Vasco Gonçalves: Perfil de um Homem

Fernando Luso Soares


Que Cultura «Dirigida»?


capa

«Há um outro problema que eu sei que vos preocupa muito, que é o problema do dirigismo na cultura. O que eu acabo aqui de dizer o que é que aponta? Aponta, digamos, uns traços dominantes, umas tantas ideias principais, mas isso não é dirigismo nem nós somos dirigistas. Nós, os do Conselho da Revolução, já provámos à saciedade que não desejamos implantar uma ditadura em Portugal.»

Vasco Gonçalves no I Congresso dos Escritores - 11 de Maio de 1975

Em Dezembro de 1974 — a pouco mais de seis meses da queda do fascismo e a dois da segunda tentativa reaccionária levada a cabo para, com o 28 de Setembro, se tentar afastar o MFA do campo político — vivia o país os primeiros passos de profundas transformações. Disso tinha plena consciência toda a gente, intelectual ou não. E era evidente que as questões relativas ao aparelho político do Estado e às suas estruturas económicas ganhavam, no momento, a prioridade quase absoluta e necessária do inadiável. Numerosos problemas exigiam soluções imediatas, as quais evidentemente nem sempre haveriam de ser as possíveis na altura.

Numa palavra, afinal, se pode resumir a situação vivida então pelos portugueses: a subsistência da liberdade reconquistada e o avanço da institucionalização democrática constituíam as questões fundamentais que ao tempo se encontravam mais absorventemente em causa.

Não vou, é claro, enveredar (neste capítulo dedicado à problemática da Cultura) pelo caminho dos estéreis exercícios especulativos. Deixarei isso para um mirífico texto filosófico e não menos muito literário, que daqui a algumas páginas transcrevo em grande parte do seu teor. Temos de reconhecer que a cadência dos acontecimentos portugueses, processada a partir do 25 de Abril, de modo algum se coadunaria com o olímpico equilíbrio que alguns nefelibatas desejavam que então e desde logo se situasse para cá das nuvens. As preocupações eram outras, obviamente.

A golpes de energia, de esforço e de estrénua vontade, foi o Executivo de Vasco Gonçalves fazendo o que podia no seio tormentoso de um mar de dificuldades e de contradições internas. Afinal, das dificuldades e contradições sempre próprias e inevitáveis do agitado início de todas as revoluções no mundo!

Do que não podem, contudo, restar quaisquer dúvidas é que as afirmações entretanto produzidas pelos órgãos desse Poder se mostraram sempre objectivas, realistas, bem intencionadas. Logo, por exemplo, na posse do II Governo Provisório, em 18 de Julho, tinha Vasco Gonçalves declarado em tom peremptório:

«A Imprensa deve criticar livre e conscientemente a vida nacional. Pela sua crítica construtiva, responsável, vigilante e serena, contribuirá para a edificação do Portugal renovado.»(245)

Este seria um dos primeiros «dogmas» da libertação cívica que se ficou a dever ao 25 de Abril e que, tão lautamente, tem sido utilizado pelos inimigos da Revolução, cada vez mais empenhados na estúpida e nojosa tarefa de destruí-la.

Ao mesmo tempo que de novo nos prevenia contra os inimigos do processo, contra as suas baixas invenções, reafirmaria entretanto o Companheiro General, cerca de dois meses depois daquela sua posse, mais precisamente na entrevista que então concedeu a BBC de Londres:

«Claro que neste tempo de reconversão ideológica temos numerosos inimigos, quer internos quer externos. É fácil encontrar em Portugal, ao abrigo da liberdade de Imprensa, numerosos pasquins que nos acusam, que nos caluniam, que fazem as afirmações mais torpes. Há também correspondentes da Imprensa estrangeira que aqui se instalam, mandando para os seus países notícias que são verdadeiras calúnias, que não representam a verdade do que se passa em Portugal.»(246)

Repetiremos que este foi e é, natural e irrecusavelmente, um dos mais altos preços da liberdade. O viver tranquilo da consciência, o bem ético que afinal buscamos, não será nunca o do mutismo forçado.

Ao contrário do que pretendia Salazar, «impondo a uns o silêncio, assegurando a todos a tranquilidade e a segurança — estas são, como se sabe, as suas próprias palavras(247) — a liberdade deixa de o ser, quando uma preconcebida argumentação de razões de prevenção político-social torna, como sem dúvida se tinha tomado em Portugal, gente viva num mudo rebanho de paralíticos.

A posição de Vasco Gonçalves foi a antipódica desta, logo a partir do seu primeiro dia de poder e de governo. Na conferência de Imprensa, dada em 30 de Setembro, após ter sido empossado no cargo de Primeiro-Ministro por Costa Gemes (o então novo Presidente da República) ele poria em saliente relevo os valores ideológicos e as questões culturais. A verdade, todavia, é que estávamos nos alvores de uma nova época e muitos (até dos mais lúcidos, alguns deles) estremunhavam, desorientados, de um pesadelo de falsidades, de enganos.

Para o ditador Oliveira Salazar — quem não se recordará de o ter ouvido dizer assim?!...

— «Politicamente, o que parece é.»(248)

Ou afirmar esta mesma teoria:

«Politicamente, só existe o que o público sabe que existe.»(249).

Ninguém ignora que o salazarismo, que a tantos e tantos equivocou à força de semelhantes artifícios, foi uma prática que viveu à custa de aparências. Aliás, o ensimesmado de Santa Comba disse e também escreveu palavras como estas:

« .. para a formação da consciência pública, para a criação de determinado ambiente, dada a ausência de espírito crítico ou a dificuldade de averiguação individual, a aparência vale a realidade, ou seja, a aparência é uma realidade política:.»(250)

História felizmente ultrapassada, esta! Desde a primeira hora, de peito aberto para a luta revolucionária (luta onde só a verdade tem lugar) Vasco Gonçalves foi a transparência.

