Introdução a uma estética marxista
Sobre a particularidade como categoria da estética

Georg Lukács


II. A TENTATIVA DE SOLUÇÃO DE HEGEL


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Tivemos oportunidade de observar que as interessantes tentativas de Kant e de Schelling para compreender a exata relação entre universalidade e particularidade e para determinar o lugar da particularidade no contexto dialético das categorias terminaram, no primeiro, no beco sem saída do agnosticismo e, no segundo, no do irracionalismo. Este fracasso é causado pela situação histórica daqueles pensadores e pela sua posição em face dos problemas da época. Por um lado, as ciências, cujo nascimento e cujo desenvolvimento impunham à filosofia estes problemas — em primeira instância, a biologia — estavam ainda em um nível primitivo, em uma fase de tentativas, de tal modo que, se podiam colocar aos filósofos questões gerais abstratas, ainda não estavam em condições de fornecer concretas indicações metodológicas. Esta situação desfavorável é acrescida ainda pelo fato de que Kant não foi capaz de aderir ao decisivo passo à frente dado por este desenvolvimento científico, ou seja, a pesquisa da evolução; já Schelling, cujo pensamento se orientava para a compreensão filosófica da evolução, mistificou de modo irracionalista as intuições e as referências então ainda escassas de uma teoria da evolução universal. Por outro lado, tanto Kant quanto Schelling aproximaram-se dos problemas da universalidade e da particularidade quase tão somente do ponto de vista de uma compreensão filosófica do problema da vida na biologia. Escapou-lhes quase completamente que este conjunto de questões seria chamado a desempenhar um papel decisivo também nas ciências histórico-sociais, em seguida ao novo fato da Revolução Francesa. Isto ocorreu a Kant porque o seu pensamento social era determinado pelo Iluminismo pré-revolucionário, cujos problemas ele traduziu em linguagem alemã-idealista; a revolução se reflete, certamente, do ponto de vista do conteúdo, e de múltiplos modos, em seus escritos histórico-sociais, sem contudo provocar uma reviravolta em suas concepções metodológicas. Quanto a Schelling, teve desde cedo uma atitude bastante negativa em face da Revolução Francesa, para poder utilizar as experiências dela em sua filosofia; seu pensamento, precisamente no período de máximo florescimento, orientava-se de modo tão decisivo para a filosofia da natureza que lhe faltaram todos os pressupostos para aprofundar tais questões.

Hegel, como indiquei amplamente ao expor sua atividade juvenil,(1) partiu precisamente da tentativa de compreender filosoficamente as reviravoltas sociais de sua época; os problemas da filosofia da natureza só mais tarde se inserem em seu sistema. Por isso, ele pôde superar de uma maneira concreta e original os obstáculos que fizeram Kant se desviar de seu caminho. Certamente, tão logo estende o seu método aos fenômenos naturais, surgem nele limites idealistas análogos aos de seus predecessores. Também neste caso, como Engels demonstrou para toda a filosofia hegeliana, tais limites derivam da contraposição de sistema e de método. Enquanto o método dialético tende a conceber todos os setores do ser e da consciência como um processo histórico movido por contradições, o sistema fechado elimina este movimento para o presente e para o futuro, introduz contradições insolúveis inclusive na concepção de que o pensamento tem movimento, transforma frequentemente o desenvolvimento reconhecido pelo método em um desenvolvimento apenas aparente. Ainda que as filosofias de Schelling e de Hegel sejam constitucionalmente diversas e mesmo opostas em pontos decisivos, têm em comum este limite do idealismo objetivo: a identidade sujeito-objeto em vez de uma realidade independente da consciência e que é refletida no pensamento. Este limite se apresenta em ambos por toda parte, mas de modo ainda mais decisivo no que toca ao tratamento da natureza como desenvolvimento. O jovem Schelling esboça uma teoria místico-irracionalista do desenvolvimento na natureza e na história, na qual a natureza é concebida como inconsciente, a história como consciente, e sua síntese residiria na arte como atividade consciente-inconsciente. Para Hegel, a natureza é a ideia “alienada” de si mesma, o seu “ser outro” em face de si mesma. Deste modo, a filosofia hegeliana chega à consequência obscura e antidialética de que na natureza não pode existir um desenvolvimento real como o que ocorre na sociedade e na história. A natureza em sua totalidade, segundo Hegel, deve ser “considerada como um sistema de graus”.(2) O desenvolvimento, “a metamorfose não convém senão ao conceito, pois só a modificação deste é desenvolvimento”. Com esta teoria, Hegel, em sua concepção do desenvolvimento, mantém-se muito atrás de seus contemporâneos alemães como Goethe ou Oken, para não falar de Lamarck ou de Geoffroy de Saint-Hilaire.

Não obstante estes limites e estas insolúveis contradições, Hegel é o primeiro pensador a colocar no centro da lógica a questão das relações entre singularidade, particularidade e universalidade; e não como um problema singular mais ou menos importante ou mais ou menos acentuado, mas como a questão central, como momento determinante de todas as formas lógicas, do juízo, do conceito e do silogismo. Naturalmente, em seu tratamento, revelam-se todas as distorções provocadas pelo idealismo objetivo, pela identidade sujeito-objeto, pela contradição entre sistema e método; sobre as mais importantes para nossas finalidades, retornaremos demoradamente em seguida. Com toda sua contraditoriedade, todavia, a lógica de Hegel representa um importante passo à frente na concretização e clarificação de nosso problema. Veremos também que ele só pôde dar este passo porque fez múltiplas tentativas de compreender filosoficamente as experiências da revolução burguesa de sua época, de encontrar nelas a base para a existência de uma dialética histórica, para iniciar a partir daqui a construção de uma lógica de novo tipo.

Esta nova colocação do problema já é claramente visível no jovem Hegel, na época de Frankfurt. Na tentativa de expor filosoficamente a revolução burguesa, Hegel parte grosso modo de uma concepção muito afim da do famoso opúsculo do abade Sieyès sobre o Terceiro Estado. Como é sabido, Hegel repudia desde jovem o jacobinismo, mas aprova os objetivos burgueses antifeudais e a política da Revolução Francesa. Também para Hegel, o ponto de partida é o contraste entre o real peso econômico-social do Terceiro Estado e sua nulidade política. A tarefa da revolução, para Hegel, é precisamente a de criar um ordenamento estatal que corresponda às relações sociais reais. Buscando esclarecer filosoficamente esta questão, ele se depara com o problema da dialética histórico-social de universalidade e particularidade. Nesta transposição de uma concreta c atual questão político-social na abstratividade da filosofia, manifesta-se naturalmente o idealismo de Hegel, o fato de que todo o seu mundo ideal é determinado pelo atraso da Alemanha. Apesar desta necessária constatação, não é lícito esquecer que nestas abstrações de Hegel fazia-se sentir também um pressentimento da dinâmica concreta das lutas de classe. Hegel considera o Estado do Ancien Regime como uma formação que alimenta a pretensão de representar a sociedade como um todo (em lógica: de ser universal), mas tal Estado serve exclusivamente aos interesses das camadas feudais dominantes (em lógica: do particular). Para Hegel, portanto, na dinâmica histórica da revolução, manifesta-se um quadro no qual um sistema socialmente sobrevivente exerce uma verdadeira e real tirania que é desonrosa para todo o povo (o universal torna-se particular). A classe revolucionária, a burguesia, o Terceiro Estado, ao contrário, representam na revolução o progresso social, bem como os interesses das outras classes (o particular torna-se universal).

Em um fragmento de Frankfurt, intitulado “A Constituição da Alemanha”, Hegel desenvolve este pensamento do modo mais decisivo. Parte da seguinte constatação: “Todos os fenômenos desta época indicam que não mais se encontra satisfação na velha vida”. O Ancien Regime “é a má consciência acrescida do fato de transformar em absoluto, por um lado, a própria propriedade, as próprias coisas, e, por outro, através disto mesmo, os sofrimentos dos homens”. Pertence também a este quadro o fato de que “o universal, por isto, esteja presente ainda tão somente como pensamento, não como realidade”. Hegel vê claramente que tal situação leva à luta pelo poder: “a vida limitada só pode ser atacada hostilmente e com poder pelo melhor quando também ele se tornar poder”. Considerando as coisas imediatamente, trata-se aqui da luta de um particular com outro particular; da luta das classes. Mas o Ancien Regime “funda sua dominação não sobre a violência de particulares contra particulares, mas sobre a universalidade; esta verdade, o direito que ele reivindica para si, deve ser-lhe tirado e concedido àquela parte da vida que o requer”.(3) Como se vê, Hegel transpõe aqui em termos filosóficos as situações sociais e as ideias políticas que as exprimem. Todavia, esta transposição na abstratividade lógica é uma concreta generalização de reais e essenciais motivos da Revolução Francesa. Não apenas uma generalização dos pensamentos de importantes atores da revolução, mas também daquela objetiva situação ideológica socialmente condicionada, cujas formas de expressão Marx definiu posteriormente como “ilusões heroicas”, como a pretensão — inconsciente por parte de quem a realizava — de representar os interesses de toda a sociedade, se bem que, na realidade, ela combatesse sobretudo apenas pelo domínio de uma nova classe, pela substituição de uma forma de opressão e de exploração por outra. Também Hegel, naturalmente, permanecia no terreno destas ilusões. Isto em nada altera, porém, o fato de que a sua transposição em termos filosóficos era o reflexo de uma realidade social.

