se manifestam tão deformados e misticamente nas diversas concepções idealistas da história, é a conexão entre o cristianismo e todo o desenvolvimento europeu moderno. Marx e Engels mostraram em investigações históricos tão profundas quanto concretas como nasceram das diversas seitas na fase de dissolução do império romano exatamente o cristianismo para fazer-se seita universal. Eles mostraram de que modo se adaptou a religião cristã às necessidades dominantes nos diversos períodos de desenvolvimento econômico da Europa, de que modo surgiram sempre na historia da luta de classes europeias, formas novas da religião cristã (seitas medievais, luteranismo, calvinismo, etc.). E mostraram também inclusive a moderna sociedade burguesa alcançada tem de reproduzir como superestrutura própria a religião cristã em diversas formas modificadas. Em uma das suas exposições polêmicas contra o jovem hegeliano Bruno Bauer, Marx escreveu: “Sim, o Estado cristão consumado não é assim o chamado Estado cristão, que confessa o cristianismo como fundamento próprio, como religião de Estado, e se comporta, portanto de modo exclusivista diante das outras religiões, mas antes o Estado ateu, o Estado democrático, o Estado que situa a religião diante de outros elementos da sociedade [burguesa] civil (...). Este é o que pode abstrair da religião, porque nele está realizado de forma secular o fundamento humano da religião (...). Não o cristianismo, mas o fundamento humano do cristianismo é a base desse Estado. A religião se conserva como a consciência ideal do estado de desenvolvimento humano realizado neste Estado.”(2).

Esta conexão real histórico-social se apresenta deformada e invertida nas filosofias da história dos idealistas, e também na do jovem Hegel. O cristianismo, o produto necessário do desenvolvimento social europeu da Idade Média e da Idade Moderna, se apresenta como força motriz e impulsionadora primária do curso da história nessa fase. Deste ponto de vista geral se pode dizer que não há nenhuma mudança decisiva na filosofia de Hegel entre Berna e Frankfurt. Pois independente de que em Berna rechace o cristianismo e em Frankfurt busque uma reconciliação com ele, nos dois casos conserva a religião essa posição dominante na concepção histórica que é característica do idealismo. Certamente que pelo fato de que Hegel parta dos problemas vitais do indivíduo, enquanto, por outro lado, busca uma reconciliação com o presente, se lhe oferece uma relação muito mais íntima com o cristianismo. Deste ponto de vista, pois, sua atitude de Frankfurt significa uma mudança abrupta em relação a Berna.

Este partir dos problemas da vida individual é algo que não se encontra em Hegel senão na crise de transição de seu pensamento que se produz em Frankfurt. Exatamente é característico que Hegel – tanto em sua juventude como na maturidade – o individuo não o interessa senão como membro da sociedade. Sua posterior e violenta crítica às concepções morais de Kant e Fichte, de Scleiermacher e do romantismo, parte em geral do fato que estas concepções, mesmo por caminhos diversos uns dos outros, dissolvem o momento social em ações que aparentemente são somente individuais, e passam por cima também do condicionamento e determinações sociais das categorias éticas individuais. O apelo ao indivíduo no período de Frankfurt, o partir das necessidades ou esforços ou aspirações do indivíduo, têm, pois, somente caráter episódico no desenvolvimento de Hegel. É, contudo um episódio que deixa marcas e cujas consequências serão perceptíveis por muito tempo. Teremos, pois, repetidamente ocasião de ver os primeiros brotos do método da Fenomenologia do Espírito se encontram nos posicionamentos de Hegel em Frankfurt, no movimento que vai da consciência individual aos problemas sociais objetivos, nas tentativas de desenvolver outros determinados estádios de compreensão mental e afetiva do mundo, ou seja, na tentativa de descobrir nos estádios superiores resultados de superação e resolução das contradições dos estádios inferiores.

