Vasco Gonçalves: Perfil de um Homem

Fernando Luso Soares


Um Capitalismo Selvagem


capa

«É preciso também aqui dizer que o capitalismo português, o capitalismo monopolista português, era uma espécie de capitalismo selvagem.»

Vasco Gonçalves - Conferência de Imprensa de Bruxelas - 31 de Maio de 1975

Um mês decorrido sobre a posse do cargo de Primeiro-Ministro do II Governo Provisório, cuidou Vasco Gonçalves, em comunicações que fez ao país através da RTP, de se defrontar com a situação real, que vinha dos tempos do fascismo.

«Alguns dos principais mitos do regime deposto — declarou em 18 de Agosto de 1974— eram o da estabilidade económica e financeira, e o da ausência de défice orçamental. Contudo, a verdade era bem outra. Nas vésperas do 25 de Abril a economia portuguesa estava à beira do caos.»(59)

O capital é, por definição, um monstro insaciável. Mas constitui, do mesmo passo, um monstro ordenado.

Este recorte representa o seu melhor figurino não obstante as sabidas e reconsabidas contradições, que lhe são características: — contradições entre a organização da produção em cada empresa e a crescente «anarquia» da produção à escala de toda a sociedade, e entre a tendência para a ilimitada ampliação da produção e os limites solventes da procura. Apesar de tudo, diria que, em princípio, o capital abomina o caos, que, eventualmente, lhe prejudique a sua própria estrutura acumulatória e reprodutora.

Se o capitalismo português tinha aderido aos acontecimentos iniciais da Revolução, tal acontecera precisamente porque ele, não lhe servindo o caos-ameaça a que aludiria Vasco Gonçalves, esperava poder inflectir ou ordenar os acontecimentos no sentido do seu proveito. O capitalismo monopolista do nosso país espelhava o crónico atavismo da burguesia portuguesa e a opressão indisfarçável, mau grado os esforços de Marcelo Caetano, de uma ideologia que durante décadas havia hostilizado a industrialização.

Ao sobrevir o 25 de Abril, estava o país convertido no palco de um dramático desequilíbrio.

De um lado, situavam-se as quarenta e quatro famigeradas «super-famílias» que constituíam a força mandante, a ordem dominante da grande burguesia no panorama económico português(60). Do outro, encontravam-se os «bricoleurs», os fazedores do biscate imediato e negocieiro, mais ou menos compensador: empresários medianos e medíocres, pagando salários de ultra-miséria, «capitalistas» sem capital nem visão, estipendiados e hipotecados à banca, a dirigir empresas sem estrutura financeira e orgânica mercantil que se dissesse mínima. E ainda havia depois, enfim, a legião dos especuladores de toda a espécie (que está hoje a renascer sob os olhos «complacentes» do Poder que se «instituiu» desde o VI Governo Provisório para cá, decerto que mais acentuadamente após o 25 de Novembro), uma onda de «armazenistas» lançados na típica voracidade de muita da nossa média burguesia, que é a de ganhar muito, o mais depressa possível e sem risco.

Esta média burguesia procede, aliás, imitativamente quanto ao Portugal que foi o de antes 25 de Abril. Ela é o espelhado mais ou menos reflector da acção dos Abecassis e dos Bulhosas, clãs do terceiro plano das «grandes famílias» portuguesas(61): em regra cirandavam em actividades de rápida realização e reduzido risco e foram, durante o consulado de Marcelo, dos mais «notáveis» especuladores da bolsa. É de não esquecer, porém, que este procedimento imitativo vinha ainda de mais alto(62).

Resulta falso, portanto, que a economia portuguesa esteja caótica por força do 25 de Abril. A concentração feroz do capital e a ruína da média e pequena iniciativa privada foram, no marcelismo, factos incontroversos que muito explicarão do caos. De uma banda estavam os monopólios; da outra, aquelas micro-unidades — como anotaria Ramos dos Santos no texto que dele venho referindo — que durante o tempo caetanista desapareceram à média de 263 por ano, quando no período que vai de 1959 a 1968 o ritmo fora só de 123.

Seja como for, o processo desordenado (dir-se-ia o processo selvagem) de muitas das «conquistas» do capital, agora não aproveitava mais os financeiros portugueses. Face à invernia de sombras que da Europa viera avizinhar-se sobre aquela que fora, com Marcelo Caetano, uma primavera esperançosa, o capital necessitava de uma nova ordem.

Deixemos, porém, o desbravar das intenções de Quinas e Champalimauds a braços com a Revolução. Fixemo-nos propriamente no qualificativo com que designei este capítulo.

Por que motivo um capitalismo selvagem?

Vasco Gonçalves discreteava assim, na Conferência de Imprensa de Bruxelas, em 31 de Maio de 1975:

«A concentração do capital em Portugal não tinha sido o resultado de um processo natural de desenvolvimento da economia capitalista, mas antes resultado de os monopólios se terem apoderado do Governo, terem concentrado a riqueza nas suas mãos, praticamente centrando a sua acção na exploração dos povos coloniais e na exploração do povo português que tinha, pode dizer-se, dos salários mais baixos da Europa. Ora, por outro lado, também nós, quando fizemos o 25 de Abril, não pensávamos que a corrupção tivesse atingido de tal maneira o nosso país: a corrupção fascista, a corrupção a que chega um Estado fascista(63)

Eis uma compreensível e correcta: a irregularização do processo económico português conduzindo, fatalmente a um capitalismo selvagem.

É por demais sabido que as contradições do imperialismo aceleraram a transformação do capitalismo de monopólio em capitalismo monopolista de Estado. Isso foi, precisamente, o que Lénine nos mostrou em A catástrofe eminente e os meios de a conjurar. Reforçando o poder dos monopólios na vida nacional, o capitalismo monopolista de Estado acabou por reunir o poder daqueles e o do Estado num mecanismo único.

Definia a «Nouvelle Revue Internationale»:

«Este capitalismo monopolista de Estado é um complexo sistema de utilização do Estado burguês pelo capital monopolista, o qual compreende, principalmente, uma propriedade de Estado, um consumo de Estado, um controle e uma regularização de Estado.» (sic)(64).

O que significa isto, senão a ingerência do Estado nos aspectos de pormenor da economia, a favor das classes dominantes ?

E que relações poderão aqui surpreender-se entre a situação económica e a regra de direito?

O Estado fascista — necessário é que isso aqui se diga muito claramente — liquidou em Portugal as relações do Direito com a Economia, os vínculos entre juridicidade e a realidade básica, vínculos necessários ao verdadeiro Estado de Direito. Ele acabou por anular o respeito devido aos direitos cívicos e aos direitos económicos e colectivos das classes trabalhadoras. Glosando a expressão do Companheiro General, que dá o nome a este capítulo, não terei dúvidas em afirmar que aquilo que caracterizou o Estado fascista em Portugal foi, certamente, ter este permitido em vários domínios a formação progressiva de um Estado selvagem dentro do Estado oficial.

