Iniciação à Teoria Económica Marxista

Ernest Mandel


II. O CAPITAL E O CAPITALISMO


1. O CAPITAL NA SOCIEDADE PRÉ-CAPITALISTA
capa

Entre a sociedade primitiva que ainda assenta numa economia natural, na qual não se produzem, senão valores de uso destinados a ser consumidos pelos próprios produtores, e a sociedade capitalista, intercala-se um longo período da história da humanidade que engloba, no fundo todas as civilizações humanas que pararam na fronteira do capitalismo. O marxismo define-o como a sociedade da PEQUENA PRODUÇÃO MERCANTIL. É, pois, uma sociedade que já conhece a produção de mercadorias, de bens destinados não ao consumo directo dos produtores mas a serem trocadas no mercado, na qual, no entanto, a produção mercantil não se generalizou ainda como na sociedade capitalista.

Numa sociedade fundada na pequena produção mercantil, há duas espécies de operações económicas que são efectuadas. Os camponeses e artífices que vão ao mercado com os produtos do seu trabalho querem vender essas mercadorias, cujo- valor de uso não podem utilizar directamente, a fim de obter dinheiro, meios de troca para adquirir outras mercadorias, cujo valor de uso lhes faz falta ou é para eles mais importante que o valor de uso das mercadorias de que são proprietários.

O camponês vai ao mercado com trigo, vende trigo a dinheiro, e com esse dinheiro compra, por exemplo, tecidos. O artífice vem ao mercado com tecidos, vende os seus tecidos a dinheiro, e com esse dinheiro compra, por exemplo, trigo.

Trata-se por conseguinte da operação: VENDER PARA COMPRAR, Mercadoria — Dinheiro — Mercadoria, MDM, que se caracteriza por um facto essencial: nesta fórmula, o valor dos dois extremos é, por definição, exactamente o mesmo.

Mas na pequena produção mercantil aparece, ao lado do artífice e do pequeno camponês, uma outra personagem que efectua uma operação económica diferente. EM VEZ DE VENDER PARA COMPRAR, VAI COMPRAR PARA VENDER. Um homem que vai ao mercado, é um proprietário de dinheiro. O dinheiro não se pode vender; mas pode utilizar-se para comprar, e é o que ele faz: COMPRAR PARA VENDER, A FIM DE REVENDER: D-M-D!

Há uma diferença fundamental entre esta segunda operação e a primeira. É que esta segunda operação não tem sentido se no fim estivermos em frente exactamente do mesmo valor que ao princípio. Ninguém compra uma mercadoria para a revender exactamente ao mesmo preço pelo qual a tinha comprado. A operação: «comprar para vender» só tem sentido se a venda traz um suplemento de valor, UMA MAIS-VALIA. Por isso dizemos aqui que por definição A é maior que B e é composto de A + B, sendo B a mais-valia, o acréscimo de valor de A.

Definiremos agora O CAPITAL como UM VALOR QUE SE ACRESCE DE UMA MAIS-VALIA, quer isso se passe no decurso da circulação das mercadorias como no exemplo que acabamos de escolher, quer isso se passe na produção como é o caso no regime capitalista. O capital é por conseguinte todo o valor que se acresce duma mais-valia, e esse capital não existe só na sociedade capitalista, existe também na sociedade fundamentada na pequena produção mercantil. B preciso pois distinguir muito nitidamente a existência do CAPITAL e a existência do MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA, da sociedade capitalista. O capital é muito mais antigo que o modo de produção capitalista. O capital existe provavelmente há perto de 3000 anos, enquanto o modo de produção capitalista tem apenas 200 anos.

Qual é a forma do capital na sociedade pré-capitalista? É essencialmente no capital usurário e um capital mercantil ou comercial. A passagem da sociedade pré-capitalista à sociedade capitalista representa a penetração do capital na esfera da produção. O modo de produção capitalista é o primeiro modo de produção, a primeira forma de organização social, na qual o capital já não desempenha simplesmente o papel de intermediário e de explorador de formas de produção não capitalistas que continuam alicerçadas na pequena produção mercantil, mas nos quais o capital se apropriou dos meios de produção e penetrou na produção propriamente dita.

2. AS ORIGENS DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

Quais são as origens do modo de produção capitalista? Quais as origens da sociedade capitalista tal como ela se desenvolve desde há 200 anos?

É, primeiramente, a separação dos produtores dos seus meios de produção. É em seguida a constituição desses meios de produção em monopólio entre as mãos duma só classe social, a classe burguesa. E é finalmente a aparição duma outra classe social que, por estar separada dos seus meios de produção, não tem mais outros recursos para subsistir senão a venda da sua força de trabalho à classe que monopolizou os meios de produção.

Retomemos cada uma destas origens do modo de produção capitalista, que são ao mesmo tempo as características fundamentais do próprio regime capitalista.

Primeira característica: SEPARAÇÃO DO PRODUTOR DOS MEIOS DE PRODUÇÃO. É a condição de existência fundamental do regime capitalista, aquela que é menos bem compreendida. Tomemos um exemplo que pode parecer paradoxal, o da sociedade da alta idade média, caracterizada pela servidão.

Sabemos que nessa sociedade a massa dos produtores — camponeses são servos adstritos à gleba. Mas quando se diz que o servo está adstrito à gleba isso implica que a gleba está também ligada ao servo. Está-se em presença duma classe social que tem sempre uma base para prover às suas necessidades, porque o servo dispunha duma extensão de terra suficiente para que o trabalho de dois braços, mesmo com os instrumentos mais rudimentares, pudesse prover às necessidades dum lar. Não se está em presença de pessoas condenadas a morrer à fome no caso de não venderem a sua força de trabalho. Numa tal sociedade, NÃO HÁ POIS UMA OBRIGAÇÃO ECONÓMICA de ir alugar os seus braços, de ir vender a sua força de trabalho a um capitalista.

Noutros termos: numa sociedade deste género, o regime capitalista não pode desenvolver-se. Existe aliás numa aplicação moderna desta verdade geral, a saber, a maneira como os colonialistas introduziram o capitalismo nos países da África no século XIX e princípios do século XX.

Quais eram as condições de existência dos habitantes de todos os países africanos? Praticavam a pecuária, a cultura do solo, rudimentar ou não conforme a região, mas em todo o caso caracterizada por uma abundância relativa de terras. Não havia penúria de terra, em África; havia pelo contrário uma população que, em relação à extensão de terra, dispunha de reservas praticamente ilimitadas.