Não se trata absolutamente aqui de uma ideia isolada de Hegel, mas sim de uma forma típica de suas tentativas de resolver filosoficamente problemas sociais e históricos sob o influxo determinante da Revolução Francesa. Em nossa mais ampla exposição do desenvolvimento juvenil de Hegel, sublinhamos a grande importância da categoria da “positividade” neste período de sua vida e indicamos neste conceito o predecessor de conceitos centrais posteriores, como alienação e estranhamento. Mas, mesmo na juventude de Hegel, a “positividade” sofre uma substancial modificação: na época de Frankfurt, ela aparece histórica e socialmente relativizada como sendo uma categoria histórico-dialética. Em seu período de Iena, Hegel combate a “positividade” em um terreno puramente filosófico, quando sublinha, por exemplo, a positividade na ética formalista de Kant e de Fichte. Certamente, neste ponto, não se deve esquecer o fato de que, por trás da antítese entre o seu idealismo objetivo e o idealismo subjetivo de Kant e de Fichte, manifestam-se antíteses históricas na crítica de formações sociais passadas, em face das quais Hegel tenta demonstrar a superioridade da sociedade burguesa nascida da Revolução Francesa, tal como ele a compreende. Inicialmente, busca indicar que a “positividade”, por causa de um formalismo que tem sempre para Hegel fundamentos subjetivistas, por causa de uma forma “através da qual uma potência se isola e se coloca absolutamente”,(4) conduz a um enrijecimento. Este quadro conceitual formalista deforma a realidade; mesmo um fenômeno que em si não seria “positivo” aparece neste contexto, ou melhor, neste isolamento, neste ser destacado de suas relações existentes em si, como “positivo”:

De fato, ele (o formalismo dos idealistas subjetivos — G.L.) dilacera a intuição e sua identidade de universal e particular, contrapõe entre si as abstrações de universal e particular, e aquilo que pode excluir de tal vacuidade, mas subsumir sob a abstração da particularidade, vale para ele como positivo; sem refletir no fato de que, através desta antítese, o universal se torna um positivo tanto quanto o particular... Mas o real é simplesmente uma identidade de universal e de particular....(5)

Hegel explica ainda que a unidade dialética de universal e particular desaparece precisamente porque a conexão vital dialética de contingência e necessidade é conceitualmente anulada. Quanto mais concretas se tornam estas análises, tanto mais claramente aparece em primeiro plano a base social das diferenças filosóficas.

Surge assim uma áspera polêmica contra Kant (inclusive contra a Crítica do Juízo) por causa de sua concepção metafísica da relação entre universal e particular, entre necessário e contingente. A mais conhecida é a polêmica contra a tentativa kantiana de especificar socialmente o imperativo categórico, de aplicá-lo em casos particulares ou singulares, mantendo-lhe o caráter abstratamente universal. Kant pretende demonstrar que roubar um depósito levaria a contradições internas, isto é, à impossibilidade de que exista em geral um depósito e que, por isto, a proibição de roubar um depósito decorre — através de uma necessidade lógica — da forma universal do imperativo categórico. A crítica de Hegel, que aqui consideramos tão somente do ponto de vista de nosso problema, é precisamente dirigida à relação de universal e particular:

Se não existisse depósito, que contradição existiria? O fato de que não exista depósito entraria em contradição com outras determinações necessárias, assim como o fato de que seja possível um depósito estaria ligada a outras determinações necessárias e seria, por isso mesmo, necessário. Mas não devem ser invocadas outras finalidades e motivos materiais, e sim a forma imediata do conceito é que deve decidir a exatidão da primeira ou da segunda hipótese. Mas, no que toca à forma, uma das determinações opostas é tão indiferente como a outra.(6)

O fato de que Hegel empregue a expressão “determinação” em nada altera a questão de princípio, já que, aqui como alhures, determinação tem com absoluta clareza o mesmo sentido de particularidade. Assim, a forma imediata do conceito significa em Hegel universalidade. Nesta controvérsia entre Kant e Hegel, está em jogo precisamente o fato de saber se é possível, de uma lei universal (aqui, do imperativo categórico), obter os casos particulares de sua aplicação mediante uma simples subsunção lógica, ou se, entre elas, relações recíprocas dialéticas mais complicadas dominam a dialética das mais diversas determinações no seio de uma concreta totalidade. É característico, para o modo unilateral pelo qual Kant coloca este problema na Crítica do Juízo, o fato de que não pense absolutamente naquelas dificuldades que o ocupam na construção dos conceitos biológicos quando enfrenta a sociedade e a ética, e que acredite poder evitá-las mediante uma subsunção metafísica.

Ora, Hegel se ocupa da relação recíproca de universalidade e particularidade em conexão com as mais importantes questões do direito e da moral, em constante relação com o seu problema central de então, o problema da “positividade”. A soma de suas intuições relativas a este problema tende igualmente a revelar em que medida um particular ou um universal deva necessariamente se tornar positivo. À primeira vista, trata-se do extremo oposto da controvérsia com Kant sobre o depósito. Mas pode-se perceber imediatamente que os dois extremos referem-se ao mesmo ponto central: à relação recíproca dialética entre universal e particular, na qual Hegel rechaça a subsunção metafísica com a mesma energia com a qual rechaça o isolamento igualmente metafísico, a autonomização do particular. Ele diz:

Não é a filosofia, portanto, que toma o particular como um positivo, pelo fato de ser ele um particular, mas isto ocorre tão somente na medida em que ele atinge uma parte própria de autonomia fora da conexão absoluta do todo.(7)

A “positividade” (bem como, no Hegel mais tardio, a alienação) possui primariamente um caráter não filosófico, mas histórico- social. Por exemplo, Hegel coloca a questão de se o feudalismo deva ser considerado como algo simplesmente “positivo”. A sua resposta é: depende do caso. Pode ocorrer, em uma nação, um tal grau de abjeção que, neste caso, “feudalismo e servidão possuam uma verdade absoluta”, como formas adequadas para expressar uma tal degenerescência; neste caso, estas formações não são de nenhum modo positivas, mas sim “a única forma possível de eticidade”.(8) Se, pelo contrário, ocorre uma cisão social, se se agudiza a luta entre o novo e o velho, se se coloca o problema concreto de abolir o feudalismo, o velho — que se apresenta com a pretensão de representar a universalidade social em determinado estágio — aparece inegavelmente como “positivo”. Já encontráramos esta concepção de Hegel numa formulação da época de Frankfurt. Todavia, trata-se aqui de concepções que serão sempre determinantes para a filosofia de Hegel, em todos os períodos de sua atividade. Assim, em suas aulas sobre a filosofia da história, diz:

A passagem de uma formação espiritual a outra consiste precisamente em que o precedente universal é superado quando é pensado como particular. Este subsequente mais alto (por assim dizer, o gênero próximo da espécie precedente) está intimamente presente, mas ainda não chegou a se afirmar; e isto torna oscilante e frágil a realidade existente.(9)

O desenvolvimento que se inicia neste ponto é revolucionário e avança de colisão em colisão social. A transformação da universalidade em particularidade e, com isto, como vimos, a dialética de universalidade e particularidade é o problema da ininterrupta transformação da sociedade como lei fundamental da história. Hegel diz:

Estas possibilidades agora se tornam históricas; elas incluem em si mesmas um universal de tipo diverso do universal que constitui a base na essência de um povo ou de um Estado. Este universal é um momento da ideia produtiva, um momento da verdade que aspira e se dirige para si mesma.(10)

Não é difícil indicar, mesmo nestas posições dialéticas e progressistas de Hegel, o limite idealista. Não só porque nesta dialética de universal e particular a função do pensamento, da consciência, é quase sempre supervalorizada com relação ao ser social, mas também por causa da inclinação de Hegel para emprestar às formações sociais que se sucedem uma relação de espécie e gênero (particular e universal). Existe aqui, indubitavelmente, um momento da defesa histórica da revolução burguesa. A sociedade burguesa que surge da revolução não deve aparecer apenas como uma forma simplesmente superior ao feudalismo do ponto de vista histórico, mas também como a forma mais alta possível da sociedade em geral, como sua forma mais universal; por esta razão, a forma posterior é colocada como gênero, como universalidade, e a forma anterior como espécie, como particularidade. Ao lado da sadia ideia segundo a qual a forma inferior deve ser compreendida a partir da superior e não vice-versa, existe aqui também um idealismo que deforma os fatos, notadamente porque o tardio Hegel concebia as promessas de uma Constituição prussiana (feitas por Frederico Guilherme III durante as guerras de libertação e jamais concretizadas) como a mais alta forma de sistema estatal, como o conceito universal e genérico do Estado.(11) A este respeito, exporemos em seguida, amplamente, a crítica do jovem Marx, ainda em sua fase idealista de desenvolvimento.