A selvagização da Economia implicou a selvagização do Direito, segundo uma relação dicotómica «base-formas jurídicas», aliás reciprocamente influenciáveis. No campo do falso Direito a repressão exercida pela PIDE foi um exemplo. O fascismo constituiu-se numa orgânica centralizadora, totalitária e terrorista da aplicação de meios violentos para suprimir, no máximo, todas as formas; de luta da classe explorada. E no campo económico, paralelamente, hipertrofiou-se a possibilidade de o grande capital se desenfrear selvaticamente numa exploração que ultrapassava tudo e todos.

Totalitário e absorvente, o regime fascista pode dizer-se que «criminalizou», como segurança do seu «Estado de Direito», todos os actos de resistência opostos, não propriamente ao desenvolvimento do capital, antes a toda e qualquer ofensiva desse mesmo capital. E corolariamente, se também assim se pode dizer, ele não «criminalizou», nem por meio de tipificações legais, nem por quaisquer práticas sancionadoras, o procedimento selvagem dos monopólios.

Creio bem que melhor compreenderemos a corrupção da realidade económica inerente ao fascismo, portanto o acerto de quanto acaba de ficar observado, se tentarmos um historial, ainda que breve e esquemático, das fases e dos modos específicos que o capitalismo assumiu em Portugal depois dos anos 20. Por essa via, veremos definir-se, traço a traço, a formação económico-social degenerativa a que Vasco Gonçalves se referiu na Conferência de Imprensa de Bruxelas.

Estende-se de 1926 a 1945 todo um período que os especialistas caracterizaram como de ruralismo corporativista — ou de nacionalismo económico, segundo outros.

Esta última designação parece-me preferível. Bastante mais ampla e compreensiva, encontramo-la utilizada por Ramiro da Costa em O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal(65). Marcada por balizas que vão — como já disse — de 26 a 45, a sua correspondência temporal estendeu-se desde os inícios do regime fascista no nosso país, até ao termo da Segunda Guerra Mundial.

A aliança entre a burguesia industrial e os latifundiários consente, durante o período de ruralismo corporativista, a duração política efectiva destes últimos. É um tempo quase, de uma soberania feudal em que os «senhores» não de protestos ou reivindicações. Porque a resposta é a violência, que vai até à morte. Eis, por exemplo, o tempo em que Catarina Eufémia é assassinada.

Os latifundiários, representando a extrema-direita do regime, dispondo de importantes lugares no aparelho político e administrativo do Estado, detiveram as alavancas do Poder, sem sombra de contestação, pelo menos até 1940. Mas foram-se tornando, com as novas condições que a guerra de algum modo reflectiu na sociedade portuguesa, um peso social a que em dado momento já não correspondia uma real preponderância económica.

Face às contradições estabelecidas entre o sector basicamente agrário e a parte directamente capitalista da burguesia, não lograram os clássicos da terratenência travar a «invasão» cada: vez maior de empresários no campo. E foi muito a custo que impediram uma reforma da agricultura que se destinava a satisfazer objectivos capitalistas de dilatação do mercado interno.

Portugal mantinha-se, enfim, um país predominantemente rural e aquela luta — a qual irá prosseguir na fase seguinte, que foi a da economia capitalista e se estendeu de 1945 a 1960 — ainda termina por se ver resolvida a favor dos latifúndios.

Salazar consubstanciava, pode dizer-se, uns conhecidos versos do setecentista Abade de Jazente. Recordo-me de tê-los utilizado numa peça de teatro de que em 1972 fiz uma edição clandestina. A personagem-fulcro era o ditador-rural e, muito significativamente, eu dei àquela épica tragicomédia o título de Grandezas e Misérias num Sonho dos Maioriais de Gado. Quem a leu, terá verificado que se tratava como que de um plágio intencional das Grandezas e Misérias do III Reich, de Brecht(66).

Poetava assim o Abade de Jazente, ao fazer uma espécie de retrato antecipado e oracular do maiorial de Santa Comba:

É bem feliz, por certo, o que somente ao rústico labor acostumado conduzir sabe os bois, reger o arado.

Com o absorvente «paternalismo» deste ensimesmado solitário, não podiam as rodas da existência e da evidência política sonhar com um fora-dos-carris. Assim, o nacionalismo económico teve, neste primeiro período do capital português durante o tempo do fascismo, o ferro e a marca do «condutor» e, portanto, as características históricas que tão diferenciada e especificamente o identificam.

De um modo geral, os investimentos estrangeiros diminuíram de 1925 a 1945. Chegaram mesmo a ser nacionalizados alguns dos sectores que vinham a ser dominados pelo capital externo. Aliás, o nacionalismo desta primeira fase do capital, sob a vigência fascista só veio a ser possível devido à conjuntura internacional desse tempo.

Com a crise mundial de 29 tinha-se, com efeito, cerceado a força de expansão do imperialismo, consentindo o estabelecimento de barreiras alfandegárias. Estas, por seu turno, fizeram encarecer os produtos estrangeiros e obstaram à penetração de capitais externos. Os primeiros tempos do Estado Novo valeram, numa palavra, o início histórico do nosso isolamento.

Vasco Gonçalves não deixa de o notar:

«A penetração do imperialismo em Portugal — declarou ele na sua entrevista em Companheiro Vasco — foi retardada em grande medida por Salazar, já que a ordem fascista precisava de praticar um certo isolamento para se prolongar.»(67)

Do ponto de vista estritamente jurídico e político, que é, evidentemente, um ponto primacial, que dizer quanto a este período, não esquecendo, como advertiu Lénine, que a Política é a expressão concentrada da Economia?(68)

A partir de 1919 fizeram-se sentir na Europa os primeiros indícios do fascismo.

Mussolini campeia em Itália depois de 21 e Primo Rivera, em Espanha, dois anos após. Quanto a Portugal, beneficiando da conjuntura objectivamente propícia da crise mundial do sistema capitalista, ele esboça-se num período dianteiro que pode enquadrar-se entre 24 e 33.

Em 1924, com efeito, fora criada a «União dos Interesses Económicos», sucessora da «União Patronal» e representante da indústria e do grande comércio. Surge igualmente, no mesmo ano, a «Cruzada Nuno Álvares», liderada por Martinho Nobre de Melo, com a usança de um nome ressoante a patriotismo apóstolo, mas que não era mais do que a representação dos grandes interesses latifundiários. E em 1926 dá-se o movimento do 28 de Maio.

Muitas sejam embora as reservas que tenhamos a respeito da obra filosófica de um Rudolf Stammler, a verdade é que, reflectindo sobre o Direito na ordem político-social fascista, impossível é esquecer que, a par de investigação do Direito Positivo, o pensador alemão considerava que sempre havia lugar para uma investigação acerca do Direito justo.

Mas é possível, pergunto eu, um Direito injusto?

