História do Mundo
Volume II - O Período Moderno

A. Z. Manfred


Capítulo X - A Rússia no Século Dezanove (1800-1860)


A Crise da Economia Feudal Baseada na Servidão. O Desenvolvimento do Capitalismo
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No início do século XIX, as forças que conduziriam finalmente à desintegração dos padrões sociais feudais e da servidão na Rússia começaram a cristalizar. Este processo gradual, juntamente com o desenvolvimento das primeiras fases do capitalismo, tinha começado algum tempo antes, mas só agora a nova ordem parecia declaradamente obsoleta e um obstáculo ao progresso do país. A indústria russa nesta altura estava a desenvolver-se, havia cada vez maior número de fábricas e era preciso trabalho assalariado para as pôr a funcionar. Entretanto, os camponeses estavam ainda ligados à terra, eram considerados propriedade dos senhores, e este facto impedia a formação de uma classe operária, essencial para a indústria nascente. O comércio desenvolvia-se rapidamente, o mercado crescia, enquanto a grande maioria das massas trabalhadoras permanecia numa situação de servidão e de incapacidade de se dedicar livremente ao comércio, o que significava que uma nova esfera do desenvolvimento económico estava impossibilitada de se desenvolver por causa da servidão. Estava em formação uma nova classe, a burguesia, mas o seu desenvolvimento era também travado pelos padrões sociais e pelos códigos da sociedade feudal: surgiram mesmo situações ridículas em que ricos mercadores servos, ou donos das fábricas, lidavam com grandes capitais, empregavam centenas de operários, mas estavam ainda oficialmente registados como servos pertencendo a um proprietário qualquer que tinha o direito de os vender ou de lhes tirar os seus bens, porque eles próprios eram oficialmente propriedade do senhor. O aparecimento de relações capitalistas na agricultura nesta época exigia camponeses livres e senhores das suas coisas. Assim ocorriam espontaneamente revoltas dos servos cada vez com mais frequência. Estas revoltas multiplicaram-se particularmente depois da guerra patriótica de 1812. Depois da vitória sobre Napoleão, os camponeses protestaram: «Libertamos a nossa pátria do tirano, mas estamos agora a ser tiranizados pelos nossos próprios senhores.» «A luta entre os povos e os imperadores» que tinha estalado na Europa Ocidental, espalhava-se agora pela Rússia. Uma revolta camponesa particularmente ampla rebentou na área do Don em 1818 - 1820. Também houve agitação e descontentamento no exército czarista.

O principal estadista do Império, depois da guerra de 1812, foi o limitado e grosseiro tirano Arakcheyev, amigo íntimo de Alexandre I, que foi depois conhecido como «opressor de toda a Rússia». Foi ele que deu ordens para introduzir no exército a prática do chicote para eliminar nos soldados o espírito de amor à liberdade. Foi ainda promulgada a lei marcial em muitas aldeias junto de Novgorod e de Kharkov; os camponeses eram obrigados simultaneamente a trabalhar no campo e a servir no exército. O trabalho dos campos tinha de ser feito de uniforme e como um rígido exercício, sendo a mais pequena insubordinação castigada com o chicote. Mesmo as mulheres dos camponeses estavam sujeitas a castigo senão acendessem o forno à hora marcada ou se acendessem velas de noite. Os camponeses foram privados de parte das suas terras e não tinham autorização de vender os seus produtos. As aldeias sujeitas a esta disciplina chamavam-se «estabelecimentos militares». A reacção feudal ainda dominava na Rússia.

As Primeiras Sociedades Secretas

Foi neste contexto que surgiram na Rússia as primeiras sociedades revolucionárias secretas. Os primeiros revolucionários russos são conhecidos como Decembristas, porque a sua primeira revolta se deu em Dezembro (1825). Os Decembristas eram na sua maior parte jovens oficiais da nobreza que tinham tomado parte na guerra contra Napoleão, que acordara a sua consciência política. Embora eles próprios viessem da nobreza proprietária de terras, a sua Consciência e o seu sentido de honra impediam-nos de apoiar a servidão, que consideravam o maior mal do país. Compreenderam que a mais importante tarefa da Rússia era abolir a servidão e a autocracia. Os Decembristas eram patriotas ardentes e sonhavam com uma ordem nova; com o apoio de tropas aliadas, planejaram organizar uma revolta armada, derrubar a autocracia, abolir a servidão e juntamente com todos os estratos da população fazer uma constituição revolucionária que fosse a base de uma nova sociedade. Esboços desta constituição revolucionária foram elaborados na Sociedade do Norte dirigida per Nikita Muravyov e na Sociedade do Sul dirigida por Pavel Pestel.