É certo que, nessas terras, com meios de agricultura muito primitivos, a colheita é medíocre, o nível de vida é extremamente baixo, etc. Contudo, não há força material a impelir essa população a ir trabalhar em minas, em fazendas ou em fábricas dum colono branco. Noutros termos: se não se mudasse o regime de propriedade na África Equatorial, na África Negra, não havia possibilidade de ali introduzir o modo de produção capitalista. Para o poder introduzir, teve de se cortar radical e brutalmente, por uma violência extra-económica, a massa da população negra dos seus meios normais de subsistência. Quer dizer, teve de se transformar uma grande parte das terras, dum dia para o outro, em terras dominais, propriedade do estado colonizador, ou em propriedade privada de sociedades capitalistas. Teve de se encerrar a população negra em domínios, em reservas, como comicamente lhes chamaram, numa extensão de terra que era insuficiente para alimentar todos os seus habitantes. E teve ainda de se impor uma capitação, isto é, um imposto em dinheiro por cada habitante, enquanto a agricultura primitiva não trazia rendimentos monetários.

Com estas diferentes pressões extra-económicas criou-se pois para o Africano uma obrigação de ir trabalhar como assalariado, quando mais não fosse, por dois, três meses ao ano, para ganhar em troca desse trabalho com que pagar o imposto e com que comprar o pequeno suplemento de alimentação sem o qual já não era possível a subsistência, dada a insuficiência das terras que ficam à sua disposição.

Em países como a África do Sul, como as Rodésias, como em parte o Congo ex-Belga, onde o modo de produção capitalista foi introduzido à mais larga escala, estes métodos foram aplicados à mesma escala e uma grande parte da população negra foi desenraizada, expulsa, empurrada para fora do seu modo de trabalho e vida tradicionais.

Mencionando-se entretanto a hipocrisia ideológica que acompanhou este movimento, as queixas das sociedades capitalistas e dos administradores brancos, segundo as quais os negros seriam uns mandriões, visto que não queriam trabalhar, mesmo quando lhes davam a possibilidade de ganhar 10 vezes mais na mina ou na fábrica do que ganhavam tradicionalmente nas suas terras. Estas mesmas queixas já se tinham feito ouvir contra os operários indianos, chineses ou árabes 50 ou 70 anos antes Foram também ouvidas — o que prova bem a igualdade fundamental de todas as raças humanas — com respeito aos operários europeus, franceses, belgas, ingleses, alemães, nos séculos XVII ou XVIII. Trata-se simplesmente da seguinte constante: normalmente, pela sua constituição física e nervosa, nenhum homem gosta de ficar fechado 8, 9, 10 ou 12 horas por dia numa fábrica; é preciso verdadeiramente uma força, uma pressão, totalmente anormais e excepcionais, para apanhar um homem que não está habituado a esse trabalho de forçado e para o obrigar a efetuá-lo.

Segunda origem, segunda característica do modo de produção capitalista: A CONCENTRAÇÃO DOS MEIOS DE PRODUÇÃO SOB FORMA DE MONOPÓLIO ENTRE AS MÃOS DUMA SÓ CLASSE SOCIAL, A CLASSE BURGUESA. Esta concentração é praticamente impossível se não houver uma revolução permanente dos meios de produção, se estes não se tornarem cada vez mais complexos e mais caros, pelo menos quando se trata dos meios de produção mínimos para poder começar uma grande empresa (gastos de fundação).

Nas corporações e nas profissões da Idade Média, havia grande estabilidade dos meios de produção; os teares eram’ transmitidos de pai a filho, de geração em geração. O valor desses teares era relativamente reduzido, isto é, todos os companheiros podiam esperar adquirir o valor correspondente a esses teares, após certo número de anos de trabalho. A possibilidade de constituir um monopólio apresentou-se com a revolução industrial, que desencadeou um desenvolvimento ininterrupto, cada vez mais complexo, do maquinismo, o que implica que eram necessários capitais cada vez mais importantes para poder começar uma nova empresa.

A partir desse momento, pode dizer-se que o acesso à propriedade dos meios de produção se torna impossível à imensa maioria dos assalariados e dos «appointés», e que a propriedade dos meios de produção se tornou um monopólio entre as mãos duma classe social, a que dispõe dos capitais, das reservas de capitais, e que pode acumular novos capitais pela simples razão de que já os possui. A classe que não possui capitais está condenada por esse mesmo facto a ficar sempre neste mesmo estado de carência, na mesma obrigação de trabalhar por conta de outrem.

Terceira origem, terceira característica do capitalismo: A APARIÇÃO DUMA CLASSE SOCIAL, QUE, NÃO TEM OUTROS BENS PARA ALÉM DOS SEUS PRÓPRIOS BRAÇOS, NÃO TEM OUTROS MEIOS DE PROVER AS SUAS NECESSIDADES SENÃO A VENDA DA SUA FORÇA DE TRABALHO, mas que é ao mesmo tempo livre de a vender e que vende por conseguinte aos capitalistas proprietários dos meios de produção. É a aparição do PROLETARIADO MODERNO.

Temos aqui três elementos que se combinam. O proletário é o trabalhador livre; é ao mesmo tempo um passo em frente e um passo atrás em relação aos servos da Idade Média; um passo em frente, porque o servo não era livre (o próprio servo era um passo em frente em relação ao escravo), não podia deslocar-se livremente; um passo atrás, porque, contrariamente ao servo, o proletário é igualmente «livre», isto é, privado de qualquer acesso aos meios de produção.

3. ORIGENS E DEFINIÇÃO DO PROLETARIADO MODERNO

Entre os antepassados directos do proletariado moderno, é preciso mencionar a população desenraizada da Idade Média, isto é, a população que já não estava ligada à gleba, nem incorporada nas profissões, nas corporações e nas guildas das comunas, que era por conseguinte uma população errante, sem raízes, e que começava a alugar os seus braços ao dia ou mesmo à hora. Houve bastantes cidades da Idade Média, nomeadamente Florença, Veneza e Bruges, onde a partir dos séculos XIII, XIV ou XV, aparece um «mercado de trabalho», o que quer dizer que há um canto da cidade onde todas as manhãs se ajuntam as pessoas pobres que não fazem parte dum mister, que não são companheiros de artesão, que não têm meios de subsistência, e que esperam que alguns comerciantes ou empresários aluguem os seus serviços por uma hora, por meio dia, por um dia, etc.

Uma outra origem do proletariado moderno, mais próxima de nós, é aquilo a que se chamou a dissolução dos séquitos feudais, por conseguinte a longa e e lenta decadência da nobreza feudal que começa a partir do século XIII, XIV e que termina por ocasião da revolução burguesa, aí pelo fim do século XVIII em França. Durante a alta Idade Média, há por vezes 50, 60, 100 lares mais ou menos que vivem directamente do senhor feudal. O número destes servidores individuais começa a reduzir-se, especialmente no decurso do século XVI, que é marcado por uma fortíssima alta dos preços, e por conseguinte por um grande empobrecimento de todas as classes sociais que têm rendimentos monetários fixos, e por isso igualmente da nobreza feudal na Europa ocidental que tinha geralmente convertido a renda em espécie em renda em dinheiro. Um dos resultados deste empobrecimento foi o despedimento em massa duma grande parte dos séquitos feudais. Houve assim milhares de antigos criados, de antigos servidores, de antigos amanuenses de nobres, que erravam ao longo dos caminhos que se tornavam mendigos, etc.