A resposta vem imediata. O Estado fascista foi aparelhando juridicamente, desde os seus alvores, a sua orgânica terrorista. A Política é, na verdade, a expressão concentrada da Economia e a ordem político-jurídica do Estado Novo concentrou, em formas específicas, determinada ordem económica que lhe importava defender e sustentar.

Em 16 de Dezembro de 1926, o decreto n.° 12 972, criou a Polícia Secreta de Lisboa. No ano seguinte, surgiu a sua congénere do Porto. Salazar entra para o Governo em 1928 e nesse mesmo ano o decreto n.° 15 195, de 17 de Março, funde as duas «secretas» numa só. Depois, em 28 de Julho de 1931, o decreto n.° 20 152 organizou a PIP (Polícia Internacional Portuguesa).

Sendo já presidente do Ministério, publicava entretanto Salazar, em 21 de Janeiro de 1933, o decreto n.° 22151, que constituiu a Polícia de Defesa Política e Social. E o «afinamento» e «refinamento» dos órgãos de repressão político-social foram cobrando cada vez maior fôlego de ameaça e violência. Assim, três meses decorridos sobre o último dos diplomas até agora arrolados, o decreto n.° 22 469 instituiu a Censura. E em 29 de Agosto estava formada a Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado, a famigerada PVDE, a qual pelo decreto-lei n.° 35 046, de 20 de Outubro de 1945, tomou para si o execrável nome de PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado. A título de triste curiosidade, recordarei que o relatório preambular deste criminoso diploma incorria no descaramento de comparar semelhante associação de malfeitores à Polícia Metropolitana Inglesa, a corporação famosamente conhecida pelo nome do lugar onde se encontra a Scotland Yard.

Mas outros e de outro tipo foram ainda os textos legais em que o fascismo assentou, a nível super-estrutural, a sua organização, definindo o seu muito especial «Estado de Direito». Evocarei três deles — o Estatuto do Trabalho Nacional, o Acto Colonial e o Condicionamento Industrial — o último dos quais sofreu uma aventura que reflecte bem a marcha para o capitalismo selvagem.

O Estatuto do Trabalho Nacional, aprovado pelo decreto-lei n.° 23 048, de 23 de Setembro de 1933, vem a lume no mesmo ano em que, na Alemanha, Adolfo Hitler conquista o poder.

É um diploma gravemente atentatório do direito dos trabalhadores a se constituírem em verdadeiras organizações de classe. O Estatuto serviu o fascismo para o encerramento dos sindicatos operários e da Confederação Geral do Trabalho e, em «contrapartida», criou os chamados «sindicatos nacionais», fantoches ou lacaios, que constituíram a base da repressão de todo o movimento operário e da sua luta económica. Estes sindicatos fascistas, quem o não sabe, funcionaram sempre de forma a se manterem baixos os níveis dos salários, condição necessária à burguesia para lhe facultar ou permitir uma acumulação acrescida.

E o Acto Colonial?

Com esta denominação foi publicado, em 1930, um diploma da autoria de Salazar, texto de carácter administrativo e constitucional (?!), destinado a substituir o capítulo V da Constituição de 1911.

O ditador de Santa Comba era então ministro das Colónias, mas, se bem que só interino, não perdeu tempo. Este diploma, mais tarde integrado na Constituição de 1933, destinou-se a liquidar a descentralização político-adminis- trativa própria da República e promoveu um maior controle por parte da burguesia nas colónias. O fascismo intensificou, mercê do Acto Colonial, a exploração económica dos respectivos territórios.

Finalmente, no Condicionamento Industrial encontraremos o regime que às cegas abriu as portas ao procedimento selvagem a que Vasco Gonçalves aludiu em Bruxelas.

Vale a pena alargarmos um pouco mais as nossas considerações, quanto a este sector da superstrutura jurídica do fascismo.

Foi o decreto n.° 19 354, de 3 de Janeiro de 1931, que iniciou entre nós, o condicionamento industrial — restrito, aliás, às principais indústrias que então existiam no país. Só mais tarde, com efeito, o decreto n.° 20 521, também de 1931, veio estender o regime à generalidade das actividades industriais. E, por fim, em 1937 a lei n.° 1956 institucionalizou o sistema em forma considerada definitiva.

Repito, entretanto, a ideia que venho a expender. Nas relações estabelecidas entre a base e as formas de consciência, é em relação a este estatuto jurídico que grande medida da selvagização se vai concretizar.

De início — os especialistas não terão dúvidas acerca disto mesmo — o Condicionamento Industrial surgiu como uma lei de não-concorrência, uma espécie de cartilha de boa convivência entre os vários estratos da burguesia: a intervenção estatal verificava-se, segundo um sistema que procurava a «travagem» no desenvolvimento das contradições, que vinham a estabelecer-se entre os diversos sectores da classe dominante. O Condicionamento harmonizava (tentava pelo menos harmonizar) entre si a alta, a média e a pequena burguesia, atendendo aos seus diversificados interesses bancários, industriais e mercantis.

Quer isto dizer que a lei n.° 1956, de 17 de Maio de 1937, marcado ainda o domínio ruralista no aparelho do Estado e o nacionalismo económico no plano geral da economia mundial, pretendeu o não-desenvolvimento dos monopólios. Esta é a verdade.

Todavia, mercê de razões que ultrapassaram os próprios legisladores autocratas, acabou o Condicionamento por servir a real e efectiva implantação daqueles monopólios.

Com efeito, se durante o período, que vai de 1931 a 1945, ele efectivamente impediu a concentração industrial, jogando um papel favorável à média e à pequena burguesia, a partir de 47 (a lei n.° 1956 sofreu sucessivas revisões em 47, 52, 54 e 65, demonstrando a progressiva escalada do processo selvagem) converteu-se, esse mesmo condicionamento, e do ponto de vista prático, em instrumento dos monopólios e do capital financeiro.

Fenómeno de contradição a assinalar, portanto: a lei do Condicionamento Industrial transmutou-se no seu contrário. De diploma de não-concorrência com vista a travar o desenvolvimento de contradições no seio da burguesia, tomou-se em diploma de não-concorrência no sentido de coarctar a possibilidade de as grandes empresas serem molestadas por quaisquer novos concorrentes.

Esta «conversão legal» teve, evidentemente, causas de ordem económica.

A partir de 1940, o desenvolvimento industrial — isto é, a constituição do capital financeiro — implicou, na verdade, que tivesse vindo a diminuir, a hipotecar-se cada vez mais o peso socioeconómico da agricultura. Os latifundiários e os seu agentes políticos viram-se relegados para lugar subalterno. Estava assim aberto o caminho para a segunda fase do capital português sob o fascismo — aquela que poderá chamar-se a da economia capitalista.

Alterada a conjuntura resultante da crise mundial de 29, a pressão do imperialismo viera a intensificar-se. Sobreveio assim — lógica e fatal, a nível português — a morte do nacionalismo económico.

Trata-se de um facto continuado que aconteceu no tempo balizado entre 1945 e 1960. Basicamente, tal período caracterizou-se por ensaios e tentativas de industrialização e por uma certa abertura aos mercados externos.