Se fossem adoptados, estes projectos de constituição teriam representado um grande avanço: infligiriam um grande golpe ao domínio da nobreza do país, à servidão e à autocracia e possibilitariam o rápido desenvolvimento capitalista do país.

A sociedade secreta tinha cada vez maior número de membros, e chegou a incluir muitos famosos e honrados membros da nobreza russa. Depois de entrar na sociedade, o poeta Kondraty Ryleyev, com outro membro poeta, Alexander Bestuzhev, escreveu inspiradas canções revolucionárias para o povo. As simpatias de Ryleyev eram marcadamente republicanas.

Foi em nome da transformação revolucionária da sua pátria que estes revolucionários pegaram em armas em Dezembro de 1825 na primeira revolta revolucionária contra o domínio czarista. Os Decembristas viriam mais tarde a ser conhecidos como «os primeiros campeões da liberdade».

Ora, em Novembro de 1825, o czar Alexandre I morreu de repente e no interregno viveu-se numa atmosfera muito tensa. O czar não tinha filhos e devia suceder-lhe o seu irmão Constantino. Este, contudo, tinha secretamente renunciado ao seu direito ao trono, o que significava que o novo czar seria o insensível déspota seu irmão, Nicolau, que era altamente impopular no exército. Como a decisão de Constantino não fora tornada pública com suficiente antecedência, as tropas e a população que juraram lealdade a Constantino quase imediatamente depois tiveram de fazer novo juramento a Nicolau. Ora se já antes havia agitação no exército, depois dos dois juramentos de lealdade, a situação tornou-se ainda mais tensa.

No dia indicado para o juramento de lealdade a Nicolau I — 14 de Dezembro—, os membros da sociedade secreta decidiram, organizar uma revolta nos seus regimentos e levar as tropas revoltosas para a Praça do Senado, para impedir o Senado de jurar lealdade ao novo czar. Prepararam então um manifesto revolucionário ao povo russo, que proclamava a abolição da servidão e a dissolução do governo. O manifesto também incitava à convocação de uma assembleia constituinte para decidir se a Rússia se devia tornar uma república ou uma monarquia constitucional e eleger um novo governo. Este documento outorgava também ao povo russo a liberdade de expressão e de imprensa e a liberdade de culto, sendo reduzidas as obrigações militares. No Sul foi planeada uma outra revolta armada em simultâneo com a de S. Petersburgo, mas nunca foi materializada.

Cerca de três mil soldados revoltosos chegaram à Praça do Senado conduzidos pelos oficiais Decembristas. Reuniu-se-lhes uma enorme multidão que apoiava este protesto revolucionário. No entanto, os Decembristas hesitaram em confiar no apoio das massas populares. Não conseguiram proclamar o seu manifesto e a revolta não se processou como tinham planeado. Na noite anterior, os Decembristas haviam eleito um ditador de entre as suas fileiras — um veterano membro da sociedade, o príncipe Trubetskoy. Contudo, ele não apareceu na praça, abandonando os seus companheiros e traindo a causa comum. Depois de esperarem em vão por muito tempo os Decembristas escolheram outro chefe, o príncipe Obolensky.

Mas já era demasiado tarde. Nicolau I tinha tomado a iniciativa e ao cair da noite o Czar tinha dado ordens para que as suas tropas leais abrissem fogo sobre a multidão e a revolta foi logo esmagada.

Esta revolta falhada dos Decembristas marcou um ponto de viragem na história russa. Com ela pode dizer-se que começou a luta revolucionária. Gerações subsequentes de bravos revolucionários russos haviam de receber o facho revolucionário e de continuar a luta contra a servidão e a autocracia.

