Socialismo e Anarquia

Errico Malatesta

Agosto de 1896


Primeira Edição: Título original “Socialismo ed Anarchia”. Do número único de “L’Anarchia“, Londres, agosto de 1896. Esta tradução (muito provavelmente de Neno Vasco), é extraída da revista A Sementeira de Lisboa (N.º 44 da 1.ª série, junho de 1912). Para facilitar a leitura, modernizámos o português em algumas passagens, sem deturpar o conteúdo.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/02/18/socialismo-e-anarquia/

HTML: Fernando Araújo.


Quando se discutem questões de ordem moral e social, a maior dificuldade para nos entendermos depende do significado vário e incerto atribuído às palavras. Cada partido, e amiúde cada indivíduo, dá aos termos gerais um sentido diverso, e, o que é pior, o mesmo indivíduo usa às vezes o mesmo vocábulo em acepção diferente e até oposta.

Assim, por exemplo, socialismo e anarquia empregam-se umas vezes como termos antagónicos e outras como sinónimos. Há quem combata o individualismo quando significa o cada um por si da sociedade burguesa, dizendo-se depois individualista para exprimir o seu ideal duma sociedade na qual ninguém seja oprimido e cada um tenha meios de alcançar o pleno desenvolvimento da sua individualidade. Há quem hoje combata a imoralidade burguesa e proteste amanhã contra qualquer moral. Quem diga que o direito é a força, e passado um instante se gabe de ser defensor do direito dos fracos. Quem zombe de qualquer ideia de sacrifício e abnegação e depois se declare – e se mostre – pronto a sacrificar bem-estar, liberdade, vida, pelo bem da geração futura.

E poderiam fazer-se observações análogas sobre o emprego das palavras evolução e revolução, organização, administração, autoridade, governo, estado e de todas as que se refiram aos problemas morais e sociais.

Assim acontece que muitas coisas justas parecem disparatadas por defeito de expressão, e que se produzem muitas cisões entre camaradas que no fundo estão realmente de acordo; ao passo que, pelo contrário, muitas vezes imaginam estar de acordo, só por usarem a mesma terminologia, pessoas de ideias e tendências diametralmente opostas. Assim acontece também que se aceitam, sob a caução duma palavra, ideias absurdas e anti-sociais, e que indivíduos egoístas, verdadeiros malfeitores, se misturam com os que, bons e generosos, dão mostras de imoralidade pela ínfima vanglória de parecer originais.

E não só esta falta de uma linguagem clara, comum e constante dificulta a compreensão de homem para homem, mas até a confusão na expressão ofusca em cada um a clareza da ideia e acaba por impedir que se entenda a si próprio. Como exemplo – bem doloroso, por certo! –, alguns jornais nossos que parecem escritos pelos moradores da lendária torre de Babel e nos quais geralmente cada escritor mostra que não sabe o que pretende dizer e que apenas têm uma obscura e vaga visão dum vaporoso ideal que não sabe traduzir em termos inteligíveis.

Definamos, pois, as palavras de que nos servimos.

Não pretendo que o sentido que dou aos vários termos seja o verdadeiro. O significado das palavras é sempre coisa convencional e só o pode estabelecer o uso comum e constante pelo maior número. Mas sucede em geral que quando uma palavra foi inventada para indicar uma dada ideia, todas as transformações e desvios que se verificam depois no seu significado têm entre si uma relação lógica que permite remontar ao sentido original, ou alcançar um significado geral que corresponda ao pensamento mais ou menos consciente de todos. Este fundo comum nas várias acepções em que hoje são usadas certas palavras é o que eu me esforço por determinar para tornar mais clara a ideia e mais fácil a discussão. Seja como for, as minhas definições, se para mais nada servirem, servirão para que se compreenda bem o que eu quero dizer e talvez para dar um exemplo de linguagem precisa, que outros poderão elaborar melhor.

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No estudo da sociedade e nas construções ideais que se possam fazer duma nova sociedade, há dois pontos a considerar: 1.º as relações morais ou jurídicas, como quiserem, entre os homens, isto é, o fim que se atribui à convivência social; 2.º a forma em que se encarnam essas relações, isto é, o modo de organização que assegura a observância dos direitos e deveres respetivos, o método com o qual se tende à realização do fim proposto à sociedade.

Sob o primeiro ponto de vista pode conceber-se a sociedade em três modos fundamentais: 1.º Ou como uma massa de homens nascendo e vivendo para servir um ou poucos indivíduos privilegiados por direito de conquista, mascarado depois com o pretendido direito divino; e este é o regime aristocrático, essencialmente extinto nos países mais avançados e desaparecendo gradualmente no resto do mundo. 2.º Ou como a convivência de indivíduos originária e teoricamente iguais, que lutam uns contra os outros, cada um para açambarcar a maior quantidade possível de riqueza e de poder, desfrutar o trabalho alheio e submeter os outros ao seu domínio: é o individualismo que domina no mundo burguês de hoje e produz todos os males sociais que lamentamos. 3º Ou como um laço de solidariedade entre os homens, cada um dos quais cooperando com os outros no maior bem de todos; como um meio para assegurar a todos o máximo desenvolvimento, a máxima liberdade, o máximo bem-estar possível; é o socialismo, ideal de todos os amigos sinceros e iluminadas das espécie humana.