O estrangulamento operário e sindical, operado desde a fase anterior, a par da inexistência de uma média burguesia com algum poder, não havia causado situações de tensão análogas àquelas que eram comuns em sociedades industrializadas. A Segunda Guerra Mundial, porém, modificará o ritmo e o quadro deste desenvolvimento. De crónico importador, Portugal converte-se em exportador de conservas, de têxteis, de minérios, de produtos coloniais.

A posição, que foi tomada pela ditadura de Salazar, relativamente aos países directamente envolvidos no conflito, facultou vantajosíssimas oportunidades mercantis à burguesia portuguesa, facilitando-lhes as exportações a preços muito favoráveis.

Desde logo, entretanto, se viu como esta política de Salazar implicava um contra-custo social muito grave.

Na verdade, se então as importações diminuíram, isso aconteceu à conta de reduções no consumo das massas trabalhadoras. E este facto redundou, insofismavelmente, numa maior acumulação capitalista.

Porque o capitalismo não é em abstracto que se desenvolve. Ampliando as forças produtivas, correlativamente ele aumenta a miséria dos trabalhadores. Eis, neste sentido, o ensinamento de Marx:

«A razão última de todas as verdadeiras crises é sempre a pobreza e a limitação do consumo das massas face à tendência da produção capitalista para desenvolver as forças produtivas, como se estas não tivessem outro limite que a capacidade de consumo absoluto da sociedade.»(69)

Só depois da Guerra Mundial, de 39-45, começou a situação portuguesa a evoluir de modo diferente do até aí verificado.

A extraordinária expansão internacional da economia capitalista gerou, efectivamente, condições básicas favorecentes do crescimento (decerto parco e irregular, mesmo assim considerável) em determinados sectores de estruturas capitalistas como a portuguesa. Deflagraram então os «requisitos» propícios para que, progressivamente, se verificasse o procedimento selvagem assinalado por Vasco Gonçalves, como bem saliente no termo do processo político do fascismo. Conforme as suas relações de grande dependência para com os principais países do mundo capitalista, não podia Portugal aspirar a um ritmo de crescimento ordenado ou regular.

Como aconteceu o fenómeno?

Poderá de algum modo dizer-se que ele tem um similar na conjuntura capitalista de pós-guerra. Constata-se aí uma tentativa de reprivatização da economia que convidou, pelo exemplo, ao «desregramento». São significativas, a tal propósito, as considerações que fez Paul Boccara relativamente à teoria do capitalismo monopolista de Estado e à sua análise.

Logo após a Segunda Guerra Mundial — mostra-nos Boccara na recente edição portuguesa dos seus Estudos — o movimento operário e democrático apoiar-se-ia na consciência crítica dos processos objectivos que desenvolvem o CME (o Capitalismo Monopolista do Estado) com vista a, não menos objectivamente, impor as transformações mais democráticas e mais avançadas na sua luta contra a oligarquia. Esta, porém, tentou (e conseguiu na fase actual) circunscrever o movimento, despojar as novas formas jurídicas do seu aspecto democrático e do seu vértice anti- monopolista para as utilizar no esforço do capitalismo e no domínio dos monopólios.

««Reprivatizar», a economia na medida do possível será a regra para a oligarquia monopolista. Na realidade, ela não deixará de intentar desenvolver a intervenção do Estado, mas sob formas indirectas e o menos abertamente públicas(70). O que hoje se esboça em Portugal, com o mota-pintismo é uma lição flagrante.

Os monopólios tinham-se «apoderado do Governo» — diria Vasco Gonçalves na Conferência de Imprensa de 31 de Maio de 1975(71).

Aí vinha, assim às claras, uma acusação que a oligarquia financeira não pode admitir que se torne compreensível e desmascarável. E foi tanto o povo que se consciencializou de uma verdade para muitos inadvertida à força de obscurantismo e de falsa informação, que é hoje ver-se como os Sá Carneiro, os Freitas do Amaral e os Mota Pinto (se não até mesmo os Mário Soares do estranho socialismo da cúpula do PS) se batem pela reprivatização. O ódio que sentem pela Constituição da República, pela irreversibilidade das nacionalizações, pelo êxito democrático da Reforma Agrária, todo ele vai direito ao mesmo fulcro.

Voltemos, porém, ao bosquejo histórico que venho a procurar.

Aproveitando a então fraca concorrência imperialista, passara a burguesia portuguesa, durante os primeiros anos do pós-guerra, a investir em novos ramos da indústria os capitais por ela acumulados. Tal investimento, tanto em Portugal como nas colónias, verificou-se sempre em desenfreada e selvática exploração das massas trabalhadoras. Todo este foi, aliás, um período de grandes perseguições, de lutas e de mortes, de escravatura praticada à luz do dia.

De escravatura, sim!

Recordo, por exemplo, como constatei em Angola — estávamos, então, na década de 50 — a existência de trabalho escravo. Certos administradores «vendiam» trabalhadores indígenas aos fazendeiros, a tanto por cabeça. E só tinha mão-de-obra indígena quem pagasse — essa era a regra negreira.

O hediondo uso que acabo de referir era coisa por demais sabida e ressabida de toda a gente.

Entrava o fazendeiro no gabinete do chefe do posto, falava de qualquer assunto ao sabor do acaso e, ao sair, deixava sobre a banca do funcionário um sobrescrito com tantos cem angolares quantos os indígenas que o administrador iria «requisitar» nas aldeias. Claro que o «requisitado» tinha de vir, a bem ou a mal.

O negro era, ali na sua própria terra, nada mais do que um miserável «adstrito», sujeito como se encontrava a tão civilizantes formas de «trabalho forçado»(72).

Passou o aparelho de Estado, neste período, a funcionar, mais do que com o objectivo de garantir, antes com o de não empatar a obtenção do lucro máximo pela grande burguesia industrial, comercial, bancária, colonialista. Foi uma política que assentou na concessão constante, ao grande capital e aos monopólios, de subsídios, de empréstimos a juro insignificante, de isenções fiscais, de protecções alfandegárias. Mas além de tudo isto, lá estava o Condicionamento Industrial, a sentinela vigilante contra as tentações dos «intrusos». E mais ainda: o «fechar dos olhos» a todas as selvajarias e atrocidades.

Do ponto de vista da repressão violenta das massas trabalhadoras e dos seus aliados, tal política socorreu-se, como é sabido, da reorganização da PIDE. Esta — levada a cabo pelo decreto-lei n.° 39 749, de 9 de Agosto de 1954 — consolidou os poderes dos seus «funcionários», na medida em que chegou ao escândalo criminoso de jurisdicionalizar a acção dos respectivos dirigentes.

Ficará para a História das grandes desvergonhas políticas isto de se haver «transformado» o director e o subdirector da tenebrosa organização terrorista em juízes de instrução. Não tenho visto, infelizmente, o ser dado todo o devido relevo a esta afronta cometida contra a magistratura portuguesa.