A Crise da Servidão

Em meados do século XIX, a crise da sociedade feudal russa era mais declarada do que nunca. As contradições entre as relações sociais capitalistas que se desenvolviam e a obsoleta sociedade feudal tornavam-se cada vez mais agudas. A partir dos anos 30, as pequenas manufacturas começaram a ser substituídas por fábricas, e as máquinas desalojaram gradualmente o trabalho manual da indústria. A introdução de maquinaria exigia um adequado fornecimento de operários assalariados mais qualificados do que os camponeses analfabetos. Com o desenvolvimento do capitalismo nasceu uma nova classe — o proletariado. Em 1837 foi inaugurado o primeiro caminho de ferro entre S. Petersburgo e Tsarskoe Selo e cerca de 1851 foi aberta a primeira linha entre S. Petersburgo e Moscovo. O país precisava de aumentar a produção agrícola para fornecer as cidades em desenvolvimento e neste aspecto também o primitivismo da agricultura serva era um obstáculo ao desenvolvimento económico. A mecanização da agricultura avançou pouco neste período porque era mais vantajoso para os proprietários utilizar trabalho manual barato do que adquirir maquinaria agrícola.

Revolta Popular Contra a Ordem Feudal. Uma Nova Geração de Revolucionários

No início de 1830, a Rússia foi varrida por uma onda de «motins de cólera». Corria o boato de que uma séria epidemia de cólera tinha sido causada pelos oficiais e proprietários czaristas que teriam deliberadamente posto veneno nos poços. O verdadeiro motivo destes motins era o ódio à servidão. Alguns dos camponeses revoltosos explicavam assim as razões do descontentamento popular:

«Os loucos é que prestam atenção ao veneno e à cólera, o que nós precisamos é de livrar-nos da raça dos porcos, da nobreza.»

Mais tarde, revoltas camponesas em larga escala iam alastrar pela Ucrânia, sobretudo por volta de 1850. As autoridades czaristas capturaram o líder do movimento camponês, Ustim Karmelyuk, por várias vezes, mas ele iludia-as e fugia para voltar a comandar os camponeses revoltados. Muitas vezes as autoridades tiveram de ordenar ao exército que esmagasse as revoltas camponesas e foi-lhes necessário mesmo usar artilharia. Contudo, estas revoltas não tinham coesão nem objectivos definidos e por isso não conseguiram pôr fim à servidão.

Longe de desaparecer depois da revolta Decembrista, o movimento revolucionário russo em breve reuniu novas forças e mobilizou importantes figuras — democratas revolucionários, líderes dos interesses do povo e dos milhões de camponeses oprimidos e empobrecidos.

Os grandes campeões do povo neste período foram pessoas como Alexandre Herzen (1812-1870), Nikolai Ogarev (1813-1877) e o seu amigo Vissarion Belinsky (1811-1848). Opunham-se todos à servidão e à autocracia e estavam prontos a lutar para defender os seus ideais. Ao contrário de outros revolucionários, procuravam a sua principal fonte de apoio entre as massas populares. Um papel particularmente importante na propagação das novas ideias coube a Belinsky, ardente porta-voz do povo, herói da geração progressista e percursor dos raznochintsi (revolucionários da classe média radical).

Herzen, Ogarev e Belinsky lutavam não só pela abolição da servidão e pelo derrube da autocracia mas como socialistas sonhavam com o tempo em que acabaria a exploração do homem pelo homem e em que a sociedade que criou a exploração pertencesse ao passado. Mas não conheciam os métodos científicos a utilizar para conseguir estes fins. Foram socialistas utópicos.

Prisões e exílios frequentes tornavam impossível a Herzen continuar com eficiência o seu trabalho de propaganda na Rússia, e teve de emigrar para a Europa Ocidental onde continuou a sua luta contra o czarismo; em breve se lhe juntaria o seu amigo Ogarev. Herzen fundou a primeira imprensa livre russa fora das fronteiras do Império, e nela atacava audaciosamente a servidão e a autocracia, denunciavam os seus males intrínsecos e exortava o povo a opor-se à decadente ordem social que mantinha a Rússia no atraso e no analfabetismo.

