Anarquismo e Sindicalismo

Errico Malatesta

Novembro de 1907


Primeira Edição: Publicado originalmente talvez no Freedom de Londres (n. 223, novembro 1907), depois no Les Temps Nouveaux de Paris (28 dezembro 1907), na Il Pensiero de Roma (fevereiro 1908) e outros periódicos. Esta tradução (provavelmente de Neno Vasco) é extraída da revista A Sementeira de Lisboa, números 8, 9 e 10 da 2.ª série (agosto, setembro e outubro de 1916).

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2018/11/29/anarquismo-e-sindicalismo/

HTML: Fernando Araújo.


I

A questão de saber a posição que devemos assumir em face do movimento sindical é, certamente, uma das mais importantes para os anarquistas.

Mau grado prolongadas discussões e diversas experiências, não chegámos ainda a um acordo completo sobre essa questão; e a razão disto está talvez no facto de que ela não admite uma solução completa e permanente, graças às diferentes condições e às variáveis circunstâncias da luta.

Contudo, creio que o nosso fim poderia sugerir-nos um critério de conduta aplicável às diversas contingências. Nós desejamos a elevação moral e material de todos os homens; esperamos levar a cabo uma revolução que dará a todos liberdade e bem-estar, e estamos convencidos de que isto não pode vir do alto, por força de leis e de decretos, mas que deve ser conquistado pela vontade consciente e pela ação direta daqueles que o desejam.

Mais que todos os outros, precisamos, portanto, da cooperação consciente e voluntária daqueles que, sendo os que mais sofrem na atual organização social, são os que mais interesse têm na revolução.

Não nos basta – se bem que seja, certamente, útil e necessário – elaborar um ideal o mais possível perfeito, e formar grupos para a propaganda e a ação revolucionária.

Devemos converter na medida do possível a massa dos trabalhadores porque, sem ela, não podemos transformar a sociedade presente nem construir uma nova. E como, para fazer com que a grande massa dos proletários saia do estado de submissão em que vegeta e chegue à conceção anarquista e ao desejo de a realizar, é precisa uma evolução que em geral não se opera unicamente por meio da propaganda; como as lições que derivam dos factos da vida diária são muito mais eficazes que todos os discursos teóricos, devemos absolutamente tomar uma parte ativa na vida das massas, e empregar todos os meios que as circunstâncias nos permitam, para despertar gradualmente o espírito de revolta, e mostrar à massa, com o apoio destes factos, o caminho que conduz à emancipação.

Entre estes meios está em primeiro lugar o movimento sindical, e nós cometeríamos um grande erro desprezando-o. Neste movimento, encontramos grande número de operários que lutam para melhorar a sua situação. Estes operários podem enganar-se quanto ao fim que alvejam e quanto aos meios de o alcançar, e enganam-se, segundo nós, a maior parte das vezes.

Mas, pelo menos, estes operários não se resignam à opressão e já não a consideram justa; esperam e lutam. Nestes operários podemos mais facilmente despertar esse sentimento de solidariedade para com os seus companheiros explorados e de ódio contra a exploração, que os conduzirá certamente à luta definitiva pela abolição da dominação do homem pelo homem.

Podemos induzi-los a pedir cada vez mais e com meios cada vez mais enérgicos, e deste modo nos exercitamos e exercitamos os outros na luta, aproveitando as vitórias para exaltar o poder da união e da ação direta e promover maiores pretenções, e aproveitando também as derrotas para ensinar a necessiade de empregar meios mais enérgicos e soluções mais radicais.

Além disso – e isto não é a sua menor vantagem – o movimento sindical pode preparar os grupos de operários profissionais que, durante a revlução, tomarão a seu cargo a organização da produção e da permuta em vantagem de todos, extra e contra todo o poder governativo.

Mas, com todas estas vantagens o movimento sindical tem também os seus defeitos e os seus perigos, o que deve ter-se em conta quando se examina a questão da posição que devemos tomar como anarquistas.

II

Em todos os países nos mostra uma constante experiência que os movimentos operários, que começam sempre como movimentos de protesto e de revolta e são a princípio animados por um largo espírito de progresso e de fraternidade humana, bem depressa tendem a degenerar, e à proporção que adquirem vigor, tornam-se egoístas, conservadores, exclusivamente ocupados com interesses imediatos e restritos, e desenvolvem dentro de si uma burocracia que, como sempre em casos tais, não tem outro fim senão fortalecer-se e engrandecer-se.