Mas vamos adiante.

Passando assim à terceira fase do capitalismo português sob o domínio fascista, que decorre de 1960 a 1968 (ano da morte política de Salazar), depara-se-nos o fenómeno da subordinação ao imperialismo.

Trata-se de um período de contradições que sucessivamente se estabelecem entre a «economia nacional», condicionada por complexos próprios, e a chamada «integração económica europeia». Desde então, não mais o fantasma da CEE nos vai deixar, tendo por detrás de si, vampiricamente, mas dissimuladamente, a sombra norte-americana:

«Os factos mostram que o Mercado Comum não constitui qualquer obstáculo ao expansionismo americano» — escreverá Sérgio Ribeiro(73).

Entrou-se agora num processo caracterizado por recessões económicas dia a dia mais frequentes, uma inflação internacional extremamente relevante, um crescente e generalizado desemprego. Aliás, a estagnação e a degradação económicas daí resultantes, com reviravolta assinalada na evolução capitalista mundial, vieram colocar novos e sérios problemas à ditadura fascista.

Efectivamente, as exportações portuguesas baseavam-se em produtos agrícolas e máquino-manufacturados. Era patente, por conseguinte, o facto de incorporarem escassa tecnologia, e uma eventual industrialização, que tentasse mostrar-se moderna e adequada, parecia seriamente comprometida.

Apesar dos progressos realizados em determinados domínios, o país não dispunha senão de um aparelho produtivo genericamente obsoleto. O espírito empreendedor e o dinamismo executivo eram qualidades, que faltavam a grande número dos empresários. E os artifícios compensatórios começaram a ser particularmente visíveis, até a nível dos sectores mais avançados do capitalismo português. Estes bem sabiam estar a braços com as consequências de um crescente isolamento externo, devido designadamente ao prosseguimento da guerra colonial.

Quais eram, então, os cenários dos domínios político, económico e financeiro, quando se pôs, em 1938, no dealbar da fase tecnocrática (a quarta e última do capital sob o fascismo), o problema da substituição de Salazar?

A situação nada tinha de brilhante. Como que se desenhava, avolumada de negro, a antecâmara ão caos — desse mesmo caos cuja trágica realidade Vasco Gonçalves denunciaria nas palavras objectivas da sua comunicação de 18 de Agosto de 1974(74).

Por uma parte, vivíamos o já referido isolamento político, em relação à Comunidade Internacional, particularmente no tablado europeu. Por outra, sofríamos a extrema e insolúvel agudização da guerra colonial. E víamos os grandes interesses e os grandes grupos monopolistas a não lograrem sequer articular os novos modelos de industrialização, exigidos do exterior, com a necessidade de uma progressiva implantação económica nas colónias.

Confrangiam-nos, por isso mesmo, a reduzida inovação tecnológica e a obsoleta estrutura industrial, em contradição com o crescimento «puxado» desse mesmo exterior. Lamentávamos também a estagnada produção agrícola, reflectindo estruturas agrárias de trágico atraso, de parco investimento, sobreviventes à custa de uma viciosa política de subsídios. E envergonhava-nos o total descrédito em que havia caído o recurso a planos de fomento cujos objectivos nunca se viram alcançados. E a hipertrofiação da corrente migratória para níveis sem precedentes. E o fraudulento mito do equilíbrio orçamental.

Em síntese, por fim, ofendia-nos a corrupção — essa imensa, assanhada, achavascada e selvagem corrupção do Estado fascista, que tão descaradamente se atreve já a regressar nestes desditosos tempos actuais de recuperação capitalista.

Estas eram, sem sofisma possível, as coordenadas da tragédia que estava iminente, quando do 25 de Abril, todas respeitantes ao período marcelista — que foi o de uma tentativa de «regeneração» pela tecnocracia. Mas os últimos anos do fascismo em Portugal tiveram ainda, pelo menos, três características mais, se assim se pode dizer, que me parecem importantes e que, por conseguinte, não irei esquecer.

A primeira liga-se a um facto anedótico, simplesmente anedótico; a segunda, a uma abominável violência contra os direitos de defesa da pessoa humana; a terceira, a um crime cometido contra povos inteiros. Todas três, aliás, podem auxiliar-nos a entender melhor a conjuntura em que cada vez mais se foi acentuando a natureza selvática do capitalismo monopolista português.

A anedota, fácil é o identificá-la.

Lembro a eufemização vocabular, disfarçante, seraficamente praticada por Marcelo Caetano enquanto chamou Direcção Geral de Segurança à PIDE, Acção Nacional Popular à União Nacional e Exame Prévio à Censura. Se há anedotas graves, esta é uma delas. Como disse La Fontaine, com um evidente propósito, à l'oeuvre se connait l'artisan.

E quanto à violência?

Também já falei dela neste capítulo, quer na sua fase de constante e potencial ameaça, quer na concreta manifestação deste ou daquele episódio. Tal facto não impede, porém, que a surpreendamos num dos aspectos mais críticos dos anos terminais do fascismo em Portugal, a ponto de lhe atribuir categoria de uma «característica» de certo período sociopolítico do país.

O fascismo deteriora, sem perdão, todas as espécies de relações sociais — as quais são, evidentemente, relações humanas. Talvez não haja melhor documentário desta terrível verdade do que, por exemplo, a série dramática dos episódios de Bertolt Brecht em Grandezas e Misérias do Terceiro Reich. Recomendaria a sua atenta leitura a quem os não conhece.

Mas há mais, nesse mesmo sentido da deterioração.

Por exemplo: para o Estado fascista, o defensor forense de um comunista era, por definição necessária, outro perigoso comunista. Daí decorreram consequências imediatas na ordem jurídica: ele, o defensor, por uma questão de «segurança» não podia contactar livremente o seu constituinte. O resultado foi o do famigerado decreto-lei n.° 368/72, de 30 de Setembro, aliás uma clamorosa vergonha (ou melhor, uma desvergonha) mais agravada ainda que a desse outro diploma, já citado, que «jurisdicionalizara» os dirigentes da PIDE. Pelo 368/72 ficou praticamente interditada a assistência de advogado ao réu preso, colocando-se, deste modo, o nosso processo penal à margem de qualquer ordem jurídica civilizada.

Adivinha-se, por fim, qual ainda a terceira «característica» particularmente individualizada do fascismo português nos últimos anos do regime derrubado com o 25 de Abril. Páginas atrás referimo-la enquanto aludi à comunicação que o então coronel Vasco Gonçalves nos fez em Agosto de 74.

Respeitou ela às guerras coloniais — guerras que constituíram um monstruoso crime cometido, ao arrepio da História, contra populações inteiras. De momento, contudo, o que estritamente me importa salientar — como «característica» de um determinado tempo histórico nacional — é aquele que sem dúvida constituiu um dos seus mais relevantes aspectos económico-políticos.

Passo a explicar.