Realizações Culturais na primeira metade do Século XIX

Apesar do pesado jugo da servidão e da exploração a que os camponeses eram submetidos pelos seus senhores, ocorreu um notável florescimento cultural progressista no contexto da luta contra as injustiças sociais. Foi lutando contra a injustiça e a opressão que muitos escritores, músicos e artistas russos produziram obras de grande mérito, florescendo também as tradições de arte popular.

Cenas da vida russa ficaram imortalizadas nas obras de poetas universalmente admirados como Puchkin e Lermontov, nas histórias de Gogol e nos romances de Turgenev. Temas, como o anacronismo da servidão e a Obsoleta ordem social, encontram-se lado a lado com profundos estudos psicológicos em Yevgeny Onegin de Puchkin, em Um Herói do Nosso Tempo de Lermontov, Almas Mortas de Gogol e em Apontamentos de um Desportista de Turgenev. A Literatura destes anos foi aceite com entusiasmo pelos leitores e trouxe-lhes uma maior consciência social e constituía ela mesma um apelo à luta pela justiça social.

A música russa conheceu um desenvolvimento notável neste período, na obra do grande compositor Mikhail Glinka. Amargos ataques contra a servidão encontravam-se nos talentosos quadros de Pavel Fedotov («O Namoro do Major», «A Morte de Fidelka», etc.). Na sua enorme tela «Cristo perante o povo». Alexander Ivanov pintou o povo comum em termos realistas, e em primeiro plano.

Importantes progressos ocorreram também na esfera da ciência. Nikolai Lobachevsky inventou um sistema de geometria não euclidiana que se ia tornar um importante marco na história da matemática. O notável químico Nicolai Zinin foi o primeiro cientista a sintetizar tintas de anilina, o que deu origem a um novo ramo da indústria. Nikolai Pirogov que realizou importantes experiências na antissepsia e na anestesia foi um dos fundadores da cirurgia de campo.

A cultura russa deste período está repleta de humanismo, amor e respeito por todos os membros da raça humana e contém um audacioso apelo à luta contra tudo o que era obsoleto e impedia o progresso social em nome de uma ordem nova e justa.

A Guerra da Crimeia - 1853-1856

As contradições inerentes à sociedade russa tornaram-se tanto mais agudas quando a guerra, que de há muito se preparava entre a Rússia por um lado e a Inglaterra e a França por outro, estalou finalmente em 1853.

O Czar e o seu governo, sentindo que desta vez a sua posição não era forte, decidiram utilizar a fraqueza do Império Turco para consolidar o controlo do Bósforo e dos Dardanelos e assegurar a passagem livre dos navios russos do mar Negro para o Mediterrâneo. Daqui adviriam maiores lucros aos interesses dos proprietários de terras, promovendo o desenvolvimento agrícola das províncias do Sul, e adiar-se-ia, esperava-se, a queda da servidão. Contudo, estados capitalistas mais fortes e mais progressistas, tais como a Inglaterra e a França, não estavam dispostos a ficar de braços cruzados enquanto a Rússia fortalecia as suas posições no Médio-Oriente; de resto não lhes desagradava a perspectiva de conquistarem presas ricas como a Crimeia e o Cáucaso. O curso da guerra ia revelar o atraso da Rússia, quando a guerra se travou em terra e no mar. A esquadra da Rússia era formada por navios à vela, enquanto as esquadras inglesa e francesa tinham desde há muito barcos a motor; as suas armas e artilharia também eram superiores às do exército russo. As más comunicações isolavam o exército russo dos seus centros de abastecimento e o aprovisionamento de munições e víveres era totalmente inadequado e sujeito a frequentes demoras.

Apesar de todas estas dificuldades, o inimigo ficou surpreendido com o heroísmo dos soldados russos e o talento de seus chefes. A armada russa obteve uma retumbante vitória na batalha de Sinop sob o comando do Almirante Nakhimov logo no princípio da guerra. Depois de mal sucedidas tentativas por parte dos aliados para se apoderarem das comunicações com S. Petersburgo, Kronstadt, a costa do Báltico e Kamachatka, concentraram as suas forças na península da Crimeia. Os aliados avançaram em direcção a Sebastopol mas a sua tentativa de tomar de assalto o porto, acabou num fracasso então organizaram um cerco que durou 349 dias.

