O problema da linguagem e da consciência

Alexander Romanovich Luria

1984


Primeira Edição: Publicado em LURIA, A. R. Conciencia y lenguaje. Madrid: Visor Libros, 1984, pp. 11–29.

Fonte: https://medium.com/katharsis/a-r-luria-o-problema-da-linguagem-e-da-consci%C3%AAncia-1984-fcd45bb034bd

Tradução: Teylor Lourival

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


O problema da estrutura psicológica da linguagem, seu papel na comunicação e na formação da consciência é um dos capítulos mais importantes da psicologia.

A análise de como se forma o reflexo imediato da realidade, de como o homem reflete o mundo real no qual vive, de como elabora uma imagem do mundo objetivo, constitui uma parte considerável de todo o conteúdo da psicologia. Mas o mais essencial consiste em que o homem não se limita à impressão-imediata do circundante, mas sim se encontra em condições de sair dos limites da experiência sensível, de penetrar mais profundamente na essência das coisas do que o permite a percepção imediata. O homem está em condições de abstrair características isoladas das coisas, captar os profundos enlaces e relações nas quais as coisas se encontram. De que forma isso é possível constitui o capítulo mais importante da ciência psicológica.

V.I. Lenin sublinhou que o objeto do conhecimento e, consequentemente, o objeto da ciência, não é tanto as coisas em si como as relações das coisas.(1) Um copo pode ser objeto de estudo da física, se o objeto da análise são as propriedades do material do qual é feito; pode ser objeto de estudo da economia, se trata-se do preço do copo, ou objeto da estética se trata-se das qualidades estéticas do copo. As coisas, consequentemente, não somente são captadas de modo imediato, mas sim refletem-se em seus enlaces e relações. Portanto, nós saímos dos limites da experiência sensorial imediata e formamos conceitos abstratos que permitem penetrar mais profundamente na essência das coisas.

O homem pode não somente perceber as coisas, mas pode refletir, fazer deduções de suas impressões imediatas; as vezes é capaz de chegar a conclusões ainda que não disponha da correspondente experiência pessoal imediata. Se damos a um sujeito as duas premissas de um silogismo: “Em todos os centros regionais há filiais dos Correios”. “X é um centro regional”. Ele poderá facilmente chegar à conclusão de que no lugar X há uma filial dos Correios, ainda que nunca tenha estado neste centro regional ou ouvido falar sobre ele. Consequentemente, o homem não somente pode captar as coisas mais profundamente do que lhe permite a percepção sensível imediata, mas também tem a possibilidade de chegar a conclusões, não sobre a base da experiência imediata, mas sobre a base da razão. Tudo isto permite considerar que no homem existem formas muito mais complexas de recepção e elaboração da informação do que as que se dão pela percepção imediata.

Isto pode ser formulado de outro modo: o homem dispõe não somente de um conhecimento sensorial, mas também de um conhecimento racional, tem a capacidade de penetrar mais profundamente na essência das coisas do que o permitido pelos órgãos do sentido; ou seja, a história humana dá um enorme salto no processo de conhecimento em relação ao mundo animal, do sensorial ao racional. Por isso, os clássicos do marxismo, com absoluto fundamento, falaram que a transição do sensorial ao racional é tão importante quanto a transição da matéria inerte para a vida.

Tudo isto pode ser ilustrado com um exemplo tomado dos fatos obtidos na psicologia evolutiva. Tenho presente o experimento conhecido como experiência de Buytendijk, que mostra melhor que outros as diferenças entre o pensamento do homem e dos animais.

As observações se levaram a cabo com uma série de animais que pertencem a distintos gêneros: aves, cachorros, gatos. Em frente do animal se dispunha uma série de recipientes e em sua presença se colocava a isca no primeiro e ele era fechado. Naturalmente, o animal corria em direção a esse recipiente, o derrubava e pegava a isca. Na outra vez, o sebo era colocado no recipiente adjacente, e, se ele não havia visto onde havia sido colocada a isca, o animal se dirigia em direção ao recipiente em que havia encontrado a isca na vez anterior. Somente ao não encontrá-la, dirigia-se ao segundo recipiente. A experiência se repetia muitas vezes, colocando-se a isca sempre no recipiente seguinte. O resultado foi que nenhum animal pôde resolver corretamente esta tarefa e dirigir-se imediatamente ao recipiente seguinte, ou seja, não puderam “captar” o princípio de que a isca era colocada cada vez no recipiente seguinte na série. Na conduta do animal domina a experiência imediata, e o princípio abstrato de “seguinte” não se forma.

o experimento conhecido como experiência de Buytendijk, que mostra melhor que outros as diferenças entre o pensamento do homem e dos animais.

A diferença deles para uma criança de aproximadamente 3–4 anos é que a criança “capta” com facilidade este princípio e após algumas poucas repetições da experiência se dirige de forma direta ao recipiente em que ainda não havia encontrado a recompensa, o que corresponde ao princípio de localização desta no lugar seguinte da vez anterior.