Estas necessárias reservas críticas em face das distorções idealistas não podem, contudo, eliminar o fato de que a dialética de universal e particular na história se apresenta em Hegel num nível muito mais elevado do que em qualquer predecessor, que os seus pensamentos fundamentais não são absolutamente puros esquemas formalistas, mas sim sérias tentativas de captar os momentos reais do desenvolvimento histórico. Na Fenomenologia do Espírito, durante cuja redação Hegel ainda esperava que da Revolução Francesa em sua forma napoleônica surgisse também para a Alemanha uma nova condição social, seu filosofar revela ainda fortes tendências à compreensão dos momentos de novidade. Entre outras coisas, chega à interessante teoria segundo a qual o que com frequência surge como novo na história deve necessariamente, no início, receber uma forma simples, abstratamente universal. Apenas paulatinamente, com a consolidação da vitória, os traços concretamente particulares surgem à luz do dia; somente em seu curso este processo se desenvolve como totalidade realmente concreta, possuidora de uma multilateral e complicada dialética de momentos universais e particulares. Assim, Hegel afirma que “a primeira manifestação do novo mundo é inicialmente apenas a totalidade velada da sua simplicidade, ou o seu fundamento universal”. Afirma ainda que a consciência que compreende e vive o novo “sente a carência, na nova formação surgida, da difusão e da particularização do conteúdo”.(12) A particularização é o conteúdo do processo histórico objetivo que dele deriva. Sabemos que o tardio Hegel teve de renunciar a tais esperanças políticas; se ele, de acordo com tal resignação, transformou radicalmente então a sua filosofia da história, se concebeu como reviravolta da história, como início da época moderna, não mais a Revolução Francesa, e sim a Reforma, tal fato é muito mais do que uma pura e simples alteração de periodização: é uma alteração de ponto de vista, de perspectiva; a humanidade, segundo sua concepção, não mais está nos inícios de uma transformação radical, mas sim já na conclusão de um período além do qual o tardio Hegel não consegue vislumbrar nenhuma possibilidade de desenvolvimento superior. Por isso, ele olha agora para o passado, não mais para o futuro. No entanto, o pensamento fundamental da Fenomenologia, por nós citado, sobre o modo e sobre o desenvolvimento do novo, encontra-se ainda — mesmo que não mais na forma intensa da grande obra juvenil — nas tardias Lições sobre a Filosofia da História.

Hegel, aqui, não se contenta em relacionar importantes problemas da filosofia da história com a dialética de universalidade e particularidade; esta dialética tem também um importante papel na indicação das leis mais gerais do movimento da história. Vemos aqui, por certo, os lados progressistas e reacionários do idealismo objetivo em seu extremo aguçamento. Na medida em que o espírito do mundo se apresenta para Hegel como demiurgo da história, o idealismo mistificador atinge precisamente aqui o seu apogeu. Por outro lado, todavia, Hegel busca conceber a própria história como teatro das paixões humanas, dos interesses egoístas, dos objetivos particulares, e representa estas particulares aspirações dos homens, dos grupos humanos, etc., como a força imediata e concretamente motriz da história. Como Engels sublinhou, é decisivo aqui o fato de que, embora através de uma inversão idealista, seja afirmada a grande verdade histórica de que são estas lutas das paixões particulares e egoístas dos homens, na verdade, a colocarem diretamente em movimento os eventos; mas que, no conjunto, nasçam e morram outros conteúdos, mais altos e mais universais do que aqueles que os homens colocaram imediatamente em jogo. Esta é a essência da teoria hegeliana da “astúcia da razão”.

O interesse particular da paixão, portanto, é inseparável da atuação do universal; pois é do particular e do determinado, bem como de sua negação, que nasce o universal. O particular tem seu próprio interesse na história universal; ele é algo finito e, como tal, deve necessariamente perecer. É o particular que combate reciprocamente a si mesmo, e uma parte dele deve perecer. Mas precisamente na luta, na derrota do particular, surge o universal.(13)

Revela-se aqui, do modo mais claro possível, a dupla face da filosofia hegeliana. Com plena razão, Marx critica o fato de que Hegel faça com que “o espírito absoluto como espírito absoluto” crie “a história só aparentemente”.(14) Naturalmente, no idealista Hegel, trata-se de uma inconsequência. De fato, sempre que Hegel se aproxima mais concretamente da lógica e da metodologia da história, sempre que permanece fiel ao método dialético (“é o particular que combate reciprocamente a si mesmo”), concebe a história como sendo realmente e exclusivamente feita pelos homens. Por outro lado, todavia, deste conflito de interesses e de paixões humanas, não nasce diretamente o universal — como pretenderia também a concepção hegeliana do método dialético, da relação dinâmica do particular com o universal — como seu produto mais adequado (o novo universal que implica na degradação e no aniquilamento do velho, como indicamos acima), mas este universal torna-se imprevistamente algo transcendente, é mistificado de um modo idealista, aparece situado em um “mais além” das lutas humanas, do processo histórico efetivo. De fato, imediatamente após as considerações que citamos, diz Hegel: “Não é a ideia universal que intervém no contraste e na luta, no perigo; ela se mantém intocável e intacta por trás dos eventos e ordena ao particular da paixão que se consuma na luta”.(15) Marx critica, portanto, com plena razão, a inconsequência desta concepção da história. Ele acrescenta ironicamente que o idealista subjetivo Bruno Bauer supera a inconsequência de Hegel. Em Bruno Bauer, porém, ocorre também a ruptura com todos os momentos metodológicos férteis e progressistas da filosofia hegeliana, em primeiro lugar com a tentativa feita por Hegel de descobrir na história a real ligação entre a realização da ideia e a luta dos interesses. Portanto, quando Marx, em polêmica com Bruno Bauer, diz que “a ideia” fez sempre má figura quando se separa do “interesse”,(16) sua batalha dirige-se mais contra Bauer do que contra Hegel.

É característico, para a problemática interna e para os destinos do idealismo objetivo, o fato de que a fonte desta inconsequência na posição de Hegel criticada por Marx seja, precisamente, uma de suas mais geniais descobertas: a descoberta da conexão entre trabalho e teleologia. Já na época em que preparava a Fenomenologia, Hegel escreve: “finalidades singulares do ser natural tornam-se um universal. O impulso, aqui, vem todo do trabalho; ele deixa que a natureza se consuma, assiste tranquilamente e governa o todo apenas com pouco esforço: astúcia”(17). A ideia decisiva do método histórico hegeliano, a concepção da “astúcia da razão”, tem portanto seu fundamento filosófico na concepção que tem Hegel do instrumento e do trabalho. O idealismo, porém, impede Hegel de generalizar esta genial intuição das conexões reais, retrospectiva e prospectivamente, de uma maneira consequente e correta. A consciência do homem que se coloca um objetivo — que é, como Marx indica em O Capital,(18) a differentia specifica do trabalho humano, o princípio substancial que o diferencia do “trabalho dos animais” – é aplicada acriticamente, esquematicamente, mistificadoramente, à história. Quando em Hegel o espírito do mundo se torna o artífice e demiurgo da história, verifica-se uma generalização mistificadora daquilo que era, no trabalho humano, a real compreensão de sua essência concreta. A ambiguidade da “astúcia da razão” hegeliana, que acima analisamos, indica que seu senso da realidade foge do misticismo desenfreado que dela deriva, desta teologia cósmica que transcende o homem, mas indica também que ele não está em condições de compreender a dialética real que, a partir das aspirações particulares dos homens singulares e dos grupos, desenvolve a universalidade das modificações históricas das formações sociais que se sucedem.

A mesma contraditoriedade aparece, ainda mais agudamente se isto for possível, quando Hegel pretende elevar seu pensamento ao nível da mais alta generalização, em sua Lógica. Como Lenin também compreendeu, trata-se de um notável passo à frente o fato de que Hegel conceba a teleologia (ou seja, o trabalho) como “verdade”, como um grau que resume, supera e é superior ao mecanismo e ao quimismo. Como idealista, contudo, não pode desenvolver consequentemente este pensamento. Na construção da lógica, a vida vem depois da teleologia (do trabalho), se bem que seja evidente que na sucessão lógica, bem como na generalização histórica, seu lugar seja indubitavelmente antes da teleologia. A teleologia como verdade do mecanismo e do quimismo é o mais alto grau tornado consciente de um longo processo, que abarca essencialmente o nascimento da vida, a evolução dos seres vivos até chegar ao homem e seu trabalho. Marx expressou-se, a este respeito, com inequívoca clareza e indicou como residindo nisto, precisamente, a grande contribuição de Darwin para uma concepção dialética do mundo. Na proposição sobre o trabalho, por nós citada, Marx sublinha precisamente que, na análise do trabalho, devemos ver a culminação de um longo desenvolvimento: “Não trataremos aqui das primeiras formas de trabalho, de tipo animalesco e instintivas”.(19) Em outro local, sublinha os méritos de Darwin na descoberta desta situação: “Darwin dirigiu seu interesse para a história da tecnologia natural, isto é, para a formação dos órgãos vegetais e animais como instrumentos de produção da vida das plantas e dos animais”.(20) O que Marx chama aqui de tecnologia natural é um nível superior do processo vital de adaptação dos seres vivos ao seu ambiente. Em sua polêmica contra Dühring, Engels refere-se claramente ao nível mais primitivo destas exteriorizações da vida, destas relações recíprocas entre organismos e ambiente, como pressuposto de qualquer processo vital: “Mas o que é a adaptação sem intenção consciente, sem aquela mediação de ideias... senão uma tal atividade finalística inconsciente?”.(21)

Lenin afirma que a ideia de Hegel de tratar o problema da vida na lógica é “compreensível — e genial”.(22) Todavia, Hegel o faz de tal modo que os limites idealistas do seu pensamento provocam confusão. Dado que vê na natureza apenas uma autoalienação do espírito, é obrigado a negar no domínio da natureza qualquer real evolução histórica; por isto, também o nascimento e a essência da vida não podem ser corretamente compreendidos. Quando Hegel, na Lógica, fala da vida, os verdadeiros e autênticos problemas da vida real, os problemas da biologia, são ignorados; Hegel chega, inclusive, a construir uma antítese entre a vida real que é tratada na filosofia da natureza e a vida no espírito. E acrescenta:

A primeira, enquanto vida da natureza, é a vida enquanto é lançada fora na exterioridade da existência e tem sua condição na natureza inorgânica, enquanto os momentos da ideia são uma multiplicidade de formações reais. A vida na ideia não tem tais pressupostos... O seu pressuposto é o conceito....(23)

(Hegel, aqui, afasta-se tão decisivamente de uma real concepção da vida que se torna mais idealista do que o jovem Schelling.) A falsa construção da lógica — vida após teleologia — revela, portanto, o fundamental limite idealista de Hegel. Em muitos pontos, Hegel criticou corretamente o idealismo de Kant; todavia, não o superou realmente, já que, tal como Kant, é incapaz de ver e de captar conceitualmente no processo da vida uma real evolução. A genial concepção da teleologia em ligação com o trabalho, assim, permanece nele limitada a este campo; Hegel não pode explicar nem os pressupostos naturais nem as consequências desta justa intuição sem distorcer, mística e idealisticamente, toda a questão.

