Vasco Gonçalves: Perfil de um Homem

Fernando Luso Soares


A Sinceridade dos Responsáveis


capa

«Temos consciência das responsabilidades que assumimos, porque não é uma palavra vã dizer-se ao povo português que tem hoje abertas perspectivas como só teve em 1383.»

Vasco Gonçalves intervenção na Assembleia do MFA 25 de Julho de 1975

Após a Segunda Guerra Mundial, na esteira da conferência afro-asiática de Bandung, que teve lugar em Abril de 1955, os povos colonizados viram definitivamente aberto o caminho da libertação. Tal conferência constituiu um dado adquirido da nova direcção histórica dos povos, que nenhum Estado, como membro da Comunidade Internacional, poderia dali em diante, e de boa fé, ignorar.

Um silêncio sepulcral foi, porém, o que ao tempo entre nós se manteve, a respeito das decisivas resoluções então tomadas. O lápis da censura cortou, com extremo rigor, as informações relativas ao acontecimento.

Ficou, assim, o comum dos portugueses na opaca ignorância de quais teriam sido os significados e a projecção política de Bandung. Aliás, como esse era precisamente o objectivo, não se dignou o «oráculo» de São Bento e Santa Comba a ler, ou a escrever sequer, a este propósito, três linhas só que fossem de um mais dos seus áticos discursos. Não, com efeito, houve notícia alguma, nem interpretação oficial ou oficiosa desse irrecusável acontecimento.

O «silêncio político», eloquentemente manifestado no seu olímpico desprezo pela opinião pública, tinha para Salazar, de entre vários motivos, uma imperiosa razão de ser.

«Aguentar» o império — assim pensava ele — era empreendimento de tal monta, que só lhe seria possível prossegui-lo, se, a todo o transe, mantivesse adormecida a consciência nacional, consciência de todo alheada das consequências libertantes e autonomistas de Bandung. Aquele «silêncio político», exigiam-no os plutocráticos interesses de negreiros e banqueiros, e em política — tantas vezes afirmou e reafirmou o ditador das aparências — só o que parece (ou aparece) é.

Mas é de Vasco Gonçalves que eu pretendo falar neste livro, escusado seria repeti-lo. Ele representa o meu tema central. O pólo ou o fulcro, sem dúvida.

Ainda algumas vezes, porém, o leitor voltará a ter de me desculpar por aludir a personagens suas contemporâneas ou próximas, análogas umas e diferentes outras. Continuarei, portanto, se bem que só por breves instantes, aludindo ao ensimesmado e sempre disfarsante ditador do fascismo português.

Salazar foi um ser «transcendente», no mau sentido da palavra e, ao mesmo tempo, talvez até por isso mesmo, tão oculto como o geral das divindades. Ora com um deus, mesmo de segunda, é facto sabido que não nos andamos a acotovelar aí pelas ruas, nem ele nos pisca familiarmente o olho, cruzando-se connosco nas curvas da cidade.

Se há ditadores que dão espectáculo e se exibem em peripécias de cabotinismo espaventoso e barulhento (Mussolini e Hitler são dois exemplos relativamente recentes de tal espectáculo) há também aqueles que matreiramente se escondem, como fazem certos deuses, para os quais o distanciamento lhes assegura a fama e a grandeza.

Os deuses furtam-se por esta razão, sem dúvida. Porém, aos tiranos que se amoitam, aquilo que sempre os norteia é a estratégia da aranha, a manha táctica da serpente mortífera.

Dos ditadores, com efeito, nem se poderá dizer que uns são melhores do que outros. Tenho esta verdade como certa.

Os que se escondem, fazem-no por um misto de astúcia política e de cobardia moral. É que o déspota pretende que a ele o vejam como a soberana infalibilidade, o poder alto e inalcançável, só assim concebível não lho venham outros a subtrair. Ele preserva o ceptro, antes que lho oxidem. Rodeia-se, então, de um aparelho policiário-censural, o qual começa por se destinar unicamente a defendê-lo e acaba, sistematicamente por agredir terceiros. Por fim o déspota proclama-se, com mais ou menos subtileza, um cidadão irresponsável.

Aí — pensa ele — atingiu o pináculo da política.

Mas sofre aquele termo — o adjectivo «irresponsável» — de uma certa equivocidade. Por isso, o melhor, é explicá-lo. Irresponsável é o deus, é o ditador, é o juiz e é também o louco. Todos eles são irresponsáveis por causas diferentes, evidentemente.

Cautela, pois!

Não há ditador — na imitação de Nietzsche, que via no povo a escória material e grosseira sobre a qual desponta o «super-homem» — que para si não recolha as sonorosidades da glória alheia e não atire por sobre os ombros dos outros a culpa e a responsabilidade dos seus maus resultados.

As grandezas, considera o imperador, essas foi ele quem as fez. A História nada é mais do que o rol discriminado das suas decisões. E o Mundo, todo ele, não tem mais área possível que a do campo dos seus empreendimentos.

É como se refere no poema realista —iria dizer no poema científico — que Bertolt Brecht tão significativamente intitulou «perguntas de um trabalhador que lê»:

Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas?
Nos livros, o que consta é o nome de vários reis.
Mas terão eles arrastado os blocos de pedra?
E para onde foram os pedreiros,
uma vez acabada a muralha da China?
E César, aquele que venceu os gauleses,
não teria, ao menos, levado consigo um cozinheiro?

★ ★ ★

Nos meados da década de 50 estive em Angola por força de um serviço profissional. Aí contactei gente que me daria uma visão clara daquilo que até então ainda não tinha percebido.

Já nesse tempo altos funcionários da Administração ultramarina portuguesa faziam chegar a Lisboa inequívocas informações de como os povos angolanos se moviam na decisão de alcançar a liberdade e uma cidadania independente. Depois, uns cinco anos após, veio a constatação que nos despertou a todos para a realidade que Salazar tão diligentemente nos havia escondido. A tragédia, de si é que não podia ser; atirou logo o «oráculo» de São Bento as culpas da situação para o seu então ministro da Defesa.

Um deus não falha nunca — essa é, categórica, a teoria dos deuses. E foi por isso que Salazar proclamou dogmático, nos umbrais dessa mesma tragédia, que não se poderia perder um minuto mais em cada hora.

Só que, evidentemente, a forma reflexa do verbo era aqui um confessado título de alguém na busca da sua irresponsabilidade. Em súbita e «patritótica» azáfama, atravancando o cais lisboeta de materiais bélicos para que os transportassem rumo a África, embrenhou-nos Salazar na deplorável aventura genocida da guerra colonial.