Uma terceira origem do proletariado moderno é a expulsão das suas terras duma parte dos antigos camponeses, em seguida à transformação das terras aráveis em pradarias. O grande socialista utópico inglês Thomas More teve, já no século XVI, esta fórmula magnífica: «Os carneiros comeram os homens»; isto é, a transformação dos campos em prados, para a criação dos carneiros, ligada ao desenvolvimento da indústria de lanifícios, expulsou das suas terras e condenou à fome milhares e milhares de camponeses ingleses.

Há ainda uma quarta origem do proletariado moderno, que teve um pouco menos influência na Europa Ocidental, mas que desempenhou um papel enorme na Europa central e oriental, na Ásia, na América latina e na África do Norte: é a destruição dos antigos artesãos na luta por concorrência entre esse artesanato e a indústria moderna que ia abrindo um caminho do exterior para esses países subdesenvolvidos.

Em resumo: o modo de produção capitalista é um regime no qual os meios de produção se tomaram um monopólio entre as mãos duma classe social, no qual os produtores, separados desses meios de produção, ficam livres mas desprovidos de qualquer meio de subsistência, e por conseguinte obrigados a vender a sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção para poderem subsistir.

O que caracteriza o proletário não é pois tanto o nível baixo ou elevado do seu salário, mas antes o facto de que está cortado dos seus meios de produção, ou não dispõe de rendimentos suficientes para trabalhar por conta própria.

Para saber se a condição proletária está em vias de desaparecimento, ou pelo contrário em vias de expansão, não é tanto o salário médio do operário ou o vencimento médio do empregado que é preciso examinar, mas sim a comparação entre esse salário e o seu consumo médio, noutros termos, as suas possibilidades de poupança comparadas aos gastos necessários à fundação de empresa independente. Se se verifica que cada operário, cada empregado, após dez anos de trabalho, pôs de parte um pé-de-meia digamos de 10 milhões, de 20 milhões ou 30 milhões, o que lhe permitiria a compra de uma loja ou de uma pequena oficina, então poder-se-ia dizer que a condição proletária está em regressão e que vivemos numa sociedade na qual a propriedade dos meios de produção está em vias de se expandir e de se generalizar.

Se, pelo contrário, se verifica que a imensa maioria dos trabalhadores, operários, empregados e funcionários, após uma vida de labor, continuam no papel de João-Ninguém, isto é, praticamente sem economias, sem capitais suficientes para adquirir meios de produção, poder-se-ia concluir que a condição proletária, longe de se reabsorver, antes se generalizou e está hoje muito mais expandida do que há 50 anos. Quando se tomam por exemplo as estatísticas da estrutura social dos Estados Unidos, constata-se que de há 60 anos a esta parte, de 5 em 5 anos, sem uma só interrupção, a percentagem da população activa americana que trabalha por sua própria conta, que é classificada como empresária ou como ajuda familiar de empresário, diminui, ao passo que de 5 em 6 anos a percentagem desta mesma população obrigada a vender a sua força de trabalho aumenta regularmente.

Se se examinarem por outro lado as estatísticas sobre a repartição da fortuna privada, constata-se que a imensa maioria dos operários, pode-se dizer 95% e a grande maioria dos empregados: (80 ou 85%) não conseguem sequer constituir pequenas fortunas, um pequeno capital, o que quer dizer que gastam todos os seus rendimentos e que as fortunas se limitam na realidade a uma pequeníssima fracção da população. Na maioria dos países capitalistas, 1%, 2%, 2,5%, 3,5% ou 5% da população possuem 40, 50, 60% da fortuna privada do país, ficando o resto nas mãos de 20 ou 25% dessa mesma população. A primeira categoria de detentores é a grande burguesia; a segunda categoria é a média e pequena burguesia. E todos os que estão fora dessas categorias não possuem praticamente nada a não ser bens de consumo (incluindo por vezes alojamento).

Quando feitas honestamente, as estatísticas sobre os direitos de sucessão, sobre os impostos sobre heranças, são muito reveladoras neste capítulo.

Um estudo preciso feito ;para a Bolsa de Nova Iorque pela Brookings Institution (uma fonte acima de toda a suspeita de marxismo) revela que nos Estados Unidos só 1 ou 2% dos operários possuem acções, e ainda que essa «propriedade» se eleva em média a 1000 dólares, isto é a 28 500$00.

A quase totalidade do capital está por conseguinte nas mãos da burguesia, e isto no regime de auto-reprodução» do regime capitalista: aquele que detém capitais pode acumular cada vez mais capitais; aqueles que os não têm dificilmente podem adquiri-los. Assim se perpetua a divisão da sociedade em uma classe detentora dos meios de produção e uma classe obrigada a vender a sua força de trabalho. O preço dessa força de trabalho, «o salário, é praticamente consumido na totalidade, enquanto a classe dominante tem um capital que se acresce constantemente duma mais-valia. O enriquecimento da sociedade em capitais efectua-se, por assim dizer em proveito exclusivo duma só classe da sociedade, a saber, a classe capitalista.

4. MECANISMO FUNDAMENTAL DA ECONOMIA CAPITALISTA

Qual é agora o funcionamento fundamental desta sociedade capitalista?

Se fordes um certo dia à Bolsa do pano estampado, não sabereis se há bastante, muito pouco ou demasiado pano estampado em relação às necessidades que nesse momento existem em França. Só depois de um certo tempo constatareis a coisa: isto é, quando há superprodução e uma parte da produção fica por vender, vereis os preços baixar, e quando pelo contrário há penúria, vereis os preços subir. O movimento dos preços é o termómetro que nos indica se há penúria ou excesso. E como é unicamente depois que se constata se toda a quantidade de trabalho despendido num ramo industrial foi despendido de maneira socialmente necessária ou se foi em parte desperdiçado, é somente depois que se pode determinar o valor exacto duma mercadoria. Este valor é, por conseguinte, digamos, uma noção abstracta, uma constante à volta da qual flutuam os preços.

Que é que faz oscilar os preços e por conseguinte, a mais longo prazo, esses valores, esta produtividade do trabalho, essa produção e essa vida económica no seu conjunto?

Que é que faz correr Sammy? Que é que faz bulir a sociedade capitalista? A CONCORRÊNCIA. Sem concorrência não há sociedade capitalista. Uma sociedade na qual a concorrência é total, radical e inteiramente eliminada, é uma sociedade que deixaria de ser capitalista, e por conseguinte para efectuar os 9/10' das operações económicas que os capitalistas efectuam.

