A actualidade histórica da ofensiva socialista
(capítulo 18 de "Para além do capital")

István Mészáros

1995


Primeira Edição: Capítulo 18 de Beyond Capital. Texto em português elaborado com base na edição brasileira "Para além do capital" (Boitempo, S. Paulo, 2002), cotejado com a edição original (Merlin Press, Londres, 1995, 994 pgs.).

Fonte: http://resistir.info

HTML: Fernando Araújo.


A actual 'crise do marxismo' deve-se principalmente ao facto de que muitos dos seus representantes continuam a adoptar uma postura defensiva, numa época em que, tendo acabado de virar uma página histórica importante, nos deveríamos engajar numa ofensiva socialista em sintonia com as condições objectivas. Paradoxalmente, os últimos 25 anos, que progressivamente manifestaram a crise estrutural do capital — e daí o início da necessária ofensiva socialista num sentido histórico —, também testemunharam a disposição de muitos marxistas, maior do que nunca, de buscarem novas alianças defensivas e de se envolverem com todos os tipos de revisões e compromissos em grande escala, ainda que não tenham, realmente, nada para mostrar como resultado de tais estratégias fundamentalmente desorientadoras.

A desorientação em questão não é, de modo algum, simplesmente ideológica. Ao contrário, ela envolve todas as instituições de luta socialista que foram constituídas sob circunstâncias históricas defensivas e, por esse motivo, perseguem, sob o peso da sua própria inércia, modos de acção que correspondam directamente ao seu carácter defensivo. E, já que a nova fase histórica inevitavelmente traz consigo o aguçamento do confronto social, deve-se esperar — mas não idealizar —, sob tais circunstâncias, uma maior reacção defensiva das instituições (e estratégias) de luta da classe trabalhadora. Lamentavelmente, contudo, as estruturas e estratégias defensivas existentes consideram inquestionáveis os seus próprios pressupostos e procuram soluções que permanecem ancoradas nas condições da velha, e agora superada, fase histórica.

Tudo isto deve ser bem sublinhado para evitar a ilusão de soluções fáceis. Não basta, portanto, argumentar a favor de uma nova orientação ideológico-política caso se mantenham tal como hoje as formas institucionais e organizacionais relevantes. Se, em sua resposta por inércia às circunstâncias históricas que já não são as mesmas, a desorientação corrente é a manifestação combinada dos factores prático-institucional e ideológico, seria ingenuidade esperar uma solução no que muitos gostam de descrever como "clarificação ideológica". De facto, enquanto os dois devem desenvolver-se juntos nessa reciprocidade dialéctica, o übergreifendes Moment (momento culminante) na conjuntura actual é a estrutura prático/institucional da estratégia socialista, que precisa de reestruturar-se de acordo com as novas condições. Estes são os problemas que iremos tratar no presente capítulo.

18.1- A OFENSIVA NECESSÁRIA DAS INSTITUIÇÕES DEFENSIVAS

18.1.1

Dizer que somos contemporâneos da nova fase histórica de ofensiva socialista não significa que, de agora em diante, o percurso seja tranquilo e a vitória próxima. A expressão "actualidade histórica" não sugere mais do que diz explicitamente: que a ofensiva socialista confronta-nos como matéria de actualidade histórica, em contraste com a nossa aflitiva situação objectiva, não há muito tempo atrá dominada por determinações defensivas inescapáveis. Ainda que certamente um dia (em última análise) as mudanças sociais irão infiltrar-se nos canais e nos modos de mediação política e ideológica prevalecentes, a consciência nãs as regista automaticamente, por mais importantes que sejam. Mas antes mesmo de alcançarmos a etapa da "última análise", a inércia da forma anterior de resposta — tal como articulada em determinadas estratégias e estruturas organizacionais — continua a dominar a maneira como as pessoas definem as suas próprias alternativas e margens de acção. Nesse sentido, o discurso sobre a "consciência de classe" que reprova o proletariado pela "falta de combatividade" demonstra apenas a sua própria vacuidade, pois os instrumentos e as estratégias de acção socialista permanecem estruturados defensivamente.

Devido à mudança da relação de forças e das circunstâncias, a actualidade histórica da ofensiva socialista corresponde, em primeiro lugar, ao desconfortável facto negativo de quer algumas formas de acção anteriores (as políticas de consenso), a "estratégia de pleno emprego", a "expansão do Estado de bem-estar social", etc estão objectivamente bloqueadas, o que impõe reajustes importantes na sociedade como um todo. Mas o facto de se partir dessa "negatividade brutal" inicial não significa que os reajustamentos em questão sejam positivos, mobilizando as forças socialistas num esforço consciente para se apresentarem como portadoras da ordem social alternativa capaz de substituir a sociedade em crise. Longe disso, como as mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de aceitarmos prontamente o "salto para o desconhecido", é ainda mais provável que se prefira seguir "a linha de menor resistência" ainda por um tempo considerável, mesmo que isso signifique derrotas significativas e grandes sacrifícios para as forças socialistas. Somente quando as opções da ordem predominante se esgotarem poderemos esperar uma viragem espontânea para uma solução radicalmente diferente. (O completo colapso da ordem social no curso de uma guerra perdida e os levantes revolucionários subsequentes, conhecidos da história passada, ilustram bem esta questão.)