Foi quando acordei. Quando enfim, compreendi o isolamento claustral do ditador, a fria insinceridade de todo o seu comportamento e o seu não ser português.

Vamos a ver.

Na História política do Portugal contemporâneo Salazar surge-nos como a personificação do ser isolado. Múltiplas causas, cujo complexo não cabe aqui arrolar, fizeram do principal responsável do fascismo no nosso país uma personalidade diametralmente oposta e diferenciada do modo de ser português. Foi ele próprio quem, aliás, o disse:

«Creio que não tenho nenhum dos defeitos do meu povo, e julgo que também não tenho nenhuma das suas qualidades.»

Eis aqui umas tantas palavras que, se acaso até nos fazem sorrir pelo chiste involuntário que denotam, traduzem, no entanto, muito de um acerbo drama que, de restritamente pessoal, se converteu em causa de sofrimento de todo um povo.

Seja como for, aí estava em Salazar, autoproclamada, uma águia cruel. O singular poema de Sofia de Mello Breyner disse-o, mais cruamente ainda, um repulsivo abutre:

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tomar as almas mais pequena(23)

Criou e alimentou as polícias secretas. Destruiu lares. Perseguiu pessoas que queriam ser livres, esmagado os protestos de trabalhadores e intelectuais. Mostrou-se Salazar, com tudo isto, um rapineiro de vidas e de direitos populares, pousado nas escarpas das falsas alturas, olho atentíssimos no descortinar das vítimas para as fulminncus do seu próximo ataque.

Quantos anos de voo solerte! Os que o «adoravam» — como se adora o feroz guardião dos próprios interesses de classe — incensavam-no na sua «distanciação transcendental» de um deus. Os outros, os que se compraziam, obtusamente, na flagelação moral e social de si próprios, esses nem sequer lhe perceberam a influência maléfica. Vegetavam e pronto!

Mas nos antípodas de tal flagelo está a outra espécie de homens. Por motivos facilmente descortináveis, dela que nos cabe falar neste momento. Refiro-me a um tipo de pessoas em que o ser individual se representa ou transfigura como partícula viva do ser colectivo e total do povo.

O homem-povo exprime, desde logo, a sinceridade que não suporta simulações.

Ele significa no campo prático, muito particularmente nos domínios éticos da honra, a assunção fronta das responsabilidades. Despido de artifícios, liberto de compromissos, a verdade do seu carácter é a face imediata que dele vemos. Não tem outra. Em meia dúzia de palavra —como se declara na linguagem comum de uma constatação que sobreleva o sentido material da posse dos bens — diríamos que nele se surpreende a realidade de «o seu a seu dono».

Pela sensibilidade, com efeito, se identifica homem-povo com o povo do qual ele é. Ele tem as mesmas inquietações. Iguais anseios. Sofre e usufrui, a compassos idênticos escrúpulos e gémeas esperanças. No mesmo um vão, portanto, as suas descobertas.

Aquilo a que poderemos chamar a sensibilidade específica do filósofo, do político, ou do artista como homem-povo, são sensibilidades que morrerão de todo, se não corresponderem, generosamente, à realidade que os circunda, envolve e integra.

Escreveu Lawson, em O Processo de criação no Cinema, um texto que, embora seja de estética cinematográfica, não quer dizer que não possa ser aqui invocado:

«Quem negue a criatividade do povo — afirma Lawson — nega-se a si próprio, isolando-se definitivamente da fonte do seu impulso criador.»(24)

Aí vamos ver que temos, como exemplo de um homem-povo, as profundíssimas raízes de um caso histórico bem nosso. Evocando a década dos anos 80 do século XIV, penso certeiramente em D. João, o Mestre de Aviz — aliás um modelo implicitamente chamado à colação no discurso que Vasco Gonçalves proferiu em 25 de Julho de 1975, perante a Assembleia do MFA.

Mas este é também o caso do próprio Companheiro General.

A tese resulta meridianamente esta: encontrando-se no pólo oposto daquele pretensioso retrato que Salazar fez de si próprio, o homem-povo (o Mestre, o Camarada Vasco) possui os defeitos e as qualidades da gente a que pertence.

O português, acima de tudo, vive pelo ímpeto e, por vezes, morre pela língua como o peixe — assim pelo menos nos sugere um provérbio conhecido. Que o português tem o coração ao pé da boca, isso mesmo nos declara uma singular metáfora, a sabedoria popular. E como extremamente sincero que é, em regra ele não se exime à responsabilidade das suas responsabilidades.

Talvez, porém, seja melhor que eu explique mais directamente esta asserção. E que, do mesmo passo, muito em concreto esclareça de que responsabilidade aqui se trata.

Quais as suas causas, o seu motivo, a sua razão determinante?... — estas são, na verdade, as interrogativas que podem assaltar-nos o espírito, designadamente tendo no ouvido, logo na consciência e na memória, as acusações que certos coriféus da política burguesa fizeram ao Companheiro General.

Não basta, na verdade, dizer que Vasco Gonçalves é português e que, como tal, é homem que assume o sentido do responsável. Tal regra — como regra geral de um nacionalismo ridículo — faria sorrir.

A crise nacional será a breve trecho um facto roçante da tragédia — agoiravam (sinistras) certas vozes, no decurso do ano de 1975. E de quem era a culpa do «desastre»? — comandava, para a resposta, a batuta de uns tantos dirigentes políticos obstinados em congelar a marcha dos acontecimentos portugueses rumo ao Socialismo.

Culpado era, evidentemente, Vasco Gonçalves!

O decurso do tempo viria, no entanto a mostrar-nos que esta não era uma questão meramente pontual. Congelar o Socialismo foi aquilo que a dique reitora do PS sempre pretendeu, aliás decisivamente auxiliada pela ingenuidade política de certos militares a quem haviam empolado o receio do famigerado «totalitarismo de esquerda».

Ainda hoje (nos meados de 1978, momento em que apronto esta páginas) vejo na face dianteira da edição internacional do «Herald Tribune», e a três colunas com fotografia do Primeiro-Ministro Mário Soares, esta sua frase mais do que elucidativa:

«Assumimos o compromisso de entrar na Europa e não temos intenção de praticar o socialismo, aqui em Portugal, quando o resto da Europa não é socialista.»(25)

Assim tem ido, como vemos, a independência nacional e a autonomia económica deste país!

