A Questão Nacional e a Autonomia

Rosa Luxemburgo

1909


Fonte: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Do livro: Ishay, Micheline R. (org.). Direitos Humanos: Uma Antologia – SP Edusp, 2006 p. 477 a 488.
Tradução: A tradução deste texto foi extraída da edição de Rosa Luxemburgo, A Questão Nacional e a Autonomia, trad. de Antonio Roberto Bertelli, Belo Horizonte, Oficina de Livros,1988.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

I. O Direito dos Povos à Autodeterminação

Entre outras questões, a revolução pôs na ordem do dia no Estado russo a questão nacional. Até agora, esta questão só chegou a ter uma importância maior dentro do império austro-húngaro, se se levarem em conta as nações européias. Hoje, tornou-se atual também na Rússia, já que o desenvolvimento dos acontecimentos revolucionários coloca todas as classes e todos os partidos políticos diante da necessidade de solucionar a questão nacional do ponto de vista da política prática e de seus objetivos diretos. Todos os partidos - tanto os já criados, como os que estão se formando na nação russa - sejam radicais, liberais ou reacionários, se vêem obrigados a incluir em seus programas esta ou aquela posição a respeito do problema nacional, problema estreitamente vinculado a todo o sistema da política interna e externa do Estado. Para o partido operário, este problema ultrapassa o mero âmbito do programa para entrar no da organização das classes. A respeito da questão nacional como de qualquer outra, a posição do partido operário deve diferenciar-se claramente, por seu próprio método e pela concepção básica do problema, das posições adotadas pelos partidos burgueses, inclusive os mais radicais, e também das posições dos partidos pseudo-socialistas da pequena burguesia. A social-democracia, que baseia toda sua política no método científico do materialismo histórico e na luta de classes, não pode fazer uma exceção da questão nacional. Por outra parte, esta concepção básica fundada no ponto de vista do socialismo científico é a única que pode assegurar à política social-democrata uma solução e um tratamento fundamentalmente uniformes, ainda que levando em conta toda a variedade de formas da questão nacional, nascida da diversidade social, histórica e étnica do império russo.

No programa do Partido Operário Social-Democrata russo, esta fórmula, que abarca a solução geral da questão nacional em todas as suas manifestações particulares, está contida no nono ponto, que declara que o partido luta por uma república democrática cuja constituição asseguraria, entre outras coisas,

"a todas as nacionalidades que fazem parte do Estado o direito à autodeterminação”.

Para dizer a verdade, o programa do partido russo contém ainda outros dois postulados extremamente importantes e que se referem ao mesmo problema. Trata-se do sétimo ponto, que exige a supressão dos Estados e a completa igualdade de direitos para todos os cidadãos sem diferença de sexo, religião, raça ou nacionalidade, e do oitavo ponto, que proclama o postulado de que a população da nação deve ter o direito de freqüentar escolas gratuitas e autônomas que ensinem o idioma nacional, a utilizar sua língua nas assembléias, como também em todas as repartições estatais e públicas, conjuntamente com o idioma do Estado. Finalmente, em estreito contato com a questão nacional, está o terceiro ponto do programa, que formula a exigência de uma ampla autonomia local e da autonomia provincial para aquelas localidades onde existam condições particulares de vida e onde haja uma diversificação na composição da população. Contudo, é evidente que os autores do programa consideraram insuficientes para solucionar a questão das nacionalidades a igualdade de direitos, a autonomia local e provincial e o direito ao idioma próprio, já que julgaram indispensável o acréscimo de um parágrafo especial pelo qual cada nacionalidade devia ter o "direito à autodeterminação".

O que caracteriza principalmente esta formulação é a circunstância de que não contém nada relacionado especificamente com o socialismo ou com a política operária. "O direito das nações à autodeterminação" parece à primeira vista uma paráfrase da velha palavra de ordem do nacionalismo burguês de todos os países em todos os tempos: "o direito das nações à liberdade e à independência". [...]

II. O caráter demasiadamente geral do nono ponto do programa social-democrata russo já nos indica que soluções desta natureza são estranhas à doutrina do socialismo marxista. "O direito das nações" — que abarque todos os países e todos os tempos com idêntica justiça — não é outra coisa senão um clichê, uma frase metafísica, como seus análogos "direitos de homem" e "direitos do cidadão”. O materialismo dialético - fundamento do socialismo científico - eliminou definitivamente de seu vocabulário estes axiomas "eternos".