E o que é que está na base da concorrência? Na base da concorrência há duas noções que não se sobrepõem necessariamente. Há antes de mais a noção de MERCADO ILIMITADO, de mercado não circunscrito, não exactamente recortado. Há depois a noção de MULTIPLICIDADE DOS CENTROS DE DECISÃO, sobretudo em matéria de investimentos e de produção.

Se há uma concentração total de toda a produção dum sector industrial nas mãos duma só firma capitalista, não há ainda eliminação da concorrência, porque subsiste sempre um mercado ilimitado e por conseguinte haverá sempre luta da concorrência entre esse sector industrial e outros sectores para açambarcarem uma parte maior ou menor do mercado. Há também sempre a possibilidade de ver reaparecer nesse sector mesmo um novo concorrente que se introduza do exterior.

A inversa é também verdadeira. Se se pudesse conceber um mercado que fosse total e completamente limitado, mas que ao mesmo tempo um grande número de empresas estivesse em liça para açambarcar uma parte desse mercado limitado, a concorrência subsistiria evidentemente.

Por conseguinte é somente se os dois fenómenos foram suprimidos simultaneamente, isto é, se não houver mais que um só produtor para todas as mercadorias e se o mercado se tomar absolutamente estável, fixo e sem capacidade de expansão, que a mercadoria poderá desaparecer totalmente.

A aparição do mercado ilimitado toma toda a . sua significação pela comparação com a época da pequena produção mercantil. Uma corporação da Idade Média trabalhava para um mercado limitado, em geral, na cidade e nas suas redondezas imediatas, e segundo uma técnica de trabalho que era fixa e bem determinada.

A passagem histórica do mercado limitado ao mercado ilimitado é ilustrada pelo exemplo da «nova tecelagem» no campo, que no século XV se substitui à antiga tecelagem na cidade. Há agora manufacturas de tecidos, sem regras corporativas, sem limitação de produção, e por isso sem limitação de mercados, que procuram infiltrar-se, encontrar clientes em toda a parte, e isto não já somente nas cercanias imediatas dos seus centros de produção, mas que procuram organizar a exportação mesmo para países muito longínquos. Por outro lado, a grande revolução comercial do século XVI provoca uma redução relativa dos preços de uma série completa de produtos que eram considerados produtos de grande luxo na Idade Média, e que só podiam ser comprados por uma pequena parte da população. Estes produtos tomam-se agora bruscamente produtos muito menos caros, senão mesmo produtos à disposição duma parte importante da população. O exemplo mais impressionante é o do açúcar, que é hoje um produto banal, do qual não se priva sem dúvida nem uma só família operária em França ou na Europa, mas que no século XV era ainda um produto de grande luxo.

Os apologistas do capitalismo sempre citaram como benefício produzido por este sistema a redução dos preços e o alargamento do mercado, para uma série completa de produtos. E um argumento justo. É um dos aspectos daquilo a que Marx chama «a missão civilizadora do capital». Claro que se trata de um fenómeno dialéctico mas real, que fez que se o valor da força de trabalho tem tendência a baixar porque a indústria capitalista produz cada vez mais rapidamente as mercadorias que são o equipamento do salário, pelo contrário tem também tendência a aumentar porque esse valor abraça progressivamente o valor de uma série completa de mercadorias que se tomaram mercadorias de largo consumo de massa, ao passo que dantes eram mercadorias de consumo duma parte multo, pequena da população.

No fundo, TODA A HISTORIA DO COMERCIO ENTRE OS SÉCULOS XVI E XX É A HISTORIA DA TRANSFORMAÇÃO PROGRESSIVA DO COMÉRCIO DE LUXO EM COMERCIO DE MASSA, em comércio de bens para uma parte cada vez mais larga da população. Só com o desenvolvimento dos caminhos de ferro, dos meios de navegação rápida, dos telégrafos, etc., é que o conjunto do mundo pôde ser reunido num verdadeiro mercado potencial para cada grande produtor capitalista.

A noção do mercado ilimitado não implica pois só a expansão geográfica, mas ainda a expansão económica, o poder de compra disponível. Tomemos um exemplo recente: o surto formidável da produção capitalista mundial durante os quinze últimos anos não se realizou de forma alguma graças a uma expansão geográfica do mercado capitalista; pelo contrário, foi acompanhado de uma redução geográfica do mercado capitalista, visto que uma série completa de países lhe escaparam durante este período. Há muito poucas, se é que há mesmo, viaturas francesas, italianas, alemãs, britânicas, japonesas, americanas exportadas para a União Soviética, para a China, para o Vietnam do Norte, para Cuba, para a Coreia do Norte, para os países da Europa Oriental. Contudo, essa expansão realizou-se na mesma, porque uma fracção muito maior do poder de compra disponível, ele mesmo, aliás, aumentado, foi utilizado para a compra desses bens de consumo durável. Não é por acaso que essa expansão foi acompanhada duma crise agrícola mais ou menos permanente nos países capitalistas industrialmente avançados, onde o consumo de uma série completa de produtos agrícolas não somente já não aumenta relativamente, mas começa mesmo a diminuir de maneira absoluta. Por exemplo, o consumo do pão, das batatas, de frutos como as maçãs e as peras mais banais, etc.

A produção para um mercado ilimitado, em condições de concorrência, tem como efeito o aumento da produção, porque o aumento da produção permite a redução do preço de custo e permite por conseguinte bater o concorrente vendendo mais barato do que ele.

E incontestável que, se olharmos a evolução a longo prazo do valor de todas as mercadorias produzidas em grande escala, no mundo capitalista, há uma baixa considerável de valor. Um fato, uma faca, um par de sapatos, um caderno escolar, têm hoje um valor em horas e em minutos de trabalho muito mais reduzido que há 50 ou 100 anos.

É preciso evidentemente comparar o valor real com a produção e não com os preços de venda, que englobam quer enormes despesas de distribuição e de venda, quer super-lucros monopolísticos excessivos. Tomemos o exemplo do petróleo, sobretudo o petróleo que utilizámos na Europa, o petróleo que provém do Médio Oriente. As despesas de produção são muito baixas, elevando-se apenas a 10% do preço de venda.

É pois em todo o caso incontestável que esta queda de valor produziu-se realmente. O aumento da produtividade do trabalho significa redução de valor das mercadorias, visto que estas são fabricadas num tempo de trabalho cada vez mais reduzido. É esse o instrumento prático de que dispõe o capitalismo para alargar os mercados e vencer na concorrência.