As guerras de Angola, Moçambique e Guiné representaram um mercado suplementar para o capitalismo português. Além do mais, promoveram larguíssima ampliação e enorme desenvolvimento das despesas públicas e, deste modo, implicaram o aumento generalizado dos negócios e uma progressão extraordinária dos lucros, designadamente dos lucros bancários. Porém, impulsionando o desenvolvimento das forças produtivas em Portugal, reproduzindo e alargando o modo de produção capitalista nas colónias, ao mesmo tempo criaram, estas guerras, um novo proletariado.

Por outras palavras: as guerras coloniais tiveram, como efeito não-desejado pelos colonialistas portugueses, o haverem ampliado a força de vanguarda na luta anticolonialista.

Mas tal fenómeno tem, muito naturalmente, uma explicação dialéctica. Estou a pensar em Marx e Engels, na sua «crítica da crítica critica» contra Bruno Bauer, que faz parte do seu livro A Sagrada Família.

Nesse texto de 1844 mostra-se como proletariado e riqueza são termos antagónicos, integrados numa unidade de contrários. Aquele e esta representam «modos de ser» no mundo da propriedade privada. Do que se trata é, assim, da posição relativa que ambos ocupam:

«A propriedade privada enquanto tal (isto é, enquanto riqueza) é forçada a manter a sua própria existência, e com ela a da sua antítese, precisamente o proletariado. E se o lado positivo desta antítese nos revela que a propriedade privada se satisfaz a si própria, vê-se ao contrário, e também enquanto tal, constrangido o proletariado a destruir-se, destruindo com ele, do mesmo passo, a sua antítese condicionante, aquela mesma propriedade privada que o tornou proletariado. Este é, assim, o lado negativo da mesma antítese.»

Eis a sublevação para que necessariamente se move o proletariado, impelido por força da contradição que se verifica entre a sua natureza humana e a sua situação na vida:

«Nos termos desta antítese, o proprietário privado constitui a parte conservadora e o proletariado a parte destruidora. Provém do primeiro a acção tendente a manter aquela antítese; do segundo, a acção que a aniquila (...)

Assim, executa o proletariado a sentença que a propriedade privada pronuncia relativamente a si própria enquanto cria aquele, de igual forma que cumpre essa outra sentença que o trabalho assalariado profere quanto a ele mesmo ao engendrar a riqueza, alheia e a miséria própria. E só vencendo esta luta ele se converte no ente absoluto da sociedade. Só ao destruir-se, destruindo a parte oposta, ele vencerá. E só nesse momento desaparecerão tanto ele, proletariado, como a sua antítese condicionante, a propriedade privada.»(75)

Mas por que motivo, a propósito da guerra colonial fascista, transcrevi estas passagens?

Vê-se, facilmente, como aquele raciocínio marxiano nos leva longe. Olhamos o tempo futuro, o da sociedade sem classes para que expressamente aponta o artigo 1.° da nossa Constituição de 1976. Como observou Ramiro da Costa, no seu livro O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal, e particularmente a propósito das consequências das guerras coloniais, o «capitalismo, ao desenvolver-se, cria os seus próprios coveiros»(76). Aqui está, numa metáfora brilhante, a lição marxista de A Sagrada Família.

O 25 de Abril correspondeu, na verdade, com a direcção que o povo e os militares progressistas lhe imprimiram, ao sentido dialéctico, necessário, da História. Isto mesmo se viu já com a comprovação do erro cometido pelo então chamado Grupo dos Nove — e pelo seu «Documento Melo Antunes» — enquanto os respectivos componentes acreditaram que a transição para o Socialismo se poderia dar nas condições concretas do Portugal 75, oferecendo-se o peito à colagem da direita e da reacção. Mas ver-se-á ainda melhor, quando se desmoronarem todas as ilusões neocapitalistas, quando se desmontarem todas as mistificações do «capitalismo popular», quando enfim todos os sonhos de se impedir as recessões e as crises económicas cessarem com a chegada de uma outra manhã.

A Revolução de 25 de Abril, como aliás aconteceu e acontecerá com todas as revoluções, iniciou-se e foi-se desenvolvendo como um projecto geral, sem contornos definidos.

Tal é próprio das unidades de ruptura, como vimos. Assim, o primeiro MFA foi um saco equívoco, onde couberam Spínola, Sanches Osório, Galvão de Melo, Pinheiro de Azevedo e outros. Só a marcha dos acontecimentos foi, na sua lógica revolucionária, seleccionando e excluindo os militares, que nada mais possuíam senão a arte do engano.

Mas fazer a Revolução tinha de ser, muito em especial, o ir extirpando progressivamente as consequências socialmente deletérias de um capitalismo desenfreado. Daí que Vasco Gonçalves tenha dito logo no seu primeiro discurso, o da tomada de posse do II Governo Provisório, em 18 de Julho de 1974:

«Desejo enunciar, e porque tal constitui tarefa fundamental, a firme decisão de impor, desde já, uma séria moralização da vida nacional, como condição básica para a tomada de medidas que a actual situação económica e social do País exige, para o prestígio das instituições públicas que deverão dispor de um crédito de confiança perante o País.»(77)

Esta mesma ideia repeti-la-á o General dez meses depois, em 8 de Abril de 1975, na Conferência de Imprensa da Gulbenkian. E com a plena consciência de que uma intrépida política de moralização e equilíbrio socioeconómico não dispensaria nunca a incindível ligação entre a tarefa prática e os seus fundamentos teóricos:

«É preciso ter em consideração a estrutura da sociedade portuguesa, os diversos interesses em presença, os objectivos finais, os objectivos parciais a atingir; é preciso ter em consideração que tudo isto é um movimento, uma interacção entre a teoria e a prática.»(78)

Quem não reconhecerá hoje, cada vez mais nítido, que o realismo político de Vasco Gonçalves residiu, precisamente no facto de ele se ter constituído o intérprete da lógica necessária da Revolução de Abril?

Tomar em consideração a estrutura da sociedade portuguesa, no exacto momento do 25 de Abril, era ver um imperativo de correcção do respectivo presente em atenção às coordenadas viciosas de um imediato passado de desastre. Vasco Gonçalves sabia-o. O seu único norte foi o Povo, mais precisamente a realização efectiva dos interesses das classes trabalhadoras.

É impossível governar — quem também o não sabe?... — com as fronteiras ideológicas, económicas e políticas absolutamente fechadas. Vasco Gonçalves, porém, enquanto atacou os efeitos negativos provindos do regime anterior, não se prestou nunca a figurar como sujeito passivo de compromissos assumidos para com a Europa dos monopólios, ou para com a América do capitalismo imperialista.

Aí reside — pelo corajoso, resoluto e intérrito cumprimento do capítulo B, n.° 7, do Programa do MFA («O Governo Provisório orientar-se-á em matéria de política externa pelos princípios da independência e da igualdade entre os Estados...») — uma das mais seguras afirmações do seu patriotismo. Bem se compreende que a CIA, para o derrubar, haja investido milhões em Portugal.