Por acaso a dialética histórica não demonstrou que não existem verdades "eternas" e por conseqüência tampouco "direitos eternos"? Ou, citando Engels:

"O que aqui e agora é bom, ali e em outro tempo é mau, e vice-versa",

ou seja, o que achamos justo e razoável em certas circunstâncias pode se tornar injusto e absurdo em outras diferentes. Além disso, o materialismo dialético demonstrou claramente que os conteúdos reais dessas verdades, fórmulas e direitos "eternos" são impostos em cada oportunidade pelas relações materiais do meio ambiente social correspondente e de sua época histórica.

Partindo de tal base, o socialismo científico revisou todo o tesouro de clichês democráticos e de metafísica ideológica herdado da burguesia. "Democracia", "liberdade do cidadão", "igualdade" e outras belas frases do mesmo estilo há muito deixaram de constituir para a social-democracia atual verdades ou direitos supremos que pairam acima dos homens e dos tempos. São investigados e tratados pelo marxismo apenas como expressões de certas e definidas circunstâncias históricas, como categorias em contínua mutação de seus conteúdos materiais, e portanto dos valores políticos, sendo esta eterna mutação a única verdade "eterna".

Quando Napoleão ou outro déspota parecido usa um plebiscito — forma extrema da democracia política — e o faz para fins próprios do cesarismo, aproveitando o obscurantismo político e a dependência econômica das massas populares, não vacilamos em atacar categoricamente tal “democracia” sem que nos perturbe o mínimo que seja a majestade todo-poderosa do povo, que constitui algo como uma divindade intocável para os metafísicos da democracia burguesa.

Quando o alemão Tessendorff, o gendarme do czar, ou o democrata nacionalista "realmente polonês" defendem "a liberdade de trabalho" dos fura greves protegendo-os contra a pressão moral e material dos operários organizados, não vacilamos um instante em manifestar nossa solidariedade para com estes últimos, reconhecendo que lhes assiste o mais completo direito — tanto moral como histórico — de reprimir os incautos e compelir seus competidores à solidariedade, ainda que do ponto de vista formal do liberalismo "os dispostos a trabalhar" tenham de sua parte o indubitável direito de "todo indivíduo livre" de procederem de acordo com suas razões ou falta de razões.

Finalmente, quando os liberais da escola de Manchester pedem que o assalariado seja abandonado à sua própria sorte em sua luta contra o capital, escudando-se na "liberdade dos cidadãos", não vacilaremos em desmascarar este clichê metafísico que cobre a mais evidente desigualdade econômica, e diretamente exigimos o amparo legal e estatal para a classe assalariada, cometendo uma flagrante violação da formal "igualdade diante da lei".

Portanto, a questão das nacionalidades não pode constituir uma exceção entre todos os problemas políticos, sociais e morais, considerados sob a mesma luz pelo socialismo moderno, e não é possível dar-lhe solução com uma frase feita, incerta e generalizadora, ainda que seja uma palavra de ordem tão bela e altissonante como "o direito de todas as nações à autodeterminação". Porque tal axioma, ou não expressa nem significa absolutamente nada e é um clichê vazio que não leva a nada, ou implica o dever incondicional dos socialistas de apoiarem todas as tendências nacionais, e neste caso é francamente equivocado.

É dizer que, partindo do princípio fundamental do materialismo histórico, a posição dos socialistas diante das questões nacionais depende principalmente das circunstâncias concretas de cada caso, que varia consideravelmente de país para país e, além disso, com o correr do tempo modifica-se notavelmente no mesmo lugar geográfico. [...]

Um exemplo palmar de como as mudanças nas condições históricas influem sobre a posição valorativa dos socialistas diante da questão das nacionalidades é o da chamada questão oriental. Na época da guerra da Criméia, em 1855, as simpatias de toda a Europa democrática e dos socialistas estavam com a Turquia e contra as tentativas independentistas dos eslavos meridionais. O "direito" de todos os povos não impediu Marx, Engels ou Liebknecht de atacarem duramente os eslavos balcânicos e defenderem categoricamente a causa da totalidade da Turquia. É que sua apreciação daqueles movimentos nacionais das tribos eslavas inseridas no seio da Turquia não partia das "eternas" e sentimentais palavras de ordem do liberalismo, mas do ponto de vista dessas relações materiais que constituíam, segundo suas opiniões naquele tempo, o conteúdo dos mencionados levantes nacionais. [...]