Assim vai no passo arrepiante de caranguejo político, o respeito de uma ordem jurídica que a Constituição da República exige!

E de quem é a culpa, afinal?

Ao observador de hoje (escrevo agora, esta passagem, nos alvores de 1979) não podem restar dúvidas para uma resposta segura.

Independentemente do abandono de militantes — que deixaram o PS esmagados pela mais amarga desilusão — registo, a título de significativo exemplo, uma declaração do Dr. Joaquim Loureiro, advogado em Braga. Ele foi, no distrito nortenho, um dos fundadores do Partido Socialista e seu dirigente a nível nacional.

No texto dessa declaração — que valeu como pública recusa em participar naquilo que chamou «o já famigerado documento “Dez Anos Para Mudar Portugal”, mais um desses golpes publicitários com que os nossos dirigentes pretendem evitar o seu afundamento político» (sic) — o Dr. Joaquim Loureiro tomou, como socialista, esta posição frontal:

«No que se refere ao socialismo, a caminhada dos nossos dirigentes tem-se pautado, ininterruptamente, pela via da traição aos princípios mínimos do nosso programa e declaração de princípios.»

Isto porque

«não se pode dar vida à democracia congelando-se o socialismo: as duas realidades estão interligadas.»

E acrescentou ainda:

«Não basta ter uma obsessão doentia por combater o PCP (se “doenças” deste tipo são admissíveis em relação a um partido de esquerda...), como a que foi demonstrada pelos nossos dirigentes: é preciso saber apresentar e defender alternativas de acordo com o nosso projecto. Ora, desalojar e derrotar os comunistas para abrir o caminho à direita, é fazer o jogo da direita. Foi o que esses dirigentes fizeram: são eles, objectivamente, os grandes responsáveis pelo actual “processo reaccionário” em que vivemos. É com profundo desgosto que, mais uma vez, sou obrigado a dizê-lo.»(26)

Eis actual, e operada por dentro, uma análise crítica da situação nos começos de um 1979 em que, por complacência desvirginal do PS, veio a campear à direita, desenfreadamente, o Governo Mota Pinto. Não é, porém, de tão afrontoso presente — uma vez mais o digo — que se constitui o objecto imediato deste livro.

Recuarei, por conseguinte, à lufa-lufa inculcadoira e febril dos cupulares socialistas em 1975, todos eles — Zenhas e piranhas, Gonelhas e parelhas — apostados em liquidar o revolucionário Vasco Gonçalves e a «ameaça» real do Socialismo.

As coisas têm nome!

Percorrendo os túneis por eles escavados para a circulação das suas cabalas, intrigas e cambulhadas, aí foram os «criptogâmicos» usando a consabida receita: «A culpa é do gonçalvismo.» Não houve um só mal, não sobreveio mazela nacional alguma, não aconteceu drama ou iminência posterior a Março desse segundo ano da Revolução, que desde logo se não imputasse, por força e por necessidade, à governação do General.

Que sudário!

Vasco Gonçalves também podia ter feito uma contra-acusação de jaez igual. Mas não o fez, que outra pessoa ele é. Não seguiu o Companheiro General esse trilho reprovável de fazer imputações dolosamente gratuitas. Nem relativamente aos seus antecessores imediatos, os homens do I Governo Provisório, nem sequer a respeito dos governantes e políticos do regime fascista derrubado em 25 de Abril.

É preciso não esquecermos que isso explica muita coisa.

O Primeiro-Ministro dos II, III, IV e V Governos Provisórios manteve sempre uma filosofia de acção que identifica e, no mais possível, aproxima a Política da Moral. Tal filosofia implica e até mesmo impõe um comportamento extremamente aberto, uma conduta de tal modo franca, que os fariseus, sempre acautelados e algébricos nos seus esquemas, a condenaram como insólita e desabusada.

Mas, como Vasco Gonçalves, só fala quem não tem acima de si nenhuns outros parâmetros que não sejam os legítimos interesses das classes trabalhadoras. Aos «criptogâmicos», contrariamente, estão sempre a dominá-los as finanças inconfessáveis e certos hetero-comandos de todo indisfarçados.

A primeira qualidade do Companheiro General — colocando-o assim no pólo oposto, não só de um ditador como foi Salazar, mas simultaneamente dos blá-blá-blá do socialismo fingido — repito que é a própria de uma incontida e indominável sinceridade.

Foi isto, precisamente, o que em poucos meses de activo trabalho político dele fez a imagem, no Governo, do homem-povo português. Esta faceta da sua pessoa, levada ao zénite moral de uma entrega plena, sem atavios nem disfarces de carácter oportunista, ou de remédio transitório, levou Vasco Gonçalves — já o assinalei e reafirmo — à assunção da responsabilidade política.

Folheio o colectivo de textos Companheiro Vasco. Honro-me, evidentemente, de ter participado no volume, a par de dezenas de escritores e de depoentes, com um pequeno artigo: «A lição e a presença política de Vasco Gonçalves»(27).

Mas não é deste meu texto que pretendo agora falar. O meu objectivo é outro. Efectivamente, procuro e encontro na «introdução» desse livro — que é de Carlos Coutinho — esta densa e bela passagem, estreitamente adequada ao meu propósito. Por isso, dela transcrevo alguns parágrafos, hoje tanto mais importantes de recordar, quanto é certo e grave (hoje também) o risco-perigo em que se encontram as conquistas revolucionárias dos trabalhadores portugueses:

«Não há ser humano — observaria Carlos Coutinho, o dramaturgo e jornalista que o 25 de Abril surpreendeu nos cárceres da PIDE, em Caxias — que tendo, de uma forma ou de outra, influído nos destinos da sua comunidade, se consiga libertar de um certo halo mitológico, mais ou menos heróico, mais ou menos durável. Se é possível responsabilizar alguém pelos acontecimentos mais importantes dos nossos dias, esse alguém chama-se Vasco Gonçalves

E depois:

«As imensas planuras alentejanas que tantas vezes davam perdizes ao latifundiário e desemprego ao caseiro, desabrocham agora em pão e salário garantido. Vasco Gonçalves quer dizer, portanto, Reforma Agrária.

Bancos, seguros, transportes, cimentos, combustíveis, tabacos, construção naval, siderurgia, cerveja, indústria química e muitos outros sectores importantes da economia que até ao 25 de Abril eram dominados por algumas famílias, significavam lucros fabulosos, exploração desenfreada e trabalho incerto. Agora o povo português é dono de tudo isto e as comissões de trabalhadores são uma voz determinante. Vasco Gonçalves quer dizer, portanto, nacionalizações e controle operário.