As tropas russas eram comandadas pelos almirantes Nakhimov, Kornolov e Istomin. Depois de quase um ano de cerco durante o qual os defensores sofreram pesadas baixas, a cidade caiu. Só no Cáucaso, as tropas russas, sob o comando de Nikolai Muravyov, amigo do Decembristas, obteve vitórias de importância, o que deu aos Russos a possibilidade de garantir o seu domínio sobre a Crimeia e o Cáucaso. A guerra acabou com a elaboração do Tratado de Paris, em 1856, cujos termos eram extremamente pesados para a Rússia, pois esta ficava sem o direito de ter navios de guerra no mar Negro e era obrigada a derrubar as fortificações costeiras naquela região.

O Aparecimento de uma Situação Revolucionária. A Abolição da Servidão

A guerra da Crimeia revelou ao mundo a fraqueza e a atrofia da sociedade feudal russa. A parte principal do fardo que resultara do fracasso desta guerra foi suportada pelo povo comum, pois roubou-lhe muitas vidas e trouxe atrás de si um grande rastro de pobreza. Levadas ao desespero pela vida dura e pela necessidade, as massas responderam a todas as iniciativas do poder estabelecido com uma violenta resistência. As classes dominantes não conseguiram preservar o velho status por mais tempo, agora que o povo se recusava abertamente a viver no sistema antigo. Os senhores não conseguiam manter o controlo sobre os servos com os métodos que tinham utilizado no passado. Nesta altura, já existia aquela combinação de elementos objectivos de transformação a que Lenine chamaria uma situação revolucionária.

Tanto Marx como Lenine acentuaram nos seus escritos que as revoluções não se dão antes de se desenvolverem situações revolucionárias, embora nem toda a situação revolucionária provoque uma revolução. A principal razão por que não ocorreu nenhuma revolução nos anos 1859-1861 foi a incapacidade de os camponeses revoltosos reunirem a sua força a nível de massas, que seria o passo principal para derrubar ou pelo menos para limitar os poderes do Czar.

O governo sentiu-o e aproveitou para fazer certas concessões. Assim, com algumas reformas, o governo manteve-se.

A mais importante das reformas arrancadas ao governo pelas revoltas em massa e pelas correntes de oposição revolucionária foi a abolição da servidão, em 1861. O caminho para esta importante reforma tinha sido preparado havia muito pelo desenvolvimento do processo económico do país e pela ameaça de ruptura dos padrões sociais feudais.

Em 19 de Fevereiro de 1861, o czar Alexandre IV (1855-1881) assinou uma lei que proclamava que a servidão havia sido abolida. A reforma foi feita de maneira a adaptar-se o mais possível aos interesses dos proprietários de terras, mas os camponeses ficaram convencidos de que toda a terra lhes seria entregue de graça. Na prática, porém, a emancipação da servidão feudal revelou-se puramente formal e os camponeses receberam apenas alguns lotes de terra que teriam de pagar por um preço que excedia os valores por que teriam podido comprá-las pelas vias normais. A terra que os camponeses receberam era absolutamente inadequada às suas necessidades e era de tão fraca qualidade que muitas vezes eles viram-se obrigados a voltar aos seus antigos senhores, que lhes pagavam miseravelmente. E mais, o salário ganho voltava aos bolsos dos senhores, quer sob a forma de renda pelas terras que os proprietários lhes alugavam, quer sob a forma de pagamento de empréstimos contraídos pelos camponeses.

Protesto dos Camponeses. Actividade dos Revolucionários Russos

O protesto dos camponeses nunca tinha estado em tão larga escala como no ano em que foi abolida a servidão. Os camponeses responderam com novas revoltas à sua «emancipação». No decurso de apenas doze meses houve mais de mil; as autoridades mandaram a tropa reprimir muitas revoltas e nalguns casos utilizou-se mesmo a artilharia. Entre as mais sérias de todas, contam-se as que ocorreram na aldeia de Bezdna, chefiada pelo camponês Anton Petrov, e na aldeia de Kandeyevka, onde camponeses marcharam ao encontro das tropas czaristas com uma bandeira vermelha.

