A URSS e a Contra-Revolução de Veludo

Ludo Martens


Para concluir
[Março de 1991]


Dois pontos de ruptura
capa

Em final de percurso, eis-nos regressados às questões que abriram este livro: como definir a natureza de classe da União Soviética? Poder-se-á encontrar aí hipóteses de uma renovação revolucionária?

A análise que melhor captou as realidades dos países socialistas continua a avançada nos anos 60 por Mao Tsé-Tung. Hoje pode ser precisada à luz dos acontecimentos recentes da Europa de Leste, da URSS e da China. Todavia, ela foi distorcida pelos exageros esquerdistas durante a revolução cultural, o que tornou mais fácil o seu repúdio total no decurso dos anos oitenta por Deng Xiao Ping.

Eis como Mao Tsé-Tung via o futuro do socialismo:

«A sociedade socialista cobre um longo, muito longo período de tempo. Enquanto esse tempo durar, a luta de classes entre burguesia e proletariado prossegue, a questão de saber quem ganhará, a via capitalista ou a via socialista, subsiste, quer dizer que o perigo de restauração capitalista continua.»

«A revolução socialista circunscrita ao domínio da economia [no que respeita à propriedade dos meios de produção] não é suficiente, e, aliás, não assegura a estabilidade. A revolução socialista tem também de ser completa nos domínios político e ideológico. A luta para saber quem ganhará nos domínios político e ideológico, o socialismo ou o capitalismo, exige um muito longo período, antes que se decida o seu resultado. Algumas dezenas de anos não serão suficientes; cem anos, mesmo centenas de anos são necessários à vitória definitiva. (...) Neste período histórico do socialismo, devemos manter a ditadura do proletariado, levar a revolução socialista até ao fim, se quisermos impedir a restauração capitalista, e devemos empreender a edificação socialista, a fim de criar as condições para a passagem ao comunismo.»

«Antes da chegada ao poder de Nikita Khruchov, as actividades dos novos elementos burgueses eram limitadas e sancionadas. Mas, depois que Nikita Khruchov tomou o poder e usurpou gradualmente a direcção do partido e do Estado, esses novos elementos burgueses conseguiram chegar a posições dominantes no seio do partido e do governo e nos domínios económicos, culturais e outros. Tornaram-se uma camada privilegiada da sociedade soviética.»

«Mesmo sob a dominação da clique de Nikita Khruchov, a massa dos membros do PCUS e o povo prosseguem as gloriosas tradições revolucionárias cultivadas por Lénine e Stáline, apegam-se ao socialismo e aspiram ao comunismo. (...) Entre os quadros soviéticos, são numerosos os que se mantêm nas posições revolucionárias do proletariado e na via socialista, que são firmemente contra o revisionismo de Nikita Khruchov

«A luta de classes, a batalha da produção e a experiência científica são os três grandes movimentos revolucionários da edificação de um país socialista poderoso. Estes movimentos constituem uma garantia segura permitindo aos comunistas desembaraçarem-se do burocratismo e do dogmatismo e continuar sempre invencíveis, uma garantia segura permitindo ao proletariado unir-se às largas massas trabalhadoras e praticar uma ditadura democrática. Se, na ausência destes movimentos, se desse liberdade de acção aos latifundiários, aos camponeses ricos, aos contra-revolucionários, aos elementos malfeitores e aos monstros de todo o género, ao mesmo tempo que os nossos quadros fechariam os olhos, não distinguindo entre o inimigo e nós próprios, mas colaborassem com o inimigo e se deixassem levar pela corrupção e pela desmoralização, se os nossos quadros fossem assim arrastados para o campo do inimigo ou se o inimigo conseguisse infiltrar-se nas nossas fileiras, e se muitos dos nossos operários, camponeses e intelectuais fossem deixados sem defesa face às tácticas tanto envolventes como brutais do inimigo, então pouco tempo passaria, talvez alguns anos ou uma década, e o mais tardar algumas décadas, antes que a restauração contra-revolucionária tivesse inevitavelmente lugar à escala nacional, que o partido marxista-leninista se tornasse um partido revisionista ou um partido fascista e que toda a China mudasse de cor.»(1)