As guerras coloniais, que mantinham torrentes de dinheiro em jorro constante para os cofres de meia dúzia de magnates e impunham aos portugueses legiões de mutilados e mortos, foram encerradas definitivamente, abrindo a porta da fraternidade e da cooperação mutuamente vantajosa aos povos da Guiné-Bissau, de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Portugal. Vasco Gonçalves quer dizer descolonização.»

E por fim, em remate:

«Grande é o sol, se quisermos olhar desprevenida e amplamente para o país que agora temos. Vasco Gonçalves quer também dizer liberdade, paz, dignidade e independência nacional. É óbvio que tudo isto saiu do esforço e do génio úbere do nosso povo. Mas, se alguém teve de dirigir, de transformar a vontade em acto, de erguer a coragem em sacrifício, de trocar o sono pela vigília criadora, de estar lúcido e firme no momento exacto, de mostrar a fronte e de dar o peito descoberto ao coice vil dos inimigos da justiça integral, esse alguém chama-se Vasco Gonçalves(28)

É esta, decerto, uma forma condicional de dizer: «... se é possível responsabilizar alguém...»

Porém, ela afirma directamente aquilo que pretendo recortar ou demarcar como verdadeira tese. Vasco Gonçalves foi um dos grandes obreiros da Revolução, precisamente porque agiu unido em cada momento ao povo-trabalhador, isto é, ao povo identificado com ele próprio.

Vasco Gonçalves—Povo, eis assim um binómio coerente nos seus termos, a união revolucionária do governante com os governados. Eis, enfim — se quisermos neste momento evocar comparativamente a «desepopeia» dos desastres políticos — um radicalmente contrário desse lamentável «politicar» que, por exemplo, levou o Dr. Mário Soares a descobrir (!), como análoga do compromisso histórico à italiana (?!), a tristíssima aliança que veio a celebrar-se entre o Partido Socialista e o CDS para a constituição do II Governo Constitucional.

Este lamentável acontecimento teria até marcado «o fim objectivo da Revolução» — como aliás sugeriu um comentarista — acaso a jovem Democracia portuguesa não contasse com a consciência forte de grandes sectores do trabalho. E é insofismável que o secretário-geral do Partido Socialista chegou a confessar aquela afrontosa quebra de união com as massas trabalhadoras ao apresentar o seu II Governo. Segundo então afirmou o Dr. Mário Soares, ira preciso deixar-se o Socialismo na gaveta, um lugar donde, diga-se por certo desnecessariamente, nunca tinha ele chegado a sair — considerado, é óbvio, o aparato social-democrata que tomou, entre nós, o nome emblemático de PS.

Recobremos, entretanto, o ânimo apesar do espectáculo deprimente. É verdade que na gaveta onde se deixou jazer o Socialismo, também já lá esconderam muito da herança do 25 de Abril, caindo esse ou aquele nos braços da contra-revolução.

Mas há gente e gente, é o que vale. E há Povo-povo.

Cada vez que estudamos as grandes obras da História — seja mesmo da História literária, da História da Filosofia, da Arte ou da Política — verificamos que o seu sujeito-autor é uma unidade plural.

Semelhante carácter abordei-o já no primeiro capítulo deste livro. Mas isso não obsta, interrogando-nos agora, especificamente, sobre a questão de se saber a quem cabe a responsabilidade, que voltemos a ele em rápido relance. Só mesmo aquela unidade nos permite explicar, de maneira significante, a acção colectiva dos homens e o sentido dos empreendimentos que ganham relevância histórica.

Fica, pois, sólido — mas igualmente límpido — este princípio operatório. A responsabilidade não constitui, nem nunca foi, o ónus de um só indivíduo. Aqui, relativamente ao fulcro do nosso tema, diremos que a responsabilidade não poderia mostrar-se exclusiva de Vasco Gonçalves. Responsável é o todo, a realidade transindividual, o grupo humano, o povo. Numa palavra, nós todos.

«Totalitários!» — já ouço que nos chamam os «grandes sacerdotes teóricos» da má língua facílima e, que ela é também possível, da ignorância dolosa. Com a mais generosa das paciências, eu explico, porém, o atropelo insidioso e trapaceiro de semelhante acusação.

Falando de uma realidade transindividual, integrante (ou, talvez melhor, estruturante) da pessoa singular, de forma alguma pretendo sustentar ou defender um supra-individualismo de tipo hegeliano. Para Hegel, sim, toda a actividade espiritual unicamente tem por escopo tornar os homens conscientes da sua missão dentro do Estado. No entanto, está bem de ver, isto nada implica de paralelo com o que venho de afirmar a propósito da acção moral e política de Vasco Gonçalves. Como aliás, da mesma forma, tal acção nenhuma analogia admite, até a mais remota, com o efectivo totalitarismo mussoliniano, expresso, por exemplo, neste fragmento da «Carta del Lavoro»:

«A Nação é um organismo dotado de vida própria, com os seus fins e os seus meios de acção, que a tomam, na força e duração, superior aos respectivos membros, quer isolados, quer agrupados. A Nação é uma unidade moral, política e económica que se realiza, integralmente, no Estado fascista

Deparamos, portanto, embora de forma muito breve, com um sistema filosófico (Hegel) e um sistema político (fascismo mussoliniano) que nada têm a ver, ambos, com o comunitarismo de Vasco Gonçalves.

Isto é peremptoriamente assim, por muito que um ror de interpretações, obtusas umas, mal intencionadas outras, houvessem cacarejado o contrário. E esta conclusão nem basta que a tiremos de modo implícito. Vasco Gonçalves sempre rejeitou o totalitarismo e o supra-individualismo. Quer nas suas palavras, quer nos seus actos, em cada passo ele demonstrou que a Moral (antes de tudo a Moral), a Cultura e a Pessoa Humana não existem para estar ao serviço do Estado. Este, sim, é o servidor — não o senhor servido.

Com tão esclarecidos limites, voltemos então e de novo ao problema da responsabilidade que nos vinha ocupando. O Companheiro General, humanamente sincero e politicamente moral, jamais atribuiu ao regime fascista, caído em 25 de Abril de 1974, a culpa integral e exclusiva da difícil situação do país. Veemente e entusiasta, sem dúvida, jamais no entanto Vasco Gonçalves caiu na demagogia.