Porém os apontamentos de Frankfurt não devolvem essa clareza mais quando se os contemplamos com as perspectivas de obras posteriores. Tomados em si, ou lidos imediatamente após os escritos de Berna, são de uma obscuridade e confusão que assombram. Expressões pouco esclarecidas, cercadas de nuvens de associações implícitas, desempenham um papel importantíssimo no Hegel desta fase. A presença cada vez intensa da vivência da contraditoriedade como base da vida aparece neste período como uma trágica irresolubilidade das contradições. Não por acaso que temporariamente categorias como “o destino” se convertem em eixos de tentativas de dominar mentalmente o mundo, nem que neste período se apresente pela primeira e única vez em sua filosofia, uma concepção mística da vida religiosa como culminação do seu filosofar. Começou na vida e no pensamento de Hegel uma crise cujas causas sociais e históricas esboçamos em nossas observações introdutórias: a crise de suas concepções republicano-revolucionárias, que encontrou em Iena solução provisória em forma de aceitação da presente sociedade burguesa em sua específica forma napoleônica. O período de Frankfurt é de tentativa em busca de algo novo, uma lenta, mas ininterrupta destruição do velho, uma insegurança, uma busca em todas as direções, uma verdadeira crise.

O próprio Hegel sentiu assim esta fase e exprimiu claramente seu caráter de crise tanto em seus escritos posteriores quanto em suas manifestações da época. É característico nos escritos seguintes o fato que Hegel, com a sinceridade sem considerações que lhes são tão próprias, fale do infeliz estado de hipocondria e autodestruição, de ruptura consigo mesmo. Ao caracterizar na Enciclopédia as diversas idades do homem Hegel oferece uma descrição da idade juvenil, do amadurecimento do homem, que contém muitos traços importantes do período de Frankfurt. Diz que o ideal tem ainda no jovem um aspecto mais ou menos subjetivo. “Nessa subjetividade do conteúdo substancial de tal ideal encontra-se não somente a oposição do mesmo ao mundo existente, como também estímulos para resolver e superar a oposição mediante a realização do ideal”. A passagem da vida ideal do jovem até a sociedade civil é um processo doloroso e de crise: “Ninguém se afasta facilmente (...) desta hipocondria. Quando mais tarde a sofre o homem, mais perigosos são seus sintomas. [Hegel esteve em Frankfurt dos vinte e sete anos aos trinta. G.L.] (...) Neste enfermiço estado de ânimo o homem se nega abandonar sua subjetividade, não consegue superar a repugnância pela realidade, e se encontra exatamente por isso, em um estado de incapacidade relativa que se converte facilmente em incapacidade real. Por isso, se o homem não quiser sucumbir, tem de considerar ao mundo como autônomo e já feito (...)”(3).

Esta avaliação do período de Frankfurt se apresenta mais abertamente – porque pessoalmente – em uma carta de 1810: “Conheço por experiência própria este estado de ânimo, ou antes, da razão, quando com seu interesse e busca se introduziu num caos de aparência (...) e, mesmo intimamente segura já do fim, ainda não chegou a clareza e detalhe do todo. Sofri durante alguns anos essa melancolia até o esgotamento; mas provavelmente todo homem tem tal ponto de inflexão em sua vida, o ponto noturno de contração de seu ser, por cuja estreiteza passa compulsivamente e se reafirma e assegura na segurança de si, na segurança da vulgar vida diária, e quando já, se fez incapaz de que esta o preencha, na segurança de uma segurança de uma mais nobre existência interior”.(4)

Os documentos de Frankfurt falam ainda numa linguagem mais clara. Neles se apreciam muito mais claramente que essas memórias já generalizadoras dos concretos momentos humanos e sociais que desencadearam a crise. Assim, por exemplo, um fragmento do folheto de Hegel sobre a Constituição da Alemanha começa com uma exposição da situação anímica do homem presente: “Estes [os homens, G. L.] não podem viver sozinhos, e o homem está sempre só (...). A situação do homem ao que o tempo recluiu em um mundo interior não pode ser se é que quer manter-se nesse mundo, mais que uma morte constante; e se a natureza o empurra para a vida, não pode ser mais que um esforço para superar o negativo do mundo atual, para poder encontra-se e gozar nele, para poder viver.”(5)

