As colónias experimentais anarquistas

Errico Malatesta

28 de outubro de 1897


Primeira Edição: Neste texto publicado originalmente no «L’Agitazione» de 28 Out. 1897, em resposta a um artigo de Luigi Fabbri sobre uma “colónia anarquista” de Clauden Hill em Ingleterra, Errico Malatesta critica a ideia de comunidades alternativas experimentais, ou colónias, enquanto prova da praticabilidade do anarquismo. Note-se que Fabbri era então um jovem de 20 anos e novo no movimento libertário, tornando-se mais tarde um dos mais importantes expoentes teóricos do socialismo anarquista, e não é arriscado afirmar que ele não mais manteve as opiniões aqui criticadas por Malatesta. Esta tradução, muito provavelmente de Neno Vasco, foi extraído da revista A Sementeira (Lisboa), Abril de 1919 (N.º37 da 2.ª série).

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/04/12/as-colonias-experimentais-anarquistas/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


No número passado, falou-nos o camarada Fabbri da Colónia anarquista de Clauden Hill, e no seu entusiasmo apresentou-a como uma prova de que a anarquia não é uma utopia.

Nós, escusado será dizê-lo, estamos bem convencidos de que a anarquia é praticável, pois que é, no nosso entender, a forma de organização social que melhor garante a liberdade e o bem-estar de todos e portanto deve acabar por conquistar a adesão de todos — e achamos que em matéria de instituições sociais tudo é prático e realizável, se os homens estiverem de acordo para o querer. Mas não nos parece que a Colónia dos camaradas ingleses prove grande coisa em favor da praticabilidade das nossas ideias; e apressamo-nos a dizê-lo porque, se um dia essa colónia se desmanchar — coisa que nos causaria desprazer mas não assombro — queremos poder sustentar que o malogro dessa tentativa não é argumento contra nós, assim como não foi argumento em nosso favor o seu êxito. Outras colónias se fundaram, que prosperaram por algum tempo e foram citadas pelos entusiastas como prova de que a anarquia é realizável — e agora os burgueses fazem grande troça do caso!

A comunidade de Clauden Hill é um belo e recomendável exemplo do que pode a constância, a concórdia e o espírito de fraternidade… valiosamente secundados por um capitalista que adiante os fundos; mas negamos que ela tenha o valor experimental que lhe supõe o amigo Fabbri, e que aliás, ao que nos consta, nem os próprios colonos lhe atribuem.

E o que dizemos da Colónia de Clauden Hill, estendemo-lo a todas as colónias, em que várias escolas sociais têm tentado ou tentam aplicar os seus ideais.

Na verdade, que pode provar o facto de algumas dezenas de camaradas — escolhidos de propósito em toda a Inglaterra, os quais simpatizam entre si, não só pelas ideias comuns, mas ainda pelos seus caráteres pessoais, e acham-se animados de forte entusiasmo por aquela dada empresa, empenhando o seu amor prórpio no bom êxito dela, e esperam alcançar uma independência e um bem-estar impossíveis de obter com o trabalho assalariado às ordens do patrão — o que prova, dizíamos, o facto de conseguirem viver de acordo e manter a sua empresa sem necessidade de nomear um chefe?

E se esses camaradas, que por uma feliz conjuntura se acham em posse de terras e instrumentos de trabalho, prosperam ou chegam porventura a enriquecer, acaso não o devem, à sua atividade e inteligência, sim, mas também à posição de capitalistas em que se encontram para com todo o mundo exterior?

Não se exploram entre si, não exploram ninguém diretamente, mas exploram involuntariamente toda a grande massa dos trabalhadores proletários, quer nas suas trocas, quer aproveitando-se dos serviços públicos e de todos os benefícios da civilização, que aos capitalistas ficam baratos, porque são obra de trabalhadores mal pagos: — e por isso, o seu caso não pode servir para mostrar o que seria uma sociedade baseada na igualdade e na solidariedade.

