O Estado Socialista

Errico Malatesta

15 de maio de 1897


Primeira Edição: Originalmente publicado como «Lo Stato Socialista» no «L’Agitazione» de Ancona (n.º 10 — 15 de maio de 1897). - http://www.bibliotecaginobianco.it/flip/STU/01/0800/?#2/z

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/05/28/o-estado-socialista/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O objetivo dos socialistas democráticos é «a conquista dos poderes públicos».

Não examinaremos desta vez se e até que ponto este escopo se conforma com as suas teorias históricas, segundo as quais a classe economicamente prevalente seria sempre e fatalmente detentora do poder político, e por conseguinte a emancipação económica deveria necessariamente preceder a emancipação política. Nem discutiremos se, admitida a possibilidade da conquista do poder político por parte duma classe deserdada, os meios legais podem bastar para o conseguir.

Pretendemos agora discutir somente se tal conquista dos poderes públicos se conforma ou não com o ideal socialista duma sociedade de livres e iguais, sem supremacias nem divisões de classes.

Os socialistas democráticos, especialmente os italianos — que, concordem ou não, sofreram mais do que os outros a influência das ideias anarquistas —, costumam dizer por vezes, pelo menos quando connosco polemizam, que também eles querem abolir o Estado, vale dizer o governo, e que justamente para o poder abolir pretentem dele apoderar-se. Que significa isto? Se eles quisessem com isto dizer que pretendem, no próprio ato da conquista, abolir o Estado, anular toda a garantia legal dos «direitos adquiridos», dissolver toda a força armada oficial, suprimir todo o poder legislativo, deixar em plena e completa autonomia todas as localidades, todas as associações, todos os indivíduos, e promover a organização social de baixo para cima, mediante a livre federação dos grupos de produtores e de consumidores, então toda a questão se reduziria a isto: que eles exprimem por certas palavras as mesmas ideias que nós exprimimos por outras. Dizer nós queremos assaltar aquela fortaleza e destruí-la, ou dizer nós queremos apoderar-nos daquela fortaleza para a demolir, significa uma única e mesma coisa.

Restaria ainda entre nós e os socialistas democráticos a diferença de opinião, por certo de máxima importância, sobre se a participação nas lutas eleitorais e a entrada dos socialistas no parlamento favorece ou estorva a revolução; se prepara os homens para uma radical transformação da ordem presente ou se educa o povo para aceitar, após a revolução, uma nova tirania. Mas pelo menos no objetivo final estaríamos perfeitamente de acordo.

Porém, é certo que essas declarações de que querem apoderar-se do Estado para o destruir ou são reprováveis artifícios de polémica ou, se sinceras, vêm de anarquistas em formação, que acreditam ser ainda democratas.

Os verdadeiros socialistas democráticos têm uma ideia bem diferente da «conquista dos poderes públicos». No Congresso de Londres [1896], para citar uma manifestação recente(1) e solene, eles disseram claramente que é necessário conquistar os poderes públicos «para legislar e administrar a nova sociedade». E no último número(2) da Critica Sociale pode ler-se que é um erro acreditar que o partido socialista, chegado ao poder, poderá e quererá diminuir os impostos, e que pelo contrário, o Estado deverá, por meio de um gradual aumento de impostos, absorver gradualmente a riqueza privada para levar a cabo as grandes reformas que o socialismo se propõe (instituição de Caixas para os velhos, os inválidos e contra os acidentes; sistema educativo digno de países civis; resgate dos grandes capitais, etc. etc.) e assim encaminhar-se para a meta longínqua do perfeito comunismo, em que tudo se tornará um serviço público e a riqueza privada será uma só coisa com riqueza da sociedade.

Portanto, é um governo puro e simples o que os socialistas democráticos nos prometem: um governo com toda a sequela necessária dos seus verificadores de rendimentos, dos seus cobradores, dos seus oficiais de justiça (para os contribuintes morosos), dos seus gendarmes e carcereiros (para quem se sentisse tentado a atirar o oficial de justiça pela janela), com os seus juízes, com os seus administradores de fundos para a assistência pública, com os seus programas escolares e os seus tutores oficiais, com a sua administração da dívida pública para pagar os juros dos capitais resgatados, etc. etc; e, naturalmente, com o seu corpo legislativo que faz as leis e fixa os impostos, e os vários ministérios que executam e administram as leis.