III. Por outra parte, ao adotar tal posição, Marx e Engels na realidade não pagavam nenhum tributo ao egoísmo de partido ou de classe, tampouco sacrificavam nações inteiras às necessidades e possibilidades das democracias ocidentais européias, como sugerem aparentemente os parágrafos anteriores.

Para dizer a verdade, quando os socialistas proclamam uma anistia geral e universal para todos os povos subjugados, isto soa de maneira mais generosa e mais agradável para a fértil imaginação do jovem “intelectual”.

Mas tal tendência a impingir o direito de liberdade, igualdade e outros benefícios do mesmo estilo a todos os povos, países, grupos, nações, enfim, a qualquer ser humano, por meio de um único traço de caneta, caracteriza precisamente a era juvenil do movimento socialista e de modo particular a fanfarronice fraseológica do anarquismo.

O socialismo da moderna classe operária, isto é, o socialismo científico, evita as soluções generosas e altissonantes a respeito dos problemas sociais e nacionais, e se dedica ao estudo das condições reais dessas questões. [...]

Na realidade, mesmo em nossa condição de socialistas, se reconhecêssemos o direito imediato de todas as nações à independência, nem por isso seus destinos sofreriam qualquer mudança. O "direito" de um povo à liberdade, como o "direito" do operário à independência econômica, vale tanto nas atuais condições sociais como aquele famoso "direito" de todo ser humano de comer em prato de ouro, do qual Nicolai Chernichevski já escrevera que estava disposto a vendê-la a qualquer momento por um rublo. Na década de 1840, a proclamação do "direito ao trabalho" era o postulado ternamente amado dos socialistas utópicos franceses e desempenhava o papel de solução imediata e radical para todas as questões sociais. Depois de uma brevíssima tentativa de colocá-la em prática durante a revolução de 1848, contudo, este "direito" acabou fracassando, o que era inevitável inclusive no caso de se terem organizado melhor as famosas "fábricas nacionais". A análise das relações reais da economia atual, tal como foi exposta por Marx em O Capital, deve levar à convicção de que, mesmo no caso de que os atuais governos proclamem um "direito ao trabalho universal", tal direito não seria mais que uma frase feita, e nem um só dos integrantes do exército dos desempregados que hoje estão no olho da rua poderia fazer um pouco de sopa para seus filhos famintos com este direito.

Na atualidade, a social-democracia compreendeu que o "direito ao trabalho" deixará de ser uma frase feita no momento em que for suprimido o regime capitalista, no qual a falta de trabalho crônica para uma certa parcela do proletariado constitui uma condição indispensável para a produção. Portanto, a social-democracia, sem proclamar nem exigir defesa desse "direito" utópico, tende muito mais, no terreno prático, à supressão do próprio regime, por meio da luta de classes, apontando somente como remédios provisórios para o desemprego — as organizações sindicais, o seguro-desemprego, etc.

Do mesmo modo, a esperança de solucionar todas as questões nacionais sobre o terreno capitalista por meio da devolução ou da garantia da possibilidade da "autodeterminação" de todas as nações, povos e tribos é uma perfeita utopia. E dizemos utopia não do ponto de vista da formação interna das forças políticas e classistas, o que condena antecipadamente muitas aspirações do programa político da social-democracia a serem efetivamente irrealizáveis. Por exemplo, inumeráveis porta-vozes das fileiras do movimento operário internacional manifestam com toda convicção que o postulado da aplicação universal da jornada de trabalho de oito horas por meios legais não tem nenhuma possibilidade de realização numa sociedade burguesa diante da reação social crescente das classes dominantes, do impasse geral das reformas sociais, da criação de poderosas associações empresariais, etc. Apesar disso, ninguém ainda decidiu dizer que o postulado da jornada de trabalho de oito horas é uma utopia, já que corresponde plenamente ao desenvolvimento progressivo da própria sociedade burguesa. Ao contrário, a devolução a todos os grupos étnicos ou a outros grupos "nacionais", determinados desta ou daquela maneira, da possibilidade efetiva da "autodeterminação" constitui uma utopia em relação exatamente ao curso do desenvolvimento histórico das sociedades modernas. Sem retroceder com o exemplo àqueles tempos antigos, quando, nos albores da criação das nações modernas, os povos eram objeto de contínuas mudanças territoriais de cá para lá e se juntavam, se aliavam, se separavam entre si, permanece como realidade inegável que todas as nações mais antigas sem exceção constituem, como resultado daquela história longa e cheia de mudanças étnicas, criações mistas do ponto de vista nacional. A existência de inumeráveis resíduos étnicos, que testemunham hoje em dia o aniquilamento de massas inteiras de população, é documento histórico dessas revoluções. [...] O desenvolvimento histórico e em particular o moderno desenvolvimento capitalista não tende a devolver uma existência autônoma para cada nacionalidade. [...]