Bem diferentes e bem mais graves são os problemas que a anarquia tem que resolver. Ela deve poder fazer-se com os homens como quer que sejam e onde quer que se encontrem; deve equiparar as condições humanas, apesar das diferenças naturais de posição; deve organizar a produção e a troca em proveito de todos e sem o estímulo do interesse individual e corporativo; tem que fazer face aos grandes serviços públicos, caminhos de ferro, correios, regime das águas, higiene pública, etc., sem necessidade de autoridade; tem que garantir a segurança pública sem polícia; tem, em suma, que realizar a harmonia em toda a vasta e complexa vida social, e não já unicamente nos serviços caseiros dum pequeno grupo.

Dizer que um grupo de trabalhadores vive em anarquia, quando está submetido a todas as leis cívicas e penais feitas ou por fazer, e quando em todas as suas relações exteriores tem que proceder segundo os princípios do comércio e da concorrência, é como dizer que a anarquia existe numa família cujos membros querem bem uns aos outros, têm o bom costume de nunca impor coisa alguma uns aos outros pela força e trabalham em comum sobre um capital indiviso. Pode admitir-se como um modo de dizer, mas não como uma prova de que a sociedade humana pode viver e prosperar sem propriedade individual e sem governo.

E quando, garantida a prosperidade da Colónia, os explorados, os desocupados e os camaradas perseguidos baterem à sua porta, que farão os colonos? Acolher todos não é possível, pois o território de Clauden Hill não pode dar trabalho e pão senão a um número muito limitado de indivíduos: forçoso será, pois, recusar a entrada a todos os que chegarem depois dos primeiros. E então, será a Colónia mais do que a propriedade privada duma associação? E não exercerá ela sobre o ânimo dos seus membros e sobre a propaganda da ideia os mesmos efeitos que qualquer empresa capitalista?

O próprio Fabbri o diz: «nas relações de interesses com todos os que à Colónia não pertencem, ela tem, se quiser sobreviver, que se comportar burguêsmente.» E pode dizer-se que pratica a anarquia quem, numa parte tamanha da sua vida, isto é, em toda aquela que ultrapassa o seu trabalho pessoal e as relações imediatas com o pequeno grupo em que vive, é forçado a comportar-se como um burguês?

E ademais, onde está na Colónia a liberdade a que aspiram os anarquistas? Os seus membros, se dela saíssem, encontrariam de novo a escravidão do salariado, a miséria e talvez a impossibilidade de arranjar trabalho; e portanto, se não querem renunciar às vantagens que a Colónia garante, são obrigados a ficar ali.

Pode chamar-se livre a um homem que se vê constrangido, sob pena de cair na miséria e na escravidão, a permanecer toda a vida num determinado lugar, em companhia de determinados indivíduos?

E se por uma razão qualquer, e talvez pelo próprio facto de terem que estar juntos à força, deixa de existir acordo, seria estranho que os dissidentes, já habituados a uma vida desafogada e independente, preferissem pedir e exigir a divisão da propriedade coletiva em vez de ter de cair de novo na miséria, depois de consumida a juventude para criar a prosperidade da Colónia?

Os santos não são coisa comum… mesmo entre os anarquistas colonistas! Mas poderia dizer-se por isso que a anarquia fez fiasco?

Mais: em Clauden Hill há 27 homens, quase todos rapazes, e 4 mulheres. Pode considerar-se como uma forma estável de sociedade uma coletividade de celibatários, que não são partidários nem da promiscuidade nem da castidade virginal? Um dia ou outro, esses rapazes hão-de querer também casar-se. E então, quem pode prever o que sucederá?

Compreendemos que cada um procure desde já melhorar a sua situação, e entre os vários modos como se pode tentar consegui-lo, preferimos, e muito, a cooperação igualitária; e por isso folgamos cordialmente com os êxitos dos camaradas de Clauden Hill. Mas a Anarquia… é coisa bem diferente.


Inclusão: 26/10/2020