Repare-se, por exemplo, na sua objectividade enquanto afirmava em 18 de Agosto desse primeiro ano da Revolução:

«Às dificuldades apontadas atrás, há que acrescentar algumas surgidas depois do 25 de Abril: — um aumento geral dos salários, que era justo e necessário dados o nível de vida inferior dos trabalhadores e a infracção, mas que cria problemas a uma economia sem base sólida; uma certa retracção injustificada de alguns sectores financeiros industriais; uma diminuição do turismo, reflexo da recessão que a Europa atravessa; uma temporária diminuição das remessas dos emigrantes que, no entanto, se reactivaram posteriormente, atingindo agora níveis bem reveladores da confiança dos trabalhadores portugueses emigrados no futuro do Portugal Democrático.»(29)

Em 1975, na grandiosa Festa do Trabalho que teve lugar no Estádio logo chamado «1.° de Maio», repetiria Vasco Gonçalves, esquematicamente embora, o enunciado daquela situação de crise:

«Está em causa, fundamentalmente, a nossa estrutura económica. Ela está doente — doença que já vem do tempo do fascismo. É uma herança que temos, mas cujo estado se agravou devido à sabotagem económica, à crise do capitalismo e também ao próprio desenvolvimento do processo revolucionário.»(30)

O ataque à política progressista de Vasco Gonçalves fez-se desonestamente (há que dizê-lo), fomentando-se a convicção de que o General «estava a desgraçar o país».

Quem, de boa fé e recta intenção, não sabe que é próprio de todas as revoluções o ónus do agravamento das crises em contrapartida (imediata) das transformações mais ou menos radicais na estrutura política, social e económica?! E, sendo assim, que papel (sério) fizeram aqueles que o impugnaram na sua acção e o denegriram na honra, primeiro com o veneno das ligações intestinas e palacianas, depois à luz do sol, singularizando nele uma responsabilidade que requeria explicações genéticas, antecedentes e globais?

Em todas as revoluções, seria escusado repetir, entrelaçam-se factores positivos e negativos. O balanço geral é que apontará o saldo para o juízo da História. Não há aprendiz de Política que não saiba isso.

Porém, e como é tristemente clássico, lá vão as forças conservadoras respondendo com a falsa simplicidade de uma cisão capciosa, de um maniqueismo irreal como todos os maniqueismos. De um lado, colocam elas o «haver» revolucionário, mas diminuído e apontado como um conjunto de acções exageradas, um risco anti-humano; e no outro inscrevem o «deve», soma dos aspectos negativos que desde logo são explicados pelo comportamento de um só homem, ele a causa geradora de um resultado danoso que só cessará se se destruir esse motor de culpa-geral.

«A nossa crise económica — acentuou Vasco Gonçalves no seu discurso do Dia do Trabalho de 1975 — é, neste momento, o obstáculo fundamental a vencer, é a nossa grande dificuldade, e o tempo que temos para a vencer é limitado. Ou recuperamos por nós próprios, com o nosso esforço, ou comprometeremos gravemente a marcha do nosso processo revolucionário, o futuro da nossa Pátria. Estariam à vista, então, o regresso do fascismo, a dependência económica e a perda das liberdades.»

E o General acrescentou:

«A nossa luta é decisiva. Apelo aqui a todos os trabalhadores, a todos os partidos, para que se lancem na batalha da produção, de cuja vitória depende o futuro da nossa revolução.»(31)

Este foi, evidentemente, um tipo bem marcado, muito característico, de apelo. Desde um mês e meio antes — com o 11 de Março — estava em boa parte subjugado o poder económico monopolista. As forças políticas e militares progressistas tinham conseguido a institucionalização do MFA, a constituição do Conselho da Revolução, a nacionalização da banca e dos seguros e ainda, conjunturalmente, a de muitas outras empresas e indústrias. Aliás, em 16 de Abril tinham-se verificado outras importantes e diversificadas nacionalizações: Tap, Sacor, Petrosul, Cidla, Caminhos de Ferro, Companhia Nacional de Navegação, Siderurgia Nacional, etc., etc. — enfim uma onda de libertação económica.

Tais factos haviam de ter a maior influência, não só no curso da Revolução — que assim abrira, decididamente, aa portas a uma rota socializante — , como na definição do país segundo novas condições sociais capazes de o distinguirem, estruturalmente, das democracias políticas avançadas. Grandes sectores dos meios de produção transitaram de súbito, por necessidade revolucionária, das mãos do capital financeiro para o domínio do Estado.

Isto não significou, desde logo, evidentemente, a titularidade dos meios de produção por parte dos trabalhadores. Mas este novo contexto político-jurídico, em conjunto com os movimentos de base que a vários níveis se desenharam, e a Reforma Agrária — que acontecia popular e legislativamente(32) — tudo isto deu possibilidades para que as forças económicas fossem dinamizadas por aqueles mesmos trabalhadores, e com a sua própria e específica acção — que é produzir.

Eis, sumariamente, o quadro em que se inseriu o veemente apelo à produção que Vasco Gonçalves fez ao povo na Festa do Trabalho. Quanto a mim, ouvi-o mais do que só com os ouvidos. Aconteceu a muitos: ouvimo-lo (melhor, sentimo-lo) com o coração. E entendemo-lo, naturalmente, com a inteligência e a razão revolucionária. A lógica da verdadeira liberdade — ou seja, a consciência das necessidades a solver — alastrou na cidade e nos campos.

Portugal chamava sobre si a curiosidade do Mundo. Mas provocava também, naturalmente, mercê de uma nova estrutura que se desenhava no horizonte da História, o facto de os inimigos destronados se desmultiplicarem nos artifícios e engenhos.

Cerca de um ano antes, cantavam assim algumas «sereias» à beira de Spínola, uma música diferente das palavras abertas de Vasco Gonçalves. Não falavam, claro, de trabalhadores! Nem de qualquer acção dirigida à instauração democrática do seu poder. Nem também, evidentemente da batalha da produção.

A sua teoria era, ao contrário, muitíssimo outra, toda ela com indisfarçáveis ressaibos do «capitalismo de organização». E, de mistura, com argumentos dos mais frequentes nos textos só demagógicos do chamado «capitalismo popular» (?!), essa mistificação exposta em obras tendenciosas, como as de Nadler e de Cole, e, muito particularmente, nesse livro perigosamente enleante, como foi Le bien être pour tous, do prazenteiro Erhard, o antigo chanceler da República Federal Alemã.