Isto significa que o animal em seu comportamento não pode sair dos limites da experiência imediata sensível e reagir de acordo com um princípio abstrato, enquanto o homem assimila facilmente este princípio abstrato e reage não de acordo com a experiência imediata passada, mas sim em correspondência com o princípio abstrato dado. O homem vive não somente no mundo das impressões imediatas, mas sim no mundo dos conceitos abstratos; acumula não somente sua experiência visual imediata, mas assimila a experiência social, formulada no sistema dos conceitos abstratos. Consequentemente, o homem, diferentemente dos animais, pode operar não somente em um plano imediato, mas também em um plano abstrato, penetrando assim profundamente na essência das coisas e suas relações.

Desta forma, diferentemente dos animais, o homem domina novas formas de reflexo da realidade por meio não da experiência sensível imediata, mas sim da experiência abstrata racional. Esta particularidade caracteriza a consciência do homem, diferenciando-a do psiquismo dos animais. Este traço, a aptidão do homem que ultrapassar os limites da experiência imediata, é a peculiaridade fundamental de sua consciência.

Como explicar este fato: a transição do homem da experiência sensível à abstrata, do sensorial ao racional? Este foi o problema fundamental da psicologia nos últimos cem ou mais anos.

Na tentativa de explicar esta questão, os psicólogos se dividiram em dois campos fundamentais. Uns, os psicólogos idealistas, reconheciam o fato fundamental da transição no homem do sensorial ao racional, considerando que diferentemente dos animais, o homem possui formas completamente novas de atividade cognoscitiva; mas não puderam passar à análise das causas que provocam esta transição e, mesmo descobrindo o fato, se negavam a explica-lo. Outros, os psicólogos mecanicistas, trataram de enforcar deterministicamente os fenômenos psíquicos, mas se limitaram à explicação dos processos psíquicos elementares, preferindo deixar passar em silêncio o problema da consciência como transição do sensorial ao racional; assim ignoraram este grande tema e limitaram seus interesses aos fenômenos elementares da conduta: os instintos e os hábitos. Este grupo de psicólogos negava o problema da consciência, o que é específico para o homem; a este grupo pertencem os behavioristas estadunidenses.

Analisemos as posições de ambos os grupos mais detalhadamente. Os psicólogos idealistas (como Dilthey, Spranger e outros) consideravam que o nível superior de comportamento abstrato é realmente característico do homem; mas a seguir concluíam que este nível de consciência abstrata é a manifestação de especiais faculdades espirituais que existem originariamente no psiquismo humano. Esta possibilidade de sair dos limites da experiência sensorial e de operar com categorias abstratas é uma propriedade do mundo espiritual que existe no homem, mas não no animal. Esta foi a tese fundamental das distintas concepções dualistas, cujo representante mais explícito foi Descartes.

A tese fundamental da teoria de Descartes, como é sabido, consiste no seguinte: os animais atuam de acordo com as leis da mecânica e sua conduta pode ser explicada de modo rigorosamente determinista. Mas no caso do homem, esta explicação determinista da conduta não é adequada. O homem, diferentemente do animal, possui um mundo espiritual, graças ao qual aparece a possibilidade do pensamento abstrato, da conduta consciente; este mundo não pode ter origem nos fenômenos materiais, e as raízes do comportamento humano se encontram nas propriedades da alma e não podem ser explicadas pelas leis materiais. Este ponto de vista constitui a essência da concepção dualista de Descartes: reconhecendo a possibilidade de explicar mecanicamente a conduta do animal, considerava, ao mesmo tempo, que a consciência do homem tem uma natureza completamente singular, espiritual e que não é possível encarar os fenômenos de consciência a partir das mesmas posições deterministas.

Kant também partiu de posições semelhantes. Para Kant, como é sabido, existiam categorias a posteriori, ou seja, que se formam a partir da experiência do homem, e categorias a priori, ou seja, que existem originariamente nas profundezas da alma humana. A essência do conhecimento humano, dizia Kant, consiste em que o homem pode sair dos limites da experiência imediata; isto é um processo transcendental, ou seja, um processo de transição da experiência imediata às essências internas e às categorias generalizadas racionais, que existem originariamente na alma humana.

As ideias do kantismo exerceram influência no pensamento idealista do século XX. O filósofo alemão Cassirer, um dos mais eminentes neokantianos, autor da obra fundamental “Philosophie des symbolischen Forman”, considera que o espírito humano possui formas simbólicas que se manifestam nos signos, na linguagem e nos conceitos abstratos. O homem se diferencia do animal porque se encontra em condições de pensar e organizar sua conduta nos limites das “formas simbólicas” e não somente nos limites da experiência imediata. Esta capacidade de pensar e de atuar em formas simbólicas é o resultado de que o homem possui propriedades espirituais; para ele, são características das categorias abstratas de pensamento, os princípios espirituais abstratos de consciência.

Segundo a opinião dos filósofos do campo idealista, estes princípios podem ser somente descritos, mas não podem ser explicados, e sobre esta peculiar afirmação está construída toda a fenomenologia moderna — a teoria sobre a descrição das formas fundamentais do mundo espiritual; o ápice desta teoria são os trabalhos do filósofo alemão Husserl.

