Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


IX — Formas de Estado e Formas de Governo


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A última parte da rubrica «objecto da ciência política» identifica-se, no programa oficial, com o problema das «condições e formas do exercício do poder». Como entretanto já estudámos as coordenadas históricas em que se gerou o mesmo poder, e aquelas em que ele se exerce, agora vamos prender-nos simplesmente com o problema das respectivas formas. Pretendo em suma, neste capítulo, que nos debrucemos em particular sobre o modo como ao observador se apresenta o exercício do poder político. Mas a dois níveis: — o modo como se apresenta a nível do Estado (teremos aí a questão das formas de Estado) e o modo como se apresenta a nível do governo (questão das formas de governo).

Este problema é dos que mais preocupa e ao mesmo tempo mais desarmoniza os pensadores. O que é forma de Estado para uns, não é para outros; o que constitui forma de governo para estes, constitui forma de Estado para aqueles; enfim, uma farândola de conceitos em desfile, em troca de passes que certamente não poderá deixar de confundir, até quase ao desespero, o iniciando da Política. Por isso mesmo, com a prevenção de que o esquema que desenhamos só representa um enunciado tão relativo como muitos outros, vamos procurar alinhá-lo na sequência coerente do que até ao momento tem vindo a ser afirmado neste livro. O leitor tem efectivamente visto que não perdemos um «norte» orientador: — o de estabelecermos o relacionamento constante entre a base económica e a estrutura política da sociedade organizada.

É óbvio que devemos começar pelo Estado — isto é, pelas formas do Estado. Só depois olharemos as formas do governo. Mas antes de mais, precisamente em conformidade com a posição relacional que existe entre a estrutura económica da base e a estrutura política da cúpula, afigura-se-me indispensável distinguir os tipos de Estado das formas do Estado.

Através dos seus tipos e formas — tanto dos que existiram noutros tempos como dos actuais — os Estados apresentam-nos um quadro extremamente diversificado. O que seja isto de tipos e de formas, veremos já do que se trata. Mas de imediato basta-nos evocar as diferenças — quer de formação económico-social, quer de organização e funcionamento do poder político — em todo um bem complexo panorama realizado ao longo dos séculos. Eis então os esquemas específicos dos impérios da Babilónia, da Assíria e do Egipto; das repúblicas gregas e do império romano; ainda das monarquias medievais; das repúblicas parlamentares modernas; e, no ponto final deste roteiro histórico, os das repúblicas socialistas do nosso tempo (União Soviética, democracias populares da Europa oriental, República Popular da China, além de outras mais).

Haverá, decerto, um dado convencionalismo no uso que fazemos do vocábulo tipo para significar esta ou aquela realidade, e do vocábulo forma para aquela e aquela outra. Seja porém como fôr, assentaremos no seguinte: — o tipo de Estado define-se pela classe social que o Estado protege e satisfaz economicamente. O tipo de Estado corresponde, enfim, a uma determinada formação económico-social. E daí resulta podermos afirmar que até hoje a História conheceu três grandes tipo de Estado baseados na exploração do trabalho alheio: — o tipo de Estado esclavagista, o tipo de Estado feudal e o tipo de Estado capitalista. Todos eles têm, com efeito, um traço comum, característico. Em todos existiu (e, naturalmente, no capitalismo continua a existir) o domínio dos exploradores, a força opressora de uma pequena parte da sociedade sobre os explorados, constituindo estes últimos a imensa maioria. E finalmente, distinto dos anteriores, eis o novo tipo de Estado — o Estado socialista — em que o poder pertence à classe trabalhadora.

Em resumo os tipos de Estado têm sido os seguintes, ao longo da História:

  1. Estado esclavagista
  2. Estado feudal
  3. Estado capitalista
  4. Estado socialista.

Em face do que ficou dito, podemos concluir que necessariamente o tipo de Estado varia conforme varia o carácter das relações de produção que lhe estão na base. O tipo de Estado expressa, consequentemente, o seu carácter de classe. O esclavagismo, por exemplo, teve no Egipto a forma oriental da monarquia despótica sob o governo dos Faraós; em Atenas, a forma da democracia; em Roma, primeiramente a de república democrática, mais tarde a de império. Pois apesar de semelhante variedade, a essência de todos estes Estados (o seu tipo) era a dominação da classe dos esclavagistas sobre os escravos. Em conclusão, isto será o qué havemos de reter: — que, dentro do quadro geral de cada tipo de Estado, podem ocorrer diferentes formas de Estado. Distintamente do que acontece com o tipo (que tem uma base económica de diferenciação), a forma fala-nos da ordenação jurídica dos órgãos do poder, do governo, do seu regime político. E conforme este critério nós poderemos descobrir uma gama diferenciada ou particularizada das formas que desde há milénios os pensadores têm ensaiado sistematizar.