De que maneira prática pode o capitalismo ao mesmo tempo reduzir multo fortemente o preço de custo e aumentar muito fortemente a produção? Pelo DESENVOLVIMENTO DO MAQUINISMO, pelo desenvolvimento dos meios de produção, e por isso dos instrumentos mecânicos de trabalho, cada vez mais complicados, primeiro movidos pela força do vapor, em seguida pelo petróleo ou gasóleo, por fim pela electricidade.

5. O AUMENTO DA COMPOSIÇÃO ORGÂNICA DO CAPITAL

Toda a produção capitalista pode ser representada no seu valor pela fórmula: C + V + PL.

O valor de qualquer mercadoria decompõe-se em duas partes: uma parte que constitui um VALOR CONSERVADO, e uma parte que é um VALOR PRODUZIDO DE NOVO. A força de trabalho tem uma dupla função, um duplo valor de uso: conservar todos os valores existentes dos instrumentos de trabalho, das máquinas, dos edifícios, incorporando uma fracção desse valor na produção corrente; e criar um novo valor, do qual a mais-valia, o proveito, constitui uma parte. Uma parte deste novo valor vai para o operário; é o contra-valor do seu salário. A outra parte, a mais-valia, é açambarcada sem contra-valor, pelo capitalista.

Designamos por V, isto é, capital variável, o equivalente dos salários. Porquê capital? Porque efectivamente o capitalista adianta esse valor, que assim constitui uma parte do seu capital, e é despendido antes de o valor das mercadorias produzidas pelos operários em questão ser realizado.

Chama-se capital constante, C, a toda a parte do capital que é transformado em máquinas, em edifícios, em matérias primas, etc., cuja produção não aumenta o valor, mas simplesmente o conserva. Chama-se capital variável, V, à parte do capital com que o capitalista compra a força de trabalho, porque só essa parte do capital é que permite ao capitalista aumentar o seu capital com uma mais-valia.

Qual é, então, a lógica económica da concorrência, do impulso para o aumento da produtividade, do impulso para o crescimento dos meios mecânicos, do trabalho das máquinas? A lógica desse impulso, isto é, a tendência fundamental do regime capitalista, é aumentar o peso de C, o peso do capital constante relativamente ao conjunto do capital. Na fracção C / C+V, C tem tendência a aumentar, isto é, a parte do capital total constituído por máquinas e matérias primas, e não por salários, tem tendência a aumentar na medida em que o maquinismo progride cada vez mais e em que a concorrência obriga o capitalismo a aumentar cada vez mais a produtividade do trabalho.

A esta fracção C/C+V damos o nome de composição orgânica do capital. Representa pois a relação entre o capital constante e o conjunto do capital, e dizemos que em regime capitalista esta composição orgânica tem tendência a aumentar.

Como é que o capitalista pode adquirir novas máquinas? O que quer dizer que o capital constante aumenta cada vez mais?

A operação fundamental da economia capitalista é a produção da mais-valia. Mas, enquanto a mais-valia for simplesmente PRODUZIDA, mantém-se encerrada em mercadorias, e o capitalista mal a pode utilizar. Não se podem transformar sapatos por vender em máquinas novas, em maior produtividade. Para poder comprar novas máquinas, o industrial que possui sapatos deve vender esses sapatos, e uma parte do produto dessa venda servir-lhe-á para a compra de novas máquinas, de um capital constante suplementar.

Por outras palavras: A REALIZAÇÃO DA MAIS-VALIA E A CONDIÇÃO DA ACUMULAÇÃO DO CAPITAL, que outra coisa não é senão a capitalização da mais-valia.

A realização da mais-valia é a venda de mercadorias, mas venda de mercadorias em condições tais que a mais-valia contida nessas mercadorias seja efectivamente realizada no mercado. Todas as empresas que trabalham à média da produtividade da sociedade — correspondendo pois o conjunto da sua produção a trabalho socialmente necessário — consideram-se como realizando pela venda das suas mercadorias o conjunto do valor e da mais-valia produzida nas suas fábricas, nem mais, nem menos. Já sabemos que as empresas que têm uma produtividade acima da média vão açambarcar uma parte da mais-valia produzida noutras empresas, enquanto as empresas que trabalham abaixo da produtividade média não realizam uma parte da mais-valia produzida nas suas fábricas, mas cedem-na a outras fábricas que estão tecnologicamente na vanguarda. A realização da mais-valia é por conseguinte a venda das mercadorias em condições tais que o conjunto da mais-valia produzida pelos operários da fábrica dessas mercadorias é efectivamente paga pelos seus compradores.

No momento em que o acervo de mercadorias produzidas durante um período determinado é vendido, o capitalista entrou na posse duma soma de dinheiro que constitui o contra-valor do capital constante que despendeu para produzir, ou seja, tanto das matérias primas utilizadas para produzir essas mercadorias, como da fracção do valor das máquinas e dos edifícios que é depreciada por essa produção. Entrou igualmente na posse do contra-valor dos salários que tinha adiantado para possibilitar essa produção. Além disso, está na posse da mais-valia que os seus operários tinham produzido.

Que acontece a esta mais-valia? Uma parte é CONSUMIDA IMPRODUTIVAMENTE pelo capitalista. Com efeito, o pobre homem tem de viver, tem de fazer viver a sua família e todos os que estão à sua roda; e tudo o que ele gasta para esse fim é totalmente retirado do processo de produção.

Uma segunda parte da mais-valia é acumulada, é utilizada para ser transformada em capital. Assim, a mais-valia acumulada é toda a parte da mais-valia que não é consumida improdutivamente para as necessidades privadas da classe dominante e é transformada em capital, quer dizer numa quantidade (mais exactamente: um valor) suplementar de matérias primas, de máquinas, de edifícios, quer em capital variável suplementar, quer dizer meios para admitir mais operários.

Compreendemos agora porque é que a acumulação do capital é a capitalização da mais-valia, isto é, a transformação duma grande parte da mais-valia em capital suplementar. E compreendemos igualmente como é que o processo de aumento da composição orgânica do capital representa uma sequência ininterrupta de processos de capitalizações, isto é, de produção de mais-valia pelos operários e sua transformação pelos capitalistas em edifícios, máquinas, matérias-primas e operários suplementares.

Não é, pois, exacto afirmar que é o capitalista que cria o emprego, visto que ó o operário que produziu a mais-valia, e é esta mais-valia produzida pelo operário que é capitalizada pelo capitalista e utilizada normalmente para admitir operários suplementares. Na realidade, toda a massa das riquezas fixas que se vêem no mundo, toda a massa das fábricas, das máquinas e das estradas, dos caminhos de ferro, dos portos, dos armazéns, etc., etc., toda esta massa imensa de riquezas não é outra coisa senão a materialização duma massa de mais-valia criada pelos operários, de trabalho não retribuído e transformado em propriedade privada, em capital para os capitalistas, ou seja, é uma prova colossal da exploração permanente sofrida pela classe operária desde a origem da sociedade capitalista.