Eis-me, entretanto, a recortar do «Diário Popular», de 14 de Maio de 1974, umas palavras tão insinuantes como as de Nadler e Cole. Elas apresentavam o mesmo ar, revestiam-se de igual tom de panaceia e «tranquilizavam» ao mesmo tempo, os trabalhadores e... os centros económicos polarizadores dos grandes interesses do capital.

Não admira, por banda destes últimos, que tais palavras satisfizessem aqueles que se interrogavam, ansiosos e arreceados. Vendo destruídos os seus privilégios de classe e anuladas as possibilidades de exploração, que toda uma estrutura vinda do fascismo lhes tinham permitido, um tom a puxar para o «tecnocrático» dava-lhes como que o sinal do alívio ou da esperança.

«Para que as liberdades políticas oferecidas ao povo possam saudavelmente consolidar-se — assim rezava, seraficamente, o texto que pretendo referir — e se assista a uma verdadeira renovação da sociedade portuguesa, no sentido do progresso e do bem-estar espiritual e material do todos, é indispensável que o momento histórico, que vivemos, seja, sem perda de tempo, plenamente projectado o dinamizado no plano económico.»

Diz a secular sabença dos banqueteantes do poder:

«Quando não puderes vencer e aniquilar o inimigo, eufemiza-te em falas de mansidão. E simula alinhar no rumo dos acontecimentos. É então possível minar e esperar, abrindo os braços, feliz, às liberdades políticas oferecidas ao povo. Oferece-te mesmo para colaborar na renovação da sociedade no sentido do progresso. Entoa, até, religiossimas ladainhas ao momento histórico que vivemos.»

Dir-se-ia a palavra providencial! — cogitavam, intimamente, alguns arreceados com os horizontes possíveis do 25 de Abril.

Mas aquele artigo do «Diário Popular» era, na aparência, desde logo muito directo nas suas ideias, um texto assinado, pleno de «serena ponderação». E até «científico» — continuava o capital a remoer, sentindo no ar um pairamento de ameaça. Quem sabe se mesmo, nessa medida, ele não cataria conforme os caminhos da «Revolução»?!

No final de contas, encontrar-se-ia aí outra forma de congregar os trabalhadores para a batalha da produção. Sentenciava, melífeno, o capital:

«É indispensável que sem perda de tempo se projecte e dinamize, no plano económico, o momento histórico que vivemos».

Ao tempo, pensou assim muito bom português ingénuo. Ou menos prevenido contra as subtilezas e os ardis do espírito capitalizado de certa gente.

Hoje, porém, é bastante mais fácil, evidentemente, o sermos ponderados. Conhecemos a identidade do autor desse texto dado à estampa exactamente vinte dias decorridos nobre a fragorosa queda do regime caetanista, e, de lá para cá, muitas coisas têm acontecido. Perante a eclosão do 25 de Abril, o banqueiro Miguel Quina — o signatário do artigo que venho referindo — retomava apressadamente uma posição que vinha na lógica dos antecedentes.

Liberdades «oferecidas ao povo»...

A expressão é bonita! Só que na indicação do destinatário de tal «oferta» se encontra o disfarce e a hipocrisia, que tão frequentemente pretendem mascarar a face dos protagonistas da luta de classes, confundindo os papéis. Parece-me importante demorarmos o passo, no avanço deste tema, com um breve circuito que explica tentativas como esta. A História mostra-nos que os mais poderosos dominantes buscam, em dados momentos, a «aliança» dos dominados.

Tenhamos presente que o sector tecnocratista da burguesia portuguesa havia confiado, com Marcelo Caetano, na modernização do capitalismo portas adentro das fronteiras do país-império. Esse sector pretendia um capitalismo liberto dos esclerosamentos resultantes de uma ideologia que o prejudicava e também livre das violentas protecções de pides e quejandos.

O capitalismo moderno, numa palavra, apostava de todo na hipótese neocolonialista. Por isso, os tecnocratas tinham alinhado na «liberalização» marcelista, enquanto viram o seu projecto como coisa viável. Tratava-se de um procedimento a que os especialistas haviam chamado «a reforma do sistema operada por dentro» (sic).

A verdade é que o decurso gradualmente endurecido, e sem futuro, da guerra colonial colocou os tecnocratistas, nos últimos anos do regime Salazar—Caetano, em preocupante impasse.

Como, então, poderiam eles permanecer dentro dos quadros do sistema? — esta a sua última pergunta.

O manterem-se nos domínios das coordenadas asfixiantemente impositivas da «legalidade fascista» obrigá-los-ia a comprometerem-se materialmente, cada vez mais empenhadamente, numa luta lírica, mas caríssima, pela decantada «defesa da soberania portuguesa» no ultramar. O capitalismo, isso está-lhe na massa do sangue, respeita e ama mais os cruzados que as cruzadas. Aquele facto implicaria mesmo terem os financeiros; de se assumir como avalistas políticos da guerra em Angola, em Moçambique e na Guiné.

Dia a dia, portanto, mais eles viram em sério risco as concepções europeizantes que defendiam e a visão adequada a um moderno e renovado neocolonialismo. Daí o facto que nem toda a gente vê com a necessária lucidez, e que havemos de entender na sua dimensão real. No quadro político-económico do tempo imediatamente posterior ao 25 de Abril, Spínola significou duas coisas simultâneas e correlativas: a derrota da pequena burguesia, que se tinha radicalizado na via bélica das armas, e a política da alta burguesia, capitalista e financeira, para se desembaraçar de um fascismo que já não lhe servia os desígnios.

unidades de ruptura — aliás tão claramente explicadas por Althusser no seu Pour Marx — que chegam a espantar os leitores mais superficiais da História viva. A verdade é que por vezes se dão convergências (passadeiras, decerto) aparentemente absurdas: «povo» e «alta finança», formando uma unidade?!...

Será possível?!...

Esta «unidade» contra a ditadura, estabelecida automática e coincidentemente entre o «povo» e a «alta burguesia financeira» para o derrube do fascismo (pelo simples facto de ambos o não quererem), tem mais de um analogado histórico. Recorda, por exemplo, a aliança da burguesia e do povo para a morte do Antigo Regime, na França de Luís XVI. E encontra-se magnificamente traduzida em subtis observações com que deparamos quer na Doença Infantil, quer nas Cartas de Longe, de Lénine.

«A revolução só pode triunfar quando os de baixo não querem mais viver e os de cima não podem continuar a viver à maneira antiga...» — escreveu o grande revolucionário na primeira das duas obras agora citadas.