Sobre isto podem existir diferenças de modalidade, tendências mais ou menos centralizadoras, métodos mais ou menos ditatoriais ou democráticos, procedimentos mais ou menos apressados ou graduais, mas no fundo todos estão de acordo, porque esta é a substância do seu programa.

Agora é preciso ver se este governo sonhado pelos socialistas oferece garantias de justiça social; se ele poderá e quererá abolir as classes, destruir toda a exploração e toda a opressão do homem sobre o homem; se, numa palavra, ele poderia e quereria fundar uma sociedade verdadeiramente socialista.

Os socialistas democráticos partem do princípio de que o Estado, o governo, não é outra coisa senão o orgão político da classe dominante. Numa sociedade capitalista, dizem eles, o Estado serve necessariamente os interesses dos capitalistas e garante-lhes o direito de explorar os trabalhadores; mas numa sociedade socialista, abolida a propriedade individual, e desaparecidas, com a destruição do privilégio económico, as distinções de classes, então o Estado representaria todos e tornar-se-ia orgão imparcial dos interesses sociais de todos os membros da sociedade.

Aqui apresenta-se necessariamente uma dificuldade. Se é verdade que o governo é sempre e necessariamente o instrumento de quem possui os meios de produção, como poderá operar-se este milagre de um governo socialista surgido em pleno regime capitalista com a missão de abolir o capitalismo? Será, como queriam Marx e Blanqui, por meio duma ditadura imposta revolucionariamente, com um golpe de força, que revolucionariamente decreta e impõe o confisco das propriedades privadas em favor do Estado, qual representante dos interesses coletivos? Ou será, como parece que querem todos os marxistas e grande parte dos blanquistas modernos, por meio da maioria socialista enviada ao parlamento por sufrágio universal? Proceder-se-á de golpe à expropriação da classe dominante por parte da classe economicamente sujeita, ou proceder-se-á gradualmente obrigando os proprietários e os capitalistas a deixarem-se privar pouco a pouco de todos os seus privilégios?

Tudo isto parece estranhamente em contradição com a teoria do «materialismo histórico», que para os marxistas é dogma fundamental. Mas não pretendemos neste artigo examinar estas contradições, nem ver o que possa existir de verdadeiro na doutrina do materialismo histórico.

Suponhamos então que, dum modo qualquer, o poder tivesse caído nas mãos dos socialistas e que um governo socialista estivesse bem e solidamente constituído.

Teria com isto chegado a hora do triunfo do socialismo?

Cremos que não.

Se a instituição da propriedade individual é fecunda de todos os males que conhecemos, não é porque tal ou tal terra está inscrita num registro em nome tal ou tal indivíduo, mas porque essa inscrição dá o direito a esse indivíduo de usar a terra como bem lhe aprouver, e o uso que ele faz é regularmente mau, isto é, em prejuízo dos seus semelhantes. Todas as religiões, nas suas origens, disseram que a riqueza é um fardo que obriga os seus possuidores a cuidar do bem-estar dos pobres e a ser como um pai para eles; e nas próprias origens do direito civil encontramos o senhor da terra preso a imensas obrigações cívicas que fazem dele mais o administrador dos bens no interesse do público do que o proprietário no sentido moderno da palavra. Mas o homem é feito de tal maneira que, quando tem os meios de dominar e impor aos outros a própria vontade, usa e abusa até reduzir os outros à escravidão e à abjeção. Assim o senhor, que devia ser pai e protetor dos pobres, foi sempre transformado em explorador feroz.

Assim aconteceu também sempre, e sempre acontecerá, com os governantes.