A fenomenologia parte da seguinte proposição simples: a ninguém cabe dúvida de que a soma dos ângulos de um triângulo é igual a dos ângulos retos; isso é possível estudar e descrever, mas não tem sentido formular a pergunta de por que precisamente a soma dos ângulos de um triângulo é igual à dos retos, ou qual pode ser a causa disto. Este fato aparece como uma característica fenomenológica apriorística da geometria. Toda a geometria, construída segundo estritas leis, é acessível à descrição e ao estudo, mas não exige explicações, como o fazem os fenômenos da física ou da química. De igual forma, como nós descrevemos a geometria, podemos descrever a fenomenologia da vida espiritual, ou seja, as leis que caracterizam as formas complexas do pensamento abstrato e do comportamento categorial. É possível descrevê-los, mas não os explicar.

Com estas afirmações, a filosofia idealista, e igualmente a psicologia idealista, rompe tanto com as ciências naturais como com a psicologia científica, enfocando de modo diferente a partir de um princípio as formas complexas e as formas elementares de atividade cognoscitiva e estabelecendo entre ambas uma diferenciação absoluta.

Nos debruçamos até aqui nas bases filosóficas das afirmações dualistas. Passaremos agora a examinar as posições dualistas de alguns psicólogos e fisiólogos.

O eminente psicólogo do século XIX, Wundt, compartilhava desta posição dualista. Segundo ele, existem os processos elementares da sensação, percepção, atenção e memória, processos que obedecem a leis naturais elementares e que são acessíveis à explicação científica (ou seja, fisiológica). Entretanto, nos processos psíquicos do homem existem outros fenômenos, que se manifestam no que ele chamou de “percepção”, o conhecimento ativo do homem, conhecimento que parte das disposições ativas ou da vontade. Segundo a opinião de Wundt, estes processos de conhecimento ativo abstrato saem dos limites da experiência sensível, pertencem à esfera dos fenômenos espirituais superiores; é possível descrevê-los, mas não os explicar, porque neles se manifestam as categorias, a priori, fundamentais do espírito humano.

No começo do século XX, a teoria da percepção de Wundt alcançou ampla difusão e foi a base de uma direção especial na psicologia, a chamada escola de Würzbourg.

Os pesquisadores da escola de Würzbourg, como Külpe, Ach, Messer e Bühler, dedicaram seus interesses à análise das leis que estão na base das formas complexas do pensamento e da consciência. Como resultado das investigações realizadas, chegaram à conclusão de que a consciência e o pensamento não podem ser examinados como formas da experiência sensível, que o pensamento transcorre sem a participação das imagens visuais ou de palavras e que representam uma categoria especial de processos psíquicos, em cuja base se encontram as propriedades categoriais do espírito, as que determinam seu transcurso. O pensamento, de acordo com os representantes da escola de Würzbourg, se reduz à “direção” ou à “intencionalidade” que parte da vida espiritual do homem; é sem imagens, não sensível, tem suas próprias leis, as quais, a princípio, não podem ser vinculadas à experiência imediata.

São amplamente conhecidas as experiências sobre as que os psicólogos da escola de Würzbourg chegaram a suas conclusões. Os sujeitos que tomavam parte nestas experiências eram pessoas muito qualificadas, professores, docentes, que sabiam observar seu mundo interior e formular verbalmente os processos observados. A estes sujeitos eram dadas tarefas complexas, por exemplo, compreender o sentido da seguinte oração: “pensar é algo tão extraordinariamente difícil que muitos preferem simplesmente tirar conclusões”. O sujeito pensava, repetindo para si esta frase: “claro, correto. Na verdade, pensar é tão difícil que é mais fácil evitar o trabalho de pensar, é melhor tirar diretamente conclusões”. Ou uma segunda frase: “as plantas da vontade pura são folhas secas que nunca ficam verdes”. É fácil ver que cada parte desta oração é concreta: “plantas”, “folhas secas”, “nunca ficam verdes”; mas a essência desta oração não se encontra em absoluto nem “nas plantas”, nem no “verde”; sua consciência consiste em que a “vontade pura” é um conceito tão abstrato que nunca se expressa na experiência sensível e não se reduz a ela. Quando lhes é perguntado, depois da experiência, quando tiravam conclusões correspondentes, o resultado foi que não podiam dizer nada em absoluto acerca disso. O processo de pensamento parecia tão abstrato que aparentemente não tinha nenhuma base sensorial, não provocava nenhuma imagem ou palavra; ao contrário, era preciso abster-se das imagens para penetrar na essência destas orações. De modo geral, a dedução se fazia de forma “intuitiva”, sobre a base de certas “sensações lógicas” que experimenta o sujeito ao captar estas orações. Consequentemente, no homem havia certo “sentido lógico”, a sensação do correto ou incorreto da ideia, o mesmo sentimento que experimentamos quando, dado um silogismo, fazemos a correspondente dedução lógica. Esta dedução não se faz sobre a base da experiência pessoal do sujeito, mas sim do “sentido lógico”; e este “sentido lógico” é uma propriedade inerente ao mundo espiritual e originária dele, que diferencia o homem do animal e o racional do sensorial.

A mesma característica foi obtida pelos representantes da escola de Würzbourg quando realizaram experimentos mais sensíveis, por exemplo, quando se propunha ao sujeito encontrar o gênero de uma espécie e a espécie de um gênero de animais, ou incluir a parte no todo etc. Também nestes casos o processo de dedução racional transcorria automaticamente e, aparentemente, não se baseava nem a experiência sensível nem o pensamento verbal. Estaríamos aqui ante fenômenos de um tipo diferente das sensações ou percepções.