Tão somente quando Hegel, não obstante o seu idealismo, mantém-se firmemente ligado à ideia do desenvolvimento, é que sua dialética dá lugar a grandes resultados. Como vimos, isto se verifica não apenas com relação ao problema do trabalho, mas também no que toca ao tratamento de vários problemas histórico-sociais. Um destes resultados é a dialética de universal e particular, energicamente concretizada nele; isto é, a recíproca conversão destes momentos um no outro. E aqui é necessário sublinhar, como um grande passo à frente, o fato de que nesta dialética — pelo menos de acordo com os princípios e com o método, ainda que nem sempre até o fundo na realização sistemática — seja um fator determinante precisamente o conteúdo histórico-social, e não, como em Schelling, um esquema abstrato, uma construção formalista.

Já esta reviravolta no sentido de uma declarada prioridade do conteúdo com relação à forma representa um importante progresso, que certamente, como sempre, tem em Hegel um duplo aspecto. De fato, quando estabelece corretamente uma relação qualquer de universal e particular, e vice-versa, ele o consegue não tanto porque siga determinadas regras lógicas, mas antes porque compreende corretamente, segundo o conteúdo, o fenômeno vital cuja generalização aparece em tal relação. E tais inexatidões, em Hegel, devem necessariamente ser abundantes, sobretudo por causa de sua filosofia idealista; por causa, consequentemente, dos limites que se colocam até mesmo à concepção do mundo democrático-burguesa mais avançada e consequente (e nós sabemos que Hegel, sob tal aspecto, estava muito longe de uma verdadeira coerência); por causa, finalmente, do crescente influxo da miséria alemã, na época da Santa Aliança, sobre a filosofia de sua época mais madura. Neste ponto, deve-se sublinhar energicamente que aqui não se trata apenas do fato de que concepções em si justas da dialética de universal e particular sejam afetadas pelas distorções da posição filosófica e econômico-social, mas sim que, motivadas por esta falsa base, surjam concepções formalistas, mistificadas, que provocam erros precisamente na dialética de universal e particular. O verdadeiro e o falso, o progressista e o reacionário na filosofia de Hegel, portanto, encontram-se muitas vezes imediatamente um ao lado do outro.

Assim, por vezes, Hegel pode indicar para a sociedade em seu conjunto determinações que correspondem amplamente aos traços essenciais da relação de universal e particular na realidade do mundo capitalista. Hegel, visando determinar a essência do Estado, aliás do Estado moderno, dá a seguinte definição de sua realidade: “Realidade é sempre unidade de universalidade e de particularidade; é ser a universalidade decomposta na particularidade, a qual aparece como autônoma, se bem que exista e seja construída na totalidade”(24). É necessário observar, neste ponto, que realidade tem em Hegel um significado específico, como culminação dos diversos graus dos conceitos de ser. Quando inexiste esta dialética de universal e particular, o Estado correspondente possui somente uma existência, mas não uma realidade; que, de acordo com o método de Hegel, significa que a dialética do processo histórico, mais cedo ou mais tarde, destruirá um tal Estado, aniquilará sua falsa existência. (Que se pense no que afirmamos anteriormente sobre a dialética de universal e particular na revolução burguesa). Para formações estatais que possuem realidade nesse sentido, Hegel assim define a necessidade: “A necessidade consiste nisto: que a totalidade é dividida nas diferenças conceituais e que esta coisa dividida fornece uma estável e duradoura determinação, que não é morta, mas que se produz sempre na decomposição”.(25) Trata-se aqui, portanto, não apenas de um simples processo de incessante conversão recíproca dos momentos que formam a totalidade: este processo possui também uma direção, uma tendência determinada e que se repete de modo variado: é um processo de contínua autorreprodução. O real revela a necessidade nele contida — de acordo com as palavras de Goethe — precisamente quando não “quer enrijecer no ser”, o que necessariamente conduziria a um “dissolver-se no nada”, mas, pelo contrário, no ato de gerar ininterruptamente a si mesmo, de ser o fim — contemporâneo e aparente — da unidade, da totalidade, da conexão, ou seja, no ato de ser precisamente o veículo da renovada autogeração.

Hegel aproximou-se muito, aqui, da ideia da reprodução como modo de ser de formações sociais. Por certo, a diferença entre reprodução simples e ampliada nem sequer é aflorada. Na ausência desta decisiva e mais precisa determinação, expressa-se novamente o limite político-filosófico de seu pensamento da maturidade: dado que não pode ter uma perspectiva social para o futuro, dado que a miserabilidade de seu presente é para ele o coroamento final da história, da dialética interna da autorreprodução da sociedade, não pode se manifestar a ideia de um desenvolvimento qualitativo superior. Por isso, a historicidade da dialética histórica hegeliana refere-se tão somente ao caminho que leva do passado ao presente, e não àquele em direção ao futuro.

Este limite, cujos efeitos são perceptíveis mesmo naquelas partes da filosofia hegeliana às quais não afeta diretamente, não impede porém que Hegel compreenda conceitualmente determinadas características essenciais da moderna sociedade burguesa; em particular — e isto demonstra sua solitária importância entre os contemporâneos —, o papel e o significado da economia política na estrutura e na reprodução desta sociedade. É muito interessante o fato de que, também na filosofia hegeliana da economia, a dialética de particular e universal desempenhe um decisivo papel. O ponto de partida de Hegel ao delimitar o “sistema das necessidades” é o seguinte: “O particular, inicialmente oposto, como o que em geral é determinado, à universalidade da vontade, é necessidade subjetiva”. A análise das necessidades torna-se ciência com esta afirmação: “O fim da necessidade é a satisfação da particularidade subjetiva, mas aí se afirma a universalidade na relação com a necessidade e com a vontade livre dos outros...”.(26) Aparentemente, cai-se assim no mundo da pura contingência, já que as forças motrizes da sociedade burguesa são os singulares desejos, aspirações, paixões, etc. do indivíduo singular. Todavia, como discípulo de Smith e de Ricardo, Hegel reconhece: “Mas este formigamento do arbítrio produz, por si, determinações universais; esta aparente dispersão é conservada por uma necessidade, que intervém por si mesma”. Hegel compara a ciência que aqui surge, e que é nova para a Alemanha, com uma das mais exatas, a astronomia:

Esta interferência, na qual inicialmente não se acredita, pois tudo parece relacionado com o arbítrio do singular, é sobretudo digna de nota; ela se assemelha ao sistema planetário, que apresenta apenas movimentos irregulares à vista, mas cujas leis podem ser reconhecidas.(27)

Como filho de um país então muito atrasado do ponto de vista capitalista, Hegel não consegue elaborar uma economia concreta e cientificamente construída, como a de seus mestres ingleses. Ele deve se contentar com afirmações genericamente filosóficas sobre o conteúdo fundamental e sobre o método. Elas indicam, contudo, que ele era fortemente influenciado pelos princípios da economia clássica. Exatamente de acordo com esta última, por exemplo, trata os problemas da divisão do trabalho. Por um lado, indica neles a relação para com o próprio trabalho: “No entanto, o que há de universal e de objetivo no trabalho liga-se à abstração que é produzida pela especificidade dos meios e das necessidades, e de que resulta também a especificação da produção e a divisão dos trabalhos”. Por outro lado, daí decorre “a dependência e a relação de troca entre os homens”, tanto na produção quanto no consumo(28):

Na dependência e na reciprocidade do trabalho e da satisfação das necessidades, o egoísmo subjetivo transforma-se numa contribuição para a satisfação das necessidades de todos os outros. Há uma mediação do particular pelo universal, um movimento dialético....(29)