De modo nenhum o Povo sofre dessa tal «ausência de espírito crítico», ou da «dificuldade de averiguação individual» a que Salazar, maquiavelicamente, se referia. Ao Povo reconheceu Vasco Gonçalves, desde a primeira hora, as liberdades cívicas de informação e de pensamento, de expressão e de criação espiritual.

Veja-se como ele vincou na aludida Conferência de Imprensa de 30 de Setembro:

«Pensamos que a Informação é uma arma muito importante do ponto de vista ideológico e social. Temos alguns órgãos de Informação do Estado — EN e RTP — que devem exprimir, com o máximo rigor e a maior correcção, os pontos de vista governamentais acerca dos diversos problemas nacionais e contribuir para o esclarecimento das questões nacionais e elucidar o país sobre a actividade do Governo, isto sem exercer a censura ou repressão e, muito menos, sem procurar condicionar a opinião pública no nosso pais.»(251)

Fala-se directamente — nesta passagem — de uma liberdade correlacionada com a prática dos órgãos de Comunicação Social. Porém, na teoria política de Vasco Gonçalves, não cabem somente as questões da livre Informação e da livre Imprensa, enquanto factores de uma liberdade do espírito paralela dos direitos económicos. Os princípios enunciados pelo Companheiro General aplicam-se, segundo ele e do mesmo passo, a todos os sectores da Cultura. Trata-se de princípios estruturantes de todos os direitos, liberdades e garantias, tenham estes a natureza que tiverem.

Foi clara, portanto, a sua rejeição de toda e qualquer espécie de condutas coagentes. Nada, para Vasco Gonçalves, poderá algum dia justificar a violentação da consciência alheia.

Foi isso mesmo que ele lembrou no Congresso dos Escritores:

«Tem-se falado na Revolução Cultural e nós precisamos de uma revolução cultural. Mas revolução cultural não é meter ideias à força na cabeça das pessoas} atenção. As experiências deste século têm demonstrado que isso não é possível.»(252)

Pouco tempo depois tomaria Vasco Gonçalves à mesma ideia, como aconteceu no Congresso dos Sindicatos, em 27 de Julho:

«As revoluções culturais não se improvisam. Mas aqueles que não andam de olhos fechados deverão perceber que desde o 25 de Abril, começou uma grande revolução cultural no nosso país.»(253).

A par da simplicidade com que todo o mortal entende estes parâmetros de uma estrutura social que se revoluciona e revoluciona, houve sempre (e haverá per secula) os chamados «espíritos eleitos». São espíritos a quem qualquer coisa de ácido perturba e irrita.

A Revolução fez-se à revelia da sua presença e isso — oh lástima das lástimas!, oh drama dos dramas!... — é coisa que não pode acontecer. Está, com efeito, um venerável prócere da Literatura sentado lá nos pináculos da sua gloriosa e remansada tranquilidade de génio, quando lhe vem gente como este Vasco não sei quê — um homem que não atinge e até infringe o estilo literário médio!... — falar em revoluções culturais!

Eis uma impertinência que assusta terrivelmente.

Esta é a verdade: assusta-os tudo o que lhes ameaça a sua estratégia.

Verem-se eles, de repente, como que despedidos para fora das atenções preocupadas de um público mais ou menos fiel — eis, repito, o acontecimento que desde logo engulhou muitíssimas vedetas e, se acaso me permitem plagiar um pouco de Fernando Pessoa, também mesmo alguns dos por aí vários «génios para si mesmo sonhando».

Eles tremeram!

Eles tremeram, sem ponta de dúvida, só de ver que nos escaparates o que agora se exibia era a literatura política. Eram, enfim, os Marx, os Engels, os Lénine e outra tanta malta nada literária, até pelo contrário muito subvertente de uma sociedade razoavelmente cómoda e simpaticamente sua consumidora.

Eles tremeram, enfim, porque ausentes da ânsia natural das gentes. Mas por culpa própria: enredadas nas suas sempre difíceis e invulgares locubrações, tão úberes nascentes da Cultura não souberam compreender uma coisa elementar: os acidentes e as premências de uma satisfação hoje liberta da fome acumulada por anos e anos de repressão pidesca e censural.

Era-lhes impossível apresentar violências de que tivessem sido vítimas. Impossível, igualmente, apontarem casos de um desrespeito afrontoso das liberdades morais e intelectuais. Ou atropelos da sua criação artística. Ou entupimento deliberado das fontes e fontanelas da sua elevada produção cultural. Encafuados no auto-enlevado mundo dos seus encantos, eles sentiram-se magníficos, como sempre, mas desfeiteados.

E mais: viram-se sem uma «missão» que, de imediato, lhes caísse ao alcance da mão e lhes permitisse o serem apontados e louvados. Mais solenes que todos os académicos de todas as academias, nem sequer lhes ferveu na alma um futurismo que os tivesse encorajado a vestirem a blusa gritantemente amarela de Maiakovski.

Um dos primeiros arautos do pânico, isso é coisa que resulta incontroversa, terá sido o sempre difícil e sempre existencial metafísico de O Espaço do Invisível.

Mal segura estava ainda a Revolução nos seus primeiríssimos passos. Vinha ela de resistir às solertes tentativas reaccionárias de um Palma Carlos, de um Spínola, de uma «maioria silenciosa». Carregada se encontrava de mil e uma questões pontuais, urgentes, inadiáveis. À margem de tudo isto, porém, lá foi o escritor Vergílio Ferreira alinhavando — em Novembro de 1974 — aquilo a que chamou «Projecto para um manifesto».

Decorridos cerca de cinco atribulados meses de uma Revolução tão profundamente libertadora como sucessivamente veio sendo o 25 de Abril, eis aí uma «inteligência cultural» do burgo dizendo-se apreensiva «a julgar pelo que no presente se vai esboçando» (sic). Porque no tal «Projecto» o Poder era acusado de estar a produzir os efeitos demagógicos de um «clima emocional massificado».