Contudo, as dificuldades de uma resposta socialista adequada à nova situação histórica não mudam o carácter da própria situação, ainda que coloquem novamente em relevo o conflito potencial entre escalas de temporalidade — a estrutura histórica imediata e a geral de eventos e desenvolvimento. É o carácter objectivo das novas condições históricas que por fim decide a questão, não importando quais sejam os atrasos e desvios que possam acompanhar as circunstâncias dadas. A verdade é que existe um limite além do qual acomodações forçadas e imposição de novos sacrifícios se tornam intoleráveis, subjectivamente para os indivíduos envolvidos e objectivamente para a continuação do funcionamento da estrutura socioeconómica ainda dominante. Nesse sentido e em nenhum outro, a actualidade histórica da ofensiva socialista — entendida como sinónimo do fim do sistema de melhorias relativas pela acomodação consensual — está destinada a impor-se a longo prazo, tanto na forma exigida da consciência social como na sua mediação estratégico-instrumental, mesmo que não possam existir garantias contra outras derrotas e decepções num curto prazo. Ainda que seja verdade — o que é bastante duvidoso — que os seres humanos tenham uma infinita capacidade para suportar qualquer imposição sobre eles, incluindo as piores condições possíveis, a capacidade de adaptação do sistema global do capital é hoje muito menor do que esta.

18.1.2

Veremos de que forma as potencialidades objectivas da ofensiva socialista são inerentes à crise estrutural do próprio capital. Agora o objectivo é acentuar uma contradição principal: a ausência de instrumentos políticos adequados que poderiam transformar esta potencialidade em realidade. Além disso, o que torna as coisas ainda piores é a continuidade do domínio das mitologias passadas sobre a auto-consciência das organizações envolvidas, descrevendo o partido leninista, por exemplo, como a instituição da ofensiva estratégica par excellence.

Certamente, todos os instrumentos e organizações do movimento da classe trabalhadora existiram para superar alguns dos obstáculos principais na via para a emancipação. Em primeira instância foram o resultado de explosões espontâneas e, como tal representam um momento de ataque. Mais tarde, como resultado de esforços pacientes, estruturas coordenadas emergiram tanto em países particulares como em escala internacional. Mas nenhuma delas poderia ir para além do horizonte de lutar por objectivos específicos, limitados, até mesmo se o seu objectivo último estratégico fosse uma transformação socialista radical de toda a sociedade. Não se deve esquecer que Lenine, brilhantemente — e realisticamente —, definiu os objectivos dos bolcheviques entre Fevereiro e Outubro de 1917 como assegurar "Paz, Terra e Pão" de modo a criar uma base social viável para a revolução. Mas, até mesmo em termos organizacionais básicos, o "Partido de Vanguarda" foi constituído de forma a poder se defender dos ataques cruéis de um Estado policial, sob as piores condições possíveis de clandestinidade, das quais inevitavelmente decorreu a imposição do segredo absoluto, de uma estrutura rígida de comando, de centralização, etc. Se compararmos a estrutura auto-defensivamente fechada deste partido de vanguarda com a ideia original de Marx de produzir consciência comunista em escala de massa" — com a consequência necessária de uma estrutura organizacional inerentemente aberta —, teremos uma medida de diferença fundamental entre uma postura defensiva e uma ofensiva. Somente quando as condições objectivas implícitas em tal objectivo estão em processo de se desdobrar em escala global é possível imaginar realisticamente a articulação prática dos órgãos necessários da ofensiva socialista.

Na verdade, Lenine não teve nenhuma ilusão quanto a esta possibilidade, ainda que algumas interpretações tendam a descrever retrospectivamente os seus objectivos à luz de uma esperança vazia. Ele baseou a sua estratégia de quebrar o "elo mais fraco da corrente" numa interpretação da lei de desenvolvimento desigual, insistindo ao mesmo tempo que

revoluções políticas não podem em caso algum, nunca e em nenhuma condição, encobrir ou enfraquecer a palavra de ordem da revolução socialista ... que não pode ser encarada como um só acto, mas deve ser encarada como uma época de tempestuosas convulsões políticas e económicas, de guerra civil, de revoluções e contra-revoluções.(1)

Neste espírito, ele esperou que a revolução política de Outubro abrisse a "época de tempestuosas conclusões políticas e económicas", que se manifestaria no mundo inteiro por toda uma série de revoluções, até que as condições de uma vitória socialista estivessem firmemente asseguradas. Quando a onda de motins revolucionários se esgotou sem resultados positivos importantes em outras partes, Lenine observou racionalmente que não se poderia devolver o poder aos czares e continuou o trabalho de defender o que fosse possível naquelas circunstâncias. Ele originalmente esperava combinar o potencial político do "elo mais fraco" com as condições maduras dos países capitalistas "avançados". Foi o fracasso da revolução mundial que violentamente truncou a sua estratégia, impondo-lhe os constrangimentos deformadores de uma defesa desesperada.