Foi este estado de coisas que levou muitos camaradas a retirarem-se do movimento corporativo e até a combatê-lo como coisa reacionária e nociva. Mas o resultado foi que a nossa influência diminuiu proporcionalmente e que se deixou campo livre aos que desejavam explorar o movimento para interesses pessoais ou de partido que nada tem que ver com a causa da emancipação dos trabalhadores. Bem depressa ficaram apenas organizações dotadas de espírito acanhado e fundamentalmente conservadores, segundo o modelo das trade unions inglesas; ou então sindicatos que, sob a influência de políticos, as mais das vezes «socialistas», não passavam de máquinas eleitorais para guindar ao poder um certo número de indivíduos.

Felizmente, outros camaradas acharam que o movimento operário continha sempre um princípio são e que, em vez de o abandonar aos politicantes, mais valia emprender a tarefa de o reconduzir à luta pelos seus objetivos primeiros e de tirar deles todas as vantagens que oferecem à causa anarquista. E conseguiram criar, sobretudo em França, um novo movimento que, sob o nome do «sindicalismo revolucionário», procura organizar os trabalhadores, independentemente de qualquer influência burguesa e política, para conquistarem a sua emancipação por meio da ação direta dos escravos do salário contra os amos.

É um grande passo para a frente; mas devemos não exagerar o seu alcance, nem imaginar, como parecem fazer alguns camaradas, que nós realizaremos a anarquia, como produto natural, pelo simples desenvolvimento progressivo do sindicalismo.

Cada instituição tem uma tendência para ampliar as suas fuções, perpetuar a sua existência e tornar-se fim de si própria. Não é, pois, de admirar que os iniciadores do movimento e os que nele tomam parte mais ativa se habituem a considerar o sindicalismo como equivalente do anarquismo, ou pelo menos como o seu supremo instrumento de realização capaz de per se de substituir todos os outros meios. Mas isso mesmo torna ainda mais necessário prevenir o perigo e definir bem a nossa posição.

O sindicalismo, a despeito de todas as declarações dos seus mais ardentes adeptos, contem, pela própria natureza das suas funções, todos os elementos de degeneração que corromperam os movimentos operários no passado. Com efeito, sendo um movimento que visa a defender os interesses presentes dos trabalhadores, há-de necessariamente adaptar-se às condições existentes e tomar em consideração interesses que vêm em primeiro lugar na sociedade tal como ela hoje existe.

Ora, enquanto os interesses duma categoria de trabalhadores coincide com os da classe inteira, o sindicalismo é de per se uma boa escola de solidariedade; enquanto os interesses dos trabalhadores dum país são os mesmos que os dos trabalhadores dos outros países, o sindicalismo é um bom meio de promover a fraternidade internacional; enquanto os interesses do momento não estão em contradição com os interesses do futuro, o sindicalismo é de per se uma boa preparação para a revolução. Mas infelizmente nem sempre assim sucede.

A harmonia de interesses, a solidariedade entre todos os homens é o ideal ao qual aspiramos, o fim pelo qual lutamos; mas não são essas as condições atuais, nem entre homens da mesma classe nem entre os de classes diferentes. A regra hoje é o antagonismo e a interdependência de interesses ao mesmo tempo: a luta de cada um contra todos e de todos contra cada um. Nem pode haver outras condições numa sociedade na qual, em consequência do sistema capitalista de produção, – isto é, a produção baseada no monopólio dos meios de produção e internacionalmente organizada para lucro de patrões individuais, – há, em regra, mais braços do que o trabalho a executar e mais bocas do que pão para as encher.

Impossível se torna isolarmo-nos, quer como indivíduos, que como classe, quer como nação, pois que as condições de cada um dependem mais ou menos diretamente das condições gerais de toda a humanidade; e é impossível vivermos num verdadeiro estado de paz, pois temos que nos defender, muitas vezes até atacar, ou perecer.

O interesse de cada um é arranjar colocação, e portanto acha-se em antagonismo – isto é, em concorrência – com os desocupados do seu próprio país e com os imigrantes dos outros. Cada um deseja obter ou conservar o melhor lugar contra os trabalhadores do mesmo ofício; é interesse de cada um vender caro e comprar barato, e por consequência como produtor acha-se em conflito com todos os consumidores, e como consumidor acha-se em conflito com todos os produtores.

III

A união, o acordo, a luta solidária contra os exploradores, são coisas que hoje só se podem alcançar quando os trabalhadores, animados pela conceção dum ideal superior, aprendem a sacrificar os interesses pessoais e exclusivos ao interesse comum de todos, os interesses do momento aos interesses do futuro; e este ideal duma sociedade de solidariedade, justiça e fraternidade só se poderá realizar por meio da destruição, feita a despeito de toda a legalidade, das instituições existentes.