Nem mais! E de distinguir «entre cultura popular (ou que ao povo se destina) e a que degradadamente se vem já qualificando de elitista». E também de atentar contra a referida cultura de «elite» por ela ter sido «diminuída, suspensa ou simplesmente anulada». E finalmente de, quanto à Arte, «privilegiando a sua finalidade política e subalternizando a sua finalidade cultural», afirmar a «sua condição de serva, como a filosofia o foi outrora para a teologia» (sic).

Na sua aflitiva e burguesissima incompreensão de tudo qranto se estava a passar em Portugal, lamuriava mais ainda o Dr. Ferreira. E barafustadamente! Por exemplo: contra a «supressão quase total das “Páginas Literárias” e a falta de “organização de programas culturais, mormente na TV”».

O poder revolucionário, o que fazia —segundo a sua óptica de um afligente pânico — era atirar sem mais aquelas a Cultura para o vazio. Depois, por fim— que isso era fatal em pessoa tão imparcialmente objectiva! — lá vinha, nesse preocupado «Projecto para um manifesto», a «comparaçãozinha» sinuosa:

«Assim —perorava o intranquilo projectista estético-político — aproveitamos a oportunidade para nos solidarizarmos com os artistas plásticos recentemente vítimas de uma intervenção policial a propósito ou despropósito de uma exposição no Largo de Camões, como o foram também há pouco na União Soviética alguns expositores de pintura abstracta.» (sic)(254)

As Revoluções têm, todas elas, os seus acidentes ridículos. E até os seus contraditores patuscos e heteróclitos.

Decerto, com aquele muito ar de pensador que todos lhe conhecemos (pelo menos das fotografias que pressurosamente faz publicar) e debatendo-se sempre com as aparições e os fantasmas do seu pânico, mais locubrava o Dr. Vergílio Ferreira no tal «Projecto».

Agora era sobre o dirigismo cultural.

«Nenhuma cultura digna desse nome — concluía o Dr. Ferreira— se pode construir sobre a miséria e a ignorância, e assim os signatários não só esperam como exigem a realização do que ao povo se prometeu em justiça económica, mediante medidas efectivas de socialização. Mas entendem que é privar esse mesmo povo dos benefícios de uma realização cultural, utilizando discriminações para o que lhe “convém” ou não.»

É extremamente curiosa esta passagem. Merece um tudo-nada de reflexão.

Em primeiro lugar é curiosa pela exigência expressa, que aqui se faz, a quatro para cinco meses contados sobre o 25 de Abril, de que o poder político houvesse cumprido as promessas de uma justiça económica. Depois, porque se vê que já em Novembro de 74 o Dr. Ferreira referia tão expressa e avançadamente o caminho da «socialização» — julgo, porém, que por inocultável reflexo de um singular pavor. E afinal porque aludiu, ainda que só de uma forma implícita, à teoria da «não socialização da miséria», a que só bem mais tarde iria o PS trazer à baila da política quotidiana.

Não fosse a solene declaração do escritor, feita no semanário Expresso, de 22 de Fevereiro de 1975, e dir-se-ia que o tal «Projecto para um manifesto» tinha sofrido, à data da publicação, pelo menos uns tantos retoques actualizantes, naturalmente enxertados com vista a que o texto viesse a lume nas vésperas do I Congresso dos Escritores(255).

Mas deixemos quieto semelhante texto, que aliás não chegou a «funcionar», pelo menos na altura correspondente à data que nele figura como a da sua produção. Consideremos um outro, simultaneamente jupiteriano e rebarbativo. Este outro terá sido até, muito presumivelmente, a causa da não-efectivação do projectado manifesto do Dr. Vergílio Ferreira. Repare-se que este é, desdo logo, um daqueles que figuram de entre o número dos seus signatários responsáveis.

Foi igualmente no Expresso que a tal rebarba veio. Foi ali, com efeito, que Eduardo Lourenço, José Augusto França, Liberto Cruz, João Palma-Ferreira, Fernando Echevarria, Vergílio Ferreira e José Sasportes apresentaram ao público leitor — em 7 de Dezembro de 1974 — uma proclamação quase catedrática, intitulada «Apelo com resposta — liberdade de escrita» ou «A escrita tornada instrumento de terrorismo ideológico».

A prosa que secundou tão carrancudo título traduzia preocupações que, sem dúvida alguma, eram o produto directo de muita coisa. Algumas dessas preocupações significavam, decerto, uma reflexão possível sobre as dificuldades do presente que se vivia. Outras, porém, escondiam o terrível bicho da vaidade ferida. Suas Divindades sentiam-se postergadas para um plano tão longínquo quanto dianteiro era o da premente satisfação de muitas necessidades à data imperativas. Seja como for, a linguagem deste apelo era pretensiosa, arrebicada, ultra-académica. Vinha cheia de conceitos e de inteligências.

Basta que lhe vejamos um naco, para vermos que assim foi.

Rezava, com efeito, desta sorte (mas incapaz de suportar uma simples divisão gramatical de orações) o tal empastelado apelo, que se dizia escrito e promovido contra o dirigismo cultural (?!) e os terrorismos ideológicos instrumentalizados pela escrita (?!):

«Num momento em que o projecto de lei de Imprensa acabou de ser posto em debate público (debate que em si foi um facto altamente positivo, embora nem sempre desbordando de um juridismo estreito), não podemos deixar, quanto a nós, de vir lembrar que para lá de uma legiferação de direitos e deveres no exercício da liberdade de expressão — que a futura lei fundamental, saída da Assembleia Constituinte a eleger, haverá de consagrar — importa desde já ver se as condições reais de uma efectiva actuação dessa liberdade estão a ser criadas, de modo a que a invocação que se desejem livres(256), em face do clima de pressões e mesmo de terrorismo ideológico, políticos, morais para que vêm sendo solicitados ou a, que são submetidos, na esteira e sob o álibi da ainda recente libertação da ditadura fascista de triste memória.»(257)

Depois desta assintáxica confusão, continuava o tal «Apelo» deste modo igualmente pretensioso e sentencioso:

«A intransitividade e a irredutibilidade da escrita correm assim o risco de ser sufocados, perante a invasão de cena e dos bastidores «literários» pelos que dela têm uma concepção puramente instrumental. Entenda-se bem: livre cada qual das suas opções, dos seus empenhamentos, das suas posições partidárias, do emprego a dar à sua escrevença. E é benéfico que à época da expressão cifrada, das metáforas codificadas para iludir a censura, se tenha sucedido um tempo em que os adeptos de uma literatura ideologicamente comprometida possam sem entrave defender as suas preferências. O que já não é legítimo, nem justo, nem saudável, é que se venha a restringir a nossa vida cultural a um coro monocórdico, perante o silêncio, que poderá vir a ser interpretado como consenso, dos que (por impedimento, por medo ou por comodidade) são privados ou se privam da palavra, quando têm outras propostas mais aliciantes a dar a ler.»(258)

Qual coro monocórdico, porém? E que restrições de vida cultural?

Por que não intervinham (quando não intervinham) aqueles que — «por impedimento, por medo ou por comodidade»— se mantiveram inertes ou calados?

Sigamos, entretanto, esta indigestiva leitura, a qual todavia se não deverá recusar.

Pois seguia assim o texto do «Apelo»:

«Ora a nossa literatura contemporânea (queremos dizer moderna) é bem mais rica, exigente e diversificada, a começar pela linguagem, do que o podem fazer crer certas manifestações retro que hoje imperam nas páginas dos nossos jornais ou nos escaparates das nossas livrarias, sem que mais do que tímidas vozes dissonantes se consigam fazer ouvir. Quem é assim cego (ou finge sê-lo?) para a ressurgência de um neo-zdanovismo larvar, que tem o recozido sabor do já visto, e não apenas pelas conotações de mediocridade que traz agarradas às suas gangas, mas pelas referências directas a uma “escrita penal”, cujos efeitos foram tantas vezes e alhures trágicos? Quem não vê que é a própria liberdade da escrita que pode, por esses viés, vir a ser posta em causa, se não houver, entretanto, uma eclosão à luz do dia de outras tendências que, mesmo de precedência teórica ou ideológica afim, lhe possam servir de contraponto e confronto, propiciando uma atmosfera dialogante capaz de superar reflexos de crispação já antigos, criadores de tensões sufocadas ou recalcadas que só aos inimigos da liberdade (e antes de mais da liberdade de escrever) poderão um dia aproveitar? Pois não é a dolorosa experiência de um maniqueísmo de várias décadas suficiente para mais lucidamente nos apercebermos da dialéctica implacável que a todos, tanto os escritores como os outros cidadãos que são os leitores, vai insensivelmente arrastando? Não haverá que acordar enquanto é tempo de tal pesadelo, sem nos deixarmos de novo adormecer pelo sono da razão que engendra monstros?»(259)

O leitor que me desculpe (se acaso desculpa tenho ou posso ter por tão intencionalmente o ter feito suportar esta longa, pesadíssima, chata e pretensiosa coluna de longuíssimas frases arrebicadas e sabichonas.

Vimos que esgrimia este «Apelo», caricatamente, contra monstros e fantasmas. E absurdamente, também. O simples facto material da sua publicação mostrava à saciedade que não havia qualquer «invasão» exclusiva, da cena literária, por parte daqueles que têm da Literatura uma concepção relativamente instrumental. De outro modo, como poderia o «Apelo» ter sido publicado?!

Se por «impedimento» pessoal, «cobardia» cívica ou burguesíssima «comodidade» se haviam alguns mutilado da palavra, o que eles tinham de ter feito, repito claramente, era fadar e falar — falar, como estavam aliás, no próprio acto de apelar, falando os do «Apelo».

Documento muito mais político do que literário, nem dúvida escrito contra Vasco Gonçalves, logicamente ele recebeu o apoio de Álvaro Guerra, de Alçada Baptista, de David Mourão-Ferreira, de Lima de Freitas, de Mário Braga e uns tantos outros. E até o de alguns bem intencionados quanto, unicamente, à questão geral da liberdade da escrita, sem que todavia tivessem medido o verdadeiro alcance do «Apelo».

Trata-se de um texto lamentavelmente pouco ou nada humilde.

Vejamos.

«A liberdade do escritor, enquanto escritor — dizia-se no “Apelo” — é pois antes de mais a de escrever: acto intransitivo, irredutível, que em nenhum caso pode ser rebaixado à natureza de simples meio ou instrumento, objecto de imposição ou coacção exterior, sob pena de deixar inexoravelmente de ser o que na sua essência é.»

Aqui se revelava (colhamos e sopesemos bem este fulcro central da frase) um dos preconceitos burgueses mais infelizes — dos autores deste texto sobre a «escrita tornada instrumento de terrorismos ideológicos» (?!).

A que solução podia, com efeito, reportar-se esta tese?

À ideia de que, pertencendo a Arte ao domínio das sublimes alturas, o facto de ela estar em instrumentalidade incindível com a estrutura básica da sociedade é coisa quis constitui insuportável humilhação estética?!

Dir-se-ia que todos os autores deste «Apelo», verdadeiros apóstolos dc intransitivo, pertencem ao número daqueles que crêem ter descoberto na Literatura e na Arte a encarnação de um «eternamente humano». A ideologia burguesa, se por um lado se esforça por despojar o Estado e o Direito da função que estas formas revestem como armas da luta de classes, intenta igualmente despojar a Literatura e a Arte de uma significação, de uma relevância, de uma eficácia política.

Em vez de se constituírem em descoberta de vidas humanas socialmente activas, reais, em combate e em mudança histórica, surgem-nos a Arte e a Literatura na enganosa, imagem desse «eternamente humano» que afinal nunca existiu. Hoje, à distância de cinco anos, ainda vemos melhor o equívoco em que incorreu o «Apelo» com resposta — liberdade de escrita.