Lenine sempre teve a consciência da diferença fundamental entre a revolução política e a social (à qual denominou socialista), mesmo quando foi irrevogavelmente forçado a defender a mera sobrevivência da revolução política, ao passo que Estaline ignorou esta distinção vital, fingindo que o primeiro passo na direcção de uma vitória socialista já representava o próprio socialismo, que deveria simplesmente ser seguido pela entrada "na etapa superior do comunismo" num país sitiado. Naturalmente, com tal mudança apologética de estratégia, na qual tudo tinha que ser cruelmente subordinado à defesa do estalinismo e simultaneamente saudado como a maior vitória possível para a revolução socialista em geral, desapareceu também a diferença real entre estruturas e desenvolvimento defensivos e ofensivos. E, enquanto Lenine, na ausência da revolução mundial, entendeu a sua tarefa geral como uma operação de manufacturação (a ser substituída no devido tempo por desenvolvimentos mundiais favoráveis), Estaline fez da miséria virtude. Ele transubstanciou a resposta política, prevalecente aos constrangimentos particulares, num ideia social geral (e, portanto, compulsório), sobrepondo arbitrariamente a todos os processos sociais e económicos a prática voluntarista de tentar resolver os problemas por meio de ditames políticos autoritários.

Desse modo, pudemos testemunhar um grande afastamento das intenções originais, tanto em termos dos objectivos fundamentais como das formas institucionais e organizacionais correspondentes. A concepção global de Marx tinha como objectivo estratégico a revolução social abrangente, a partir da qual os homens deveriam mudar "de cima abaixo as condições da sua existência industrial e política, e por conseguinte toda a sua maneira de ser".(2) Sendo assim, as formas e instrumentos da luta teriam que corresponder ao carácter essencialmente positivo do empreendimento como um todo, em vez de serem bloqueados na fase negativa de uma acção defensiva. Por isso Marx, ao dirigir-se a um grupo de trabalhadores, lembrou-lhes que não deveriam contentar-se com a negatividade "retardadora do movimento depressivo" quando a tarefa consistia em "alterar a sua direcção", que eles não deveriam aplicar "paliativos" quando o problema era "curar a doença". E afirmou não ser suficiente empenhar-se negativamente/defensivamente nas inevitáveis lutas de guerrilha que incessantemente emergem dos eternos abusos do capital ou das flutuações do mercado.(3)

Contudo, quando precisou de explicar o lado positivo da equação, nas condições prevalecentes de subdesenvolvimento relativo do capital — ainda longe das suas verdadeiras barreiras e da sua crise estrutural —, Marx só pode apontar o facto de que havia um processo de desenvolvimento objectivo em andamento, mas nenhuma mediação institucional e estratégica tangível para transformar aquele processo em vantagem duradoura. Como explicou, os trabalhadores "devem entender que, com todas as misérias que lhes impõem, o sistema actual engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução económica da sociedade".(4) Assim, indicou um aliado positivo nas condições materiais em amadurecimento da sociedade, mas não poderia ir mais longe que isso. Na mesma conferência, insistiu em que "a luta de guerrilha" é defensiva apenas contra os efeitos do sistema, oferecendo apenas a metáfora da "alavanca" a ser usada para uma mudança fundamental, não identificando de maneira alguma onde e como tal alavanca poderia ser inserida no centro estratégico do sistema a ser negado para poder produzir a transformação radical postulada.

Teria sido um milagre se fosse de outro modo, pois o movimento socialista, depois dos primeiros — mais ou menos espontâneos — ataques e explosões nascidos do desespero, encontrou-se na situação de fixar objectivos muito limitados, em resposta aos desafios colocados pelas confrontações nacionais particulares contra o pano de fundo da expansão global e do desenvolvimento dinâmico do capital. Sendo assim, a Primeira Internacional logo experimentou as primeiras grandes dificuldades que finalmente conduziriam à sua desintegração. E nenhuma mitologia retrospectiva poderia transformar a Comuna de Paris numa importante ofensiva socialista: não simplesmente porque foi brutalmente derrotada, mas principalmente devido ao facto, fortemente acentuado pelo próprio Marx, de que não era socialista.(5) Naturalmente, os debates relativos ao Programa de Gotha e à orientação estratégica do movimento da classe trabalhadora alemã seguiam as mesmas determinações defensivas. As condições objectivas para se imaginar a mera possibilidade de uma ofensiva hegemónica nem sequer estavam à vista e, na sua ausência, as severas limitações das formas organizacionais e estratégias possíveis também foram ocultas. Por isso Marx, depois de definir as condições necessárias de uma revolução socialista bem sucedida em termos do "desenvolvimento positivo dos meios de produção", declarou sem hesitação, ainda em 1881:

é minha convicção que a conjuntura critica para uma nova Associação Internacional dos Trabalhadores ainda não chegou e por isso considero todos os congressos de trabalhadores, particularmente os congressos socialistas, na medida em que não estejam relacionados com as condições imediatas desta ou daquela nação particular, como não somente inúteis mas prejudiciais. Acabarão sempre por se diluir em inumeráveis banalidades gerais e vazias.(6)

Desnecessário dizer a Segunda Internacional, neste particular, não trouxe qualquer melhoria. Ao contrário, pelo seu "economicismo" capitulou miseravelmente ante as determinações sociais/económicas dominantes da condição defensiva global. Substituiu as exigências de uma estratégia ampla pela prática pedestre de "mudança gradual", traduzindo ao mesmo tempo a sua capitulação defensiva na estrutura organizacional ossificada de uma "social-democracia" corruptamente casada com a manipulação parlamentar capitalista. De acordo com isso, o período pós-guerra da expansão capitalista — saudado por muitos como a solução permanente das contradições do capital, e também da integração estrutural da classe trabalhadora — encontrou os seus porta-vozes e administradores mais entusiastas neste movimento pseudo socialista de capitulação da social-democracia.

