O ensino e a economia

José Carlos Mariátegui

29 de maio de 1925


Primeira Edição: Publicado em Mundial, Lima, 29 de maio de 1925

Fonte: Nova Cultura - https://www.novacultura.info/post/2018/06/04/o-ensino-e-a-economia

Tradução: F. Fernandes

Transcrição: Igor Dias

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


I

O problema do ensino não pode ser bem compreendido a não ser se considerado como um problema econômico e como um problema social. O erro de muitos reformistas tem sido o seu método abstratamente idealista, sua doutrina exclusivamente pedagógica. Seus projetos tem ignorado a íntima relação que existe entre a economia e o ensino, e pretendem modificar esta, sem conhecer as leis daquela. Portanto, eles não conseguiram reformar nada, exceto na medida em que as leis econômicas e sociais lhes deram consentimento.

Os debates entre clássicos e modernos no ensino não foi menos governado pelo desenvolvimento capitalista do que o debate entre conservadores e liberais na política. O programas e os sistemas de educação pública dependem dos interesses da economia burguesa. A orientação realista ou moderna, por exemplo, tem sido imposta, antes de tudo, pelas necessidades da industrialização. Não é de admirar que o industrialismo seja o fenômeno peculiar e substantivo dessa civilização que, dominada por suas consequências, reivindica mais escolas técnicas do que ideólogos e mais engenheiros que reitores. Quando Rabindranath Tagore – olhando com seus olhos orientais para a civilização capitalista –, descobre que fez do homem um escravo da máquina, não é uma conclusão exagerada.

II

Mas essas consequências do capitalismo não provocaram nos intelectuais, em geral, um esforço inspirado por um propósito efetivo de restaurar o equilíbrio entre o moral e o material. Os intelectuais, em sua maior parte, jogaram o jogo da reação. Eles não sabiam como se opor ao presente, mas agiam em nome do passado. Permeados por um espírito conservador e uma mentalidade aristocrática, apoiaram, direta ou indiretamente, as mesmas ideias dos herdeiros ou sucessores do regime feudal. Eles subscreveram sua receita antiga e simples de idealismo: os estudos clássicos.

E a decadente burguesia europeia, sem perceber que adotou uma tese contrária à sua função histórica, buscou nessa receita um remédio para seus males. Ela emparelhou o ensino clássico com o ensino realista. Ela diferenciou a educação de seus políticos e literatos da educação da de seus engenheiros e comerciantes. A política e a literatura, impotentes para governar a economia, foram assim contaminadas por reitores e humanistas, cujo trabalho tem sido um dos agentes mais ativos da crise contemporânea, caracterizada justamente por uma série de contradições entre política e economia.

Jorge Sorel, em um dos capítulos de seu livro “A ruína do mundo antigo”, denunciou o parasitismo do talento literário como uma das causas mais graves da corrupção das classes ilustradas. “O parasitismo do talento literário”, escreveu ele, “não cessou de atormentar a Europa e não parece desaparecer, muda de forma, mas é nutrido por uma tradição muito poderosa que sustenta princípios educacionais muito antigos e únicos”.

A experiência moderna dos estudos clássicos não prova absolutamente a tese ou, melhor dizendo, o dogma que lhes atribui o privilégio de formar espíritos idealistas e espíritos superiores. O idealismo que eles engendram é um idealismo reacionário. Um idealismo contrário ou estranho à direção da história e que, portanto, não tem qualquer valor como força de renovação e elevação humanas. Os advogados e escritores vindos das faculdades de humanidades, quase sempre foram muito mais imorais do que os técnicos vindos das faculdades e institutos de ciências. E a atividade prática e teórica deste último seguiu o curso da economia e da civilização, enquanto a atividade prática, teórica ou estética do primeiro frequentemente o contrastou, sob a influência dos interesses mais vulgares e de sentimentos conservadores. O valor da ciência como estimulante da especulação filosófica não pode, por outro lado, ser desconhecido ou desconsiderado. A atmosfera de ideias desta civilização deve à ciência muito mais seguramente do que às humanidades. O classicismo, em suma, não olhou para a Grécia tanto quanto para Roma. Nos países latinos, ou considerados latinos, sobretudo, tem-se lutado para manter o culto da retórica e da lei romana. E o que o romanismo especificamente representa em nossa época, a nova geração hispano-americana, à qual esses artigos são endereçados, encontra uma explicação exata e completa na Itália. O fascismo italiano inspira totalmente sua teoria e sua práxis na história romana. Além disso, presume-se predestinado à ressuscitar o Império Romano.

A tendência conservadora do classicismo na educação tem sido reconhecida há muito tempo. A esquerda, consciente ou instintivamente, sempre se opôs a uma restauração excessiva dos estudos clássicos. Embora, na verdade, essa oposição tenha nascido, ao invés de uma clara orientação revolucionária, daquele otimismo positivista, tramontado e desacreditado hoje, era depositada na Ciência a solução de todos os problemas humanos.

Entre os pensadores do socialismo, Jorge Sorel foi, sem dúvida, aquele que melhor percebeu o mecanismo da influência conservadora dos estudos clássicos. Sorel formulou assim seu pensamento: "A criança não sabe observar ou observa mal, por isso é necessário inculcar hábitos de observação, e essa deve ser a principal preocupação do professor. Como resultado desse vício natural, temos uma tendência constante a interpretar mal os princípios, a sermos enganados por razões falsas, a nos contentarmos com explicações vulgares e não-científicas. Mas a educação clássica desenvolve em grande parte os defeitos de nossa natureza e podemos esperar um estado que chamo de estado de dissociação ideológica, no qual perdemos o senso da realidade das coisas. Quando a educação é direcionada para um fim prático, quando se pretende conduzir a ocupar um lugar na vida econômica, esse resultado deplorável não pode ser alcançado de maneira completa. A dissociação ideológica não somente torna os sofismas facilmente aceitáveis, mas também impede qualquer crítica de sobre nossas operações intelectuais. É, portanto, muito favorável a essa inversão das funções eletivas, que nos permite justificar todas as nossas ações. Ela desenvolve um egoísmo monstruoso que subordina toda a consideração aos desejos do nosso apetite e que nos faz apreciar os recursos colocados à nossa disposição como um débil tributo submetido a nosso talento. No ambiente econômico, podemos reivindicar uma parte social igual ao nosso trabalho; mas pela dissociação ideológica deixamos o ambiente econômico: reivindicamos uma parte em relação ao nosso talento, ou seja, pretendemos ter na produção aquilo que apreciamos em relação à dignidade de nossa engenhosidade.