E reafirmou, entretanto, Lénine na segunda:

«Se a Revolução triunfou tão depressa (...) foi unicamente devido a que, em razão de uma situação histórica de extrema originalidade, correntes resolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogéneos, tendências sociais e políticas absolutamente opostas se fundiram com notável coerência...»(33)

Situação bizarra, esta, mas historicamente verificada e de novo verificável. E quanto à sua interpretação — conforme, aliás, o que escreveram Lénine e Althusser — é evidente que estarei de acordo. Excepto, porém, quanto à ideia, aliás circunstancial, de que a aliança heterogénea de ruptura, acontecida na Rússia de 1917, foi de «extrema originalidade». Já referi, na verdade, o exemplo anterior da França do século XVII e da sua Revolução filosófica e político-social.

E quanto a nós?

Por nossa parte, há cinco anos a «originalidade» repetiu-se. Limito-me assim, face à aparência desta «regra» da História, a recolher o ensinamento de Althusser:

«A unidade que (classes tão opostas como exploradores e explorados) constituem nessa “fusão” da ruptura revolucionária, elas a constituem por sua essência e pela sua eficácia própria, a partir do que são e das modalidades específicas da sua acção.»(34)

Quer isto dizer, obviamente, que classes antagónicas jamais formarão uma unidade real, antes, sim, uma simples unidade funcional, mais ou menos transitória. E é evidente que ao constituírem essa tal unidade (por mera coincidência de direcções) alguns altos financeiros e a gente trabalhadora a realizam exactamente, segundo a forma por que se animam e vivem. Por isso, esclarece o filósofo marxista francês:

«Fazendo-o, indicam também a sua própria natureza.»

Assim aconteceu igualmente no Portugal de Abril. E logo que tal unidade funcional se desfez, após a queda do enquistado e opressivo regime de Salazar—Caetano (isto é, após a ruptura) cada classe imediatamente afirmou a sua típica natureza e a especificidade do seu caminho.

Desfeita a unidade de ruptura que se verificou na sequência do 25 de Abril, desde logo a «alta finança» tentou a sua chance.

Dentro desta óptica, o spinolismo não foi mais do que o porta-voz de interesses capitalistas modernos

«que — como escreveu João Martins Pereira — jogavam na hipótese de uma “democracia forte”, tipo gaullismo, que simultaneamente lhes abrisse as portas da Europa e os fizesse beneficiar de um neocolonialismo que uma França ou uma Inglaterra tão bem souberam explorar»(35).

Com um sentido do real, que faz lembrar as passagens de Lénine e de Althusser, que vim de citar, Vasco Gonçalves aludiu concretamente a esta questão, quando da sessão comemorativa da derrota do nazismo na Europa. Efectivamente, em 8 de Maio de 1975, no Teatro São Luís — nessa mesma rua onde durante anos pontificara a PIDE/DGS — o Companheiro General mostrou compreender de sobra aquelas unidades de ruptura:

«O fascismo português — disse ele — atingiu um tal grau de condições que, criado pelo capitalismo, para seu serviço, acabou por se tornar um obstáculo ao desenvolvimento desse mesmo capitalismo, ao ponto de originar uma boa aceitação do 25 de Abril pelos seus sectores mais avançados.

Nesta perspectiva há que estar atento à realidade de que, se o fascismo foi derrubado em Portugal, as forças capitalistas não desistiram nem desistirão facilmente de tentar recuperar as suas condições de expansão.

«Perdidas as esperanças no 25 de Abril, como factor de readaptação a novos condicionamentos, o ataque desencadeou-se, como o provam as diversas crises atravessadas até ao 11 de Março, e continuará a desenvolver-se utilizando formas mais subtis e menos detectáveis ao nível do Povo Português.»(36)

Quem bem se compreende agora, findo este circuito, o fragmento de texto que invoquei do «Diário Popular» e que vem constituindo o motivo provocador destas considerações! Ele é o símbolo da fase pré-revolucionária que se situou entre o 25 de Abril e o 28 de Setembro, e torna possível uma advertência, hoje aliás tão útil quanto antes.

Verifica-se, de imediato, que o povo-trabalhador não figura, nesse texto de Miguel Quina, como sujeito gramatical da respectiva oração. Não figurando em tal qualidade, igualmente ali não tem lugar como agente de qualquer empreendimento político, económico ou social. Na maviosa teoria do artigo, que venho referindo, aparece-nos o povo como mero beneficiário (passivo) de uma dádiva de liberdades. E como concedente de tais graças, muito naturalmente todo o conjunto dos donos e senhores do capitalismo monopolista. Eles tinham pontificado até ao 25 de Abril, haviam entoado loas à queda de Marcelo Caetano — e pensavam em permanecer.

Em função de tudo o que vem sendo dito, resulta ainda elucidativo transcrevermos um pouco mais desse artigo que o senhor Miguel Quina escreveu pouco antes da sua fuga. Nele põe-se a nu toda uma estratégia cujas linhas vinham já de antes.

É sempre útil recordá-las.

Eis o que vamos fazer.

«A realização de projectos industriais em estudo, ou já em execuçção no Ultramar — “anunciava” então o banqueiro — constituirá também um voto de confiança no funcionamento das novas estruturas político-sociais que se deseja construir para o futuro. A promoção económico-social dos grandes territórios de Angola e Moçambique, qualquer que seja a forma jurídico-política que resultará do livre-exercício do direito de se autodeterminarem, vem constituindo uma inadiável tarefa colectiva. Assim, os investimentos previstos prosseguem nos termos em que haviam sido programados, e agora com um sentido de renovada urgência — continuava acentuando o senhor Quina. Tais investimentos visam, por forma estreitamente selectiva, o melhor aproveitamento dos recursos locais, entendendo por isto a introdução de uma tecnologia desenvolvida, que permita a criação do maior valor acrescentado local, e excluindo aqueles que se restrinjam a uma transformação superficial das riquezas daqueles territórios, para benefício de outros com mais avançado grau de desenvolvimento — o que corresponderia a perpetuar a actual forma de divisão internacional do trabalho que prejudica manifestamente os interesses dos territórios menos desenvolvidos.»(37)

Este texto — modelo capitalista e tecnocrata de embuste, ardil, desumanidade e opressão — mereceu certamente (e continuará a merecer dos pontos de vista económico-financeiro e histórico-político) o exame de especialistas.

Ele constitui uma preciosa fonte de pretextos críticos relativamente ás tentativas que o grande capital desde logo fez para inflectir a Revolução de Abril, no sentido das suas conveniências. Não é necessário que uma pessoa esteja dentro do segredo das altas e complexas questões de Economia e das Finanças para lhe entender o estilo.