Ao contrário da Segunda Internacional —, a qual, de certo modo, está connosco até hoje —, o momento histórico da Terceira Internacional foi relativamente breve. A onda revolucionária das fases finais da Primeira Guerra Mundial deu-lhe um grande ímpeto original, mas mal se passaram doze meses depois do seu Congresso fundador para que Lenine tivesse de admitir que

Era evidente que o movimento revolucionário perderia inevitavelmente velocidade quando as nações assegurassem a paz.(7)

Significativamente, o mesmo discurso que reconheceu ter passado a onda revolucionária no Ocidente concentra-se fortemente na questão de concessões económicas aos países capitalistas, tendo aprovado uma citação de Keynes com relação à importância de matérias-primas russas para a reconstituição e a estabilização da economia global do capital e adoptado conscientemente esta estratégia para o futuro imediato. Quando os estrategistas da "Acção de Março" alemã embarcaram na sua ofensiva voluntarista, os dados das determinações objectivas estavam fortemente viciadas contra uma tal ofensiva, impondo por muito tempo um tom trágico ao destino dos movimentos revolucionários socialistas.

O mundo do capital também resistiu com relativa facilidade à tempestade da sua "Grande Crise Económica" de 1929-1933 sem ter de enfrentar uma importante confrontação hegemónica com as forças socialistas, apesar do sofrimento das massas provocado por essa crise. O facto é que, por maior que fosse a crise, ela estava longe de ser uma crise estrutural, ao deixar um grande número de opções abertas para a sobrevivência continuada do capital, bem como para a sua recuperação e a sua reconstituição mais forte do que nunca numa base economicamente mais saudável e mais ampla. Reconstruções políticas retrospectivas tendem a culpar personalidades e forças organizacionais por tal recuperação, particularmente em relação ao sucesso do fascismo. Contudo, por maior que fosse o peso relativo de tais factores políticos, não se pode esquecer que eles devem ser avaliados contra o pano de fundo de uma fase histórica essencialmente defensiva. Não tem sentido reescrever a história com a ajuda de condicionantes contrafactuais, mesmo que eles se refiram à ascensão do fascismo ou qualquer outra coisa. O que realmente importa é que, concomitantemente à crise de 1929-1933, o capital tinha a opção do fascismo (e soluções semelhantes), opção que já não possui hoje. E, objectivamente, isso faz uma grande diferença no que tange às possibilidades de acção defensiva e ofensiva.

18.1.3

Dado o modo pelo qual foram constituídos — como partes integrantes de uma estrutura institucional complexa —, os órgãos de luta socialista poderiam ganhar batalhas individuais, mas não a guerra contra o capital. Para isso seria necessária uma reestruturação fundamental, de forma que eles se complementassem e intensificassem a eficácia uns dos outros, em vez de debilitá-la pela "divisão do trabalho" imposta pela institucionalidade "circular" no interior da qual se originaram. Os dois pilares de acção da classe trabalhadora no Ocidente — partidos e sindicatos —, estão na realidade, inseparavelmente unidos a um terceiro membro do conjunto institucional global: o Parlamento, que forma o círculo da sociedade civil/estado político e se torna aquele "círculo mágico" paralisante do qual parece não haver saída. Tratar os sindicatos junto com outras (muito menos importantes) organizações sectoriais, como se pertencessem, de alguma maneira, apenas à "sociedade civil" e que portanto poderiam ser usados contra o Estado político, para uma profunda transformação socialista, é um sonho romântico e irreal. Isto porque o círculo institucional do capital, na realidade, é feito das totalizações recíprocas da sociedade civil e do Estado político, que se interpenetram profundamente e se apoiam poderosamente um no outro. Por isso, seria necessário muito mais que a derrubada de um dos três pilares — o Parlamento, por exemplo — para produzir a mudança necessária.

O lado problemático da estrutura institucional prevalecente revela-se eloquentemente em expressões como "consciência sindical", "burocracia partidária" e "cretinismo parlamentar", para citar apenas um nome em cada categoria. O Parlamento, em particular, tem sido objecto de uma crítica muito justificada, e até hoje não há teoria socialista satisfatória sobre o que fazer com ele após a conquista do poder: um facto que eloquentemente fala por si mesmo. Apesar de os clássicos do marxismo terem lutado contra a "indiferença à política" e a defesa igualmente sectária do "boicote ao Parlamento", eles não conseguiram imaginar um "estágio intermediário" (que, na verdade, poderia ser uma fase histórica muito longa).

Um estágio que significativamente retivesse pelo menos algumas características importantes da estrutura parlamentar herdada, enquanto o longo processo de reestruturação radical fosse realizado na ampla escala necessária. Por exemplo, Marx implicitamente levantou esta possibilidade numa digressão surgida no contexto da mudança revolucionária associada ao uso de força como norma. Num discurso importante mas pouco conhecido, foi assim que ele tentou resolver o problema:

O trabalhador um dia vai ter que ganhar a supremacia política para organizar o trabalho segundo novas linhas: ele terá que derrotar a política velha que apoia velhas instituições...