O dualismo que caracteriza estes psicólogos e pelo qual se diferenciava taxativamente a “experiência sensorial” elementar, dos hábitos da consciência “supras-sensorial, “categorial”, também se manifestava muito abertamente entre os fisiólogos. Como exemplo, podem ser citados, ainda que seja somente dois dos mais renomados fisiólogos, Ch. Sherrington — um dos fundadores da teoria do reflexo — e J. Eccles — um dos fundadores da teoria contemporânea da condutibilidade sináptica do neurônio. Ambos foram eminentes especialistas em fisiologia, mas, em igual medida, também idealistas em sua tentativa de explicar os processos psíquicos superiores: a consciência e o pensamento.

Sherrington, ao final de sua vida, publicou dois livros; “The brains and its mechanisms” e “Man on his nature”, nos quais propõe a ideia de que o fisiólogo, por princípio, não pode explicar o mundo espiritual do homem e de que o mundo das categorias abstratas, o mundo das ações voluntárias, é o reflexo de certo mundo espiritual que existe fora do cérebro humano.

Às mesmas posições chegou J. Eccles, autor de uma série de trabalhos, o último dos quais, “Facing Reality”, foi publicado há pouco tempo. Eccles partia da ideia de que a realidade não é esta realidade que nós percebemos sensorialmente, ou seja, não é o mundo externo no qual vive o homem. A realidade fundamental para Eccles é a realidade do mundo interno, é o que o homem experimenta em si mesmo e que permanece inacessível para outro homem. Esta ideia repete a conhecida proposição de E. Max, que está na base do idealismo subjetivo sustentado por este autor.

De que forma pode o homem, de maneira imediata, conhecer a si mesmo, avaliar-se, experimentar seus estados psíquicos? A origem se encontra, segundo Eccles, em aparatos nervosos especiais, que servem de “detectores” do mundo espiritual do além; ele tentou medir as dimensões destes detectores e chegou à conclusão de que eram equivalentes por sua dimensão às sinapses, as quais podem ser, segundo a opinião deste fisiólogo, os detectores do mundo espiritual do além.(2)

É evidente o beco sem saída ao qual leva o dualismo, que parte da contraposição entre a experiência sensorial e a racional, mas que nega a explicação científica desta última.

Consequentemente, podemos dizer que todas estas ideias e teorias, tanto dos filósofos como dos psicólogos e fisiólogos, devem ser avaliadas, posto que foi chamada a atenção sobre uma esfera importante, a esfera da experiência racional, categorial. Entretanto, o aspecto negativo de ditas posições consiste em que, dirigindo a atenção ao próprio fato da existência do pensamento categorial, abstrato, ou do ato puramente volitivo, estes investigadores se negaram a passar a uma explicação científica deste tipo de realidade psíquica, não trataram de enforcar estes fenômenos como produtos do complexo desenvolvimento do homem e da sociedade humana e consideraram este tipo de realidade como o fruto de uma especial “experiência espiritual” que não tem nenhum tipo de raiz material e que se relaciona com uma esfera completamente diferente do ser. Estas proposições fecham as portas ao conhecimento científico do aspecto mais importante da vida psíquica do homem.

É completamente compreensível por isto que os psicólogos, que não podiam se dar por satisfeitos com essas explicações idealistas, buscaram novos caminhos para tentar uma explicação científica, causal, determinista de todos os fenômenos psíquicos, entre eles também os mais complexos. Os representantes da orientação determinista partiram das principais proposições dos filósofos empiristas, de acordo com as quais “tudo o que existe no pensamento esteve antes na experiência sensível” (nihil est in intellectu, quod non fuerir primo in sensu) e consideraram sua principal tarefa estudar o pensamento aplicando os mesmos métodos com os quais se abordava a análise dos fenômenos elementais da experiência sensível.

Se o propósito fundamental da filosofia empirista, que se contrapõe às posições idealistas do cartesianismo, não provoca objeção alguma, as tentativas de levá-la a cabo em investigações psicológicas concretas e as formas que tomou esta ideia central na psicologia experimental “empírica” ou clássica provocou outras, mas também insuperáveis, dificuldades.

Os investigadores que aderiram a esta orientação partiram de posições mecanicistas ao tratar de explicar as formas mais complexas de pensamento.

No começo, esta posição se manifestou na afirmação de que o psiquismo dos homens é uma “tábula rasa”, na qual a experiência deixa suas marcas. Sustentando, corretamente, que no psiquismo nada pode surgir sem experiência, estes pesquisadores trataram de explicar as leis fundamentais do extremamente complexo pensamento abstrato ou categorial a partir de posições analíticas ou a partir de posições reducionistas e consideraram que para a compreensão das leis do pensamento é suficiente levar em conta dois processos elementais: a representação ou a imagem sensorial, por uma parte, e a associação ou os enlaces da experiência sensível, por outra; e que o pensamento não é outra coisa além da associação das representações sensoriais.

Esta tese dos psicólogos associacionistas, que ocuparam um lugar central na psicologia científica do século XIX e que pertenciam às correntes do conhecimento analítico daquele tempo — exemplo evidente de qual é a “fisiologia celular” em Virchon –, negavam completamente a especificidade e a independência das formas mais complexas de pensamento abstrato. Todos estes investigadores partiam da ideia de que mesmo as formas mais complexas de pensamento podem ser consideradas como associações de representações imediatas e que as posições das “categorias a priori” (em particular, as posições da escola de Würzbourg) não refletem nenhuma realidade e, por isso, são inaceitáveis.

