Os deveres da hora presente

Errico Malatesta

Agosto de 1894


Primeira Edição: Publicado originalmente em Liberty (Londres), 1, no. 8 (agosto de 1894).

Fonte: Instituto de Estudos Libertários

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya

HTML: Fernando Araújo.


A reação cairá sobre nós de todos os lados. A burguesia, enfurecida pelo temor de perder  os seus privilégios, usará todos os meios de repressão para sufocar não só os anarquistas e socialistas, mas a todo movimento progressivo.

É bem certo que não poderá impedir aquelas atrocidades que serviram como pretexto para a reação presente; pelo contrário, as medidas que vetam toda outra descentralização do espírito ativo de alguns, parecem explicitamente calculadas para as provocar e multiplicá-las.

Mas, desafortunadamente, não é tão certo que não possa conseguir obstruir nossa propaganda fazendo com que a circulação da nossa imprensa se torne muito difícil, encarcerando um grande número dos nossos companheiros, e deixando nenhum outro meio de atividade revolucionária aberta a nós mais que motins secretos, que podem ser muito úteis para a execução mesma de atos determinados, mas que não fazem com que a ideia penetre as massas do proletariado.

Estaríamos errados ao nos consolar com a velha ilusão de que as perseguições são sempre úteis para o desenvolvimento das ideias que são perseguidas. Isso é incorreto, como quase todas as generalizações o são. As perseguições podem facilitar ou obstruir o triunfo duma causa, de acordo com a relação que exista entre o poder da perseguição e o poder da resistência dos perseguidos; e a história passada contém exemplos de perseguições que detiveram e destruíram um movimento assim como também outras que desencadearam uma revolução.

Portanto, devemos enfrentar, sem debilidade nem ilusão, a situação na qual a burguesia nos pusera hoje e estudar os meios para resistir à tormenta e para derivar dela o maior proveito para a nossa causa.

Existem companheiros que esperam o triunfo de nossas ideias desde a multiplicação de atos de violência individual. Bem, podemos divergir em nossas opiniões acerca do valor moral e do efeito prático dos atos individuais em geral e de cada ato em particular, e certamente há sobre este tema, entre nós anarquistas, várias correntes de opinião divergentes e inclusive diretamente opostas; mas uma coisa é certa, a saber, que com um número de bombas e um número de golpes de faca, uma sociedade como a sociedade burguesa não pode ser derrubada, estando esta baseada, como está, sobre uma enorme massa de interesses e preconceitos pessoais, e sustentada, mais do que está pela força das armas, pela inércia das massas e seus hábitos de submissão.

São necessárias outras coisas para levar a cabo uma revolução, e especialmente uma revolução anarquista. É necessário que as pessoas sejam conscientes dos seus direitos e das suas forças; é necessário que estejam preparadas para lutar e preparadas para assumir a condução das suas vidas em suas próprias mãos. A preocupação constante dos revolucionários, o ponto para o qual toda a sua atividade deve apontar, deve ser ocasionar este estado mental entre as massas. Os brilhantes atos duns poucos indivíduos podem ajudar nesta tarefa, mas não podem substituí-la, e na realidade, estes atos só são úteis se são o resultado do movimento coletivo do espírito das massas…logrando sob tais circunstâncias que as massas os compreendam, simpatizem com eles, e que tirem proveito deles…

 Quem espera que a emancipação da humanidade venha, não da persistente e harmoniosa cooperação de todas as pessoas do progresso, mas da ocorrência acidental ou providencial de alguns atos de heroísmo, não está melhor informado que quem a espera da intervenção dum esperto legislador ou dum vitorioso general…

O que temos de fazer na presente situação?

Antes de tudo, na minha opinião, devemos resistir às leis tanto quanto seja possível; poderia quase dizer que devemos ignorá-las.

O grau de liberdade, bem como o grau de exploração sob o qual vivemos, não é em absoluto, ou só em pequena medida, dependente da carta legal: depende antes de tudo da resistência oferecida às leis. Alguém pode ser relativamente livre, apesar da existência de leis draconianas, sempre e quando a convenção se oponha a que o governo faça uso delas; enquanto, por outro lado, apesar de todas as garantias oferecidas pelas leis, alguém pode estar à mercê de toda a violência da polícia, se eles sentem que podem, sem ser castigados, ignorar a liberdade dos cidadãos…

Os resultados das novas leis que estão sendo forjadas contra nós dependerão, em grande medida, da nossa própria atitude. Se oferecemos resistência enérgica, aparecerão imediatamente à opinião pública como uma violação desavergonhada de todo direito humano e estarão condenadas à rápida extinção ou a permanecer como letra morta. Se, pelo contrário, nos acomodamos a elas, estarão a par das convenções políticas contemporâneas, que terão, mais adiante, o desastroso resultado de dar nova importância à luta pelas liberdades políticas (de fala, escrita, reunião, concentração, associação) e ser a causa, em maior ou menor medida, de perder de vista a questão social

 Querem nos proibir de expressar as nossas ideias: o façamos de todas as maneiras e mais do que nunca. Querem proscrever o mesmíssimo nome anarquista: gritemos forte que somos anarquistas. Querem negar a nós o direito de associação: nos associemos como possamos, e proclamemos que estamos associados, e que é nosso intuito estarmos. Estes tipos de ação, estou bem consciente, não carecem de dificuldade no estado em que se encontram as coisas no presente, e só podem ser exercidos dentro dos limites e na forma em que o sentido comum dite a todos de acordo com as distintas circunstâncias em que vivam. Mas recordemos sempre que a opressão dos governos não tem outros limites que a resistência que lhe é oferecida.

 Aqueles socialistas que imaginam que escaparão à reação cortando os laços de sua causa da dos anarquistas, não só dão provas duma penúria de perspectiva compatível com os fins de reorganização radical do sistema social, como também traem estupidamente o seu próprio interesse. Se temos de ser esmagados, a sua vez virá logo logo.

Mas antes de tudo devemos ir entre o povo: esta é a via de salvação para a nossa causa.

Enquanto as nossas ideias nos obrigam a por todas as nossas esperanças nas massas, pois não acreditamos na possibilidade de impor o bem pela força e não queremos ser mandados, temos desprezado e negligenciado todas as manifestações da vida popular; nos contentamos com simplesmente predicar teorias abstratas ou com atos de revolta individual, e temos nos isolado. Daí o desejo de êxito do que chamarei, o primeiro período do movimento anarquista. Após mais de vinte anos de propaganda e luta, depois de tanta devoção e tantos mártires, somos hoje quase estranhos para as grandes comoções populares que agitam Europa e América, e nos encontramos numa situação que permite aos governos fomentar, sem que simplesmente pareçam absurdos, as esperanças em nos reprimir mediante algumas medidas policiais.

Reconsideremos a nossa posição.

Hoje, aquele que sempre teve que ser o nosso dever, que era o resultado lógico das nossas ideias, a condição que nossa concepção da revolução e da reorganização da sociedade nos impõe, isto é, viver com o povo e conquistá-lo com nossas ideias tomante parte ativa em suas lutas e sofrimentos, se tornou uma necessidade absoluta imposta sobre nós pela situação sob a qual temos que viver.


Inclusão: 19/01/2022