As coisas são como são! Penso, por exemplo, nos dirigentes do PS, confrontados com os avanços revolucionários, que designadamente se verificaram a partir de Março de 1975.

Face à política e aos Governos de Vasco Gonçalves, que do modo tão fundo e grave lhes frustrava os seus compromissos social-democratas, e temendo, em suma, a direcção política dos acontecimentos, os cupulares responsáveis do Partido Socialista revelaram-se, no decurso do processo, uma autêntica floresta de mistificações. Este juízo histórico já hoje não é difícil para ninguém. Arvorou-se o PS, com efeito, no campeador de um socialismo dito democrático para, na prática, melhor poder não querer socialismo algum.

Não houve então — na boca de tal gente — coisa menos boa, acontecida entre nós, que não fosse imputável a Vasco

Gonçalves. Este representava o espírito do Mal na política externa e na política interna. Era o Mal nas Finanças. Na Economia. Na Agricultura e na Indústria.

Atacar e perseguir o nome e a pessoa do Companheiro General tornou-se, para Mário Soares & Companhia, uma «doentia» obstinação. Quando é que, porém, aos dirigentes do PS — enquanto construíam a estúpida teoria de um gonçalvismo negativo — lhes importou por exemplo a séria análise da selvagização do capitalismo português, para assim poderem criticar (em consequência) e opor-se (com honestidade) à tese de que a crise económica, que se manteve e agravou durante os Governos de Vasco Gonçalves, constituía sequência necessária de um processo anterior?!

O PS constituiu, desde o seu início, um partido complexo. Chamemos-lhe, vá lá, assim.

Segundo o Dr. Mário Soares afirmaria no «Relatório de Secretário-Geral do Partido Socialista», três foram os seus componentes originários:

«... os que se reclamam do socialismo humanista, que teve em António Sérgio um dos seus grandes expoentes portugueses; os que se reclamam de marxismo — entendido este não como um catecismo, mas essencialmente como um método de análise, e os que se reclamam de um humanismo cristão, vindos ao socialismo após a revolução sofrida nos últimos anos pelas Igrejas católicas e protestantes.»(79)

Mas chame-se-lhe (ou tenha-se-lhe chamado) um partido de múltiplas franjas, uma charneira social e política, um ponto de encontro entre gregos e troianos — chame-se-lhe, no final de contas, o que se quiser — cá para mim prefiro uma metáfora mais eloquente. O Partido Socialista foi, particularmente depois do 11 de Março, uma floresta de enganos, um lugar de encontro e um táctico refúgio de mil e um conservadores e reaccionários encapotados.

Em tecido de palavras friamente objectivas, analisou Márcio Moreira Alves esta trágica comédia. É ver, curiosamente, que para políticos que se reclamavam do marxismo, nem as correntes «moderadas» das Forças Armadas (o Grupo dos Nove) nem o PS adiantaram quaisquer propostas para a Economia. Concordavam todos com o diagnóstico: a Economia, de tão profundamente desorganizada, ameaçava cair fragorosamente no caos; porém, no concernente às causas de semelhante desorganização é que as opiniões se dividiam.

Os socialistas (quanto mais o tempo aumenta a distância, mais ridícula se revela a sua teoria) pareciam atribuir essas causas, sempre no contumaz discurso das suas balofas e demagógicas imputações, à «má gestão» de um Governo — evidentemente o de Vasco Gonçalves. Este era, segundo o PS, dominado pelos comunistas.

Outro factor negativo seria ainda o de um ritmo demasiadamente rápido das nacionalizações. E, outro mais, a ruptura com os investidores europeus.

Mário Soares, vítima das suas limitações de liberdade analítica e decisória, mercê dos consabidos compromissos para com o imperialismo, «desfez-se» em explicações e explicações. O seu rosário de absurdos — um estendal que qualquer pessoa de recta consciência e com espírito de verdade entenderá — vai ficar, dramaticamente, para a História.

Uma coisa é indiscutível e certa: a defesa dos interesses da burguesia, operada pela direcção política do PS, e opostamente a por esta tão apregoada fidelidade ao marxismo (logo, fidelidade à apropriação colectiva dos meios de produção) significavam uma manifesta contradição entre o discurso ideológico do partido e a sua prática. Este facto colocaria o PS em situação crítica, não fora o ar então reinante, propiciatório das meias tintas e de disfarces atrevidos.

Moreira Alves sintetizava assim, naquele ano de 1975, o drama absurdo de um Partido Socialista praticamente contrário às suas próprias ideias-força:

«Se revelam (eles, socialistas) a sua ideologia real, pró-capitalista, correm o risco de perder uma parte das suas bases e, o que para eles é mais importante no plano táctico, perder igualmente o “apoio” da ala “moderada” do MFA. Se, pelo contrário, afirmam o seu engajamento socialista no domínio económico, perdem os seus aliados de direita e os seus principais apoios internacionais. A que propõem como uma solução — uma autogestão dos centros de trabalho, experiências democráticas de base — não foi nunca especificada. São apenas palavras de ordem que pertencem ao arsenal das polémicas, e não esquemas concretos que pudessem ser empregados na prática.»(80)

Esta posição do Partido Socialista não passou, na verdade, de um compromisso posto a escâncaras, conforme o «europeismo» dos seus dirigentes. Aliás, como factor decisivo ela faz hoje parte do arsenal da classe dominante. Se, para o PS, a invocação da crise económica como imputável a Vasco Gonçalves, constituiu um cavalo de batalha, um aríete demolidor contra as forças progressistas portuguesas, o exacto é que tal explicação nada colheu de aproveitável para a realidade política. Nem decerto colherá algum dia para o historiador futuro.

As teses sustentadas pelos dirigentes do Partido Socialista, em lamentável uníssono com as forças reaccionárias e conservadoras, eram falsas, politicamente demagógicas. Foi dele — do PS — que proveio todo um dogmatismo burguês, patológico, doentio, favorecendo (contra a Revolução) a subsistência de privilégios e de instituições antigas.

No caso que ao General Vasco Gonçalves respeita, opôs-se o PS à acção de um homem que quis, para os trabalhadores, a mais cívica liberdade. E a «patologia» dos cupulares «socialistas» consistiu no facto de eles «esquecerem» que a crítica deve ser sempre formulada em relação às possibilidades e às disponibilidades concretas de um homem numa dada situação. Todavia, burguesmente cegos, no espanejar da sua politiquice, isso bem pouco lhes importou. O Partido Socialista do Dr. Mário Soares tinha os olhos ciosamente cravados nos sociais-democratas alemães do Sr. Helmut Schmidt.