Estas proposições estavam na base de uma série de escolas de psicólogos “associacionistas” do século XIX, entre os quais se podem citar Herbart na Alemanha, Beck na Inglaterra e Tem na França. Precisamente por isso, nos trabalhos destes psicólogos, que se debruçaram sobre as leis das sensações, representações e associações, não se encontra nem sequer um capítulo dedicado ao pensamento nem uma descrição de que é o que distingue o psiquismo dos animais da atividade consciente do homem.

É interessante assinalar que o enfoque mecanicista dos associacionistas, que consideravam como sua tarefa fundamental reduzir os fenômenos mais complexos aos elementos que os constituem, não se limitou à psicologia “empírica” (e que era na realidade uma psicologia subjetivista) do século XIX.

Neste sentido, quiçá haviam sido os psicólogos-behavioristas estadunidenses, os representantes da ciência “objetiva” do comportamento que tiraram a conclusão consequente com esta linha de pensamento. Os behavioristas, desde o princípio, negaram-se a estudar o pensamento abstrato, que deveria ser, aparentemente, objeto da psicologia. Para eles, pelo contrário, o objeto da psicologia era o comportamento, compreendido como reações frente aos estímulos, como resultado das repetições e dos reforços, ou seja, como um processo que se constitui pelo esquema elementar do reflexo condicionado. Os behavioristas nunca trataram de abordar a análise dos mecanismos fisiológicos da conduta e nisto consiste sua diferença radical com a teoria da atividade nervosa superior; limitaram-se à análise da fenomenologia externa do comportamento, descrita muito simplificadamente, e trataram de abordar todo o comportamento do homem da mesma forma que analisavam o comportamento do animal, considerando que a conduta se esgota na simples formação de hábitos.

Por isso, quando se abre um manual de psicologia escrito por um behaviorista, inclusive dos últimos tempos, pode-se encontrar capítulos sobre os instintos e os hábitos, mas não se achará nenhum capítulo dedicado à vontade, ao pensamento ou à consciência. Para estes cientistas, o comportamento abstrato (categorial) não existe em geral e, consequentemente, não pode ser objeto da análise científica.

É impossível não ressaltar o positivo desta orientação, ou seja, as tentativas realizadas não somente para descrever, mas também para explicar os fenômenos da vida psíquica. Entretanto, a insuficiência mais importante é a posição reducionista, a redução das formas superiores dos processos psíquicos aos processos elementares, a negativa de reconhecer a especificidade do muito complexo comportamento categorial consciente.

É difícil caracterizar melhor, do que T. Taylor, no prólogo ao seu manual de psicologia, publicado em 1974, a posição do reducionismo de que partem os psicólogos behavioristas:

“É sabido que o objeto da psicologia é o comportamento, que pode ser estudado desde a ameba até o homem. O leitor atento advertirá que a posição fundamental que se sustenta neste livro é a do reducionismo. O reducionista trata de explicar os fenômenos reduzindo-os a suas partes, as quais constituem o todo. As bases biológicas da conduta podem ser reduzidas aos movimentos dos músculos e à secreção das glândulas, o que por sua vez é o resultado de processos químicos. Estes processos químicos podem ser compreendidos a partir das mudanças das estruturas moleculares, que por sua vez se reduzem às mudanças das relações dos átomos em nível submolecular e que se expressam em índices matemáticos. A extensão lógica do reducionismo permitirá expressar o comportamento do homem em conceitos matemáticos”.(3)

Naturalmente, a psicologia elaborada a partir destas posições perde toda possibilidade de abordar cientificamente as formas mais complexas, específicas para o homem, de atividade consciente; atividade que é o produto do complexo desenvolvimento social e que diferencia o homem dos animais.

Do choque entre estas duas grandes direções surgiu a crise da ciência psicológica. Esta crise, que se fez definitivamente manifesta no primeiro quarto de nosso século, consistiu na divisão da psicologia, praticamente, em duas disciplinas independentes. Uma, a “psicologia descritiva” ou “psicologia da vida espiritual”, reconhecia as formas superiores e complexas de vida psíquica, mas negava a possibilidade de sua explicação e se limitava a sua fenomenologia ou descrição. A segunda, a psicologia “explicativa”, ou científica-natural, entendia que sua tarefa era a construção de uma psicologia cientificamente fundada, mas se limitava à explicação dos processos psíquicos elementares, negando-se de modo geral, a qualquer tipo de explicação das formas mais complexas da vida psíquica.

A saída desta crise podia consistir somente em conservar como intocável o próprio objeto da psicologia humana, o estudo das formas mais complexas de atividade consciente, conservando junto com ele a tarefa não de descrever estas complexas formas de atividade consciente como manifestações de uma vida espiritual, mas sim de explicar a origem delas a partir dos processos acessíveis à análise científica. Dito de outra forma, a tarefa consistia em conservar o estudo das formas mais complexas da consciência como a tarefa principal da psicologia, garantindo o enfoque materialista, determinista em sua explicação causal.