O desenvolvimento imperialista, característica relevante da era contemporânea, que adquire a cada dia maior preponderância graças ao progresso do capitalismo, condena a priori um sem-número de pequenas e médias nações à impotência política. Sem contar as grandes potências, porta-vozes do desenvolvimento capitalista, que possuem os meios materiais e espirituais imprescindíveis para sustentarem a independência econômica e política, a "autodeterminação", isto é, a livre existência de países pequenos e médios, é e será uma grande ilusão. A devolução da independência a todos ou à maioria dos países hoje subjugados só seria possível se a liberdade das nações pequenas tivesse alguma oportunidade de sobrevivência e de futuro desenvolvimento dentro da etapa capitalista. Entretanto, as condições econômicas e políticas dos grandes super-Estados são tão equilibradas dentro da luta capitalista, que inclusive os pequenos Estados politicamente soberanos e formalmente independentes que existem na Europa desempenham na vida política européia o papel de meros espectadores e, mais freqüentemente, de bodes expiatórios. Pode-se, seriamente, falar por acaso da autodeterminação dos montenegrinos, búlgaros, romenos, sérvios, gregos, e, em parte, inclusive dos suíços, formalmente independentes, cuja própria independência é produto da luta política e do jogo diplomático do "concerto europeu"? A idéia de garantir a autodeterminação para todas as "nações" - tomada deste ponto de vista – significa em perspectiva pelo menos um retrocesso para o desenvolvimento capitalista prematuro dos pequenos Estados medievais, muito mais para além dos séculos XV e XVI.

A segunda característica básica do desenvolvimento capitalista, que também converte a idéia de que falamos em utopia, é o imperialismo capitalista. O exemplo da Inglaterra e da Holanda nos mostra que em certas condições uma nação capitalista pode, omitindo a fase transitória do "Estado nacional", criar diretamente um Estado colonial na época da manufatura. Seguindo o exemplo da Inglaterra e da Holanda, países que já nos albores do século XVII começaram a conquistar colônias, passaram a fazer o mesmo, outras nações capitalistas precoces nos séculos XVIII e XIX. Como conseqüência desta corrente temos os contínuos desmoronamentos da independência de novos países, povos e de continentes inteiros.

O próprio desenvolvimento do comércio internacional na era capitalista provoca a inevitável, ainda que às vezes muito lenta, rotina de todas as sociedades mais primitivas, aniquila sua maneira histórica de "autodeterminação", torna-as dependentes da roda trituradora do desenvolvimento capitalista e da política internacional. [...]

O regresso universal de todos os povos existentes a suas respectivas unidades nacionais e a sua pulverização em Estados e pequenos Estados nacionais constitui uma empresa totalmente desesperadora e, do ponto de vista histórico, reacionária.

IV. [...] Numa sociedade de classes, o povo como um todo social e político homogêneo não existe, enquanto o que existe em cada nação são as classes sociais com seus interesses e "direitos" antagônicos. Não existe literalmente urna só esfera do social, desde as mais grosseiras relações materiais até a mais sutil das relações morais, em que as classes proprietárias e o proletariado consciente ocupem a mesma posição, ou figurem como uma totalidade "nacional" não diferenciada. No campo das relações econômicas, as classes burguesas representam constantemente os interesses da exploração, enquanto o proletariado representa constantemente os interesses do trabalho. Na esfera das relações legais,a pedra fundamental da sociedade burguesa é a propriedade privada, enquanto o interesse do proletariado exige a emancipação do homem do jugo da propriedade. No domínio jurídico da sociedade burguesa, a justiça dos satisfeitos e dominantes representa a "justiça" de classe; o proletariado, entretanto, defende o princípio das influências sociais na unidade e na clemência. Nas relações internacionais, a burguesia representa a política da guerra e da conquista e, na fase atual, o sistema de direitos alfandegários e da guerra econômica, enquanto o proletariado representa a política do livre comércio e da paz universal. Na esfera das ciências sociais e da filosofia, tanto as doutrinas burguesas como a que representa a posição do proletariado ocupam posições francamente contrárias; as classes proprietárias e sua idéia sobre a vida e o mundo são representadas pelo idealismo, pela metafísica, pelo misticismo, pelo ecletismo, enquanto o proletariado contemporâneo tem sua escola própria: o materialismo dialético. Inclusive no domínio das relações, digamos, pan-humanas, isto é, no que se refere à ética, às correntes artísticas ou à educação, os interesses, pontos de vista e ideais da burguesia, por um lado, e os do proletariado consciente, por outro, representam dois campos inimigos separados por um abismo. E naquelas esferas onde as aspirações e interesses formais da burguesia e do proletariado são em sua totalidade ou em sua maior parte aparentemente idênticos ou comuns — como, por exemplo, no campo das aspirações democráticas —, aí, sob a identidade de palavras de ordem e formas, esconde-se uma total dissonância quanto ao conteúdo e à política real.