Mas nós não temos, de modo algum, afirmado que esta meta seria alcançada por meios idênticos. Nós conhecemos as concessões que temos que fazer às instituições, aos costumes e tradições dos vários países; e não negamos que há países como os Estados Unidos, a Inglaterra, e eu acrescentaria a Holanda se conhecesse melhor as suas instituições, onde os trabalhadores podem alcançar a sua meta através de meios pacíficos. Se isto é verdade, também temos de reconhecer que na maioria dos países continentais é a força que deverá ser a alavanca de revoluções; é à força que teremos algum dia que recorrer para estabelecer um reinado do trabalho.(8)

É discutível se o assunto em questão é simplesmente uma questão de "concessões" que devam ser feitas a algumas restrições herdadas: a importância do Parlamento é muito grande para ser tratada de passagem, ao lado de "costumes e tradições". Compreensivelmente, na concepção de Marx da política como negação radical o Parlamento aparece geralmente na sua negatividade quase grotesca, resumida no dictum "Iludir os outros e iludir-se ao iludi-los este é o extracto concentrado da sabedoria parlamentar! Tant Mieux!"(9) "Tanto melhor" ou "tanto pior"?

Como o Parlamento afecta profundamente todas as instituições da luta socialista que porventura estejam intimamente ligadas a ele, seguramente deve ser "tanto pior". E, se se acrescenta a consideração — levantada por Marx como uma possibilidade histórica séria, e não como um gesto vazio de propaganda fraccionista de partido — de que a mudança revolucionária possa usar meios pacíficos como veículo, neste caso torna-se ainda mais imperativo reorientar radicalmente a "sabedoria parlamentar" para a retro-alimentação de objectivos socialistas.

A experiência das sociedades do "socialismo real" mostra claramente que é possível demolir apenas um dos três pilares da estrutura institucional herdada, porque, de uma maneira ou de outra, os dois que permanecem acabam por cair com ele. Quando pensamos na existência puramente nominal dos sindicatos nas sociedades, bem como na experiência, da Polónia e na re-emergência do limbo de um sindicalismo amargamente independente na forma do "Solidariedade", torna-se claro que equilibrar a sociedade no topo do único pilar remanescente é totalmente insustentável a longo prazo. Menos óbvio, entretanto, é o que acontece ao próprio partido na sequência da conquista de poder. O "partido de vanguarda" de Lenine reteve algumas características organizacionais constituídas na ilegalidade e na luta pela mera sobrevivência contra o Estado policial czarista. Mas, ao tornar-se o governante inquestionável do novo Estado, deixou de ser um partido leninista e tornou-se o Partido-Estado, impondo e também sofrendo todas as consequências que a mudança necessariamente acarreta. Assim, fica extremamente difícil, senão impossível, a transferência do poder de um conjunto de indivíduos a outro (uma ocorrência comicamente comum na estrutura parlamentar), ou até mesmo uma mudança parcial na política quando se alteram as circunstâncias.

A natureza da estrutura institucional global também determina o carácter de suas partes constituintes e, vice-versa, os "microcosmos" particulares de um sistema exibem sempre as características essenciais do "macrocosmos" a que pertencem. Nesse sentido, qualquer mudança que ocorra num componente particular só pode tornar-se algo puramente efémero, a menos que possa reverberar plenamente por todos os canais do complexo institucional total, dando assim início às mudanças exigidas no sistema inteiro de totalizações recíprocas e inter-determinações. Como insistiu Marx, não bastava ganhar "lutas de guerrilha", que poderiam ser neutralizadas e mesmo anuladas pelo poder de assimilação e integração do sistema dominante. O mesmo era verdade para o triunfo em batalhas individuais quando, em última instância, a questão era decidida nos termos das condições de ganhar a guerra.

Por isso a actualidade histórica da ofensiva socialista tem imenso significado. Pois, sob as novas condições da crise estrutural do capital, torna-se possível ganhar muito mais do que algumas grandes (mas, no final das contas terrivelmente isoladas) batalhas, como as revoluções russa, chinesa e cubana. Ao mesmo tempo, não existe meio de minimizar o carácter doloroso do processo envolvido, que requer importantes ajustes estratégicos e correspondentes mudanças institucionais e organizacionais radicais em todas as áreas e por todo o espectro do movimento socialista.

18.2- DAS CRISES CÍCLICAS À CRISE ESTRUTURAL

18.2.1

Como mencionado antes, a crise do capital que experimentamos hoje é fundamentalmente uma crise estrutural. Assim, não há nada especial em associar-se capital a crise. Pelo contrário, crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel a sua esfera de operação e dominação. Nesse sentido, a última coisa que o capital poderia desejar seria uma superação permanente de todas crises, mesmo que seus ideólogos e propagandistas frequentemente sonhem ou ainda, reivindiquem a realização de exactamente isso.

A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais:

  1. o seu carácter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afectando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com a sua gama específica de habilidades e graus de produtividade etc);
  2. o seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises no passado);
  3. a sua escala de tempo é extensa, contínua, se se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital;
  4. em contraste com as erupções e os colapsos mais espectaculares e dramáticos do passado, o seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora activamente empenhada na "administração da crise" e no "deslocamento" mais ou menos temporário das crescentes contradições perder a sua energia.

Seria extremamente absurdo negar que tal maquinaria existe e é poderosa, nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua. Não obstante, o facto de que a maquinaria existente esteja sendo posta em jogo com frequência crescente e com eficácia decrescente é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se aprofunda.