A resolução desta questão, a mais importante da psicologia, foi alcançada por um dos fundadores da ciência psicológica soviética, L. S. Vigotski, que predeterminou em muito o caminho de desenvolvimento da psicologia soviética das últimas décadas.

Em quê consistiu a saída da crise, reformulada por L. S. Vigotski?

A principal tese de Vigotski soa paradoxal: para explicar as formas mais complexas da vida consciente do homem é imprescindível sair dos limites do organismo, buscar as origens desta vida consciente e do comportamento “categorial” não nas profundidades externas da vida e, em primeiro lugar, da vida social, mas nas formas histórico-sociais da existência do homem.

Nos deteremos nisto mais detalhadamente. O objeto da psicologia não é o mundo interno em si mesmo, mas sim o reflexo no mundo interno do mundo externo; dito de outra forma, a interação do homem com a realidade. O organismo, que experimenta determinadas necessidades e que tem certas formas de atividade, reflete as condições do mundo externo e elabora determinada informação. Nos sistemas biológicos elementares, a interação com o meio ambiente é o processo de intercâmbio de substâncias com a assimilação das que são imprescindíveis para o organismo e a eliminação daqueles produtos que são resultado da atividade vital. Em níveis fisiológicos mais complexos, a base da vida é o reflexo das influências externas e internas. O organismo recebe a informação, a refrata através do prisma de suas necessidades ou de suas tarefas e a elabora, cria um modelo de seu comportamento; com ajuda da “estimulação antecipada”, cria um determinado esquema dos resultados esperados, e, se seu comportamento coincide com estes esquemas, a conduta cessa; caso contrário, a agitação circula novamente pelo circuito, e as buscas ativas da resolução se prolongam (Bernstein, Miller, Galanter, Pribram e outros).

A princípio, o mesmo se pode dizer a respeito da organização das formas mais complexas da vida consciente, mas aqui se trata da elaboração pelo homem de uma informação mais complexa no processo da atividade objetal,(4) elaboração que se realiza com a ajuda da linguagem.

Como já dissemos antes, o homem se diferencia do animal pelo fato de que com a transição à existência histórico-socialao trabalho e às formas, a eles ligadas, de vida social, mudam radicalmente todas as categorias fundamentais do comportamento.

A atividade vital do homem se caracteriza pelo trabalho social e este trabalho social, com a divisão de suas funções, origina novas formas de comportamento, independente dos motivos biológicos elementares. A conduta não está determinada por objetos instintivos diretos; a partir do ponto de vista biológico, não há nenhum sentido lançar sementes à terra ao invés de comê-las, espantar a presa no lugar de cercá-la ou afiar uma pedra se não se leva em conta que estas ações serão incluídas em uma atividade social complexa. O trabalho social e a divisão do trabalho provocam a aparição de motivos sociais de comportamento. Precisamente em relação a todos estes fatores se criam no homem novos motivos complexos para a ação e se constituem essas formas de atividade psíquica, específicas do homem, nas quais os motivos iniciais e os objetivos originam determinadas ações e estas ações são levadas a cabo por meio de correspondentes operações especiais.

A estrutura das formas complexas de atividade humana foi estudada detalhadamente na psicologia soviética por A. N. Leontiev (1959, 1975), e nós não nos deteremos especialmente nisto.

O segundo fatos decisivo que determina a transição da conduta do animal à atividade consciente do homem é a aparição da linguagem. Neste processo do trabalho socialmente dividido apareceu nas pessoas a necessidade imprescindível de uma comunicação estreita, a designação da situação laboral na qual tomavam parte, o que levou à aparição da linguagem. Nas primeiras etapas, esta linguagem esteve estreitamente ligada aos gestos, e os sons inarticulados podiam significar tanto “cuidado” como “esforce-se” etc.; ou seja, que o significado deste som dependia da situação prática, das ações, dos gestos e da entonação com que era pronunciado.

O nascimento da linguagem levou a que, progressivamente, fosse aparecendo todo um sistema de códigos que designava objetos e ações; logo, este sistema de códigos começou a diferenciar as características dos objetos e das ações e suas relações e, finalmente, se formaram códigos sintáticos complexos de frases inteiras, as quais podiam formular as formas complexas de alocução verbal.

Este sistema de códigos teve uma importância decisiva para o desenvolvimento posterior da atividade consciente do homem. A linguagem, que ao princípio esteve estreitamente ligada com a prática, atada a ela, que teve um caráter “simpráxico”, foi separando-se progressivamente da prática e começou a incluir um sistema de códigos, suficientes para a transmissão de qualquer informação ainda que, como veremos mais adiante, este sistema de códigos ainda conservou por muito tempo uma estreita vinculação com a atividade humana concreta.

Como resultado da história social, a linguagem se converteu em um instrumento decisivo do conhecimento humano, graças ao qual o homem pôde sair dos limites da experiência sensorial, individualizar as características dos fenômenos, formular determinadas generalizações ou categorias. É possível dizer que sem o trabalho e a linguagem, o homem não teria formado o pensamento abstrato “categorial”.

As origens do pensamento abstrato e do comportamento “categorial”, que provocam o salto do sensorial ao racional, é preciso buscá-las, consequentemente, não dentro da consciência humana ou centro do cérebro, mas sim fora, nas formas sociais da existência histórica do homem. Somente assim (e esta ideia é radicalmente diferente de todas as teorias da psicologia tradicional) se pode explicar a origem das formas complexas, especificamente humanas, do comportamento consciente.