Nestas considerações, Hegel acerta contas com as “ilusões heroicas” da Revolução Francesa, que haviam iluminado e guiado a sua própria juventude no que toca à adesão à sociedade capitalista e à sua forma ideal representada pela economia clássica inglesa. Ao mesmo tempo, contudo, esta posição implica numa refutação radical de todas as ideologias da Restauração, que — sob roupagens mais ou menos românticas — proclamavam um retorno às condições feudais (Haller, Savigny, etc.). Esta resoluta aprovação da economia capitalista, por outro lado, tem consequências muito importantes para a concepção hegeliana da história; ela se torna um fator determinante no juízo e na nova avaliação que faz Hegel da Antiguidade clássica, que fora seu ideal e seu modelo no período das “ilusões heroicas”. Hegel vê a antítese decisiva entre Antiguidade e presente precisamente no terreno da economia e, de acordo com suas concepções que acabamos de conhecer, esta antítese aparece filosoficamente, ao mesmo tempo, como uma transformação histórica no modo de ser da dialética de universal e particular: a função dialética desempenhada na sociedade moderna pelo particular, como princípio de suas leis e necessária autorrenovação, devia necessariamente ser na Antiguidade um princípio de autodestruição da sociedade: “O desenvolvimento independente da particularidade é o momento que nos Estados antigos se manifesta pela introdução da corrupção dos costumes, e essa é a suprema causa de sua decadência”.(30)

Temos aqui, em Hegel, algo mais do que uma nítida delimitação entre sociedade antiga e moderna. A antítese que aqui se expressa — e que, como vimos, condiciona diversas formas da dialética de particular e universal — transcende, aos olhos de Hegel, o econômico e o social; apresenta-se como um princípio universal de desenvolvimento, que poderia ser assim formulado: quanto menos desenvolvido na vida e no pensamento for o princípio do particular, tanto menos poderá também o universal conservar sua verdadeira totalidade concreta. Hegel não afirma claramente que a deficiência do particular seja socialmente condicionada (mas este é o sentido implícito das proposições que citamos, como aquela sobre a divisão do trabalho); ao contrário, ele considera a concretização da dialética de universal e particular — e, por isso, a concretização dos dois conceitos — como estreitamente ligada, pelo menos, àquela realização da particularidade na vida, cuja expressão mais intensa é a economia do capitalismo.

O fato de que Hegel, em certos casos particulares, atribua esta missão à religião cristã em nada altera a conexão que constatamos acima. De fato, pode-se demonstrar que após o Termidor, após o abalo sofrido pelas “ilusões heroicas” da época mais agudamente revolucionária, cristianismo e economia smithiana servem a Hegel, em estreita conexão e simultaneamente, para fundar filosoficamente o caráter específico do presente como mundo das fecundas contradições dialéticas. Hegel expressa do seguinte modo esta ideia do desenvolvimento e da concretização histórica do universal, em sua teoria do conceito da “pequena lógica”: “O universal, em seu verdadeiro e compreensivo significado, ademais, é um pensamento que necessitou de milhares de anos para penetrar na consciência dos homens, bem como para atingir seu pleno reconhecimento através do cristianismo”. E, exatamente no sentido de suas afirmações sobre a diferença entre sociedade antiga e moderna, ilustra esta situação contrapondo as representações que as duas épocas faziam de deus:

Os gregos, não obstante serem muito cultos, não conheceram deus em sua verdadeira universalidade; tampouco conheceram o homem. Os deuses da Grécia eram apenas as potências particulares do espírito, e o deus universal, o deus das nações, era ainda para os atenienses o deus oculto.(31)

Este exemplo, naturalmente, bem como as considerações que dele decorrem sobre a função do cristianismo na abolição da escravatura, indica todos os aspectos débeis da filosofia de Hegel. Mas o fato de que ele, concluindo tais considerações, veja na “volonté générale” de Rousseau a autêntica encarnação do que é “verdadeiramente universal”, precisamente em contraposição à Antiguidade, tal fato demonstra que, não obstante todas as distorções idealista-mistificadoras, ele investigou realmente o desenvolvimento histórico da dialética de universal e particular, ou, pelo menos, teve dela certa intuição.

Com muito menos clareza do que na contraposição de sociedade moderna e sociedade antiga, é delineada em Hegel a delimitação histórica entre feudalismo (absolutismo feudal) e moderna sociedade burguesa. Aqui é visível, inclusive, certo retrocesso; de fato, na Fenomenologia, a Revolução Francesa ainda é concebida como o limite da Idade Moderna, ao passo que a posterior periodização — com a Reforma como linha discriminadora — é já muito confusa. (E, mais do que nunca, a subdivisão histórica da estética com a concepção da arte romântica.) A debilidade na construção das categorias históricas do capitalismo, portanto, não deriva em primeira instância do fato de que Hegel fale aqui de estratos (e não de classes), mas sim do fato de que esta inexata terminologia confunde os limites e Hegel — o que, como veremos posteriormente, é asperamente criticado pelo jovem Marx — com muita frequência tente interpretar o novo a partir do velho, e não vice-versa. Seria injusto, porém, não observar que, apesar de todas estas oscilações, são compreendidas algumas das determinações importantes da moderna sociedade burguesa.

Esta dupla face adquire a máxima evidência quando voltamos a atenção para a definição hegeliana de estrato:

O estrato [Stand], enquanto particularidade tornada objetiva, divide-se, por um lado, segundo o conceito, em suas distinções gerais. Mas, por outro lado, divide-se de acordo com o estrato particular ao qual pertença o indivíduo: sobre isto, influem o temperamento, o nascimento e as circunstâncias; mas a última e essencial determinação reside na opinião subjetiva e no arbítrio particular, que se dão nesta esfera o próprio direito, o próprio mérito e a própria dignidade, de tal modo que o que nela ocorre, através da necessidade interna, é mediatizado, ao mesmo tempo pelo arbítrio e, para a consciência subjetiva, tem o aspecto de ser a obra da própria vontade.(32)

Pode-se ver aqui, claramente, como Hegel concede um importante papel a momentos concretos da estratificação das classes na sociedade burguesa; assim, antes de mais nada, ao momento do acaso no pertencer a uma classe, a propósito do qual deve certamente surpreender o fato de que ele lhe atribua uma exclusividade que jamais existiu na realidade. Também nisto, Hegel – como discípulo de Smith e de Ricardo — coloca acentuadamente em primeiro plano os aspectos positivos da economia capitalista; ademais, vê, muitas vezes com exatidão, também os lados negativos, mas estes têm pouca influência em suas determinações conceituais decisivas.

De qualquer modo, sublinha-se assim uma diferença essencial com relação às formações precedentes e à sua expressão teórica.

Como antítese, Hegel cita o Estado [Staat] platônico e as castas indianas; no primeiro, o próprio Estado, nas segundas, o simples nascimento, determinam o pertencer do indivíduo a uma camada. Decorre daqui, de acordo com a concepção de Hegel já nossa conhecida, segundo a qual a particularidade de tais formações exerce necessariamente uma função desagregadora, o seguinte:

A particularidade subjetiva introduzida na organização do conjunto sem estar conciliada consigo mesma manifesta-se, então, como um princípio hostil, como uma destruição da ordem social porque, como momento essencial, está impedida de se manifestar.(33)

É significativo, para o Hegel tardio, o fato de que ele — em contraste com a dialética política de universal e particular que, como indicamos, elaborou a respeito da liquidação revolucionária do feudalismo — distinga aqui nitidamente do capitalismo tão somente a sociedade oriental e a antiga, sem nem sequer tentar compreender filosoficamente a antítese econômico-social entre capitalismo e feudalismo.

Reside aqui a falha íntima desta dialética. A formulação abstratamente geral da essência da moderna sociedade burguesa é novamente justa em suas linhas essenciais:

O ethos é aqui perdido em seu extremo... Aqui, a realidade é exterioridade, dissolução do conceito, autonomia dos momentos existentes tornados livres. Na sociedade civil [Sittlich], particularidade e universalidade, sendo dissolvidas, são porém ambas reciprocamente ligadas e condicionadas. Dado que uma parece ser o oposto da outra, e acredita poder sê-lo, apenas porque tem a outra à distância; cada uma, todavia, tem na outra a sua condição.

Hegel rechaça aqui, como também alhures, todas as ideologias romântico-feudais da Restauração como utópicas e reacionárias. Ele protesta contra a concepção segundo a qual seria melhor que a universalidade “extraísse de si a força da particularidade”. Ele vê claramente que tal concepção — modelada mais ou menos sobre o Estado platônico — jamais poderia corresponder à realidade. Destas concepções, diz ele:

Mas também isto é, novamente, apenas uma aparência, já que ambas são apenas misturadas em conjunto e existem uma para a outra; e converte-se uma na outra. Promovendo a minha finalidade, promovo o universal; e este promove, novamente, a minha finalidade.(34)

Temos aqui, evidentemente, traduzida em linguagem filosófica, a teoria econômica clássica da harmonia. Sabemos já que Hegel estava muito longe de ignorar simploriamente toda uma série de fenômenos dissonantes da economia capitalista. O seu idealismo, contudo, radicado no atraso alemão, leva-o a superar qualquer desarmonia mediante a ajuda do Estado:

A particularidade para si é o excessivo e o desmesurado, e as formas desta excessividade são elas mesmas desmesuradas. O homem, mediante suas representações e suas reflexões, amplia seus desejos, os quais não são um círculo fechado, como o instinto do animal, e leva-o à má-infinitude. Mas, igualmente, pelo outro lado, a privação e a necessidade têm algo de desmesurado, e a desordem desta situação só pode chegar à harmonia mediante o Estado, que a domina.(35)

Este limite idealista da filosofia hegeliana da sociedade já está presente na juventude de Hegel; e mesmo então falseava suas visões, no mais, justas, sobre a economia do capitalismo. O fato de que, nesta época, visse nos Estados fundados por Napoleão — que destruíam, mais ou menos inteiramente, os restos feudais — o seu Estado ideal, enquanto mais tarde o conteúdo e a forma deste Estado passaram a ser determinados pelas promessas jamais realizadas de Frederico Guilherme III na época das guerras de libertação, tal fato devia necessariamente ampliar e aprofundar as distorções idealistas. O jovem Marx criticou agudamente este aspecto da filosofia de Hegel. Sobre tal crítica, ainda voltaremos a falar amplamente. Por enquanto, observaremos antecipadamente apenas que, se a relação entre economia e Estado, entre estrato (classe) e Estado, entre bourgeois e citoyen, etc., que são os fenômenos fundamentais da sociedade burguesa, é decisivamente deformada por causa de uma concepção errada e idealista, é óbvio que esta deformação deve necessariamente ter consequências de grande importância para a dialética, que Hegel reconhece como importante, de universal e particular.