Aqui, temos que nos concentrar em alguns componentes da crise em andamento. Se, no período pós-guerra, se tornou embaraçosamente antiquado falar de crise capitalista — mais um outro sinal da postura defensiva do movimento do trabalho já mencionado — isso foi devido não apenas à operação prática bem-sucedida da maquinaria que desloca (por difundir e por retirar a espoleta explosiva) as próprias contradições. Foi também devido à mistificação ideológica (do "fim da ideologia" ao "triunfo do capitalismo" organizado e à "integração da classe trabalhadora" etc) que apresentou o mecanismo de deslocamento sob o disfarce de remédio estrutural e solução permanente.

Naturalmente, quando já não é mais possível ocultar as manifestações da crise, a mesma mistificação ideológica que ontem anunciava a solução final de todos os problemas sociais hoje atribui o seu reaparecimento a factores puramente tecnológicos, despejando as suas enfadonhas apologias sobre a "segunda revolução industrial", "o colapso do trabalho", a "revolução da informação" e os "descontentamentos culturais da sociedade pós-industrial".

Para apreciar a novidade histórica da crise estrutural do capital, precisamos localizá-la no contexto dos acontecimentos sociais, económicos e políticos do século XX. Mas antes é necessário fazer algumas observações gerais sobre os critérios de uma crise estrutural, bem como sobre as formas nas quais podemos imaginar a sua solução.

Em termos simples e gerais, uma crise estrutural afecta a totalidade de um complexo social em todas as relações com as suas partes constituintes ou sub-complexos, como também a outros complexos aos quais é articulada. Diferentemente, uma crise não-estrutural afecta apenas algumas partes do complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em relação às partes afectadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua da estrutura global.

Sendo assim, o deslocamento das contradições só é possível enquanto a crise for parcial, relativa e interiormente manejável pelo sistema, demandando apenas danças — mesmo que importantes — no interior do próprio sistema relativamente autónomo. Justamente por isso, uma crise estrutural põe em questão a própria existência do complexo global envolvido, postulando a sua transcendência e a sua substituição por algum complexo alternativo.

O mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qualquer complexo social particular venha a ter em sua imediaticidade, em qualquer momento determinado, se comparado àqueles além dos quais não pode concebivelmente ir. Assim, uma crise estrutural não está relacionada com os limites imediatos mas com os limites últimos de uma estrutura global. Os limites imediatos podem ser ampliados de três modos diferentes:

  1. modificação de algumas partes de um complexo em questão;
  2. mudança geral de todo o sistema ao qual os sub-complexos particulares pertencem; e
  3. alteração significativa da relação do complexo global com outros complexos fora dele.

Por conseguinte, quanto maior a complexidade de uma estrutura fundamental e das relações entre ela e outras com as quais é articulada, mais variadas e flexíveis serão as suas possibilidades objectivas de ajuste e as suas hipóteses de sobrevivência até mesmo em condições extremamente severas de crise. Por outras palavras, contradições parciais e "disfunções", ainda que severas em si mesmas, podem ser deslocadas e tornadas difusas — dentro dos limites últimos ou estruturais do sistema — e neutralizadas, assimiladas, anuladas pelas forças ou tendências contrárias, que podem até mesmo ser transformadas em força que activamente sustenta o sistema em questão. Daí o problema da acomodação reformista. Todavia, tudo isso deveria ser mantido em perspectiva, em contraste com as teorias grotescamente exageradas da "integração da classe trabalhadora" que estavam em voga havia não muito tempo. A integração inegável da liderança da maioria dos partidos e sindicatos da classe trabalhadora não deveria ser confundida com a hipostatizada — mas estruturalmente impossível — integração do trabalho como tal no sistema do capital.

Ao mesmo tempo, deve-se sublinhar que, quando as opções múltiplas de ajuste interno começam a ser esvaziadas, nem mesmo a "maldição da interdependência" (que tende a paralisar as forças de oposição) pode prevenir a desintegração estrutural final. Naturalmente, dado o carácter intrínseco das estruturas envolvidas, é inconcebível pensar em tal desintegração como um acto súbito a ser seguido por uma transformação igualmente veloz. A crise estrutural "rastejante" — que, entretanto, avança implacavelmente — só pode ser entendida como um processo contraditório de ajustes recíprocos (uma espécie de "guerra de atrito"), que só pode ser concluído após um longo e doloroso processo de reestruturação radical inevitavelmente ligado às suas próprias contradições.

18.2.2

No que se refere ao mundo do capital, as manifestações da crise estrutural podem ser identificadas nas suas várias dimensões internas, bem como nas instituições políticas. Como acentuou Marx repetidamente, está na natureza do capital superar as barreiras que encontra:

A tendência a criar o mercado mundial está presente directamente no próprio conceito do capital. Todo o limite aparece como uma barreira a ser superada. Inicialmente, para subjugar todo o momento da produção em si à troca e para suspender a produção de valores de uso directo que não participam da troca... Mas o facto de que o capital define cada um destes limites como uma barreira e, consequentemente, avance idealmente para além dela não significa, de modo algum, que a tenha realmente superado, e, já que toda a barreira contradiz o seu carácter, a sua produção move-se em contradições que são constantemente superadas, mas da mesma maneira são constantemente repostas. Além disso, a universalidade que persegue irresistivelmente encontra barreiras na sua própria natureza, que, em certa fase de seu desenvolvimento, permite que ele se reconheça como sendo, ele próprio, a maior barreira a esta tendência, e consequentemente o impulsionará para sua própria suspensão.(10)