Isto constitui a proposição fundamental da psicologia marxista. Com este enfoque, a atividade consciente é o principal objeto da psicologia, conserva-se o problema da consciência e do pensamento como as questões fundamentais da ciência psicológica e se coloca a tarefa de fazer uma análise científica e determinista das formas complexas da atividade consciente do homem, e se coloca a tarefa de explicar estes fenômenos muito complexos.

Consequentemente, nós abordaremos o problema da consciência e do pensamento abstrato, unindo este problema com o da linguagem e buscaremos as raízes destes complexos processos nas formas sociais de existência do homem, na realidade viva daquela linguagem, que permite individualizar as características dos objetos, codificá-las e generalizá-las. Nisto consiste a especificidade da linguagem que, como já dissemos, no início estava ligada à prática imediata, fundida com ela, e que logo, progressivamente, começou a se converter em um sistema que se mostrou eficiente por si mesmo para formular qualquer relação abstrata, qualquer ideia.

Antes de passar ao tema fundamental destas conferências, devemos nos deter em um problema particular que tem, entretanto, um significado de princípio.

São a linguagem e as formas de atividade consciente com ela relacionadas o produto específico da história social do homem?

Não existe também linguagem entre os animais? E, se é possível observar “linguagens” análogas no mundo animal, quais são as diferenças entre elas e a verdadeira linguagem do homem?

A ideia de que os animais também possuem uma linguagem se encontra muito frequentemente na literatura. Não é raro encontrar, por exemplo, referências a fatos como o seguinte: quando o líder de uma alcateia de lobos começa a emitir um sinal sonoro, toda a alcateia se levanta ansiosamente do lugar e o segue. O líder de uma manada de elefantes que sente o perigo também emite um grito, e toda a manada, ao perceber o sinal de perigo, o segue. Muito frequentemente afirma-se que as abelhas têm sua “linguagem” específica, que consiste na assim chamada “dança das abelhas”. A abelha que volta com uma carga de sua viagem, aparentemente transmite a outras abelhas de qual lugar voltou, onde encontrou a carga, a distância a que se encontra, em que direção têm de voar etc. Esta informação é transmitida pela abelha em uma “dança”, desenhando figuras no ar que refletem tanto a direção em que devem ir como a distância.

abelha em uma “dança”, desenhando figuras no ar que refletem tanto a direção em que devem ir como a distância

Pareceria que todos estes fatos testemunham a favor de que os animais também têm linguagem, e, se a tem, então todas as formulações acima colocadas são inconsistentes (Frisch, 1923; Révesz, 1976).

Surge, naturalmente, a pergunta: existe realmente uma linguagem nos animais? E, se existe, será uma verdadeira linguagem ou um tipo análogo de linguagem, uma “linguagem” no sentido amplo do termo, ou seja, uma atividade sinalizadora que, contudo, não pode comparar-se com a linguagem do homem e que se diferencia qualitativamente dele?

Nos últimos anos, a questão da “linguagem” dos animais chamou especialmente a atenção dos investigadores. O começo da série de trabalhos sobre o tema é a antiga obra de Frisch sobre a “linguagem” das abelhas (1923, 1967). Mais tarde apareceram outras investigações sobre a comunicação sonora das aves e trabalhos dedicados a estudar a comunicação verbal dos macacos. Assim, uma série de trabalhos psicológicos estadunidenses, que foram publicados nos últimos dez anos (Gardner e Gardner, 1969, 1971; Premack, 1969, 1971)(5) estiveram dedicados à análise da possibilidade de ensinar um macaco a falar, ou seja, ensinar-lhe a utilizar signos. Para isso, ensinaram a um macaco, por exemplo, que uma bola significa “pêra”, um quadrado significa “maçã”, uma linha significa “banana” e um ponto significa “não quero”. Os fatos demonstraram que, após longa aprendizagem, os macacos puderam utilizar este “dicionário” não sonoro, mas sim visual. Consequentemente, a questão da presença da linguagem como forma inata de comportamento nos animais foi muito discutida nos últimos tempos e provocou uma viva polêmica.

O mais importante neste problema é a questão da diferença entre a linguagem dos animais e a linguagem do homem. Sob o termo de linguagem humana, nós entendemos um complexo sistema de códigos que designam objetos, características, ações ou relações, códigos que têm a função de codificar e transmitir a informação, introduzi-la em determinados sistemas (mais adiante nos deteremos especialmente na análise detalhada destes sistemas). Todas estas características são próprias, realmente, somente da linguagem do homem. A “linguagem” dos animais, que não tem essas características, é uma quase-linguagem. Se o homem disse “pastas”, não somente designa uma coisa determinada, mas sim que a inclui em um determinado sistema de enlaces e relações. Se o homem diz “marrom”, se abstrai destas pastas e abstrai somente sua cor. Se diz “está aqui”, abstrai-se do objeto e de sua cor e assinala somente sua posição. Se o homem diz “esta pasta está sobre a mesa” ou “esta pasta está perto da mesa”, expressa uma relação entre os objetos, dando uma informação completa. Em consequência, a linguagem desenvolvida do homem é um sistema de códigos, suficiente para transmitir qualquer informação, inclusive fora do contexto de uma ação prática.