Heródoto de Halicarnaso (490-421 a.c.) distinguia entre monarquia, oligarquia, democracia e tirania. Platão (328-347 a.c.) ateve-se antes a identificar a forma de Estado para ele a única perfeita — a república aristocrática — perante outras que considerava corrupções dessa forma ideal: — a timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania. Mas foi Aristóteles (384-322 a.c.) quem estabeleceu uma trilogia paralela de espécies perfeitas e degenerações. Efectivamente Aristóteles distinguiu:

  1. como espécies perfeitas:
  1. e como degenerações:

Está o leitor a cada passo familiarizado com a generalidade destes conceitos. Exceptuam-se talvez os dois últimos casos de degeneração das formas perfeitas. Daí a vantagem de ficar desde já anotado um ligeiríssimo reparo: — que ainda hoje falamos em «oligarquia» para designar o facto de o poder estar concentrado num restrito número de pessoas (a oligarquia quando é exercida por homens da finança e do dinheiro chama-se plutocracia); e aludimos a «oclocracia» para referir aquela democracia onde o poder do povo se encontra delegado em gente inferior ou incapaz, ou quando o poder passa a ser irreflectidamente usado pela multidão.

Montesquieu faria no século XVIII uma classificação que se aproxima essencialmente dos ensinamentos que encontramos nos filósofos da antiga Grécia. Na sua famosa obra «O Espírito das Leis», de 1748, ele distinguiu três formas:

  1. república (ou democrática ou oligárquica)
  2. monarquia
  3. despotismo

— mas ligou esta tripartição a critérios morais: — ao regime republicano corresponderia o predomínio da virtude, ao monárquico o da honra e ao despotismo o do medo.

Atendendo a um critério ainda muito comum nas últimas décadas, a distinção mais vulgar (aliás correspondente a formas vigentes na Europa, na Ásia e em África) é a que opõe duas formas de Estado:

  1. monarquia — quando a chefia do Estado é exercida por pessoa não eleita pelo povo.
  1. república — quando o poder é electivo.

A república é forma mais democrática que a monarquia, não obstante haver Estados em que se combinam os traços característicos de ambas as formas. Por exemplo, na monarquia constitucional o poder do rei ou do imperador está restringido pelos limites definidos na Constituição Política respectiva. Aliás, dessa maior tendência para a realização prática do democratismo provém o facto de as monarquias estarem a desaparecer, limitando-se hoje a alguns Estados da Europa (Inglaterra, Bélgica, Holanda, Suécia,...) a alguns da Ásia (Pérsia, Sião,...) e a um ou outro de África (Marrocos...). Neste sentido, e sem risco de erro, poderemos dizer que a tentativa de Franco para manter as instituições implantadas na sequência da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) através de uma restauração monárquica é caminho a que não correspondem as necessidades políticas da nossa época, e ao qual poderá vir a corresponder um drama irrecusável num futuro mais ou menos próximo.

Como se vê, a questão das formas do Estado tem a maior importância. Só analisando-a percebemos que o Estado de tipo burguês capitalista, qualquer que seja a sua forma, é sempre um instrumento da burguesia. É uma arma que a burguesia emprega para manter submetidas as massas trabalhadoras. Mesmo assim, porém, o Estado democrático-burguês foi um passo adiante em comparação com outras formas anteriores. Sob a dominação da burguesia, quanto mais democrática for a forma do Estado, mais propícias resultarão as condições para o progresso social, para os avanços da cultura e da ciência, para a luta das massas trabalhadoras contra o jugo da exploração capitalista.

Nos tempos das monarquias absolutas afirmava-se que a soberania era um atributo do rei. Como se sabe, «rei», «monarca» (mono—arca = chefe único) ou «soberano» eram palavras sinónimas. Ao contrário, nas repúblicas e nas monarquias constitucionais diz-se que a soberania pertence ao Povo ou, como afirmou o art.° 71.° da Constituição Política do regime fascista português, que a soberania «reside em a Nação» (sic). Falando nós de poderes do Estado, parece-nos oportuno esclarecer o que é, o que representa a soberania e, enfim, o que significa dizer-se que este ou aquele são Estados soberanos.