Será que todos os capitalistas aumentam progressivamente as suas máquinas, o seu capital constante e a composição orgânica do seu capital? Não. O crescimento da composição orgânica do capital efectua-se de maneira antagónica, através duma luta de concorrência regida por essa lei ilustrada por uma gravura do grande pintor do meu país, Pierre Brueghel: OS PEIXES GRANDES COMEM OS PEQUENOS.

A luta de concorrência é pois acompanhada duma concentração constante do capital, da substituição dum grande número de empresários por um número mais pequeno, e da transformação dum certo número de empresários independentes em técnicos, gerentes, quadros, e até em simples empregados e operários dependentes.

6. A CONCORRÊNCIA CONDUZ À CONCENTRAÇÃO E AOS MONOPÓLIOS

A concentração do capital é outra lei permanente da sociedade capitalista e é acompanhada da proletarização duma parte da classe burguesa, da expropriação dum certo número de burgueses por um número mais pequeno de burgueses. E por isso que o «Manifesto Comunista» de Marx de Engels põe em ênfase o facto de que o capitalismo, que pretende defender a propriedade privada, é na realidade destruidor dessa mesma propriedade e efectua uma expropriação constante, permanente, dum grande número de proprietários por um número relativamente pequeno de proprietários. Há alguns ramos industriais em que essa concentração é particularmente impressionante: as minas de carvão, em que, no século XIX, havia centenas de sociedades num país como a França (na. Bélgica havia perto de duzentas); a indústria automóvel, que, ao princípio deste século, contava em países com os Estados Unidos ou como a Inglaterra 100 firmas ou mais, quando hoje se encontra reduzida a 4, 5 ou 6 firmas no máximo.

Existem, claro está, indústrias nas quais essa, concentração é menos acentuada, como por exemplo a indústria têxtil, a indústria alimentar, etc. Duma maneira geral, quanto maior é a composição orgânica do capital num ramo industrial, mais forte é a concentração nesse ramo; quanto menos elevada a composição orgânica do capital, menor é a concentração do capital. Porquê? Porque quanto menos forte for a composição orgânica do capital, menos capitais são necessários no princípio para penetrar nesse ramo e para nele constituir uma nova empresa. E muito mais fácil juntar os 50 ou 100 milhões de antigos francos necessários para construir uma nova fábrica de tecidos, do que reunir os 10 biliões ou 20 biliões necessários para construir uma fábrica de aço mesmo relativamente pequena.

O capitalismo nasceu da livre concorrência, o capitalismo é inconcebível sem concorrência. Mas a livre concorrência produz; a concentração, e a concentração produz o contrário da livre concorrência, a saber, o monopólio. Onde houver poucos produtores, podem estes facilmente concertar-se à custa dos consumidores, pondo-se de acordo para repartirem entre si o mercado, pondo-se de acordo para suster toda a baixa' dos preços.

No espaço de um século, toda a dinâmica capitalista parece assim ter mudado de natureza. Primeiro temos um movimento que tende para a baixa constante dos preços pelo aumento constante da produção, pela multiplicação constante do número das empresas. A acentuação da concorrência arrasta a partir de determinado momento a concentração das empresas, uma redução do número das empresas que podem então concertar-se entre si para não mais reduzirem os preços e que não podem respeitar acordos deste género senão limitando a produção. A era do capitalismo dos monopólios substitui-se assim à era do capitalismo de livre concorrência a partir do último quartel do séc. XIX.

Claro está quando se fala do capitalismo dos monopólios, não devemos de maneira nenhuma pensar num capitalismo que eliminou por completo a concorrência. isso não existe. Quer-se dizer simplesmente num capitalismo cujo comportamento fundamental se tornou diferente, isto é, que já não impele a uma diminuição constante dos pregos por um aumento constante da produção, que utiliza a técnica da repartição do mercado, da estabilização das quotas-partes do mercado. Mas este processo acaba num paradoxo. Porque é que os capitalistas que, a princípio, se faziam mutuamente concorrência, começam a concentrar-se a fim de limitar essa concorrência, e limitar também a produção ? Porque para eles esta é um meio de aumentar os seus benefícios. Não o fazem senão no caso de isso lhes trazer mais lucros. A limitação da produção, permitindo aumentar os preços, traz mais rendimentos e permite assim acumular mais capitais? Já não se podem investir no mesmo ramo. Porque, investir capitais significa justamente aumentar a capacidade de produção, por conseguinte aumentar a produção, por conseguinte fazer baixar os preços. O capitalismo encontra-se preso nesta contradição a partir do último quartel do século XIX. Adquire então bruscamente uma qualidade que só Marx tinha previsto e que não foi compreendida por economistas como Ricardo ou Adam Smith: bruscamente o modo de produção capitalista faz proselitismo. Começa a. estender-se no mundo inteiro por meio das EXPORTAÇÕES DE CAPITAIS, que permitem estabelecer empresas capitalistas em países ou sectores em que os monopólios ainda não existem.

A consequência da monopolização de certos ramos e da extensão do capitalismo dos monopólios em certos países, é a reprodução do modo de produção capitalista em ramos ainda não monopolizados, em países ainda não capitalistas. Foi assim que o colonialismo e todos os seus aspectos se expandiram como um rastilho de pólvora, no espaço de algumas dezenas de anos, duma pequena parte do globo a que se tinha limitado dantes o modo de produção capitalista ao conjunto do mundo, nos começos do séc. XX. Cada país do mundo estava assim transformado em esfera de influência e campo de investimento do Capital.

7. QUEDA TENDENCIAL DA TAXA MÉDIA DE LUCRO

Vimos há pouco que a mais-valia produzida pelos operários de cada fábrica fica «encerrada» nas mercadorias produzidas, e que a questão de saber se essa mais-valia será ou não realizada pelo capitalista proprietário da fábrica será resolvida pelas condições do mercado, isto é, pela possibilidade que essa fábrica tem de vender as suas mercadorias a um preço que permita realizar toda essa mais-valia. Aplicando a lei do valor já exposta, explicada e demonstrada anteriormente pode estabelecer-se a, seguinte regra: Todas as empresas que produzem ao nível médio de produtividade realizarão grosso modo a mais-valia produzida pelos operários, isto é, venderão as suas mercadorias a um preço que será igual ao valor dessas mercadorias.

Mas não será esse o caso de duas categorias de empresas: as empresas que trabalham abaixo e as empresas que trabalham acima do nível médio de produtividade.