Se a Revolução não tivesse tomado o rumo que tomou, e se, de entre outros revolucionários, Vasco Gonçalves não se houvesse assumido como o primeiro dos responsáveis (situando-se, por isso, na razão directa do ódio que lhe moveu a alta finança e, por força do «eco», toda uma pequena burguesia desorientada e avessa ao «novo», que é tantas vezes o «incómodo»), talvez ainda hoje constituíssemos uma subpotência colonial. E digo talvez porque, intencionalmente, e para efeito da hipótese invocada, abstraio aqui da acção histórica que os povos africanos de expressão portuguesa haveriam de, entretanto, ter exercido contra a nossa então escravizante soberania sobre terra alheia. O capitalismo monopolista de Estado continuaria a dominar as instâncias da vida social, política e económica dos portugueses, mantidos na dependência inexorável do imperialismo.

Na razão directa do ódio de muita gente, governou e vive ainda hoje Vasco Gonçalves. Mas vive também, fortissimamente, na razão do amor e do reconhecimento de tanto e tanto povo. Vi lágrimas correndo de inúmeros olhos, para não dizer que as senti correr dos meus, quando em 18 de Agosto de 1975 o Companheiro General discutiu, cruamente, o problema da responsabilidade revolucionária — que é política e é moral.

Foi no discurso de Almada. Lutava Vasco Gonçalves com todas as veras da sua alma indómita:

«A questão — proclamou ele — não é pois de oposição entre Vasco Gonçalves e Fulano, ou Vasco Gonçalves e Sicrano. Não se trata pois de um problema de individualidades. A questão, repito-o, não é essa; a questão é mais profunda, só se pode pôr no campo da luta de classes, no campo da opção de classe. Pondo as coisas claramente, há quem, pertencendo originariamente à burguesia, esteja disposto a pôr em causa todos os seus privilégios e os privilégios da classe a que pertence e pôr-se ao serviço dos interesses das classes trabalhadoras; e há aqueles que, embora reclamando-se do marxismo, das classes trabalhadoras e do socialismo, só o fazem para não perderem os seus privilégios e para salvarem os privilégios da classe e das camadas sociais a que pertencem.»(38)

Há, na verdade, gente e gente. Alguma, aliás, de socialista e revolucionário, usa só os apelidos e quando lhe convém. Essa gente — quem o não sabe — procede conforme lhe correm os ventos e andam as marés.

Mas a História julgará.


Notas de rodapé:

(23) Sofia de Mello Breyner Andersen, Livro Sexto, Círclo de Poesia, Morais Editora, 1964, p. 69. (retornar ao texto)

(24) J. H. Lawson, O processo de Criação no Cinema, Rio de Janeiro, 1967, p. 157. (retornar ao texto)

(25) O sublinhado é, evidentemente, meu. Parece, entretanto, oportuna esta nota complementar sobre o complexo drama actual da Revolução de Abril. Ele vem a manifestar-se, desde o VI Governo Provisório a esta parte, no diluir progressivo do projecto socialista perante políticos que alegam a necessidade de se «acautelar» a ordem (dita) democrática burguesa. O que neste momento mais importa ver é, porém, que tal diluição já residia na natureza íntima do Partido Socialista português. Como notaria um observador da nossa realidade política pós-25 de Abril, praticamente inexistente no deflagrar da Revolução, originado sob a «protecção» do SPD da Alemanha Federal, com orgânica débil e militância confusa, heterodoxa e contraditória, não podia o PS eliminar estes defeitos próprios sem se arvorar em campeão da democracia face ao PCP. Noutras circunstâncias históricas, o Partido Socialista teria decerto revelado, desde o início, a sua cara social-democrata. Todavia, o ritmo da Revolução obrigou-o a uma espécie de revolucionarismo para inglês ver. Constrangido, porém, a assumir a herança do 11 de Março — que não foi da sua vontade, antes pelo contrário — logo que se viu no Poder, ele procurou mitigar o mais possível a extensão revolucionária daquela. Ou, por outras palavras, enveredou pelo cercear os aspectos verdadeiramente socialistas da Revolução, ao mesmo tempo que Portugal se tornava cada vez mais dependente das centrais financeiras do imperialismo germano-americano. Transformando a impotência própria em arma do seu próprio poder, logrou o PS governar durante meses e meses, cedendo cada vez mais perante o PSD e o CDS, até ao ponto de ter pactuado com este último num conúbio de que não mediu as consequências e que só por pouco o não levou à morte. (retornar ao texto)

(26) Cf. v.g. em «O Diário», de 27-1-79. (retornar ao texto)

(27) In Companheiro Vasco, pp. 341 e segs. (retornar ao texto)

(28) Carlos Coutinho, in Companheiro Vasco, pp. 19-20. Sublinhados meus. (retornar ao texto)

(29) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 37-38. (retornar ao texto)

(30) Idem, pp. 272-273. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(31) Idem, p. 273. (retornar ao texto)

(32) Os diplomas legais de exploração cedida, expropriação e nacionalização de terras são de Abril e Julho de 1975: o decreto-lei n.° 201/75, de 15 de Abril (arrendamento rural); o decreto-lei n.° 406-A/75, de 29 de Junho, que declarou sujeitos a expropriação os prédios rústicos pertencentes a proprietários com mais de 700 hectares de área ou 50 000 pontos; e o decreto-lei n.° 407-A/75, de 30 de Julho, que declarou nacionalizados os prédios rústicos beneficiados pelos aproveitamentos hidroagrícolas do Caia, Campilhas, S. Domingos e Alto Sado, Divor, Loures, Idanha, Mira, Odivelas, Roxo, Vale do Sado, Vale do Sorrala, que preenchessem determinados requisitos. (retornar ao texto)

(33) Lénine, Obras, Edição Progresso, em língua francesa, tomo XXIII, p. 330. (retornar ao texto)

(34) Louis Althusser, Pour Marx, 1966, Capítulo III, intitulado «Contradição e sobredeterminação», pp. 87 e segs. Existe uma tradução em língua portuguesa, de Zahar Editores, intitulada «Análise Crítica da Teoria Marxista», onde se pode ver esta matéria a pp. 75 e segs. (retornar ao texto)

(35) João Martins Pereira, O Socialismo, a transição e o caso português, Livraria Bertrand, 1976, pp. 230-231. (retornar ao texto)

(36) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 282. .Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(37) Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(38) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 476. (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2015