Não adianta dizer que quando o governo sair do povo servirá os interesses do povo: todos os poderes saíram do povo, pois só o povo pode dar a força necessária, e todos oprimiram o povo. Não adianta dizer que quando não houver mais classes privilegiadas o governo não poderá senão ser o orgão da vontade coletiva: os governantes constituem eles mesmos uma classe, e entre eles desenvolve-se uma solidariedade de classe bem mais forte do que a existente nas classes fundadas sobre os privilégios económicos.

É verdade que hoje o governo é servo da burguesia, mas mais do que por ser governo, é-o porque os seus membros são burgueses; de resto, na medida em que é governo, ele, como todos os servos, odeia o seu chefe, engana-o e rouba-o. Não era para servir a burguesia que Crispi pilhava os bancos, nem era para a servir que ele violava o Estatuto.

Quem está no poder quer lá ficar, e quer a todo o custo fazer triunfar a sua vontade — e como a riqueza é instrumento de poder muitíssimo eficaz, o governante, ainda que não abuse e não roube pessoalmente, fomenta ao seu redor o surgimento duma classe que a ele deve os seus privilégios, e que está interessada na sua permanência no poder. Os partidos de governo são, no campo político, o que as classes proprietárias são no campo económico.

Os anarquistas disseram-no mil vezes, e toda a história o confirma: propriedade individual e poder político são os dois elos da cadeia que acorrenta a humanidade, são como os dois gumes dum punhal de assassino. Não é possível livrarmo-nos de um sem nos livrarmos do outro. Aboli a propriedade individual sem abolir o governo, e ela será reconstituída por obra dos governantes. Aboli o governo sem abolir a propriedade individual, e os proprietários reconstituirão o governo.

Quando Friedrich Engels, talvez para prevenir a crítica anarquista, dizia que desaparecidas as classes o Estado propriamente dito já não tem razão de ser, e se transforma de governo dos homens em administração das coisas, ele não fazia mais que um vão jogo de palavras. Quem tem o domínio sobre as coisas tem o domínio sobre os homens; quem governa a produção governa o produtor; quem regula o consumo é senhor do consumidor.

A questão é esta: ou as coisas são administradas segundo os livres pactos dos interessados, e então é a anarquia; ou são administradas segundo a lei feita pelos administradores, e então é o governo, é o Estado, e fatalmente resulta tirânico.

Aqui não se trata da boa fé ou da boa vontade deste ou daquele homem, mas da fatalidade das situações e das tendências que em geral os homens desenvolvem quando se encontram em certas circunstâncias.

De resto, se se trata realmente do bem de todos, se verdadeiramente se pretende administrar as coisas no interesse dos administrados, quem o pode fazer melhor do que aqueles que tais coisas produzem e tais coisas precisam de consumir?

Para que serve um governo?

O primeiro ato dum governo socialista, assim que chegasse ao poder, deveria ser este: Considerando que nós, estando no governo, não podemos fazer nada de bom e que, ao invés, paralisaríamos a ação do povo, obrigando-o a esperar pelas leis que não poderíamos fazer senão sacrificando os interesses de uns aos interesses de outros, e os interesses de todos aos nossos interesses particulares, — Nós, governo, etc., declaramos abolida toda a autoridade; convidamos todos os cidadãos a organizarem-se em associações correspondentes às suas variadas necessidades; remetemo-nos à iniciativa dessas associações e levaremos ao seio delas o contributo do nosso trabalho pessoal.

Jamais algum governo fez algo de semelhante, e tampouco o faria um governo socialista. E por isso o povo, quando tiver a força nas suas mãos, se tiver bom-senso impedirá que se constitua um governo qualquer que seja.


Notas de rodapé:

(1) Ter presente que este artigo remonta a maio de 1897; o Congresso de Londres é o de 1896. [L. Fabbri] (retornar ao texto)

(2) «Critica Sociale» de Milão, 1 de maio de 1897. — Artigo «Il partito socialista e le imposte» («O partido socialista e os impostos») de Giuzeppe Bonzo. [L. Fabbri] (retornar ao texto)

Inclusão: 23/10/2020