Precisamente o que, na análise de Hegel, é o aspecto mais positivo, isto é, o fato de que conceba as relações de universalidade, particularidade e singularidade de um modo não formalista, como um problema não exclusivamente lógico, mas como uma parte importante da dialética viva da realidade, cuja mais alta generalização deve produzir uma forma mais concreta da lógica, este fato tem como consequência que a concepção lógica seja sempre dependente da justeza ou do erro da concepção da realidade. Os limites da lógica de Hegel, aqui, são igualmente determinados pelos limites de sua posição em face da sociedade e da natureza, bem como os seus momentos geniais são determinados pelo caráter progressista de sua atitude em face dos grandes problemas históricos de sua época.

Estes limites da filosofia de Hegel são, compreensivelmente, revelados da maneira mais evidente quando seu método dialético entra em contradição com as tendências retrógradas de seu sistema, em face de um problema concreto. Naturalmente, estes limites podem ser encontrados também em suas exposições puramente metodológicas, em particular quando quer assegurar à filosofia — em antítese com a ciência — uma posição privilegiada e particularmente elevada. Limitar-nos-emos aqui a citar uma argumentação de sua estética, na qual ele busca determinar conceitualmente o belo como unificação de teórico e prático, como superação dos limites e das unilateralidades dos dois conceitos. (Já que, como sabemos, a filosofia está em Hegel acima da arte, entende-se aqui por teoria apenas a ciência.) Hegel quer demonstrar a “finitude e liberdade” no objeto das teorias; esta consiste na falta do ser para-si no objeto: “unidade e universalidade” estão fora do objeto.

Todo objeto nesta exterioridade do conceito existe, por isto, como mera particularidade, que com sua multiplicidade volta-se para o exterior e, nas infinitas relações, aparece abandonado ao nascimento, à modificação, à violência e ao fim causados pelos outros.(36)

Em contraste com as importantes determinações de sua própria lógica, das quais cedo falaremos, Hegel quer limitar o teórico (o científico) ao particular, o que não é justo nem sequer para a totalidade do pensamento cotidiano, quanto mais para a verdadeira ciência.

Naturalmente, tais tendências limitadoras fazem-se sentir também nos pontos de vista burgueses mais revolucionários. As “ilusões heroicas” da época revolucionária, por exemplo, invertem necessariamente a relação de bourgeois e citoyen em um sentido idealista. A evolução de Hegel, especialmente após a queda de Napoleão, leva ainda a que o citoyen que destrói o antigo transforme-se cada vez mais em um burocrata prussiano. Na Filosofia do Direito, de fato, este burocrata aparece também como um estrato particular, ou antes — o que é sintomático — como estrato universal: “O estrato universal ou, mais precisamente, o que se consagra ao serviço do governo, tem no universal o fim de sua atividade essencial”.(37) Esta transformação do citoyen da revolução democrática no burocrata do absolutismo semifeudal prussiano, o fato de colocar — imediatamente do ponto de vista do conteúdo — a condição do cidadão como universal, deve necessariamente ter um efeito deformante sobre toda dialética econômico-social de universal e particular, compreendida corretamente até certo ponto; notadamente sobre a dialética de universal e particular na relação dos estratos (classes) entre si e com a sociedade e o Estado.

Vimos que a imediata conversão econômica do particular em universal é um importante fundamento para caracterizar a moderna sociedade burguesa, a sua diferentia specifica com relação à Antiguidade e ao Oriente; a universalidade imediata da burocracia cria, precisamente aqui, restrições que provocam confusão e que são reacionárias. E, naturalmente, estas tendências deformantes da verdadeira estrutura da moderna sociedade burguesa se acentuam quando Hegel tenta “deduzir” logicamente as particulares instituições da Prússia da época. Sobretudo, por exemplo, na “dedução” da monarquia. Hegel diz:

O poder do príncipe contém em si os três elementos da totalidade, a universalidade da Constituição e das leis, a deliberação como relação do particular ao universal, e o momento da decisão suprema como determinação de si da qual tudo o mais se deduz e onde reside o começo da sua realidade.(38)

Desaparece aqui qualquer real dialética de universal, particular e singular, substituída por uma pseudodialética formalista e enganosa. E ela se transforma em pura caricatura quando Hegel — o que decorre necessariamente destes falsos pressupostos — busca deduzir “de modo puramente especulativo” a pessoa do monarca. Não é um acaso que, também aqui, Hegel — como sempre, ademais, que o seu idealismo torna-se claramente reacionário — recorra à chamada prova ontológica da existência de deus. Basta citar um ponto decisivo para que se esclareçam estas consequências do sistema como corruptor do método dialético:

É em tal forma abstrata e simples que consiste esta individualidade suprema da vontade do Estado; esta, por conseguinte, é individualidade imediata. No seu conceito reside a condição de que ela seja natural. Por isso, o monarca enquanto tal é essencialmente indivíduo que está fora de qualquer outro conteúdo, e este indivíduo destina-se à dignidade de monarca de um modo imediatamente natural, por nascimento.(39)

Como vemos, a análise hegeliana da sociedade burguesa, a tentativa de captar conceitualmente suas características em ser e em devenir como dialética de universal, particular e singular, compreende toda uma série de ideias geniais (ou, pelo menos, de intuições), mas também uma sofística vazia e reacionária. É preciso ter em vista esta mistura de justo e de falso se se quer compreender a importância do fato de que Hegel — pela primeira vez na história desta disciplina — fundamente o inteiro edifício da lógica sobre a relação de universalidade, particularidade e singularidade. Toda a doutrina do conceito, do juízo e do silogismo tem como base e como conteúdo estas relações. Naturalmente, não é nosso objetivo examinar criticamente a lógica de Hegel em todas as suas conexões; ocupar-nos-emos tão somente daquelas questões que contêm elementos de princípio com relação ao nosso problema.

Na passagem para o conceito, ao desenvolver a dialética da ação recíproca, Hegel atinge a determinação mais geral de universalidade, particularidade e singularidade como base da doutrina do conceito, na qual as precedentes contradições (substancialidade e causalidade, necessidade e contingência, necessidade e liberdade, etc.) apresentam-se em um nível superior. Tem aqui importância determinante, notadamente para as reflexões que nos interessam, a identidade de identidade e não- identidade; nela, de fato, a concepção hegeliana dos conceitos concretos se expressa do modo mais claro. A primeira forma na qual esta identidade se apresenta (que já encontramos, diga-se de passagem, em Aristóteles) é a identidade de singular e universal, precisamente em sua contraditoriedade, na qual eles “são colocados como a negatividade idêntica a si mesma”. Esta afirmação é assim formulada por Hegel:

Imediatamente, porém, dado que o universal é apenas idêntico a si mesmo, enquanto contém dentro de si a determinação como tolhida, e, portanto, é o negativo enquanto negativo, é a mesma negatividade que é a singularidade; e a singularidade, dado que é o determinado determinado, o negativo enquanto negativo, é ela mesma imediatamente a mesma identidade que é a universalidade. Esta sua simples identidade é a particularidade, a qual contém, em unidade imediata, do singular, o momento da determinação e, do universal, o momento da reflexão dentro de si mesma. Estas três totalidades, por isso, são a mesma e única reflexão.(40)

É assim que Hegel concebe, em geral, a essência da superação [Aufhebung]. Pouco antes, no mesmo contexto, sublinha que — ao se colocar a liberdade — não desaparece a necessidade; ela vem tão somente “manifestada na interior identidade”.(41)

Para melhor compreender estas passagens lógicas de Hegel, acrescentaremos ainda algo sobre a função desempenhada neste ponto pelos conceitos de determinado, determinação, determinar, etc. Hegel aplica sempre, de modo consequente, a famosa definição de Spinoza: “omnis determinatio est negatió”; por isto, em Hegel, o processo da determinação é sempre um caminho que leva do universal ao particular. Nele, em geral, o particular não é tanto um estado intermediário, uma categoria mediadora estável entre universal e singular; mas sobretudo o momento — em movimento autônomo — de um processo de movimento da especificação. Este pensamento já se manifesta, como vimos, em Kant. Neste, porém, tal fato ocorre sobretudo como resultado de um processo cuja essência, cuja direção de movimento, cuja correspondência a leis, devem permanecer — em princípio — como algo que nos é desconhecido; em Hegel, pelo contrário, processo e resultado são dados em simultaneidade dialética, e a cognoscibilidade de ambos não pode jamais se tornar um problema. Naturalmente, em Hegel, não somente a particularidade, mas também a universalidade e a singularidade são, tanto processo como resultado; o universalizar- se e o individualizar-se são nele, por outro lado, um movimento logicamente compreensível e expressável das coisas e de suas relações, do mesmo modo como a especificação, o particularizar-se (determinar-se). Precisamente estes movimentos e sua autoconsciência constituem para Hegel a verdadeira e autêntica dialética, a atividade do pensamento concreto, em antítese com a concepção metafísica que se mantém nos limites muito inferiores da pura representação: “Apenas a pura representação, através da qual a abstração os isolou, é capaz de manter o universal, o particular e o singular rigidamente divididos”.(42)

