Social-democracia e parlamentarismo

Rosa Luxemburgo

5 de dezembro de 1904


Primeira Edição: Sächsische Arbeiter-Zeitung (Dresden) I, nº 282 de 5/12/1904 - Publicado em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke 1/2, Berlim, Dietz, 1979, p.447-451.

Fonte: Fundação Rosa Luxemburgo - https://frl.rosalux.org.br/social-democracia-e-parlamentarismo1/

Tradução: Kristina Michahelles

HTML: Fernando Araújo.


Crítica do parlamentarismo burguês que, para a burguesia, perdeu a razão de existir, mas que deve ser preservado pelos trabalhadores, como arma na luta de classes.

O Reichstag se reuniu para mais uma sessão com efeitos colaterais muito significativos. De um lado, novos ataques insolentes da imprensa reacionária do calibre do Post contra o direito universal ao voto, do outro, claros sinais de uma “fadiga parlamentar” no âmbito dos próprios círculos burgueses, acompanhados do adiamento cada vez mais evidente da convocação do Reichstag por parte do governo até bem perto do recesso de Natal – tudo isso resulta em um quadro agudo de rápida decadência do mais importante parlamento alemão e de sua relevância política.

Está claro, agora, que o Reichstag se reúne principalmente para aprovar o orçamento, um novo plano para o exército, novos créditos para a guerra colonial africana,(1) tendo como pano de fundo novas e inevitáveis demandas da Marinha, e para aceitar tratados comerciais – tudo isso sendo já fatos consumados, resultantes da ação extraparlamentar de fatores políticos, diante dos quais o Reichstag, tal qual um autômato que só diz “sim”, é colocado com o intuito de arranjar verbas para essa política extraparlamentar.

O quanto a burguesia participa, com plena consciência e total submissão, desse papel mesquinho de seu parlamento, revela a afirmação de um jornal berlinense liberal de esquerda. Diante das novas e exorbitantes exigências militares de aumentar a força militar em mais de 10 mil homens, implicando mais 74 milhões no quinquênio seguinte, e com a ameaça habitual de reintroduzir o serviço militar de três anos colocada como uma pistola no peito do Reichstag, o jornal, suspirando, vaticina: considerando que os representantes do povo não haverão de desejar isso (o serviço militar de três anos), o plano para o exército “poderá ser visto como já aprovado”. E essa heroica profecia do liberalismo estará naturalmente tão certa quanto cada uma das contas que a ignóbil perda de autonomia da maioria burguesa no Reichstag toma por ponto de partida.

Temos diante de nós, nos destinos do Reichstag alemão, um importante pedaço da história do parlamentarismo burguês de uma forma geral, e é do interesse da classe trabalhadora compreender em sua totalidade as suas tendências e as suas relações internas.

Trata-se de uma ilusão, não apenas explicável em termos históricos, como também necessária, da burguesia em luta, ainda mais de uma burguesia que chegou ao poder: a ilusão de que o seu parlamento seja o eixo central da vida social, a força motriz da história universal. Essa é uma concepção, cuja florescência natural é o famoso “cretinismo parlamentar”, o qual, face à peroração autocomplacente de algumas centenas de parlamentares em uma câmara legislativa burguesa, não enxerga as gigantescas forças históricas em ação do lado de fora, no âmbito do desenvolvimento social, totalmente despreocupado com a fábrica de leis parlamentar. Mas é precisamente esse jogo das forças elementares cegas do desenvolvimento social do qual as classes burguesas participam, sem saber ou querer, que mina incessantemente não apenas o significado imaginado, mas qualquer significado do parlamentarismo burguês.

Pois, como provam os destinos do Reichstag alemão com mais vigor do que em qualquer outro país, é o duplo efeito do desenvolvimento internacional e da política interna que provoca a decadência dos parlamentos burgueses. De um lado, a política mundial que avançou enormemente nos últimos dez anos e que arrasta toda a vida econômica e social dos países capitalistas em um redemoinho de efeitos, conflitos, transformações, nas quais os parlamentos burgueses são jogados de um lado para o outro, impotentes, como um pedaço de madeira num mar revolto.

Por outro lado, essa submissão e paralisia do parlamento burguês diante do ataque aniquilador da maré política mundial, diante do militarismo, do marinismo, da política colonial, é preparada e amadurecida pelo desenvolvimento interno das classes e do partido da sociedade capitalista.

Longe de ser um produto absoluto do desenvolvimento democrático, do progresso da humanidade ou de outras coisas bonitas do gênero, o parlamentarismo é a determinada forma histórica da dominação de classe da burguesia e – o outro lado dessa dominação – da sua luta com o feudalismo. O parlamentarismo burguês só se mantém vivo enquanto dura o conflito entre burguesia e feudalismo. Uma vez extinto o fogo vivificante dessa luta, o parlamentarismo perde sua função histórica do ponto de vista burguês. Há um quarto de século, no entanto, o traço geral do desenvolvimento político nos países capitalistas tem sido o compromisso entre burguesia e feudalismo. A falta de nitidez na diferença entre whigs e tories na Inglaterra, entre republicanos e nobreza clerical-monárquica na França são produtos e expressões desse mesmo compromisso. Na Alemanha, o compromisso vem desde o berço da emancipação da classe burguesa, sufocando já o seu ponto de partida – a Revolução de março [de 1848] – e conferindo ao parlamentarismo alemão antecipadamente a figura aleijada de uma aberração constantemente oscilando entre vida e morte. O conflito da constituição prussiana(2) foi o último lampejo da luta de classes da burguesia alemã contra a monarquia feudal. Desde então, a base do parlamentarismo, o acordo político da representação popular com a força do governo, não é regulada como na Inglaterra, na Itália, nos Estados Unidos, pelo fato de o governo sair da respectiva maioria parlamentar, e sim por um modo inverso, correspondente à miséria especial prussiano-alemã: ou seja, fazendo com que cada partido burguês que chegar ao poder no Reichstag se torne partido do governo, leia-se, instrumento da reação feudal. Basta ver os destinos dos nacional-liberais e do centro.