No curso do desenvolvimento histórico real, as três dimensões fundamentais do capital — produção, consumo e circulação/distribuição/realização — tendem a fortalecer-se e a ampliar-se por um longo tempo, provendo também a motivação interna necessária para a sua reprodução dinâmica recíproca em escala cada vez mais ampliada. Desse modo, em primeiro lugar, são superadas com sucesso as limitações imediatas de cada uma, graças à interacção entre elas. (Por exemplo, a barreira imediata para a produção é positivamente superada pela expansão do consumo e vice-versa.) Assim, os limites parecem verdadeiramente ser meras barreiras a serem transcendidas, e as contradições imediatas não são apenas deslocadas, mas directamente utilizadas como alavancas para o aumento exponencial no poder aparentemente ilimitado de auto-propulsão do capital.

Realmente, não pode haver qualquer crise estrutural enquanto este mecanismo vital de auto-expansão (que simultaneamente é o mecanismo para transcender ou deslocar internamente as contradições) continuar funcionando. Pode haver todos os tipos de crises, de duração, frequência e severidade variadas, que afectam directamente uma das três dimensões e indirectamente, até que o obstáculo seja removido, o sistema como um todo, sem, porém, colocar em questão os limites últimos da estrutura global. (Por exemplo, a crise de 1929-33 foi essencialmente uma "crise de realização", devido ao nível absurdamente baixo de produção e consumo se comparado ao período pós-guerra.)

Certamente, a crise estrutural não se origina por si só em alguma região misteriosa: reside dentro e emana das três dimensões internas acima mencionadas. Não obstante, as disfunções de cada uma, consideradas separadamente, devem ser distinguidas da crise fundamental do todo, que consiste no bloqueio sistemático das partes constituintes vitais.

É importante fazer esta distinção porque, dadas as inter-conexões objectivas e as determinações recíprocas em circunstâncias específicas, até mesmo um bloqueio temporário de um dos canais internos pode emperrar todo o sistema com relativa facilidade, criando desse modo a aparência de uma crise estrutural, quando surgem algumas estratégias voluntaristas resultantes da percepção equivocada de um bloqueio temporário como crise estrutural. Neste contexto vale lembrar a avaliação fatalmente optimista de Estaline da crise do final da década de 1920, de consequências devastadoras para as suas políticas tanto no plano interno como no plano internacional.

18.2.3

Outra concepção equivocada a ser abandonada é a de que a crise estrutural se refere a algumas condições absolutas. Não é assim. Certamente, todas a três dimensões fundamentais do funcionamento continuado do capital têm os seus limites absolutos que podem ser claramente identificados. (Por exemplo, os limites absolutos da produção podem ser expressos pelos meios e materiais de produção, os quais, por sua vez, podem ser melhor especificados como o colapso total do suprimento das matérias-primas fundamentais. Ainda como o colapso igualmente total — não apenas a "subutilização" — da maquinaria produtiva disponível decorrente, por exemplo, do abuso irresponsável e inconsequente dos recursos energéticos.) Mas, apesar de tais considerações não serem certamente irrelevantes, elas sofrem da carência de especificidades sociais (como testemunham muitos argumentos dos ambientalistas), que debilitam desnecessariamente as suas próprias armas criticas ao associá-las às expectativas do dia de um juízo final que jamais se materializará necessariamente.

Desnecessário dizer que esta crise estrutural não está confinada à esfera sócio-económica. Dadas as determinações inevitáveis do "círculo mágico" do capital referidas anteriormente, a profunda crise da "sociedade civil" reverbera ruidosamente em todo o espectro das instituições políticas. Nas condições sócio-económicas crescentemente instáveis, são necessárias novas "garantias políticas", muito mais poderosas, garantias que não podem ser oferecidas pelo Estado capitalista tal como se apresenta hoje. Assim, o desaparecimento ignominioso do Estado do bem-estar social expressa claramente a aceitação do facto de que a crise estrutural de todas as instituições políticas já vem fermentando sob a crosta da "política de consenso" há bem mais de duas décadas. O que precisa ser acentuado aqui é que as contradições subjacentes de modo algum se dissipam na crise das instituições políticas; ao contrário, afectam toda a sociedade de um modo nunca antes experimentado. Realmente, a crise estrutural do capital revela-se como uma verdadeira crise de dominação em geral.

Quem acha que isto soa muito dramático deveria olhar à sua volta, em todas as direcções. É possível encontrar qualquer esfera de actividade ou qualquer conjunto de relações humanas não afectado pela crise? Há cento e quarenta anos atrás, Marx ainda podia falar sobre "a grande influência civilizadora do capital", sublinhando que, por meio dela,

pela primeira vez, a natureza se torna puramente um objecto para a humanidade, puramente uma questão de utilidade; cessa de ser reconhecida como um poder em si mesma; e descoberta teórica de suas leis autónomas aparece apenas como um ardil para submetê-la às necessidades humanas, como um objecto de consumo ou como meio de produção. De acordo com esta tendência, o capital ultrapassa as barreiras e os preconceitos nacionais, a adoração da natureza, assim como também todas as satisfações tradicionais, limitadas, complacentes embutidas, das necessidades presentes e as reproduções dos velhos modos devida.(11)

E para onde tudo isto conduz? O capital não pode ter outro objectivo que não a sua própria auto-reprodução, à qual tudo, da natureza a todas as necessidade e aspirações humanas, deve subordinar-se absolutamente.