Só o escritor equivocado (sem dúvida, este o caso de Eduardo Lourenço) ou o escritor desfasado das tranaformações sociais que todos nós, portugueses, vivemos desde o 25 de Abril e o 11 de Março (caso, por exemplo, de Alçada Baptista) é que podia, em Dezembro de 1974, mostrar-se inconformado com o sacrifício imposto por prioritárias necessidades nacionais.

Só esse escritor (equivocado ou desfasado) em cujo campo se colocaram os autores deste triste «Apelo», se pôde sentir ferido no seu aristocratismo intelectual. Só ele, enfim, pôde pretender que uma insistente recomendação de Vasco Gonçalves — trabalhar na produção como tarefa dianteira dos portugueses — não era produzir Cultura, mas sim mediocridade.

Declaravam-se os autores do «Apelo», como já vimos, «vítimas» de «terrorismos ideológicos». Repito: em Dezembro de 1974.

Porém, à semelhança do que acontecera relativamente ao «Projecto para um manifesto», do Sr. Dr. Vergílio Ferreira, eles não concretizaram nem um só desses tais «terrorismos». E declararam não aceitar que as páginas dos jornais fossem poucas, nas horas de então, para a polémica (segundo eles medíocre) do quotidiano. E não me conformaram com a fatal quebra de venda dos seus livros, parecendo ignorar que naquele momento o leitor português tinha, como dissemos, outras e muitas leituras bastante mais importantes para fazer.

O traço comum aos escritores deste «Apelo» foi afinal, o da sua incapacidade de se porem de acordo com a realidade viva e rica que os rodeava. Esta os havia ultrapassado tão celeremente, na sua potência de expressão literária, que eles sentiram-se perdidos ou desorientados. E a culpa, claro, era do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves!

Eles assim o disseram. Assim o escreveram. Só que os escritores deste «Apelo» viram fantasmas fora de si próprios — quando o mal lhes vinha precisamente de dentro.

De que é que eles se sentiam vítimas, mas muito clara e concretamente ? — nunca é demais insistir. Acaso de reflexos simplistas de ordem ideológica e cultural?

Mas se foi assim, por que não reagiram a bem da Cultura portuguesa, com a sua decerto que riquíssima complexidade, que ninguém lha limitou?!

Ou marcou-os, antes, a carga dos miasmas dogmáticos de uma ortodoxia zdanoviana?

Nesse caso, por que não substituíram as suas afirmações, só vagas e injuriosas para a acção revolucionária do Companheiro Vasco Gonçalves, por indicações muito objectivas, muito concretas, implacavelmente precisas, dos textos que porventura lhes tenham sido recusados?!

Só assim o público compreenderia, sem demagogias e sem confusões de insídia, os motivos de eventuais recusas de publicação, se elas porventura se verificaram.

Vasco Gonçalves foi um alvo inocente — mas constante — destes conturbados profissionais da inteligência. Isto verificou-se apesar de ele ter calcorreado Seca e Meca, meses e meses, a pregar a necessidade de se ganhar consciência de que há só uma verdadeira ou purificada «elite»: aquela que se compõe, precisamente, dos que compreendem.

É verdade que na abertura deste «Apelo com resposta» os seus signatários invocavam uma conhecida frase de Brecht:

«Não secou ainda o ventre que pariu a besta humana.»

Percebia-se logo a insinuação que, com extrema facilidade, faziam os «apelantes», procurando ligar, segundo a mais lucrativa prática burguesa, a figura do ventre maleficamente gerador da besta (falando claro, o Comunismo) à própria besta imunda em si (Vasco Gonçalves).

Só que Brecht foi, virilmente, um verdadeiro democrata. E se era caso de se citar passagens suas, bem poderiam então os autores do lamentável «Apelo» ter antes colhido (com propósitos de meditação e de locubração futuras) estas outras duas frases, igualmente do dramaturgo de Augusta:

«Eu não tenho bom coração, quantas vezes te terei de dizer ? Então não sou um intelectual ?!» — de O Círculo de Giz Caucasiano (24,1);

ou ainda:

«Estás aqui para aprender a ler, e é aqui que o podes fazer. Ler é a luta de classes» — de A Mãe (175, III).

Há ler bem e há ler mal. Isto é: há ler intencionalmente bem e ler intencionalmente mal.

Recordo, por exemplo, que em declarações feitas ao periódico francês Le Monde, em 29 de Agosto de 1975, notaria o Companheiro General esta pecha dos seus inimigos, intelectuais ou não, escritores ou só meros escreventes:

«Os nossos inimigos exploram o arsenal clássico da propaganda reaccionária, utilizam a mentira e querem fazer crer que nós queremos construir um Estado totalitário, copiar o modelo soviético.»(260)

Igualmente recordo estas outras palavras que, no tempo, são posteriores à queda do V Governo Provisório e foram ditas à revista Hebdo, em Outubro de 75:

«Insistiram muito em que eu estaria ligado ao Partido Comunista porque elas sabem que em Portugal fazer uma política anticomunista é rentável, pois os sentimentos de anticomunismo estão ainda profundamente enraizados no nosso povo.»(261)

Pondo repetidamente o dedo na ferida (isto é: o dedo das verdades fortemente singelas e práticas, na ferida das genialidades amuadas), certamente terá sido Joaquim Manuel Magalhães quem, na altura, melhor deu a devida resposta aos auto-designados «apelantes com resposta». E foi de imediato, na semana seguinte à daquele impertinente texto.

«De que têm medo os escritores da liberdade?» — assim se intitulou esta vigorosa impugnação, donde não resistirei a transcrever os sete primeiros parágrafos.