  O compromisso feudal-burguês que, dessa maneira, se tornou tão perfeito, transformando o parlamentarismo mesmo do ponto de vista histórico a um rudimento, a um órgão desprovido de sua função, também produziu todas as características atuais da decadência parlamentar com uma lógica cristalina. Enquanto durar o conflito de classes entre burguesia e feudalismo, a luta aberta entre os partidos no parlamento é a sua expressão natural. Em contrapartida, em um compromisso que se tornou perfeito, as lutas partidárias burguesas no parlamento são inúteis. Os conflitos de interesse entre os diferentes grupos da reação dominante burguês-feudal não mais se dão por meio de provas de força no parlamento, e sim na forma de conchavos nos bastidores do parlamento. O que sobrou em lutas partidárias burguesas abertas já não são mais conflitos de classe ou de partidos, mas, no máximo, em países atrasados como a Áustria, brigas de nacionalidades ou de grupinhos, cuja forma parlamentar adequada é o enfrentamento físico, o escândalo.

Com a extinção das lutas partidárias burguesas desaparecem também os seus órgãos naturais: as personalidades parlamentares marcantes, os grandes oradores e os grandes discursos. A batalha de discursos enquanto ferramenta parlamentar só terá sentido para um partido em luta que busque o apoio popular. Discursar no parlamento, por natureza, sempre é discursar “pela janela”. Do ponto de vista do conchavo de bastidores, como forma normal de resolver os conflitos de interesse no âmbito do compromisso burguês-feudal, as batalhas verbais são inúteis, até mesmo insensatas. Por isso, a má vontade dos partidos burgueses a respeito da “peroração” no Reichstag, e por isso a sensação paralisante da própria inutilidade, que pesa como uma capa de chumbo sobre as campanhas discursivas dos partidos burgueses, transformando o Reichstag em uma casa do mais mortífero vazio intelectual.

E, finalmente, o compromisso burguês-feudal colocou em questão o fundamento do parlamentarismo, o próprio sufrágio universal. Até isso só tinha um sentido histórico do ponto de vista burguês como arma na luta entre as duas grandes frações das classes proprietárias. Era necessário para a burguesia, a fim de conduzir “o povo” ao campo de batalha contra o feudalismo. Era necessário para o feudalismo para mobilizar o campo contra a cidade industrial. Depois que o próprio conflito virou um compromisso e os dois polos, cidade e campo, em vez de tropas liberais e agrárias, produziram uma terceira coisa, a social-democracia, o sufrágio universal, do ponto de vista da dominação dos interesses burgueses-feudais, se tornou sem sentido.

Dessa forma, o parlamentarismo burguês percorreu o ciclo de seu desenvolvimento histórico, chegando à autonegação. Mas simultaneamente como causa e consequência desse destino da burguesia a social-democracia se instalou no país e no parlamento. Se o parlamentarismo perdeu todo conteúdo para a sociedade capitalista, para a classe trabalhadora em ascensão ele se tornou um dos meios mais poderosos e inevitáveis da luta de classes. Salvar o parlamentarismo burguês da burguesia e contra a burguesia é um dos deveres políticos mais urgentes da social-democracia.

O dever assim formulado parece uma contradição em si. Mas, como diz Hegel, a contradição conduz ao desenvolvimento. A partir do dever contraditório da social-democracia perante o parlamentarismo burguês, nasce a obrigação de defender e apoiar essa ruína decadente da glória democrático-burguesa, de maneira tal que, ao mesmo tempo, acelere o colapso final de toda a ordem burguesa e a tomada do poder pelo proletariado socialista.


Notas de rodapé:

(1) No início de janeiro de 1904, os hereros no Sudoeste Africano se levantaram contra a exploração e repressão por parte das autoridades coloniais alemãs. Em outubro de 1904, os hotentotes aderiram ao levante. Só no início de 1907 as tropas coloniais alemãs conseguiram sufocar o levante brutalmente com sua supremacia militar. (retornar ao texto)

(2) Em 1862, Otto von Bismarck foi nomeado primeiro-ministro da Prússia com a missão de conseguir fazer aprovar na Câmara prussiana a reforma do exército, contra a resistência da burguesia, que se recusara a financiá-la. Ao tirar o parlamento do jogo, Bismarck desencadeou uma crise política na Prússia que criou condições favoráveis a uma unificação revolucionário-democrática da Alemanha. Por medo do proletariado, a burguesia não aproveitou essa oportunidade. (retornar ao texto)

Inclusão: 02/12/2021