Entretanto, ao mesmo tempo que na Assembleia do MFA fazia a caracterização do inimigo como primeira condição geral para a superação da crise daquele «Verão quente», punha Vasco Gonçalves os pontos nos ii em 25 de Julho de 1975:

«Já falei sobre contradições, nas esperanças abertas pela Revolução nas camadas mais desfavorecidas e nas dificuldades que se abrem a uma revolução qualquer que seja, mesmo numa revolução a sério. A questão da substituição do velho pelo novo reflecte-se a diversos níveis, perspectivas da pequena burguesia, hesitações e medos, a necessidade de não falar nos tranquilizantes, mas de medidas concretas, saber distinguir entre lutas partidárias e lutas de classes. Fazer a opção de classes, o que implica a opção pelo socialismo. Uma coisa é falar em opção de classes e outra coisa é assumi-la.»(81)

Não se poderia, decerto, falar mais claro.

A ameaça contra a «burguesia instalada», que tinha sido a executora do capitalismo selvagem, aterrorizava o PS.

«Só com o 11 de Março, terceira tentativa falhada para o afastamento da corrente progressista do MFA, a ambiguidade desaparece ao nível do Poder — escreveria o professor Teixeira Ribeiro na sua introdução aos Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, de Vasco Gonçalves. É na própria noite de 11 de Março a institucionalização do Movimento, por obra de uma assembleia revolucionária de oficiais, sargentos e praças; é, no dia 14, a substituição da Junta de Salvação Nacional e do Conselho do Estado pelo Conselho da Revolução e a nacionalização dos bancos, e, no dia seguinte, a nacionalização dos seguros — é tudo isso que, em poucos dias, vem afirmar e consagrar a opção pela via socialista.»(82)

A Revolução cortava, decididamente, o passo à selvagização da nossa economia. Esperava-se, com a morte política do poder económico, que outros tempos viriam.


Notas de rodapé:

(59) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 36. Os reaccionários tentam, a todo o custo, comprometer o 25 de Abril e esquecem esta realidade logo apontada por Vasco Gonçalves. Comentando o famigerado e demagógico discurso televisivo do professor Mota Pinto, feito em Janeiro deste ano de 1979, Mário Murteira, que foi ministro dos I, IV e V Governos Provisórios, notaria assim (em «O Jornal», de 2-2-1979): «No plano económico, o prof. Mota Pinto exprimiu recentemente na televisão o essencial da sua perspectiva: a economia está caótica e a exclusiva responsabilidade disso cabe às forças que conduziram o País depois do 25 de Abril de 1974.» Único reparo possível: o Primeiro-Ministro do IV Governo Constitucional é um falsificador da História. (retornar ao texto)

(60) A grande burguesia portuguesa distribuia-se por três graus ou escalões de poder: no primeiro plano encontravam-se três famílias (Meios, Espírito Santo, Champalimaud), que controlavam os três principais grupos financeiros; no segundo plano, onze famílias que, em «coligação» com as anteriores, do primeiro, constituíam os concentracionários dominantes de todas as iniciativas e projectos de alta importância: Quina, Mendes de Almeida, Queirós Pereira, Figueiredo (Bumay), Feteira, Bordalo, Vinhas, Albano de Magalhães, Domingos Barreiro, Pinto de Magalhães e Brandão de Miranda; finalmente, num terceiro plano situavam-se trinta famílias mais ou menos equivalentes no seu poder, e de que Abecassis, Bulhosa e Sebastião Alves são exemplos. (retornar ao texto)

(61) Ver a nota antecedente. (retornar ao texto)

(62) No seu estudo «Monopólios, Capital financeiro e especulação — cinco anos de marcelismo», in Economia e Socialismo, n.° 17, Agosto de 1977, Américo Ramos dos Santos escreve nesse sentido, apontando uma série de empresas ligadas às famílias do primeiro plano: «A concluir este já longo artigo parece-nos, assim, de interesse apresentar uma pequena lista de empresas que no ano da euforia do marcelismo (1973) apresentaram déficits contabilísticos corrigidos da especulação. Talvez que se fique apenas com uma pálida ideia do que era o capitalismo português e da eficácia dos gestores que hoje regressam, pouco a pouco, às funções que haviam desempenhado nos grupos monopolistas. Isto parece ser particularmente grave no sistema bancário onde a experiência e a competência de tais tecnocratas ficou bem demonstrada. Será que já se pensa em repor a máquina da especulação?» (retornar ao texto)

(63) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 337. (retornar ao texto)

(64) Nouvelle Revue Internationale, Outubro de 1958, p. 92. (retornar ao texto)

(65) Ramiro da Costa, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal, Assírio & Alvim, Cadernos Peninsulares, pp. 66 e segs. (retornar ao texto)

(66) A edição clandestina de Grandezas e Misérias num Sonho de Maioriais de Gado, com uma tiragem de 500 exemplares, foi policopiada no estúdio de dactilografia do meu amigo José Magalhães Pedroso, em Maio de 1973, e ilustrada com desenhos de Ana Machado. (retornar ao texto)

(67) In Companheiro Vasco, p. 102. (retornar ao texto)

(68) Lénine, Obras, vol. 32.°, p. 82, no texto «De novo os sindicatos, a situação actual e os erros de Trotski e Bukarine». (retornar ao texto)

(69) Karl Marx, O Capital, III, 2. (retornar ao texto)

(70) Paul Boccara, Estudos sobre o capitalismo monopolista de Estadosua crise e solução, Biblioteca de Economia Contemporânea, Editorial Estampa, 1978, pp. 27-28. (retornar ao texto)

(71) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 337. (retornar ao texto)

(72) Cf. em Armando de Castro, O Sistema Colonial Português em Áfricameados do século XX. Editorial Caminho, 1978, p. 21: «Recordemos a propósito disto — escreve o historiador — que Portugal não ratificou as convenções de 1930 e 1939 da Organização Internacional do Trabalho, que proibiam o trabalho obrigatório.» (retornar ao texto)

(73) Sérgio Ribeiro, O Mercado ComumA Integração e Portugal, Editorial Estampa, 2.ª ed., p. 77. (retornar ao texto)

(74) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 36 e segs. (retornar ao texto)

(75) Marx e Engels, La Sagrada Família, Editorial Grijalbo, México, 1967, IV parte, glosa marginal crítica n.° 2, pp. 100-101. Existe uma tradução portuguesa, de Fiama Hasse Pais Brandão, João Paulo Casquilho e José Bettencourt, Editorial Presença, 1957, 2.ª ed., pp. 53-54. (retornar ao texto)

(76) Ramiro da Costa, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal, p. 150. (retornar ao texto)

(77) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 17. (retornar ao texto)

(78) Idem, p. 220. (retornar ao texto)

(79) In República, de 13-12-1974. (retornar ao texto)

(80) Márcio Moreira Alves, Os Soldados Socialistas de Abril, Iniciativas Editoriais, 1975, pp. 248-249. (retornar ao texto)

(81) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 438. Sobre a caracterização do inimigo, ver p. 423. Relativamente à questão do velho e do novo, cf. p. 225, ponto a que aliás se refere a transcrição assinalada pela nota 20 do Cap. I. (retornar ao texto)

(82) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, pp. 8-9 (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2015