Repetimos: não é possível, neste local, expor a inteira dialética de universalidade, particularidade e singularidade na teoria hegeliana do conceito, do juízo e do silogismo (estas três teorias são construídas sobre tal dialética), e menos ainda tentar discernir o certo do errado. Tal seria a tarefa de uma crítica marxista e de um subsequente desenvolvimento crítico de toda a lógica hegeliana. As considerações seguintes concentram-se, quase exclusivamente, sobre nosso específico problema. Por isto, podemos dizer, antecipando, que no esforço de Hegel por manter sempre o conceito, o juízo e o silogismo em movimento dinâmico, em recíproca transformação, em conversão da diversidade no seu contrário, vemos algo decisivamente positivo e progressista; mas não poderemos enfrentar, nem mesmo sumariamente, o problema — que pouco tem a ver com nossa atual questão — de saber onde este heraclitianismo lógico de Hegel apresenta necessariamente limitações, de saber onde os direitos da lógica formal devem ser defendidos em face de suas argumentações.

Hegel considerava como uma de suas principais tarefas indicar o movimento dialético que leva de cada categoria tratada às demais. Ilustramos esse método de Hegel com o exemplo da singularidade na doutrina do conceito. Hegel protesta contra a concepção que pretende reduzir a relação da universalidade, particularidade e singularidade a uma relação meramente quantitativa. Assim, diz ele, perder-se-ia tudo o que é essencial no desenvolvimento lógico que conduz até o conceito. Já esta argumentação indica a radical contraposição entre Hegel e seus predecessores no que diz respeito aos problemas da lógica. Enquanto nestes, na maioria dos casos, o tratamento do conceito inicia a lógica, em Hegel o conceito é o coroamento e a síntese de uma longa e rica explicitação das determinações lógicas. O conceito hegeliano herda tudo o que este processo trouxe à luz do pensamento: “O conceito é o que é concreto e mais rico do que tudo, já que é a base e a totalidade das determinações precedentes, das categorias do ser e das determinações da reflexão. Por isto, tais categorias e determinações apresentam-se também no conceito”.(43) Tão somente no espírito desta metodologia é que Hegel pode falar de conceito concreto e total.

Quanto à singularidade, Hegel assim a define:

A singularidade, como vimos, já é colocada quando se coloca a particularidade. Esta (a particularidade) é universalidade determinada; é, portanto, a determinação referindo-se a si mesma, o determinado determinado.(44)

E, partindo deste ponto de vista, pode dizer: “A universalidade e a particularidade aparecem... como os momentos do devenir da singularidade”.(45) Daqui decorre, porém, ao mesmo tempo, que as singularidades — em sua real existência — jamais podem ser concebidas independentemente do particular e do universal. Neste ponto, a lógica dialética rompe completamente com qualquer tipo de empirismo ou de nominalismo; estes reconhecem como sendo objetivamente existente apenas o singular, vendo no particular e no universal produtos puramente subjetivos do pensamento. Esta polêmica, por vezes, pode não ser senão uma pura e simples consequência do idealismo objetivo, e subvalorizar assim, com orgulho especulativo, a importância do dado sensível para o pensamento. A tendência do idealismo objetivo no sentido de colocar singularidade, particularidade e universalidade no mesmo nível de realidade, contudo, revela um objetivismo que é frequentemente, pelo menos, igualmente justificado; ou, como diria Engels, um materialismo “invertido”. O singular, portanto, também para Hegel, é “um este ou aquele qualitativo”.(46) Para alcançar a partir daqui o universal, não basta extrair — através da pura abstração — o que é comum a muitos singulares dados imediata e sensivelmente. “Se por universal”, diz Hegel, “entende- se o que é comum a muitos singulares, parte-se da existência indiferente dos mesmos e mistura-se assim, na determinação conceitual, a imediaticidade do ser”. Mas a tarefa da filosofia consiste precisamente em superar esta imediaticidade. De fato, todo singular — e isto objetivamente, independentemente do pensamento subjetivo — é mediatizado, e mediatizado de um modo muito complexo e multifacético. O singular como um este, ou seja, em sua aparente imediaticidade pura, é “o imediato produto da mediação”.(47) Ainda que esta polêmica de Hegel possa ser justificada em suas linhas essenciais, indica novamente — na medida em que se recusa liminarmente a admitir que se atinja a universalidade mediante a extração dos traços comuns — os limites idealistas do pensamento de Hegel.

Acreditamos que este exemplo revela claramente o essencial do comportamento metodológico de Hegel. Central, neste comportamento, é precisamente a objetividade e o movimento interior do próprio conceito. Expressa-se aqui, por um lado, o grande progresso que o método de Hegel trouxe para a lógica: a prioridade do conteúdo com relação à forma. Por outro lado, ao mesmo tempo, expressa também uma exagerada tensão idealista da objetividade. Hegel diz, polemizando com a lógica do intelecto metafísico e subjetivo, “que nós não formamos absolutamente os conceitos e que o conceito em geral não deve absolutamente ser considerado como algo nato”.(48) A dialética materialista, na qual a objetividade é garantida pelo reflexo da realidade que existe e se movimenta independentemente da consciência, pode naturalmente considerar os problemas da objetividade de um modo muito mais elástico e dialético do que o próprio Hegel; dado que para ele a objetividade está presente apenas na atmosfera do pensamento, do “espírito”, Hegel é levado frequentemente a uma certa rigidez, a fim de poder evitar — apoiando-se de qualquer modo no platonismo — uma queda no idealismo subjetivo. Na práxis de Hegel, tomando-se caso por caso, encontraremos certamente muitos exemplos de um tratamento elasticamente dialético, mas a contínua atitude de precaução em face do idealismo subjetivo atua forçosamente, com igual frequência, como uma tendência ao enrijecimento.

De modo ainda mais nítido do que no caso da subjetividade, Hegel sublinha o caráter processual da relação de universalidade e particularidade. Já observamos que ele rechaça como metafísica, ou pelo menos considera como uma modalidade de apresentação inferior e que deve ser superada, aquela forma da universalidade que é uma simples soma abstrata de mortos traços singulares. “Agora, porém, o universal do conceito não é simplesmente um universal comum em face do qual o particular tivesse uma subsistência para si, mas sim o próprio particularizante (especificante)...”.(49) Ou, de forma mais concisa e mais positiva:

Todavia, o universal é o que é idêntico a si expressamente, no sentido de conter em si ao mesmo tempo o particular e o singular. Ademais, o particular é o distinto ou a determinação concreta, mas no sentido de ser universal em si e enquanto singular.(50)

O singular tem o significado de ser sujeito, fundamento que contém dentro de si o gênero e a espécie, sendo ele mesmo substancial. Este pensamento é expresso, ainda mais significativamente, na Propedêutica Filosófica: “O que vale para o universal, vale também para o singular e para o particular; o que vale para o particular, vale para o singular; mas não vice-versa”.(51) Ou ainda: “O universal assume o particular e o singular debaixo de si; o singular assume em si o particular e o universal; o particular assume o universal”.(52) Hegel indica aqui, como também posteriormente na Lógica, na subsunção e na inerência conceitos de relação, cuja dialética determina a conexão destas categorias uma com a outra. Assim, “a particularidade é a determinação do universal, mas de tal modo que ela é superada no universal ou nela o universal permanece o que ela é”.(53) Hegel reconhece também a relatividade posicional destas categorias:

O particular é, com relação ao singular, um universal, e, com relação ao universal, um determinado; é o meio que contém dentro de si próprio os extremos da universalidade e da singularidade e, por isto, lhes funde conjuntamente.(54)

Deste modo, Hegel — na medida em que isto é possível para um sistema idealista — determinou de modo dialeticamente exato a posição específica da particularidade em sua lógica.

Naturalmente, é preciso observar que estas citações da Propedêutica derivam de contextos que transcendem a teoria do conceito. Mas, quando citamos frases hegelianas das diversas etapas da lógica, pela sua importância metodológica, podemos fazê-lo no espírito de seu método dialético. De fato, sua doutrina do conceito, como já demonstramos, não se diferencia da dos seus predecessores tão somente por não constituir o início da lógica, mas também — em estreita ligação com tal fato — porque estas três partes (conceito, juízo, silogismo) convertem-se mais energicamente uma na outra, antecipam-se reciprocamente e — no tríplice sentido hegeliano da palavra — conservam-se (ao superar- se) reciprocamente. Em todas as lógicas que começam com o conceito, este não passa de uma abstração, artificiosamente isolada. A conexão, a relação, a ligação surgem apenas quando os conceitos, rigidamente fechados em si, unem-se no juízo com outros conceitos a fim de efetivar, mediante o juízo, o mesmo processo no silogismo. Em Hegel, pelo contrário, o conceito tem uma longa pré-história lógica, rica de modificações e de conversões. Por isso, ele é muito mais concreto e pleno de significado do que em outros filósofos. E esta riqueza de conteúdo, esta concreticidade, não se refere apenas à esfera de significados no conceito. Em Hegel, ao contrário, o mútuo implicar-se dos objetos já está contido no próprio conceito.