Escreveu, com efeito, aquele crítico e ensaísta, fazendo (no § 1.° do seu texto) uma série implacável de perguntas:

«Não houve cultura fascista? A quem serviam as publicações feitas para e vendidas por capitalistas que serviam e se serviam do fascismo? Só as ligações directas marcam as servidões da arte e dos artistas? Não se poder dizer que não houve cultura fascista e ficar descansado por ter acreditado nisso. É preciso determinar em que medida se sobrevivia ao fascismo, em que medida de libertação e jogo se jogava simultaneamente no espaço da arte. Os mercados, tanto como os produtores e os leitores, têm uma resposta a dar à pressa com que se quer lavar a consciência. Então a cultura isola-se assim das realidades do consumo, da distribuição, dos mercados, dos capitais, e ficamos todos ilibados, à excepção de muito poucos que até eram muito maus? Eu por mim acho: não houve grandes escritores servidores directos da ideologia fascista entre nós? Talvez não. Não houve cultura fascista? Em todos os termos a houve.»

Posto isto, nos parágrafos seguintes deste texto tão objectivamente desmistificador o crítico passava a desmontar «a lamúria» dos «escritores da liberdade» ou «apelantes com resposta».

Foi assim no § 2.°:

«A resposta tranquila que deram ao parágrafo anterior é que vem afligir agora os que estão intranquilos com o estado actual. Se nos dizem que ao longo de cinquenta anos não houve cultura fascista, ao fim de oito meses já têm medo de ser submergidos por uma cultura zdanovista? Pelos vistos, ao fascismo a cultura portuguesa escapa; ao estalinismo é que não consegue. Por certo devem saber que há armas não capitalistas e não burguesas contra o estalinismo. Não deixa de ser sintomático que as não tenham querido usar.»

E depois, nos §§ 3.° e 4.° disparava-lhes Joaquim Manuel Magalhães mais uma série muito incómoda de perguntas:

«Falam da aurora de um novo período. Não verão que, se for aurora, é de um período já muito gasto? Não verão que é o sol no fim da tarde o que julgam ser a manhã? Será que o sistema não aflige já os idealistas escritores da liberdade, só porque o regime desse sistema se alterou?

Será que estes defensores de um conceito dominante de liberdade se esquecem que não objectivar a noção de liberdade no espaço real das dominações mais não é que contribuir para uma coisa que se chama a alienação, isto é, o motor primeiro de ausência da liberdade?»

Passo a passo, grau a grau a incomodidade das perguntas feitas aos «apelantes com resposta» agravava-se no § 5.° deste texto tão certeiramente intitulado (como há pouco registei); «De que têm medo os escritores da liberdade?» :

«Têm medo de quê? De não serem referidos nos jornais? De não serem falados às massas? De não serem vendidos? De não serem lembrados? De o próprio capitalismo se esquecer deles porque outros agora são mais vendáveis?

«Não verão que as obras, as obras necessárias do nosso tempo, têm de sair para fora dos próprios circuitos onde procuram dominar ou onde querem que os apregoem, ou que, pelo menos, os não censurem?

«Têm medo da mediocridade? Da dos outros? Da deles? E mais: quem são, para dizer que a produção dos que são apregoados agora é medíocre ? Será que dizer realismo socialista basta para dizer mediocridade?»

Afinal, o § 6.° constituía a antecâmara de uma segura conclusão.

Afirmava assim:

«A única coisa que se vê desse “é mais do que tempo” é que estes “escritores” chegaram atrasados. Claro que, devido a esse atraso, fazem a defesa da ideologia de uma classe que há muito deixou de ser a positiva. Claro que a única coisa que vieram dizer é que continuam a escolher o mesmo sistema, apesar de estarem muito contentes por o regime ser outro. Mas temem, temem muito que o sistema mude. Se à arte compete “mudar de vida” e ao pensamento “transformar o mundo”, será com noções como as que utilizam que o conseguirão? Claro que a gente fica a saber que eles não querem é conseguir.»

E, por fim, no § 7.° do seu texto denunciava Joaquim Manuel Magalhães a prática inócua e inconsequente daqueles que faziam da lamúria o seu processo lógico.

Lá lógico era ele, na verdade! Os lamurientos não queriam mais nada do que a sua olímpica soberania de vates e penates. Eis, então, as últimas questões do artigo que venho transcrevendo — e o sério remate da conclusão que em si continha:

«O que é censura? Como funciona? Se desaparece a censura de regime, desaparece a censura? Se desaparece a censura de partido, desaparece a censura? O estar contra a censura assim, sem mais nada, em nome de uma noção imprecisa de liberdade, não será uma maneira de ocultar os efectivos planos onde a censura se possa exercer quando desaparecem os aparelhos ou pessoas óbvias que a praticam? Resposta a estas coisas é que os escritores portugueses têm que dar, se efectivamente quiserem escrever “protestos” e não “lamúrias”.»(262)

Eis as faces de uma polémica que — como aliás todas as polémicas, quaisquer que elas sejam— não pode deixar de ser encarada na sua perspectiva da luta de classes.

Há intelectuais que decididamente optaram pela aliança com os trabalhadores. Outros continuarão, no seu dia a dia, querendo ser os sempre pontífices magníficos do espírito, ainda que para isso tenham (hoje, por exemplo) de calar a sua voz outrora tão protestativa. Na verdade, ainda não vi nenhum dos lamurientos 74 a erguer manifestos ou protestos frente ao estilo fascizante do procedimento de um senhor Proença de Carvalho, ministro da propaganda do interregno motapintista, e que já alguém, certamente «por graça», qualificou de «estalinista»(263).

Mas voltemos ao nosso tema. Ele é, como se sabe, o das acusações que uns tantos fizeram a Vasco Gonçalves relativamente ao seu (pretenso) «dirigismo cultural».

Se buscarmos uma pista, poderemos encontrá-la na entrevista que ao Diário de Notícias deu o Companheiro, aquando do 1.° aniversário da Revolução de Abril. Daí saliento estas palavras:

«É necessário, para o progresso desta Revolução, que haja uma transformação da própria Cultura. A cultura burguesa tem de ser transformada numa cultura verdadeiramente popular e nacional.»(264)

Foi de imediato um aqui d’el-rei!