Oferecer aos trabalhadores este ideal; pôr os interesses mais largos do futuro antes dos mais estreitos e imediatos; tornar impossível a adaptação às condições presentes, trabalhar sempre pela propaganda e pela ação que conduzam à revolução e a realizem – tais são os objetivos pelos quais nós, como anarquistas, devemos lutar, tanto dentro como fora dos sindicatos.

Isto não o pode fazer a organização operária corporativa, ou só o pode fazer em limitado grau: tem que considerar os interesses presentes, e estes interesses, infelizmente, nem sempre são os da Revolução. Tem que não ultrapassar demasiadamente os limites legais e que tratar em dados momentos com os patrões e autoridades. Tem que se importar mais com os interesses de categorias de trabalhadores do que com os interesses do público, mais com os interesses das associações do que com os interesses da massa dos trabalhadores e dos desocupados. Se assim não faz, não tem uma razão de ser específica; incluiria então apenas os anarquistas, ou quando muito os socialistas, e desse modo perderia a sua principal utilidade, que é educar e habituar à luta as massas retardatárias.

Além disso, desde que as associações devem manter-se abertas a todos os que desejam conquistar aos amos melhores condições de vida, sejam quais forem as suas opiniões sobre a constituição geral da sociedade, elas são naturalmente levadas a moderar as suas aspirações, primeiro para não assustar e afugentar os que elas desejam chamar a si, e depois porque, à medida que o número cresce, os homens de ideias que iniciaram o movimento ficam enterrados numa maioria que só se ocupa dos mesquinhos interesses do momento.

Podemos assim ver desenvolver-se, em todas as organizações que atingiram um certo grau de influência, uma tendência para, mais de acordo com os patrões do que contra eles, garantir para si uma situação privilegiada, criando dificuldades à entrada de novos sócios no seu seio e à admissão de aprendizes nas fábricas; uma tendência para amontoar largos fundos, que elas receiam depois comprometer; para procurar o favor dos poderes públicos; para acima de tudo se absorver nas funções de cooperativismo e socorros mútuos; para se tornar enfim elementos conservadores na sociedade.

Posto isto, parece-nos claro que o movimento sindicalista não pode substituir o anarquismo, e que só pode servir como meio de educação e de preparação revolucionário se for acionado pelo impulso, ação e crítica anarquistas.

Os anarquistas devem, pois, abster-se de se identificar com o movimento sindical e de considerar como fim o que não passa de um dos meios de propaganda e ação que eles podem utilizar. Devem permanecer nos sindicatos como elementos propulsores e lutar para os tornar o mais possível instrumentos de combate com mira na Revolução Social. Devem trabalhar para desenvolver nos sindicatos tudo o que pode aumentar a sua influência educativa e a sua combatividade, – a propaganda de ideias, a greve enérgica, o espírito de proselitismo, a falta de confiança nas autoridades e nos políticos, a prática da solidariedade para com os indivíduos e grupos em conflito com os amos. Devem combater tudo o que tende a torná-los egoístas, pacíficos, conservadores – o orgulho profissional e o estreito espírito corporativo, as cotas pesadas e a acumulação de capital empatado, a instituição de lucros e de seguros, a confiança nos bons ofícios do Estado, a boa camaradagem com os amos, a nomeação de funcionários pagos e permanentes.

Nestas condições, a participação dos anarquistas no movimento operário dará bons resultados, mas é somente nestas condições.

Esta tática parecerá às vezes, e até pode ser com efeito, nociva aos interesses imediatos de alguns grupos; mas isso não importa quando se trata da causa anarquista, – quer dizer, dos interesses gerais e permanentes da humanidade. Nós desejamos certamente, enquanto esperamos pela revolução, arrancar aos governos e aos patrões a maior soma possível de liberdade e bem-estar; mas não queremos comprometer o futuro em troca de algumas vantagens momentâneas, que para mais são amiúde ilusórias ou ganhas à custa de outros trabalhadores.

Acautelemo-nos. O erro de ter abandonado o movimento operário fez um mal imenso ao anarquismo, mas pelo menos deixou-lhe inalterado o caráter distintivo.

O erro de confundir o movimento anarquista com o corporativismo seria ainda mais grave. Suceder-nos-ia o que sucede aos sociais-democratas logo que entram na ação parlamentar: ganharam em força numérica, mas tornando-se cada vez menos socialistas. Nós também nos tornaríamos mais numerosos, mas deixaríamos de ser anarquistas.


Inclusão: 19/01/2022