III

Os fautores do classicismo descansam quase toda a sua doutrina sobre uma base rígida e dogmática. Eles afirmam que a filologia e a retórica clássica, os únicos geradores do idealismo, são também a melhor disciplina para a inteligência. Mas essas afirmações não são absolutamente provadas. Pedagogos modernos respeitados, que não podem ser acusados de sectarismo revolucionário, os confundem com razões válidas, nutridos por sua observação profissional. Albert Girard, presidente das companheiros da Universidade Nova, polemizando com os partidários do latim a todo custo, escreve o seguinte: “Sem dúvida esta disciplina é excelente, mas quem nos prova que outras não valem igualmente?” Alegando objeções sobre os resultados “inferiores” da seção sem o ensino do latim. Mas, em primeiro lugar, há excelentes alunos nela, e se eles são mais raros hoje do que antes, não é porque os melhores são promovidos para as seções latinas? Quem sabe o que seria obtido com um recrutamento igual? Embora, neste caso, a seção moderna tenha sido revelada como inferior, ainda se tinha que perguntar se não era porque os métodos para ensinar línguas vivas estão ainda mais longe da perfeição. A seção moderna, nem por seu recrutamento nem por seus métodos, chegou ao fim de suas possibilidades educacionais. Temos o direito de concluir apressadamente contra isso? Cientificamente, isso é impossível. Nada prova que não se pode exercitar as faculdades do espírito por meios análogos; e assim realizar uma das condições da unidade de cultura.

Os educadores que criaram um novo tipo de escola secundária na Alemanha, a Deutsche Oberschule, concordam com esses pontos de vista essencialmente técnicos. “Os defensores desse tipo de escola acreditam que a cultura greco-latina não tem privilégio educacional, que os jovens alemães podem encontrar de maneira mais direta, mais popular e mais democrática, no mesmo país em que nasceram, uma cultura igualitária, como a de qualquer outro estabelecimento de ensino secundário”. (A Reforma Escolar na Alemanha, por M.P. Roques).

IV

A solidariedade da Economia e da Educação revela-se, concretamente, nas ideias dos educadores singulares que verdadeiramente se propuseram a renovar a escola.

Pestalozzi, Froebel, entre outros, que realmente trabalharam para uma renovação, levaram em conta que a sociedade moderna tende a ser, acima de tudo, uma sociedade de produtores. Sua concepção de ensino é substancialmente moderna. A Escola do Trabalho representa um senso de trabalhadores. O Estado capitalista evitou adotá-lo e auxiliá-lo plenamente. Ele limitou-se a incorporar o “trabalho educacional manual” no ensino da educação primária. Foi na Rússia que a Escola do Trabalho foi elevada à vanguarda da política educacional.

Na Alemanha, a tendência de ensinar baseou-se principalmente na predominância socialista da época da revolução.

Singularmente ilustrativo e sintomático é o fato de que essa reforma surgiu no campo da educação primária. Este fato nos mostra claramente que, dominados pelo espírito de seus reitores, o ensino médio e a educação universitária, ainda são um terreno desfavorável a qualquer tentativa de renovação e pouco sensível à nova realidade econômica.

Um conceito moderno de escola coloca o trabalho manual e o trabalho intelectual na mesma categoria. A vaidade dos humanistas rançosos, nutridos pelo romanismo e pelo aristocratismo, não pode ser conciliada com este nivelamento. Para o desgosto destes homens de letras, a Escola do Trabalho é um produto genuíno, uma comcepção fundamental de uma civilização criada pelo trabalho e para o trabalho.

V

Como esta questão surge em nossa América? As pessoas que neste continente pensam e desenvolvem com menos originalidade sobre os problemas americanos, já mostram alguma inclinação frívola para nos recomendar os princípios da reforma de Bérard e a reforma de Gentile. Faz parte da deliberação incoerente e desorientada da respectiva seção do último Congresso Científico Pan-Americano(1) uma votação que apela à extensão ou restauração do latim no ensino médio. É de se temer, enfim, que os gestores da educação pública em Nossa América, insatisfeitos com a experiência dos métodos herdados da Espanha, que tão efetivamente atrapalharam o desenvolvimento da economia hispano-americana, considerem necessário enxertar um pouco o classicismo da marca Bérard ou marca Gentile nos programas de ensino caóticos e inorgânicos desses povos.

Mas os novos homens da América Hispânica não deveriam dar as costas à realidade. Nossa América precisa de mais técnicos do que de reitores. O desenvolvimento da economia hispano-americana exige uma orientação prática e realista no ensino. O classicismo não criaria melhores aptidões mentais e morais. (Essa ideia, em última análise, resulta em uma nova superstição reacionária). Em vez disso, sabotaria a formação de uma maior capacidade industrial e técnica.


Notas de rodapé:

(1) Veja o artigo “Um Congresso mais Pan-Americano do que científico”, em Peruanicemos al Perú, p. 44-49, Vol. II, desta série popular (N. do E.). (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022