Na pátria de Lénine, Nikita Khruchov usurpou o poder em 1956, após três anos de hábeis manobras e de sábios preparativos. Teve em seguida de consolidar o seu poder na direcção do partido, eliminando a maioria do Bureau Político aquando da luta contra «a clique MólotovMalenkovKaganóvitch». Através de ataques ideológicos e políticos contra os princípios essenciais da construção socialista, Nikita Khruchov mudou primeiro a orientação fundamental do PCUS. Isto constituía uma condição prévia para permitir aos quadros burocratizados e oportunistas de adquirirem privilégios e de constituírem em camada social distinta. Depois do afastamento de Nikita Khruchov, certos quadros dirigentes prosseguiram nos seus esforços para regressar aos princípios marxistas-leninistas. As bases socialistas da sociedade não tinham ainda sido destruídas e milhões de comunistas persistiam no seu trabalho revolucionário. Durante o período Bréjnev, a camada dirigente acumulou privilégios crescentes e enriquecia através de uma panóplia de meios ilegais. Mas tinha sempre de parasitar, de algum modo, uma base económica e política que não lhe pertencia. Os comunistas autênticos podiam sempre defender um certo número de conquistas da classe operária. As leis socialistas, as medidas favoráveis aos trabalhadores e a ideologia marxista-leninista continuavam a exercer uma grande influência na sociedade. A camada dirigente reduzia o marxismo a um ramalhete de fórmulas congeladas e importava toda a espécie de correntes ideológicas do Ocidente. Desnaturando o pensamento socialista, fornecia uma segunda juventude a ideologias burgueses envelhecidas. Num crescente número de sectores, os novos elementos burgueses transformavam os meios de produção e os bens do Estado na sua propriedade privada. Concluíam alianças de negócios com os novos capitalistas do sector informal cujo crescimento toleravam. No final do período de Bréjnev, uma nova classe capitalista tinha-se fortalecido, perseguindo interesses próprios, antagónicos aos dos trabalhadores. Esta classe, tornada adulta, preparava-se para lutar abertamente pela instauração da sua ditadura. Precisava de libertar o país das últimas influências, das últimas aparências marxistas-leninistas. Encontrou em Gorbatchov uma bandeira, na glasnost um meio de expressão, na perestroika uma legitimação dos seus projectos de privatização.

A União Soviética conheceu dois grandes pontos de ruptura com o socialismo: o relatório de Nikita Khruchov de 1956, que marcou o repúdio de alguns princípios essenciais do leninismo, e a perestroika de Gorbatchov que abriu, em 1990, a passagem à economia de mercado.

O revisionismo de Nikita Khruchov abriu um período de transição do socialismo ao capitalismo. Durante esse período, elementos socialistas continuavam a lutar contra os elementos capitalistas. Seria reduzir a realidade de uma maneira escolástica, colocar o problema unicamente nos termos: ditadura do proletariado ou ditadura da grande burguesia. Os novos e antigos elementos burgueses precisaram de 30 anos para passar da primeira infância à idade adulta, para afirmar e consolidar as suas posições no domínio político, ideológico e económico. O processo de degenerescência começado em 1956 precisou de três décadas para acabar com o socialismo.

Acreditámos, na época, que Nikita Khruchov havia estabelecido um modo de produção específico, de capitalismo de Estado, forma superior do capitalismo em que a nomenklatura possui colectivamente os meios de produção. Esta tese não é sustentável. A experiência prova que não se tratava de um sistema de exploração possuindo a sua própria base económica. Abandonado a ditadura do proletariado e desvinculando-se laboriosamente de uma economia socialista planificada, a sociedade soviética não pôde encontrar, sob a bandeira do revisionismo, os mecanismos adequados e estáveis de exploração da força de trabalho e de utilização dos recursos materiais, que lhe permitissem enfrentar as potências imperialistas. No decurso dos períodos de Nikita Khruchov e Bréjnev, os novos elementos burgueses forjaram as suas armas mas, logo que tiveram força, lançaram-se no combate pela propriedade privada dos meios de produção.