Que vinha aí o famigerado dirigismo cultural — assim se agravou, nos brados, o coro dos «inconformistas». E logo o profissional da intelectualidade que o Dr. Vergílio Ferreira sempre é, logo voltou, apreensivo, a formular umas tantas perguntas que dão conta da sua mirífica complexidade problemática.

Repare-se:

«Acabo de ler o Diário de Notícias de 25 deste mês de Abril — avançou o inquietado escritor, numa “Carta Aberta ao Primeiro-Ministro” — uma sua afirmação que me deixou apreensivo. Com efeito, e segundo o referido jornal, o primeiro-ministro teria afirmado que a “cultura burguesa tem de ser transformada numa cultura popular e nacional”. As questões que se me levantam, frente a esta declaração, são várias e complexas (...). Antes de mais é-me altamente problemático que uma cultura se decida por resoluções superiores.»(265)

O que nos surgia diante dos olhos era, obviamente, e uma vez mais, a «doentia» preocupação dos lamurientos 74.

Quem é que falara, acaso, em «resoluções superiores» que nos surgissem como sobredeterminantes ou directamente determinantes de uma qualquer forma de cultura?! Acaso de alguma maneira quisera o Companheiro General, assim tomado num sujeito de todo à revelia da dinâmica popular, fabricar um edifício cultural de cima para baixo?!

Dera asneira, a vária complexidade do Dr. Ferreira.

Mas vamos adiante.

No dia 11 de Maio de 1975, teve lugar o discurso de Vasco Gonçalves no Congresso dos Escritores. Este foi, sem dúvida, uma viva reunião de intelectuais progressistas a que a presidência de uma venerável figura como a do meu amigo José Gomes Ferreira emprestou muito alta dignidade.

Ainda um ano depois, porém, o Congresso era deliberadamente caluniado pelos órgãos de Comunicação Social afectos ao, ou controlados pelo PS. No Diário de Notícias, por exemplo, a insídia estilou no texto «A demissão dos intelectuais», como se de alguma demissão se tratasse:

«A cena mítica do Companheiro Vasco entre os doutores, por ocasião de uma cerimónia muito publicitada na Associação dos Escritores...»(266)

Mas qual «demissão», e de «quem»?!

E que «cena mítica»?!...

O que Vasco Gonçalves aí proclamou, muito concreta e claramente, foi a indispensabilidade dos escritores como promotores de uma Revolução Cultural. Ele colocou, portanto, a questão das relações do intelectual e do artista com o povo. Nem relações de domínio, nem de sujeição. Relações livres, mas participantes.

Foi isto, enfim, o que o Companheiro Vasco nos disse nesse dia de memorável convívio:

«O problema fundamental que hoje se põe aos escritores é, de facto, o das suas relações com o povo, com o povo concreto. Eu penso que a nossa Revolução necessita dos senhores. É indispensável o trabalho dos intelectuais. De resto as Revoluções fazem-se com os trabalhadores, fazem-se com aqueles que mais directamente estão ligados à produção, mas fazem-se também com os intelectuais, fazem-se também com trabalhadores de outro tipo, que devem estar muito ligados ao nosso povo.»(267)

Diga-se o que se disser, é sabido que a arte não representativa se move num mundo interior e arbitrário, inverificável, arrancado apenas da imaginação gratuita do artista. Mantida nos puros cuidados da forma, perdida nas abstracções e nas complicações estéreis, a Arte deixa de utilizar a linguagem entendida por todos. Transforma-se em criptogramas. Ensombra-se no maneirismo, no confuso, no impasse onde não cabem as lutas reais em que se decide o destino dos homens(268). Eis a razão determinante pela qual Vasco Gonçalves nos dizia ainda nesse mesmo Congresso dos Escritores, a propósito de um problema tão caro à estética marxista, das relações entre o conteúdo e a forma:

«O conteúdo é o mesmo quer para o iletrado, quer para o letrado (...). O conteúdo é o mesmo, o que é preciso é descobrir formas adequadas, as formas simples, as formas que sejam facilmente alcançáveis pelo povo, não são fáceis de elaborar.»(269)

De tal modo se mostra relevante a questão assim levantada por estas palavras, ainda ela merece algumas considerações mais, apesar de muito breves, como não pode deixar de ser. Trata-se, obviamente da subordinação da forma ao conteúdo, ficando certo que aquele possui, dentro das definições gerais do materialismo dialéctico e histórico, uma peculiaridade própria: toda a forma estética é a forma de um determinado conteúdo. Naturalmente, dizer isto equivale à expressa recusa do puro formalismo, seja ele o vazio ou o arbitrário.

Pois foi esta dialéctica verdade aquilo que o Companheiro General muito simplesmente quis fazer notar aos escritores progressistas ali reunidos em Congresso. Quis dizer-lhes que a Revolução contava com eles. Quis lembrar-lhes que o desenvolvimento social e a luta de classes criam um conteúdo novo e também novos aspectos para a reprodução do passado na nossa consciência e daí novas perspectivas para o futuro.

Vasco Gonçalves quis fazer-nos notar, enfim, que a autêntica projecção de um novo conteúdo no pensamento e na Arte não pode deixar de produzir uma renovação na forma artística. E que, nesta ordem de ideias, as inovações formais verdadeiramente grandes jamais foram problemas de somenos ou meras questões de experiência artística, mas — enquanto forma, propriamente — estímulos eficazes para todas as mutações significativas na nossa vida histórica e cultural(270).

Do ponto de vista político, porém, a grande advertência que Vasco Gonçalves fez aos intelectuais no Congresso dos Escritores foi a relativa ao problema do dirigismo na cultura. Só por má fé, ou por histérica: complexidade, foi possível que «manifestantes» e «apelantes» tivessem pretendido que alguma vez ele quis subjugar-nos ou condicionar-nos a consciência.