As confissões pessoais de Hegel se encontram em umas cartas que escreveu em princípios do período de Frankfurt a Nanette Endel, uma amiga de sua irmã, à qual conheceu durante sua estadia em Stuttgart, entre o período de Berna e Frankfurt. Afirma assim em uma carta de 9 de fevereiro de 1797: “(...) e como creio que seria um trabalho ingrato dar exemplo aos homens, e que Santo Antônio de Pádua, conseguiu seguramente mais pregando aos peixes do que conseguiria eu aqui com uma vida exemplar, decidi, depois de amadurecer minha reflexão, não pretender melhorar nenhum destes homens, mas pelo contrário, pôr-me a uivar com os lobos (...)”. Sabe-se por outros documentos que Hegel esteve efetivamente nas melhores relações com a família de comerciantes de Frankfurt na que foi preceptor com seus anteriores discípulos de Berna e suas famílias. Pela carta a Schelling conhecemos a abrupta recusa republicana da sociedade patrícia bernense por Hegel. A carta que acabamos de citar mostra, por outro lado, que Hegel mudou em Frankfurt radicalmente sua tomada de posição externa diante dos homens. A passagem da carta poderia sem dúvida também interpretar-se no sentido de que se tratara de uma simples tática na relações de pessoas de seu meio, e até de hipocrisia. Mas essa interpretação se enganaria completamente sobre o caráter de Hegel. E uma passagem de outra carta datada de 2 de julho do mesmo ano, em que fala a Nanette Endel da mudança de sua relação com a natureza, nos mostra que a transformação de suas atitudes é bem mais profunda: “(...) e se ali [em Berna, G.L.] acudia aos braços da natureza para reconciliar-me comigo mesmo e os homens, aqui me refugio a miúde perto dessa mãe fiel, para tornar a separar-me dos homens com que vivo em paz, para preservar-me da influência deles sob a égide da natureza, e para abalar a aliança com eles”.(6)

Nestas cartas especialmente na última, apreciamos com toda clareza a mudança de atitude de Hegel diante de sua sociedade contemporânea. E vemos ao mesmo tempo em que essa mudança leva em si, desde o primeiro momento uma contradição interna, ou, aliás, que seu núcleo contem todo um complexo de contradições. Hegel se acha convencido muito lentamente do caráter e do fundamento objetivo dessas contradições. Daí, por um lado, o estado de ânimo torturado, hipocondríaco, de crise, durante o período de Frankfurt, apesar de que sua situação pessoal era muito melhor que em Berna; e não penso somente em suas circunstâncias externas: seu isolamento espiritual em Frankfurt muito menor do que em Berna; passou, por exemplo, os primeiros tempos em contato com seu amigo de juventude Hölderin, e através dele conheceu a outros representantes nada desprezíveis, da nova geração poética e filosófica de Alemanha, como, por exemplo, Sinclair.

Por outro lado, o caráter vivido dessas contradições, seus laços com o destino pessoal de Hegel, seu manter-se durante muito tempo simplesmente vivencial, não esclarecido conceitual-sistematicamente, explicam o modo, já citado, em que Hegel se enfrenta com os problemas neste período, a saber, partindo da vivência individual para chegar à generalização conceitual, mas de tal modo que no traçado de todo o caminho permanece visível a ocasião vivencial que desencadeou tudo. No fragmento que citamos da Constituição da Alemanha vimos um exemplo desse modo de tratar os problemas. Hegel começa somente a encontrar o caminho que fará dele um filósofo dialético. Por isso não considera que seja preciso analisar e reduzir seus motivos e legalidades de caráter objetivo, como fará mais tarde em Iena, mas vê nesse momento uma parte integrante do próprio problema. E isso é compreensível, pois o problema se posiciona a Hegel é precisamente de suas relações pessoais com a sociedade civil, a tentativa de achar seu lugar na sociedade burguesa.

Como é natural, esse não é um problema de ordem puramente pessoal. Se fosse apenas uma questão puramente biográfica o problema careceria para nós da importância que tem. Mas a contradição com que luta o jovem Hegel é objetivamente a contradição geral que afeta a todos os poetas e pensadores alemães da época; de sua solução nascem a filosofia e a poesia clássicas. E como esta poesia e filosofia conseguiram uma ampla e profunda relevância internacional, estará claro também a contradição social que é subjacente a elas é muito mais do que um assunto alemão, mesmo seu modo específico de manifestação esteja sem dúvida determinado pela situação social da Alemanha da época.