Se quisermos comparar os conceitos de «soberania» e de «poder político» ou «poder do Estado», depressa nos havemos de aperceber que o primeiro não é senão sentido susceptível de uma simples consideração jurídica. Por outras palavras, a soberania nada mais representa do que a independência jurídica de um Estado, proclamada esta em relação a todos os outros. Resulta bem característico o facto de o conceito de soberania ter surgido no no seio da teoria jurídica do direito político — enquanto, muito diferentemente, o conceito de poder político, de poder do Estado, pertence ao campo sociológico e económico.

É verdade que certos diplomas constitucionais confrontam, como duas espécies, a soberania interna e a soberania externa. Dispõe, com efeito, o art. 4.° da Constituição Política de 1933:

— «A Nação Portuguesa constitui um Estado independente, cuja soberania só reconhece como limites, na ordem interna, a moral e o direito; e,na internacional, os que derivam das convenções ou tratados livremente celebrados ou do direito consuetudinário livremente aceite, cumprindo-lhe cooperar com outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da Humanidade».

Mas a soberania interna não passa de ser o poder do Estado, o jogo do aparelho repressivo do Estado como domínio de uma classe sobre outra. E a soberania externa constitui a já referida independência jurídica do Estado na sociedade internacional. Trata-se assim, do ponto de vista político, de um conceito sem interesse. Estamos de pleno acordo com uma voz que, citada aqui neste livro, tem de ser ouvida como absolutamente insuspeita. Refiro-me a Jacques Maritain, o pensador católico, o qual, a págs. 44 de «L'Homme et l'Etat» escrevia há anos:

— «Na ordem política e em relação aos homens ou órgãos encarregados de guiar os povos para os seus destinos terrestres, não existe uso válido para o conceito de soberania»..

A preencher a última parte do presente capítulo — depois deste parêntesis relativo à ideia de «soberania», conceito não político, antes simplesmente jurídico — analisaremos a questão das formas de governo. Mas não faremos isso sem rematarmos com lima chave que nos parece a mais actual quanto às formas do Estado. Quero crer, efectivamente, que a distinção atrás apontada entre forma monárquica e forma republicana perde dia a dia a sua importância. Isto não só porque o fundamento desta diferenciação atende a factores de circunstância (por exemplo, o modo de nomeação ou escolha do chefe), como designadamente pelo facto de a estatística da História, na medida em que traduz uma lógica e bem compreensível tendência, nos convencer de que o desaparecimento total das monarquias continua a constituir um acontecimento necessário. A instituição das monarquias liga-se, de raiz, a uma visão metafísica da sociedade que só tem sobrevivido porque ainda não terminou a digestão de certos tradicionalismos manifestamente anacrónicos. Sendo porém, assim, pergunta-se qual a distinção de formas de Estado que propomos de acordo com as formações económico-sociais do nosso tempo e da marcha para o futuro?

Não vemos senão, como real e verdadeira, esta dicotomia de formas de Estado:

  1. a democracia burguesa — que corresponde, no plano político, ao tipo de Estado capitalista;
  2. a democracia popular — que corresponde, igualmente no plano político, ao tipo de Estado socialista.

Posto isto, torna-se-nos agora fácil a análise da questão das formas de governo. Mas sem esquecermos esta asserção fundamental: — que tais formas estruturais, como regime político concretamente estabelecido pela classe dominante, são inseparáveis das formas de Estado.

A forma de Estado «democracia burguesa» tem como fundamental a chamada teoria da divisão de poderes, primeiramente formulada por Locke, mais tarde desenvolvida e vulgarizada por Montesquieu através da sua já referida obra «O Espírito das Leis». Segundo ela, a actividade governativa distribui-se em geral por três poderes distintos — o poder legislativo, que pertence ao Parlamento, o poder executivo, que pertence ao chefe do Estado e ao conselho de Ministros; e o poder judicial, que pertence aos Tribunais.

Porém, tais poderes não são isolados. Têm entre si várias formas de convivência e as mais genericamente praticadas são duas : — a forma presidencial e a forma parlamentar. Na primeira, que é a do chamado presidencialismo, o governo é assumido propriamente por uma só pessoa, o presidente da República, que congloba simultaneamente a chefia do Estado e a chefia do governo, representando os seus ministros a mera função de auxiliares ou executores das decisões presidenciais (caso, por exemplo, dos Estados Unidos da América do Norte). Na segunda, conhecida por parlamentarismo, o «gabinete», formado pelo Primeiro Ministro e pelo conselho de Ministros, não depende estritamente do chefe do Estado pois governa ou cai consoante tem ou não o apoio da maioria parlamentar.