Disse-nos o Companheiro Vasco, tal qual já dianteiramente pus na epígrafe deste último capítulo:

«Há um outro problema que eu sei que vos preocupa muito, que é o problema do dirigismo na cultura. O que eu acabo aqui de dizer o que é que aponta? Aponta, digamos, uns traços dominantes, umas tantas ideias principais, mas isso não é dirigismo nem nós somos dirigistas. Nós, os do Conselho da Revolução, já provámos à saciedade que não desejamos implantar uma ditadura em Portugal.»(271)

A afirmação inequívoca ficou assim expressamente enunciada. E ela foi feita para ser acreditada pela gente vertical e de escorreita fé — por aqueles que compreenderam (e compreendem) os momentos determinantes desse período que foi. sem sombra possível, o mais inovador da nossa Revolução. Mas para que fique registado neste livro, que afinal constitui um documentário naturalmente tão avassalado de fragmentos alheios, aqui vai como bom remate um válido e seguro testemunho sobre a tão falsa: questão do dirigismo.

Termino, pois, com uma derradeira transcrição.

Passo a palavra a João de Freitas Branco, velho amigo e íntimo colaborador de Vasco Gonçalves nos IV e V Governos Provisórios. Porque foi ele quem escreveu:

«Em tantas conversas sobre temas de cultura, nunca se me mostrou auto-suficiente para tentar impor qualquer critério dirigista. Atitude própria do seu carácter, tinha aliás que ser também ela — como sem dúvida foi — aquela que assumiu em relação a todas as incontáveis especialidades inerentes à chefia de um Governo.»(272)


Notas de rodapé:

(245) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 19. (retornar ao texto)

(246) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 62. (retornar ao texto)

(247) Oliveira Salazar, Discursos, Coimbra Editora, Vol. X, p. 52. (retornar ao texto)

(248) Oliveira Salazar, Discursos, Vol. UI, p. 196. (retornar ao texto)

(249) Oliveira Salazar, Discursos, Vol. X, p. 263. (retornar ao texto)

(250) Oliveira Salazar, Discursos, Vol. III, p. 197. (retornar ao texto)

(251) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 66. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(252) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 294. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(253) Idem, p. 461. (retornar ao texto)

(254) O sublinhado é, obviamente, meu. (retornar ao texto)

(255) O «Projecto para um manifesto» veio publicado no referido número do semanário Expresso, na verdade acompanhado desta nota extratexto: «Por motivos vários não se efectivou este Manifesto. Julgamo-lo, todavia, ainda actual e daí que o publiquemos, embora, soo a responsabilidade exclusiva de quem o redigiu. Tal actualidade, se mais a não garantisse, sem dúvida a fundamentavam certas pro postas de comunicações a fazer no I Congresso de Escritores cuja Associação “decidiu” realizar-se — e ao qual, Congresso, tencionamos voltar a referir-nos.» (retornar ao texto)

(256) É assim mesmo que se encontra no original. (retornar ao texto)

(257) Idem. Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(258) Sublinhado meu. (retornar ao texto)

(259) Sublinhado evidentemente meu, para assinalar melhor o propósito desconchavado de se insinuar que a «política cultural» de Vasco Gonçalves seria a «ressurgência de uma neo-zdanovismo». (retornar ao texto)

(260) Discursos Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 501. (retornar ao texto)

(261) Idem, p. 505. (retornar ao texto)

(262) «De que têm medo os escritores da liberdade?», de Joaquim Manuel Magalhães, no semanário Expresso, de 14 de Dezembro de 1974. A título de mera nota complementar sempre indicarei, entretanto, uma das mais «saborosas» lamúrias que tive ocasião de ler. Entoou-a o escritor Mário Braga, no Século Ilustrado, de 13 de Março de 1976, sob o título «Escrever ou não escrever». Alternativa um tanto hamlética era esta que acabava por atribuir a Vasco Gonçalves as culpas de toda uma ruína cultural: «As editoras, algumas já semi-arruinadas, vivem de letras de favor e de avais do Estado...» Quando, porém, um escritor — português— escreve «avais» em vez de «avales» (como* exactamente se escreve era português) e se interroga sobre «escrever ou não escrever» — o melhor, com franqueza, é bichanar-lhe ao ouvido a recomendação para não escrever. (retornar ao texto)

(263) Não deixa de ser curiosa, com efeito, a apreciação de Eduardo Prado Coelho recentemente feita em O Jornal, de 9 de Março de 1979. Num artigo intitulado «O Congresso que balança», escreveu o autor das por ele abandonadas Hipóteses de Abril: «Excluindo o intermédio trágico-cómico de um Proença de Carvalho (zeloso estalinista que faria uma vistosa carreira em qualquer regime totalitário de Lesto) e a manifesta falta de vocação política, credibilidade televisiva, convicção doutrinária ou "charme” hollyoodesco de Mota Pinto, a actuação do Governo é, em quase todos os sectores (com algumas excepções à deriva), de uma nulidade impressionante.» O sublinhado é, evidentemente, meu. (retornar ao texto)

(264) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 238. (retornar ao texto)

(265) Cf. «Carta Aberta ao Primeiro-Ministro», do Dr. Vergílio Ferreira publicada no Jornal Novo, de 2 de Maio de 1975. (retornar ao texto)

(266) Diário de Notícias, de 19 de Abril de 1976. (retornar ao texto)

(267) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 288. (retornar ao texto)

(268) Plekanov, L’Art et la vie Sociale, precedido de dois estudos de Jean Fréville, Paris, 1949, p. 80. (retornar ao texto)

(269) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 291. (retornar ao texto)

(270) George Lukács, Il Marxismo e la Critica Letteraria, Turim, 1953, pp. 12-13. (retornar ao texto)

(271) Discursos, Conferências de Imprensa, Entrevistas, p. 293. Aos emigrantes, em Bruxelas, diria igualmente o Companheiro General (p. 364): «O Movimento das Forças Armadas não deseja implantar nenhuma ditadura em Portugal. Se o desejasse fazer, já o tinha feito e o último dia em que o podia ter feito foi o dia 11 de Março.» (retornar ao texto)

(272) In Companheiro Vasco, p. 396. (retornar ao texto)

Inclusão 25/04/2015