Trata-se da tomada de posição dos grandes humanistas alemães face à sociedade burguesa que triunfou na Revolução Francesa e na revolução industrial inglesa, e que começa a revelar seus aspectos repelentes, prosaicos e inóspitos para a cultura com uma clareza muito maior do que nos tempos das ilusões heroicas antes da Revolução Francesa e durante ela. Assim surge para os importantes humanistas burgueses da Alemanha a complicada e contraditória necessidade de reconhecer como necessária e única possível, essa sociedade burguesa, afirma-la como realidade progressista, descobrindo e declarando ao mesmo tempo aberta e criticamente suas contradições e sem capitular apologeticamente diante da desumanidade que lhe é essencial. O modo como tenta posicionar e resolver essas contradições a filosofia e a poesia clássica alemã – no Wilhelm Meister e o Faust de Goethe, no Wallenstein e nos escritos estéticos de Schiller, na Fenomenologia do espírito e os posteriores escritos de Hegel, etc. – mostra a grandeza histórico-universal daquele classicismo e, ao mesmo tempo, os específicos limites que punham o horizonte burguês em geral, e a “miséria alemã” em particular.

Quando Hegel fala de refugiar-se na natureza para não ser assimilado pelo ambiente social, está exprimindo aquela contradição de um modo primitivo e imediato, vivencial. Por um lado quer compreender a sociedade burguesa contemporânea sua tal como ela é, tal como ela se move, e quer cooperar com ela; por outra resiste em reconhecer como vivos e vivificadores os elementos de desumanidade e morte que existem nela. A contradição se manifesta nas primeiras experiências de Hegel em Frankfurt, é, pois, ao mesmo empo uma contradição de sua vida pessoal, apaixonada e arrebatadoramente vivida, e uma contradição objetiva de sua época.

A crise da vida e do pensamento de Hegel em Frankfurt consiste, pois em levar esta contradição até a altura da objetividade filosófica. A genialidade filosófica de Hegel, sua superioridade mental sobre seus contemporâneos, manifesta-se no fato de que partindo dessa simples expressão da contradição vivida em sua existência pessoal chegou não somente a conhecer a contraditoriedade da sociedade burguesa (mesmo sem dúvida dentro dos horizonte geral burguês e com os limites da filosofia idealista), mas inclusive a rematar dessa contraditoriedade o caráter dialético geral de toda a vida, de todo ser e de todo seu pensamento A crise de Frankfurt termina com as primeiras formulações do método dialético hegeliano, mesmo ainda nem uma versão mística. Termina também – não por acaso – com uma “reconciliação” dialética – que reconhece a contraditoriedade do fundamento – com a sociedade burguesa sua contemporânea. Foi uma rápida poesia escrita ao final do período de Frankfurt ou a princípios do de Iena, Hegel exprime muito claramente o estado de ânimo com que ele superou a crise de Frankfurt:

Audazmente pode o filho dos deuses entregar-se a luta pela perfeição;
rompe a paz contigo, rompe com a obra do mundo!
Aspira, tenta mais que Hoje e que Ontem, não serás assim
Melhor que o tempo, mas o serás do melhor modo(7).


Notas de rodapé:

(1) Marx- Engels, Die heilige Familie [A sagrada Família], op. cit., p.250 e ss. (retornar ao texto)

(2) Marx, Zur Judenfrage [Sobre a questão judia –n. do t]. Em Die heilige Familie [A Sagrada Família], op. cit., p.41, 42, 45. (retornar ao texto)

(3) Enzyklopädie, 396, Apendice , Werke , Berlim, 1845, seção VII, vol. II, p.98 e ss. (retornar ao texto)

(4) Publicada por Rosenzweig, op. Cit. vol. I, p 102. Rosenzweig publicou também uma passagem tomada das memórias manuscritas do hegeliano Gabler que se refere a uma conversa com Hegel, do ano de 1805. Hegel se expressa do mesmo modo, falando do período de Frankfurt. Ibidem, p.236. (retornar ao texto)

(5) Lason, p.139. Quando estudarmos detalhadamente os fragmentos da Constituição da Alemanha exporemos os motivos pelos quais datamos o citado fragmento do período de Frankfurt. (retornar ao texto)

(6) Beitrage zur Hegelsforschung, ed. por Lason. Segundo Caderno, Berlim, 1910, pp. 7 e 11. (retornar ao texto)

(7) Hoffmeister, p. 388. (retornar ao texto)

Inclusão 13/07/2019