Precisamente aqui, ao negar a possibilidade de um significado do conceito absolutamente carente de relações com outros objetos, a lógica hegeliana revela-se novamente como um materialismo de cabeça para baixo. Assim, o caminho do conceito ao silogismo através do juízo representa uma série ininterrupta de passagens dialéticas, de conversões em seu contrário, de modificações recíprocas. Como sempre ocorre em Hegel, um grande número destas passagens é extremamente artificioso, pois construído de um modo formalista. Trata-se aqui novamente, todavia, do tributo que todo idealismo deve pagar à realidade quando pretende refleti- la absolutamente em todas as suas conexões; não obstante, o movimento essencial é autenticamente dialético. Há muita profundidade no fato de que a passagem do conceito ao juízo ocorra precisamente na forma da redução da determinação à singularidade, para depois assumir um novo curso no sentido das particularidades e das universalidades de significado superior.(55) O fundamento real destas passagens lógicas reside no fato de que, de acordo com Hegel, “a determinação conceitual é essencialmente relação”.(56) Assim, naturalmente, o juízo (e, em relação ao juízo, o silogismo) não se degrada numa mera tautologia, numa explicitação puramente formal de algo implícito já completamente presente. O conceito, em verdade, é relação em si; mas é também, inseparavelmente, algo de concluído em si mesmo: é a unidade destes momentos antitéticos. Por isto, o juízo pode produzir uma síntese superior, uma unidade mais rica e com determinações mais explícitas: “As determinações refletidas dentro de si mesmas são totalidades determinadas, essenciais na existência indiferente privada de relações, do mesmo modo que através da mediação recíproca de uma com a outra”.(57)

Toda a teoria hegeliana do juízo e do silogismo é a história e o sistema de tais movimentos. Estes não vão simplesmente do singular ao universal e vice-versa (e, neste processo, para ambos os movimentos, cabe ao particular a inevitável função de mediação); mas também, ao mesmo tempo, vão da universalidade abstrata à concreta, da universalidade inferior à superior, o que transforma a universalidade precedente numa particularidade, bem como da singularidade puramente imediata à mediatizada, etc. Isto tem como consequência o fato de que, pela primeira vez na lógica, o lugar da particularidade seja determinado como sendo o de um insuprimível membro da mediação entre singularidade e universalidade; e isto em ambas as direções do movimento. O particular, porém, é mais do que um momento da mediação apenas formalmente necessário. Vimos que estão em jogo conexões reais da realidade, da natureza e da sociedade, que recebem na lógica seu mais abstrato reflexo, mas um reflexo que corresponde tendencialmente à realidade. Tampouco é decisivo o fato de que a teoria do conhecimento hegeliana não se baseie na teoria do reflexo; apesar disto, sua lógica aspira objetivamente a um tal reflexo da realidade objetiva. Tivemos ocasião de observar, no que diz respeito a este problema, como e com que necessidade surgem em Hegel imagens corretas ao lado de imagens falsas e inteiramente distorcidas. É claro que esta duplicidade deve se fazer sentir, necessariamente, ainda mais na lógica do que em outros pontos. Portanto, se as grandes e importantes conquistas da dialética hegeliana devem ser utilizadas também neste conjunto de questões que dizem respeito à ciência e à filosofia, é inicialmente necessário limpar radicalmente o terreno daqueles momentos da problemática hegeliana que são falsos do ponto de vista do conteúdo social; tanto no conhecimento da natureza quanto no da sociedade, a justa concepção dialético-materialista dos fatos e das conexões deve substituir sua distorção burguesa-idealista. Tão somente sobre tal base torna-se possível uma profunda crítica materialista da lógica hegeliana no que diz respeito ao problema da universalidade, particularidade e singularidade; em suma, uma crítica que realmente ajude a utilizar na ciência as descobertas e intuições geniais de Hegel.


Notas de rodapé:

(1) Georg Lukács, Der junge Hegel (O Jovem Hegel), Zurique, 1948. Edição para a República Democrática Alemã: Aufbau-Verlag, Berlim, 1954. (retornar ao texto)

(2) Hegel, Enciclopédia das Ciências Filosóficas, § 249. (retornar ao texto)

(3) Hegel, Die Verfassung Deutschlands. Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie (A Constituição da Alemanha. Escritos sobre política e filosofia do direito), Leipzig, 1923, págs. 140-141. (retornar ao texto)

(4) Hegel, Wissenschaftliche Behandlungsarten des Naturrechts (Modalidades de tratamento científico do direito natural), Ibidem, pág. 402. A terminologia de Hegel é ainda em muitos casos aquela de Schelling; é o caso, no trecho citado, do termo “potência”. (retornar ao texto)

(5) Ibidem, pág. 403. (retornar ao texto)

(6) Ibidem, pág. 352. (retornar ao texto)

(7) Ibidem, pág. 409. (retornar ao texto)

(8) Ibidem, pág. 406. (retornar ao texto)

(9) Hegel, Die Vernunft in der Geschichte (A razão na história), Leipzig, 1917, pág. 74. (retornar ao texto)

(10) Ibidem, pág. 75. (retornar ao texto)

(11) Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, in Marx-Engels, Obras Escolhidas, trad. portuguesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1963, tomo III, pág. 174. (retornar ao texto)

(12) Hegel, Werke (Obras), op. cit., tomo II, pág. 11. (retornar ao texto)

(13) Hegel, Die Vernunft in der Geschichte, cit., pág. 83. (retornar ao texto)

(14) Marx, Werke (Obras), op. cit., tomo III, pág. 258. (retornar ao texto)

(15) Hegel, Die Vernunft, cit., pág. 83. (retornar ao texto)

(16) Marx, op. cit., pág. 253. (retornar ao texto)

(17) Marx, Das Kapital, Berlim, 1947, tomo I, págs. 185-186. (retornar ao texto)

(18) Hegel, Jenenser Realphilosophie (Filosofia de Iena), Leipzig, 1931, tomo II, pág. 198. Para a totalidade do problema do trabalho e da teleologia, cf. meu livro Der junge Hegel, cit., pág. 389 e segs. (retornar ao texto)

(19) Ibidem. (retornar ao texto)

(20) Ibidem, pág. 389. (retornar ao texto)

(21) Engels, Antidühring, in MEGA (Obras Completas de Marx e Engels), op. cit., pág. 75. (retornar ao texto)

(22) Lenin, philosophischer Nachlass, op. cit., pág. 122. (retornar ao texto)

(23) Hegel, Werke, tomo V, pág. 238. (retornar ao texto)

(24) Hegel, Rechtsphilosophie (Filosofia do Direito), § 270, adenda. (retornar ao texto)

(25) Ibidem (retornar ao texto)

(26) Ibidem, § 189. (retornar ao texto)

(27) Ibidem, adenda. (retornar ao texto)

(28) Ibidem, § 198. (retornar ao texto)

(29) Ibidem, § 199. (retornar ao texto)

(30) Ibidem, § 185.(retornar ao texto)

(31) Hegel, Enciclopédia, § 163, adenda I. (retornar ao texto)

(32) Hegel, Rechtsphilosophie, § 206. (retornar ao texto)

(33) Ibidem. (retornar ao texto)

(34) Ibidem, § 184, adenda. (retornar ao texto)

(35) Ibidem, § 185, adenda. (retornar ao texto)

(36) Hegel, Werke, cit, tomo X, I, pág. 147. (retornar ao texto)

(37) Hegel, Rechtsphilosophie, § 303. (retornar ao texto)

(38) Ibidem, § 275. (retornar ao texto)

(39) Ibidem, § 280. (retornar ao texto)

(40) Hegel, Werke, cit, tomo IV, págs. 234-235. (retornar ao texto)

(41) Ibidem, pág. 234. (retornar ao texto)

(42) Ibidem, tomo V, pág. 61. (retornar ao texto)

(43) Ibidem, pág. 57. (retornar ao texto)

(44) Ibidem, pág. 58. (retornar ao texto)

(45) Ibidem, pág. 59. (retornar ao texto)

(46) Ibidem, pág. 62. (retornar ao texto)

(47) Ibidem. (retornar ao texto)

(48) Hegel, Enciclopédia, § 163, adenda 2. (retornar ao texto)

(49) Ibidem, § 163. (retornar ao texto)

(50) Ibidem, § 164. (retornar ao texto)

(51) Hegel, Werke, Ausgabe (edição) Glockner, tomo III, pág. 139. (retornar ao texto)

(52) Ibidem, pág. 146. (retornar ao texto)

(53) Ibidem. (retornar ao texto)

(54) Ibidem, pág. 214 (retornar ao texto)

(55) Hegel, Werke, cit., tomo V, pág. 63. (retornar ao texto)

(56) Ibidem, pág. 71. (retornar ao texto)

(57) Ibidem, pág. 64. (retornar ao texto)

Instituto Lukács
Inclusão: 28/06/2020