Sob o segundo ponto de vista, há ainda três modos principais de organização social, três métodos, três constituições políticas: 1.º O domínio exclusivo de um ou de poucos (monarquia absoluta, cesarismo, ditadura) que aos outros impõe a sua própria vontade, ou no seu próprio interesse e da sua casta, ou com a intenção, que pode mesmo ser sincera, de fazer o bem de todos. 2.º A chamada soberania popular, isto é, a lei feita, em nome do povo, por aqueles que o povo elegeu. Essa lei representa, teoricamente, a vontade da maioria, mas na prática é o resultado duma série de transações e ficções, de que sai falseada toda a genuina expressão da vontade popular. Isto é a democracia, a república, o parlamentarismo. 3.º A organização direta, livre, consciente da vida social, feita e mudada, quando for preciso, por todos os interessados, cada um na esfera dos seus interesses, sem delegações fictícias, sem laços inúteis, sem imposições arbitrárias; e isto é a anarquia.

Os vários conceitos sobre a essência e sobre o fim da sociedade casam-se diversamente, tanto na história como nos programas partidários, com as diferentes formas de organização. Assim podemos ter uma sociedade aristocrática com um regime monárquico, ou republicado, ou até anárquico. A sociedade burguesa ou individualística existe em monarquia e em república, e alguns dos seus defensores são mesmo anarquistas, pois desejam que não haja governo ou que haja o menos possível. Assim quanto ao socialismo, que uns pretendem realizar por meio da ditadura, outros por meio do parlamentarismo, outros por meio da anarquia.

Porém, embora os erros dos homens e as ações e reações dos fatores históricos possam determinar e tenham de facto determinado os mais inverosímeis conúbios entre constituições sociais e formas políticas de natureza discordante, o certo é que os fins e os meios estão intimamente ligados, tendo cada fim um meio que melhor lhe convém, e tendendo cada meio a realizar o fim que lhe é natural, mesmo sem ou contra a vontade dos que o empregam.

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A monarquia é a forma política mais adequada para fazer respeitar os privilégios duma casta fechada; e por isso toda a aristocracia, sejam quais forem as condições em que se formou, tende a estabelecer um regime monárquico, puro ou misturado, como toda a monarquia tende a criar e a tornar fixa e omnipotente uma classe aristocrática. O sistema parlamentar, isto é, a república (pois a monarquia constitucional não é na realidade senão uma forma intermediária em que a função do parlamento é ainda embaraçada por sobrevivências monárquicas e aristocráticas) é o sistema político que melhor corresponde à sociedade burguesa; e toda a república tende à constituição duma classe burguesa, como por outro lado a burguesia, no fundo da alma quando não na aparência, é sempre republicana.

Mas qual é a forma política que melhor se adapta à realização do princípio de solidariedade nas relações humanas? Qual o método que mais seguramente nos pode conduzir ao triunfo completo e definitivo do socialismo?

Certamente não pode dar-se a esta pergunta uma resposta absolutamente segura, pois tratando-se de coisas irrealizadas, às deduções lógicas falta necessariamente a contraprova da experiência. Temos, pois, de nos contentar com a solução que parece ter em seu favor a maior soma de probabilidades. Mas se alguma dúvida, que sempre fica no espírito em previsões históricas e que é afinal a porta aberta no cérebro a novas verdades, nos deve dispor a uma larga tolerância e à mais cordial simpatia para com os que procuram por outros caminhos chegar ao mesmo fim, não deve por outro lado paralisar a nossa ação e impedir-nos de escolher a nossa via e de a seguir resolutamente.

Caráter essencial do socialismo é aplicar-se igualmente a todos os membros da sociedade, a todos os seres humanos. Ninguém deve poder explorar o trabalho alheio, mediante o açambarcamento do poder político: exploração económica e dominação política são dois aspetos do mesmo facto, a sujeição do homem ao homem, e resolvem-se sempre um no outro.

Para atingir e consolidar, pois, o socialismo urge um meio, que não possa ser por sua vez origem de exploração e de domínio, e que leve a uma organização conveniente quanto possível aos interesses e às preferências várias e mutáveis dos diversos indivíduos e grupos humanos. Este meio não pode ser a ditadura, (monarquia, cesarismo, etc.) pois esta substitui a vontade e inteligência de todos pela vontade e inteligência de um ou de poucos; tende a impor a todos uma regra única apesar da diferença de condições; cria a necessidade duma força armada para obrigar os recalcitrantes à obediência; faz surgir interesses antagónicos entre a massa e os que estão mais perto do poder; e acaba, ou com a rebelião triunfante, ou com a consolidação duma classe governante, que depois naturalmente se torna também classe proprietária. Também não parece bom meio o parlamentarismo (democracia, república), pois igualmente substitui a vontade de todos pela de poucos, e se por um lado deixa um pouco mais de liberdade do que a ditadura, por outro lado cria maiores ilusões, e em nome dum interesse coletivo fictício, calca todo o interesse real, e contradiz, através da fieira das eleições e votações, a vontade de cada um e de todos.

Resta a organização livre, de baixo para cima, do simples para o complexo, por meio do livre pacto e da federação das associações de produção e de consumo, isto é, a anarquia. E é este o meio que preferimos.

Para nós, socialismo e anarquia não são termos opostos, nem equivalentes; são termos estreitamente ligados, como o fim ao seu meio necessário, como a substância à forma em que se encarna.

O socialismo sem a anarquia, isto é, o socialismo de Estado, parece-nos impossível, pois seria destruído pelo mesmo orgão destinado a mantê-lo.

A anarquia sem o socialismo igualmente nos parece impossível, pois em tal caso não poderia ser senão o domínio dos mais fortes, e resultaria logo na organização e consolidação desse domínio, isto é, na constituição do governo.


Inclusão: 19/01/2022