Este esquema prima e peca, simultaneamente, pelo simplismo com que acaba de ser desenhado. Assim se procede, no entanto, para ponto de partida de uma razoável compreensão. E, em corolário do que ficou dito, acrescentaria até que na terminologia inerente à forma de Estado «democracia burguesa» o conceito de ditadura corresponde àquela forma de governo em que o poder político está concentrado autoritariamente nas mãos de uma só pessoa (ditadura monocrática) ou de um grupo de pessoas (ditadura colegial), traduzindo-se tal regime por limitações de liberdades, de direitos cívicos, por desrespeito para com o princípio da divisão de poderes, enfim, por uma verificação mais palpável de violências, arbitrariedades e violações das leis.

Se remontarmos, entretanto, à origem histórica da teoria da divisão de poderes veremos que, na realidade, ela serviu de fundamento ideológico para a limitação do absolutismo por meio da concentração do poder legislativo nas instituições representativas burguesas. No Estado burguês, com efeito, a divisão de poderes o que nos apresenta é um carácter puramente formal.

E porquê? Porque, como já analisámos nas páginas deste livro, a democracia burguesa não passa de ser uma organização política instituída para o domínio da respectiva classe relativamente às classes trabalhadoras. A democracia burguesa, como dissémos e mostrámos no decurso desta «Introdução à Política», constitui a ditadura da burguesia exploradora do trabalho alheio. Eis, portanto, um conceito científico de ditadura que nada tem a ver com o conceito puramente burguês enunciado no parágrafo anterior deste capítulo.

Por fim, e em correspondência com a forma de Estado «democracia popular», temos a sua forma específica de governo — a ditadura do proletariado. Esta consiste no poder dos trabalhadores, no domínio da classe operária e tem como fim a construção do socialismo.

«A ditadura do proletariado — escreveu Lenine («Obras», volume XXIX, págs. 387) — se traduzirmos este termo latino, científico, histórico-filosófico, em linguagem mais simples, significa isto: — só uma determinada classe, a dos operários urbanos e, em geral, os operários fabris, industriais, está em condições de dirigir. o conjunto de trabalhadores e explorados na luta para derrubar o jugo do capital e, no momento em que este é derrubado, na luta para manter e consolidar a vitória com o objectivo de criar um regime social novo, socialista, e ainda na luta para a completa supressão das classes».

É evidente que o poder da classe operária, como forma de governo concretamente determinada pelas condições históricas de tal luta, adquire formas específicas, diversas em cada país ou época.

«Todas as nações chegarão ao socialismo — escreveu também Lenine («Obras», volume XXIII, págs. 58) — isso é inevitável». Mas não exactamente da mesma maneira, pois cada uma dará traços próprios a esta ou àquela forma de democracia, a uma ou outra variedade de ditadura do proletariado, num ou noutro ritmo das transformações socialistas dentro dos distintos sectores da vida social».

Assente-se em que as diferentes formas de ditadura do proletariado (só os cérebros monolíticos pensam que ela é modelo rígido para todos os povos e épocas) se estruturam em dependência da correlação de forças de classe na revolução, e da violência do seu choque. Na hipótese de as classes dominantes resistirem pela força, ver-se-á a classe operária obrigada a destruir por completo todas as instituições políticas em que se apoiava a burguesia. Se ao contrário, porém, no curso da revolução se consegue uma superioridade tal sobre a reacção, de modo que o poder passa para a çlasse operária por via pacífica, então resultará possível aproveitar alguns dos velhos órgãos políticos, por exemplo o Parlamento, ainda que transformado de conformidade com os interesses da construção socialista.

Nas famosas «Teses de Abril» — expostas alguns meses antes da insurreição de Outubro de 1917 — Lenine admitiu, no rigor destes princípios, a possibilidade de que, segundo as condições peculiares que então se verificavam na Rússia czarista, o poder passasse por meios pacíficos para as mãos do proletariado. Tal afigurara-se-lhe possível pois o governo provisório não tomara ainda o caminho da violência contra a classe operária. Como, aliás, observou Adolfo Sánchez Vázquez em «Filosofia da Praxis», edição brasileira da editora «Paz e Terra», 1968, págs. 399-400, Lenine previra

«uma possibilidade de transformação radical pacífica no período anterior à Revolução de Outubro, mas ele mesmo afastou essa possibilidade quando os acontecimentos tomaram novo curso».

continua>>>


Inclusão 15/12/2014