É apropriada esta definição para a linguagem dos animais? Esta pergunta pode ser contestada somente na forma negativa. Se a linguagem do homem designa coisas ou ações, propriedades, relações etc., e transmite desta forma uma informação objetiva, elaborando-a, a “linguagem” natural dos animais não designa uma coisa permanente, uma característica, uma propriedade, uma relação, mas sim expressa somente um estado do animal. É por isso que a linguagem animal não dá uma informação objetiva, mas somente contagia os estados que estão colocados no animal que emite o som (como ocorre no caso do líder da alcateia ou da manada) e provoca certos movimentos determinados como efeito. Os animais experimentam ansiedade, esta ansiedade se manifesta em seu grito e este grito agita o resto do grupo. O animal que reage frente ao perigo levantando as orelhas, virando a cabeça, contraindo os músculos do corpo e que solta um grito de alerta, expressa assim seu estado, e os demais animais “se contagiam” deste estado, “incluem-se” nele. Consequentemente, o sinal dos animais é uma expressão de seu estado afetivo, e a transmissão do sinal é a transmissão deste estado, a inclusão nele de outros animais e nada mais.

O mesmo pode ser dito, com pleno fundamento, da “linguagem” das abelhas. A abelha se orienta em seu voo por uma série de sinais que ainda conhecemos mal (é possível que se trate da inclinação dos raios solares, campos magnéticos etc.); a abelha experimenta um determinado grau de exaustão física e expressa nos movimentos da dança seu estado quando os realiza; as restantes abelhas que percebem esta dança “se contagiam” deste estado, “incluem-se” nele. A informação dada pela abelha não é uma informação sobre objetos, ações ou relações entre as coisas, mas sim uma informação sobre seu estado.

Uma interpretação diferente deve ser dada aos últimos experimentos de aprendizagem de uma “linguagem” artificial nos macacos.

Existem todas as bases para pensar que neste caso, trata-se de formas complexas de elaboração de reações condicionadas artificiais que nos fazem lembrar da linguagem humana somente por seus traços externos, mas que não constituem uma atividade natural dos macacos. Este problema é objeto, na atualidade, de vivas discussões, e nós não podemos, aqui, debruçar-nos mais sobre ele.

Ainda que conheçamos ainda pouco sobre a “linguagem” dos animais, da “linguagem” das abelhas, da “linguagem” dos golfinhos etc., é indubitável que os movimentos ou os sons das abelhas e dos golfinhos refletem apenas estados afetivos e nunca se constituem em códigos objetivos, que designam coisas concretas ou suas relações.

Tudo isto diferencia radicalmente a linguagem do homem (como sistema de códigos objetivos, formados no processo da história social e que designa coisas, ações, propriedades e relações, ou seja, categorias) e a “linguagem” dos animais, que é somente um sinal exterior, que expressa estados afetivos. Por isso, tampouco a “decodificação” destes sinais é o deciframento de códigos objetivos, mas sim a inclusão de outros animais na correspondente co-vivência. A “linguagem” dos animais, em consequência, não é um instrumento para designar objetos e abstrair propriedades e por isso de nenhum modo pode ser considerado como meio, formador do pensamento abstrato. Esta “linguagem” é somente um meio para a criação de formas complexas de comunicação afetiva.

Deste modo, portanto, o homem se diferencia dos animais pela presença da linguagem como sistema de códigos, por meio dos quais se designam os objetos externos e suas relações; com a ajuda destes códigos se incluem os objetos em determinados sistemas de categorias. Este sistema de códigos leva à formação do pensamento abstrato, à formação da consciência “categorial”.

À luz de tudo isso examinaremos o problema da consciência e do pensamento abstrato em sua relação estreita com o problema da linguagem.

Nas seguintes conferências nos dedicaremos a analisar o que representa a palavra e que função de elaboração da informação ela cumpre, como está morfologicamente constituída, que significado psicológico tem. Logo, passaremos à estrutura da oração, que permite não somente designar um objeto e separar as características das coisas, formas conceitos, mas também formular ideias em enunciados verbais. Nos ocuparemos, finalmente, da análise do processo dedutivo para esclarecer como se forma o pensamento verbal e como a utilização da linguagem leva à formação de processos muito complexos, característicos do psiquismo humano, como são os correspondentes à atividade psíquica consciente e voluntária.


Notas de rodapé:

(1) V.I. Lenin. Obras Completas, tomo 42, p. 289. (retornar ao texto)

(2) Uma análise detalhada das concepções de Eccles se dá no trabalho de Luria e Gurguenidze (1972). (retornar ao texto)

(3) Th. Y. Taylor. A primer of Psychobiology. Brain and Behavior. N. Y. 1974. (retornar ao texto)

(4) Atividade objetal significa ação prática com os objetos tanto no plano externo — manejo de objetos reais –, como no plano interno — manejo dos objetos de forma mental ou representativa. Diferencia-se do termo “objetal”, tal como é entendido na psicanálise. (N.T). (retornar ao texto)

(5) A bibliografia destes trabalhos encontra-se no livro de G. V. Hewes; “Origem da Linguagem”, tomo I-II, 1975. (retornar ao texto)

Inclusão: 08/10/2022