Portanto, não podemos falar de uma vontade comum e homogênea, de uma autodeterminação do "povo", numa sociedade assim constituída. E se encontramos na história das sociedades modernas certos movimentos "nacionais" e certas lutas pelos "interesses nacionais", trata-se dos eternos movimentos classistas do estrato burguês predominante, que num dado momento podem até certo ponto representar também os interesses de outros estratos sociais, se sob a forma de "interesses nacionais" definem-se certas pautas progressistas do desenvolvimento histórico e se a classe trabalhadora ainda não tenha se diferenciado como classe independente e politicamente consciente da massa da população liderada pela burguesia. [...]

A questão das nacionalidades, do mesmo modo que todas as outras questões sociais e políticas, é para a social-democracia basicamente uma questão dos interesses de classe. [...]

A sociedade conseguirá a real possibilidade de livre autodeterminação nacional quando estiver capacitada para decidir conscientemente sobre sua existência econômica e sobre suas condições produtivas. Os "povos" decidirão sobre sua existência histórica quando a sociedade humana dominar seus processos sociais.

Portanto, é basicamente errada a analogia que às vezes procuram demonstrar os partidários "do direito dos povos à autodeterminação" entre este "direito" e todos os demais postulados democráticos, como a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de associação e de reunião. Se o reconhecimento do direito à livre associação - proclamam - é um dever em nossa qualidade de partido das liberdades políticas, o que não nos impede de combater as associações dos partidos burgueses inimigos, assim o reconhecimento do "direito dos povos" não nos obriga a dar nosso apoio a cada caso particular de "autodeterminação" nacional, sem deixar de ser por isso, contudo, um dever democrático. A citada teoria parece ignorar totalmente que esses "direitos", aparentemente análogos, encontram-se em diferentes planos históricos. A liberdade de associação, de expressão, de imprensa, etc. constituem formas de existência da sociedade burguesa madura legalmente formuladas, enquanto que "o direito dos povos à autodeterminação" constitui tão-somente a fórmula verbal de uma idéia metafísica, totalmente irrealizável no seio da sociedade burguesa e só possível no terreno do regime socialista. [...]

V. Tomemos um exemplo concreto como ensaio de aplicação do princípio da "autodeterminação" de um “povo”.

Referindo-se à Polônia no atual período revolucionário, um dos social-democratas russos integrantes da redação do desaparecido Iskra desenvolveu no ano de 1906 a idéia da necessidade da assembléia constituinte de Varsóvia da seguinte maneira:

Se partimos da base de que a organização política da Rússia constitui o momento decisivo na questão da opressão nacional existente, devemos chegar à conclusão de que o proletariado das nacionalidades subjugadas e dos países anexados deve tomar parte mais ativa na organização da assembléia pan-russa.

Esta assembléia deverá, na minha opinião, cumprir uma missão revolucionária, romper as cadeias da opressão com as quais os tzares ligaram entre si a nacionalidade dominante e as subjugadas.

E não existe nenhum outro método satisfatório, isto é, revolucionário, para solucionar tal questão que não seja o de dar vida aos direitos das nacionalidades à autodeterminação(1). A missão do partido proletário unido de todas as nacionalidades no seio da assembléia constituinte será precisamente conseguir tal solução para a questão nacional, solução factível somente se apoiada no movimento popular das massas e em sua influência sobre a assembléia constituinte. [...]

Contudo, a apresentação por parte do proletariado da exigência de uma assembléia especial para a Polônia não deve significar de nenhum modo que o povo polonês deva tão-somente ser representado na assembléia pan-russa por uma simples delegação da dieta de Varsóvia.