O que representa a categoria das empresas que trabalham abaixo do nível médio de produtividade? Não é outra coisa senão uma generalização do nosso sapateiro mandrião acima referido. É, por exemplo, uma fábrica de aço que, em face da média nacional de 500 000 toneladas de aço produzidas em 2 milhões de horas de trabalho-homens, os produz em 2,2 milhões de horas, ou em 2,5 milhões de horas, ou em 3 milhões de horas. Desperdiça por conseguinte tempo de trabalho social. A mais-valia produzida pelos operários dessa fábrica não será realizada por inteiro pelos proprietários da mesma. A fábrica trabalhará com um lucro que ficará abaixo da média do lucro de todas as empresas do país.

Mas a massa total da mais-valia produzida na sociedade é uma massa fixa que depende em última análise do número total de horas de trabalho fornecidas pelo conjunto dos operários empenhados na produção. Quer isto dizer que, se há um certo número de empresas que, pelo facto de trabalharem abaixo do nível de produtividade e de terem desperdiçado tempo de trabalho social, não realizam o conjunto da mais-valia produzida pelos seus operários, há um saldo de mais-valia que fica disponível e que será açambarcado pelas fábricas que trabalham acima do nível médio de produtividade, que por conseguinte economizaram tempo de trabalho social e que são por isso recompensados pela sociedade.

Esta explicação teórica não faz senão demonstrar os mecanismos que determinam o movimento dos preços na sociedade capitalista. Como é que esses mecanismos operam na prática?

Pondo de parte a visão de vários ramos industriais para não considerar senão um único ramo, o mecanismo torna-se muito simples e transparente.

Digamos que o preço de venda médio duma locomotiva se eleva a 50 milhões de antigos francos. Qual será, então, a diferença entre uma fábrica que trabalha abaixo da produtividade média do trabalho, e uma empresa que trabalha acima da produtividade média de trabalho? A primeira terá gasto para produzir uma locomotiva 49 milhões, isto é, não terá feito senão um milhão de lucro. Pelo contrário; a empresa que trabalhe acima da produtividade média do trabalho produzirá a mesma locomotiva com um gasto digamos de 38 milhões. Terá por conseguinte feito 12 milhões de rendimento, ou seja, 32% sobre essa produção corrente, ao passo que a taxa média de lucro é 10%, dado que as empresas que trabalhem à média da produtividade social do trabalho produziram locomotivas ao preço de venda de 45,5 milhões e por conseguinte não realizaram senão 4,5 milhões de rendimentos, ou seja, 10%.(1)

Noutros termos: a concorrência capitalista joga a favor das empresas que tecnologicamente estão à frente; estas empresas realizam super-lucros em relação ao lucro médio. O lucro médio é no fundo uma noção abstracta, exactamente como o valor. E UMA MEDIA à volta da qual oscilam as taxas de lucros reais dos diversos ramos e empresas. Os capitais afluem aos ramos em que há super-lucros, e fogem dos ramos em que os lucros estão abaixo da média. Por este fluxo e refluxo dos capitais dum ramo a outro, as taxas de lucro têm tendência a aproximar-se dessa média, sem jamais a, alcançar totalmente de maneira absoluta e mecânica.

Eis pois como se efectua a perequação da taxa de lucro. Há um meio muito simples de determinar essa taxa de lucro no plano abstracto: é tomar a massa total da mais-valia produzida por todos os operários, por exemplo, durante um ano, num pais determinado, e referi-la à massa total do capital investido nesse pais.

Qual é a fórmula da taxa de lucro ? E a relação entre a mais-valia e o conjunto do capital. E por conseguinte PL/C+V. Deve igualmente tomar-se em consideração uma outra fórmula: PL/V; é A TAXA DA MAIS-VALIA, ou ainda A TAXA DE EXPLORAÇÃO DA CLASSE OPERARIA. Essa taxa determinaria a maneira como o valor que acaba de se produzir é repartido entre operários e capitalistas. Se, por exemplo, PL/V é igual a 100%, isso quer dizer que o valor que se produziu é dividido em duas partes iguais, a primeira das quais vai para os trabalhadores sob forma de salários, e a outra para o conjunto da classe burguesa sob a forma de lucros, juros, rendas, etc.

Quando a taxa de exploração da classe operária é de 100%, o dia de trabalho de 8 horas decompõe-se por conseguinte em duas partes iguais: 4 horas de trabalho durante as quais os operários produzem o contra-valor dos seus salários, e 4 horas durante as quais fornecem trabalho gratuito, trabalho não remunerado pelos capitalistas e cujo produto é apropriado por estes.

A primeira vista, se a fracção PL/C+V aumenta, quando a composição orgânica do capital aumenta igualmente e C se torna cada vez maior em relação a V, esta fracção tenderá a diminuir, havendo por isso diminuição da taxa média de lucro em consequência do aumento da composição orgânica do capital, visto que PL é produzido só por V e não por C. Mas há um facto que pode neutralizar o efeito do aumento da composição orgânica do capital: é precisamente o aumento da taxa da mais-valia.

Se PL sobre V, a taxa da mais-valia aumenta, isso quer dizer que na fracção PL/C+V , numerador e denominador aumentam ambos, e neste caso o conjunto desta fracção pode conservar o seu valor, na condição de os dois aumentos se fazerem numa determinada proporção.

Noutros termos: O aumento da taxa da mais-valia pode neutralizar os efeitos do aumento da composição orgânica do capital. Suponhamos que o valor da produção C + V + PL passa de 100 C + 100 V + 100 PL a 200 C + 100 V + 100 PL. A composição orgânica de capital passou assim de 50 a 66%, a taxa de lucro caiu de 50 a 33%.

Mas se ao mesmo tempo a mais-valia passa de 100 a 150, isto é, se a taxa da mais-valia passa de 100 a 150% então a taxa de lucro 150/300, fica sendo de 50%: o aumento da taxa da mais-valia neutralizou o efeito do aumento da composição orgânica do capital.

Estes dois movimentos poderão produzir-se exactamente na proporção necessária para se neutralizarem um ao outro? Aqui tocamos na fraqueza fundamental, no calcanhar de Aquiles do regime capitalista. Estes dois movimentos não podem produzir-se, com o tempo, na mesma proporção. Não há nenhum limite ao aumento da composição orgânica do capital. No limite, V pode mesmo cair a zero, quando se chega à automação total. Mas poderá PL/V aumentar igualmente de maneira ilimitada, sem limite algum? Não, porque para que haja mais-valia produzida, é preciso que haja operários a trabalhar, e nestas condições a fracção do dia de trabalho durante o qual o operário reproduz o seu próprio salário não pode cair a zero. Pode ser reduzida de 8 horas a 7 horas, de 7 horas a 6 horas, de 6 horas a 5 horas, de 5 horas a 4 horas, de 4 horas a 3 horas, de 3 horas a 2 horas, de 2 horas e 1 hora, a 50 minutas. Seria já uma produtividade fantástica, a que permitisse ao operário produzir o contra-valor de todo o seu salário em 50 minutos. Mas o operário não poderá nunca reproduzir o contra-valor do seu salário em zero minutos, zero segundos. Há aí um resíduo que a exploração capitalista não pode nunca suprimir. Isto significa que, com o tempo, a queda da taxa média de lucro é inevitável, e creio pessoalmente, ao contrário de não poucos teóricos marxistas, que essa queda é aliás demonstrável em números, isto é, que hoje as taxas média de lucro nos grandes países capitalistas são multo mais baixas que há 50, 100 ou 150 anos.