Muito antes da reforma de 1861 alguns democratas revolucionários tinham começado a fazer uma ampla propaganda contra o regime czarista e a servidão. Desempenhou um papel importante nesta campanha o jornal revolucionário Kolokol (O Sino) que Herzen e Ogarev publicavam no estrangeiro, e a revista Sovremennik (O contemporâneo) editada por alguns dos principais democratas revolucionários da época, Nikolai Chernychevsky (1828-1889), Nikolai Dobrolyulov (1836-1861) e o poeta revolucionário Nikolai Nekrasov (1821-1877). Esta revista, apesar da mão impiedosa da censura, manteve uma ousada campanha em nome da revolução camponesa. A sede editorial do Sovremennik tornou-se o centro dos revolucionários russos do interior, enquanto o Kolokol se tornava o quartel-general dos revolucionários russos que viviam no exílio. Ambos os centros estavam em íntimo contacto e colaboravam um com o outro.

Foi então que os revolucionários russos estabeleceram uma nova organização revolucionária, objectivo a que já aspiravam antes da reforma. Em 1861, fundava-se uma grande organização secreta, Zemlya i Volya (Terra e Liberdade) que era chefiada por Chernychesvskv e Dobrolyulov e reconhecia Herzen e Ogarev como chefes dos exilados políticos.

Zemlya i Volya era uma federação de vários círculos revolucionários e contava centenas de membros com filiais espalhadas em toda a Rússia. O seu objectivo principal era organizar uma revolta à escala nacional, cuja eclosão os revolucionários esperavam desde que o Czar fizera a reforma de 1861. A revolta não ocorreu como eles esperavam, porque as rebeliões camponesas eram demasiado dispersas e os revolucionários estavam divididos quanto aos meios usados e aos fins a atingir. Os membros da Zemlya i Volya depositavam a sua esperança em 1863, mas este ano também não trouxe a revolta dos camponeses unidos que eles esperavam, embora estalassem revoltas em larga escala na Polónia, na Lituânia e na Bielo-Rússia. Nestes entrementes a organização havia de sofrer pesados reveses, quando Dobrolyulov morreu e Chernychevsky, Serno-Solovyevich e muitos outros chefes foram presos. Um conjunto de selvagens represálias acabou por enfraquecer e minar o movimento camponês, e em 1864 Zemlya i Volya — a maior organização revolucionária desde a revolta Decembrista — dissolveu-se de moto próprio, antecipando-se às autoridades czaristas que desejavam fazê-la cair e livrar-se de centenas de revolucionários activos. No entanto, o progresso económico e a pressão do movimento camponês e a luta revolucionária tinham sido tão grandes que mais uma série de reformas foram promulgadas no período de 1863-1874. Assim alguns princípios da autonomia foram introduzidos na administração rural e urbana, embora fossem determinados sobretudo pelos interesses de classe dos proprietários de terras. Criaram-se os Zemstvo (locais, distritais e comerciais), eleitores e conselhos urbanos, que foram tornados responsáveis pelos serviços sociais nas províncias ou distritos individuais (questões como comunicações locais, fornecimento de alimentos, segurança mútua, assistência social, supervisão do comércio e indústria local, etc.). Contudo, era ainda a nobreza que tinha a última palavra no trabalho das organizações dos Zemstvo. A autonomia para as cidades foi planeada segundo princípios semelhantes quando foram criadas as dumas (conselhos). A reforma legal de 1864 — a mais coerente das reformas burgueses deste período — introduziu o julgamento por jurados com conselhos de defesa e de acusação. Contudo, lado a lado com os novos tribunais, ainda havia os antigos, e as reformas legais não se aplicavam a todas as províncias do Império. O castigo corporal foi abolido, foram feitas reformas educacionais, introduzindo a censura.

Esta ordem social feudal, anacrónica na Rússia, e a servidão, um dos principais pilares desta ordem, foram finalmente substituídas por estruturas capitalistas que naquela época eram progressistas e davam ao país a possibilidade de evoluir rapidamente.


Inclusão 27/09/2016