Há quem mantenha que Bréjnev presidia a um país de regime capitalista de Estado e que, no fim do seu reinado, uma burguesia liberal havia acumulado forças suficientes para enfrentar a burguesia burocrática. Mas é de notar que os ataques mais ferozes das legiões da glasnost não tiveram por alvo o sistema de Bréjnev, mas sim o de Stáline e as bases do socialismo odioso que defendeu. E, tal como na Europa de Leste, vemos os Bréjnev-boys desfazerem-se alegremente das estruturas híbridas instaladas pelo seu patrão, para abraçar o mercado livre e a empresa privada.

Na concepção do capitalismo de Estado, o partido revisionista constituía o cadinho da nova burguesia: partido brejneviano, nomenklatura e nova burguesia eram sinónimos. Ora, com a conclusão do processo de degenerescência, na URSS como no Leste, vemos que a nova burguesia se desembaraça do partido comunista, transformando-o completamente e lançando o multipartidarismo burguês.

Gorbatchov é o sósia de Nikita Khruchov? O ponto de conclusão da degenerescência não é o seu ponto de partida. Nikita Khruchov teve de reunir o núcleo de base da nova burguesia, Gorbatchov dá expressão a uma classe bem instalada. Em 1956, para formar o seu primeiro quadrado de burgueses, Nikita Khruchov teve de produzir uma demagogia de ultra-esquerda, prometendo o comunismo para 1980. Gorbatchov proclama abertamente a derrota das ilusões comunistas. Nikita Khruchov prometeu alcançar e ultrapassar os Estados Unidos no decurso dos anos 70. Gorbatchov reconhece a superioridade do sistema americano e vai mendigar a sua ajuda. Nikita Khruchov reforça a colectivização e transforma os kolkhozes em sovkhozes. Gorbatchov quer a privatização da terra. Nikita Khruchov fez profecias sobre a vitória mundial do socialismo. Gorbatchov pede a reintegração da URSS na economia capitalista mundial.

Os exemplos de Cuba e da China contradizem também a teoria de que o revisionismo à cabeça do partido sela automaticamente a restauração do capitalismo e o restabelecimento da ditadura da burguesia.

Os comunistas cubanos fizeram um longo caminho com Bréjnev na sua marcha em direcção ao revisionismo e ao hegemonismo. No entanto, o Partido Comunista de Cuba mostrou a sua capacidade de rectificar os seus erros. O partido esforça-se para restabelecer uma concepção e uma prática revolucionária do marxismo-leninismo.

Na China, todas as aberrações que Nikita Khruchov produziu foram amplificadas quando Hu Yaobang e, mais tarde, Zhao Ziyang, chegaram ao cargo de secretário-geral do Partido Comunista da China.

Será de concluir, em toda a lógica, pela restauração do capitalismo na China, como fazem, aliás, alguns. Ora, nós vimos desencadearem-se violentas lutas no seio do PCC e a fracção mais à direita recebeu sérios golpes em Junho de 1989. Mas os confrontos políticos continuam, e se a hipótese da emergência de um Gorbatchov chinês não é de excluir, também não é impossível que Mao Tsé-Tung acorde para uma segunda existência.

Deixemos a contra-revolução de veludo com esta nota optimista. A ver vamos.

Ludo Martens


Notas de rodapé:

(1) «Le Pseudo-communisme de Khrouchtchev», 14 de Julho de 1964, in: Débat sur la ligne générale, éd. Pékin, 1965, p. 482-492 (retornar ao texto)

Inclusão 12/06/2013