Claro está quando se examinaram períodos mais curtos, há movimentos em sentido diverso; há muitos factores que entram em jogo (deles falaremos de novo a seguir, quando tratarmos do neocapitalismo). Mas para períodos mais longos, o movimento é muito claro, tanto para a taxa de juros como para a taxa de lucro. Devemos aliás lembrar que de todas as tendências de evolução do capitalismo, é esta a que sempre foi mais nitidamente apercebida pelos próprios teóricos do capitalismo. Dela fala Ricardo; John Stuart Mill insiste nela; Keynes é-lhe extremamente sensível. Houve uma espécie de adágio popular na Inglaterra no fim do século XIX: o capitalismo pode suportar tudo, excepto uma queda da taxa média de juro a 2%, porque tal queda suprimiria o incentivo ao investimento.

Este adágio encerra evidentemente um certo erro de raciocínio. Os cálculos de percentagem, de taxas de lucro, têm um valor real, mas um valor em suma relativo para um capitalista. O que lhe interessa não é somente a percentagem que ganha sobre o seu capital, é também a soma total que ganha. E se os 2% se aplicam não a 100 000 mas a 100 milhões, representam ainda assim 2 milhões, e o capitalista refletirá 10 vezes antes de dizer que prefere deixar o seu capital ganhar bolor, a contentar-se com esse lucro inteiramente detestável que são apenas 2 milhões por ano.

Assim, na prática, o que se vê não é uma suspensão total da actividade de investimento em consequência da queda da taxa de lucro e de juro, mas antes um afrouxamento à medida que a taxa de lucro cai num ramo de indústria. Pelo contrário, nos ramos industriais ou nas épocas em que há uma expansão mais rápida e em que a taxa de lucro tende a aumentar, a actividade de investimento recrudesce e torna-se muito mais rápida, e então o movimento parece alimentar-se de si mesmo e essa expansão parece processar-se sem limites, até que a tendência se inverta de novo.

8. A CONTRADIÇÃO FUNDAMENTAL DO REGIME CAPITALISTA E AS CRISES PERIÓDICAS DE SOBRE-PRODUÇÃO

O capitalismo tem tendência a expandir a produção de maneira ilimitada, a alargar o seu raio de acção ao mundo inteiro, a encarar todos os homens como clientes potenciais (há que sublinhar uma curiosa contradição, da qual Marx já falou: cada capitalista quereria sempre que os outros capitalistas aumentassem os salários dos seus operários, porque os salários desses operários representam poder de compra para as mercadorias do capitalista em questão. Mas não admite que os salários dos seus próprios operários aumentem, porque isso reduziria evidentemente o seu próprio lucro).

Existe por conseguinte uma extraordinária estruturação do mundo que se torna uma unidade económica, com uma interdependência extremamente sensível entre as suas diferentes partes. São conhecidos todos os estribilhos que a este respeito foram utilizados: se alguém espirra na Bolsa de Nova Iorque, há 10 000 camponeses da Malásia que ficam arruinados.

O capitalismo produz uma extraordinária interdependência dos rendimentos e unificação dos gostos de todos os homens. O homem torna-se bruscamente consciente de toda a riqueza das possibilidades humanas, ao passo que na sociedade pré-capitalista estava fechado nas estreitas possibilidades naturais duma só região. Na Idade Média não se comia ananás na Europa, só se comiam os frutos locais. Agora comem-se os frutos que, praticamente, se produzem em todo o mundo, passou-se mesmo a comer frutos da China e da índia aos quais ainda não se estava habituado antes da segunda guerra mundial.

Há por conseguinte laços recíprocos que se estabelecem entre todos os produtos e todos os homens. Há, noutros termos, uma SOCIALIZAÇÃO PROGRESSIVA DE TODA A VIDA ECONÓMICA, que se toma um só conjunto, um só tecido. Simplesmente, todo esse movimento de interdependência roda loucamente à volta do interesse privado, a apropriação privada, dum pequeno número de capitalistas cujos interesses privados entram aliás cada vez mais em contradição com os interesses de muitos milhões de seres humanos englobados nesse conjunto.

É nas crises económicas que a contradição entre a socialização progressiva da produção e a aproximação privada que lhe serve de motor e de suporte se revela da maneira mais extraordinária. Porque as crises económicas capitalistas são fenómenos inverosímeis, como nunca antes se tinha visto. Não são crises de PENÚRIA, como todas as crises pré-capitalistas; são crises de SOBRE-PRODUÇÃO. Não é por haver demasiadamente pouco que comer, mas por serem relativamente demasiados os produtos alimentares que os desempregados bruscamente morrem à fome.

A primeira vista isto parece uma coisas incompreensível. Como é que se pode morrer à fome por haver alimentação de mais, por haver mercadorias de mais? Mas o mecanismo do regime capitalista faz compreender este aparente paradoxo. As mercadorias que não encontram compradores não somente deixam de realizar a sua mais-valia, mas nem sequer mesmo já reconstituem o capital investido. A má venda obriga pois os empresários a fechar as portas das empresas. São por isso obrigados a despedir os seus trabalhadores. E visto que esses trabalhadores despedidos não dispõem de reservas, visto que não podem subsistir senão vendendo a sua força de trabalho, o desemprego condena-os evidentemente à mais negra miséria, precisamente por que a abundância relativa das mercadorias provocou a sua má venda.

O facto das crises económicas periódicas é inerente ao regime capitalista e permanece para ele insuperável. Veremos mais adiante que isso continua a ser verdadeiro também no regime neocapitalista em que vivemos agora, mesmo se a essas crises se dão então o nome de «recessões». As crises são a mais nítida manifestação da contradição fundamental do regime, e o aviso periódico de que está condenado a morrer tarde ou cedo. Mas não morrerá jamais de morte automática. Será sempre preciso dar-lhe um piparotezinho consciente para o condenar definitivamente, e esse piparote é a nós, e ao movimento operário que compete dar-lho.


Notas de rodapé:

(1) Na realidade, os capitalistas não calculam as suas taxas de lucro com a produção corrente (fluxo), mas sobre o seu capital investido (stock), para não complicar os cálculos, pode supor-se (ficticiamente) que todo o capital foi absorvido pela produção duma locomotiva. (retornar ao texto)

Inclusão: 16/06/2020