Considero que tal representação não responderia aos interesses do desenvolvimento revolucionário, porque ligaria entre si os elementos proletários e burgueses da dieta polonesa com tal solidariedade e responsabilidade que o efeito seria contraditório com as verdadeiras relações de seus interesses.

Na assembléia pan-russa o proletariado e a burguesia polonesa não devem ser representados por uma só delegação, inclusive se supomos que esta contará proporcionalmente com todos os representantes na dieta, de acordo com os votos obtidos. Em tal caso não s6 desaparecia a direta e independente representação do proletariado, mas também se tornaria mais difícil a formação dos partidos políticos na Polônia. Neste caso, as eleições para a dieta polonesa, cujo objetivo principal será determinar as relações políticas entre a Polônia e a Rússia, não poderão demonstrar a face política e social dos partidos adversários, no nível que poderão fazer as eleições para a assembléia pan-russa que manifestarão também as questões gerais da política e do socialismo que diferenciam definitivamente a sociedade contemporânea(2).

[...] Daí, surge um resultado um tanto estranho. O Partido Operário Social-Democrata da Rússia deixa a solução da questão polonesa ao "povo" polonês, enquanto os socialistas poloneses não devem fazê-lo, mas procuram encontrar a solução dentro do espírito que anima a vontade e os interesses do proletariado. Mas o partido do proletariado polonês pertence organicamente ao partido pan-estatal: por exemplo, como é sabido, a social-democracia do reino da Polônia e da Lituânia é componente do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. [...]

Suponhamos, só a título de exemplo, que na constituinte pan-estatal a parte polonesa apresente dois programas contraditórios: um programa autônomo da Democracia Nacional e outro programa autônomo da social-democracia polonesa; ambas as posições podem, contudo, diferir em grande parte, inclusive podem ser contraditórias, tanto por seu espírito como por sua tendência e por sua forma política. Qual será, pois, a posição da socialdemocracia russa? A qual destes programas reconhecerá como expressão da vontade e da "autodeterminação" do "povo" polonês? A social-democracia polonesa jamais se erigiu em porta-voz do "povo", enquanto a Democracia Nacional, ao contrário, habitualmente se apresenta como o arauto da vontade "popular". Também podemos supor, por um momento, que este último partido, aproveitando o obscurantismo de certos elementos da pequena burguesia e de alguns estratos do proletariado, obtenha a maioria dos votos para a assembléia constituinte. O que farão então os representantes do proletariado pan-russo? Apoiarão os projetos da Democracia Nacional satisfazendo assim uma formulação programática e tomando uma posição contrária a seus companheiros poloneses, ou se unirão a eles, limitando o "direito dos povos" a seu papel de frase vazia que não leva a lugar nenhum? Ou talvez os socialdemocratas poloneses se verão obrigados a apoiar, na constituinte nacional e na agitação interna, seu próprio programa, enquanto na constituinte pan-estatal, como membros disciplinados do partido, ficarão contra si mesmos?

Tornemos outro exemplo mais. Vendo a questão de um ponto de vista puramente abstrato, suponhamos que na assembléia constituinte da população judia - porque não vemos objetivo em limitar as constituintes somente à Polônia - o partido sionista obtenha a maioria dos votos e exija a aprovação de um fundo monetário de emigração para toda a massa judia. Entretanto, a representação classista do proletariado judeu combate com toda determinação esta posição, considerando-a urna utopia nociva e reacionária. Qual seria neste caso a posição da social-democracia russa?

Das duas uma: ou o “direito das nações à autodeterminação” terá que ser idêntico para a social-democracia russa às posições tomadas pelos respectivos proletariados, isto é, aos programas de seus partidos social-democratas, e em tal caso constitui urna mistificação da posição classista, ou então o proletariado russo deve reconhecer plenamente tal direito e atender somente à vontade da maioria nacional dos países subjugados, mesmo que contra essa maioria encontre-se expressamente o proletariado respectivo com seu programa classista.

E em tal caso seria um particularíssimo dualismo político, que une a dissonância entre a posição classista e a “nacional” com a dissonância entre o partido pan-estatal e seus partidos componentes.


Notas de rodapé:

(1) Todas as ênfases nessa citação são de Rosa Luxemburgo. (retornar ao texto)

(2) Aqui e em toda parte falo da concreta solução da questão nacional polonês, sem levar em conta aquelas mudanças que podem se tornar inevitáveis ao se tratar o mesmo assunto em relação a outros países. (N. da A.) (retornar ao texto)

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Inclusão 31/01/2014