Assim, a influência civilizadora encontra o seu fim devastador no momento em que a implacável lógica interna da auto-reprodução ampliada do capital encontra obstáculo nas necessidades humanas. Em 1981, o orçamento militar nos Estados Unidos chegou aos 300 mil milhões de dólares, (e quem sabe quanto mais além disso, sob vários outros disfarces orçamentais), e isso desafia a compreensão humana. Ao mesmo tempo, os serviços sociais mais elementares são submetidos a duros testes: uma medida verdadeira do "trabalho civilizador" do capital hoje. Contudo, mesmo tais somas e cortes estão muito longe de serem suficientes para permitir ao capital seguir imperturbável o seu caminho: uma das provas mais evidentes da crise de dominação.

A devastação sistemática da natureza e a acumulação continua do poder de destruição — para as quais se destina globalmente uma quantia superior a um milhão de milhões de dólares por ano — indicam o lado material amedrontador da lógica absurda do desenvolvimento do capital. Ao mesmo tempo, ocorre a negação completa das necessidades elementares de incontáveis milhões de famintos: o lado esquecido e que sofre consequências dos milhões de milhões desperdiçados. O lado humano paralisante deste desenvolvimento é visível não só na obscenidade do "subdesenvolvimento" forçado, mas em toda a parte, inclusive na maioria dos países de capitalismo avançado.

O sistema de dominação existente está em crise porque a sua raison d'être e a sua justificação históricas desapareceram, e já não podem mais ser reinventadas, por maior que seja a manipulação ou a pura repressão. Desse modo, ao manter milhões excluídos e famintos, quando os milhões de milhões desperdiçados poderiam alimentá-los mais de cinquenta vezes, põe o absurdo desse sistema de dominação em perspectiva.

O mesmo é verdade para tantas outras grandes questões humanas que começaram a mobilizar as pessoas há relativamente pouco tempo. Durante décadas, a literatura sociológica produziu simpáticos contos de fadas sobre o "conflito de gerações" (que, no verdadeiro espírito do "fim da ideologia", tentou transformar os graves sinais das contradições de classe em nobres vicissitudes de gerações intemporais); agora eles têm realmente sobre o que escrever. No entanto, os esquemas pré-fabricados de mistificação psico-sociológica não se ajustam ao quadro real. Isso porque o assim chamado conflito de gerações, no momento em que foi apologeticamente circunscrito, já estava solucionado, na medida em que toda a "rebelião da juventude" evoluía, no devido tempo, para a maturidade sensata dos pagamentos da hipoteca e da acumulação de uma poupança para a velhice, de modo a garantir uma existência cómoda até à sepultura, e mesmo para além dela, pela reprodução eterna das novas "gerações" do capital. Quaisquer que fossem as dificuldades apresentadas pela natureza — e a noção de "geração" supostamente deveria ser simplesmente uma categoria da natureza —, a auto-tranquilização vinha da ideia de que o capital, graças a Deus, seria, como de costume, a solução.

Porém, a verdade tornou-se o exacto oposto, já que o capital não apenas não soluciona como ainda gera o conflito real de gerações em escala sempre crescente. Em todo o país capitalista importante, nega-se oportunidade do trabalho para milhões de homens, obliterando sem cerimónia a lembrança não tão antiga das diferenças com a cultura jovem", ao mesmo tempo em que espreme até a última gota de lucro das sobras de tal cultura. Ao mesmo tempo, alguns milhões de pessoas mais velhas são forçadas a juntar-se às filas de doações aos necessitados, enquanto muitos milhões a mais estão sob a imensa pressão de uma "reforma prematura da qual a secção mais dinâmica do capital contemporâneo — o capital financeiro — pode sugar durante algum tempo ainda um pouco mais de lucro. Assim, o grupo etário da "geração útil" está encolhendo para uma faixa entre 25 e 50 anos, opondo-se objectivamente às "gerações indesejadas", condenadas pelo capital à inactividade obrigada e à perda da sua humanidade. E, então, já que agora a geração intermediária é comprimida entre "jovens e "velhos inúteis" — até que ela própria se torne supérflua quando assim determinar o capital — até mesmo os planos temporais destas contradições se tornam absolutamente confusos.

Tipicamente, as soluções propostas nem sequer arranham a superfície do problema, sublinhando, novamente, que estamos à frente de uma contradição interna insolúvel do próprio capital. O que está realmente em jogo é o papel do trabalho no universo do capital, uma vez que se tenha alcançado um nível muito alto de produtividade. Para resolver as contradições assim geradas, seria necessária uma importante reviravolta, que afectasse não apenas as próprias condições imediatas de trabalho, mas também todas as facetas da vida social, inclusive as mais íntimas. O capital, ao contrário, pode produzir somente as condições materiais necessárias para o desenvolvimento do indivíduo social autónomo, de modo a negá-las imediatamente. Também as nega materialmente quando ocorrem crises económicas, bem como política e culturalmente quando é do interesse de sua própria e contínua sobrevivência como estrutura final de dominação.

Considerando que o capital só pode funcionar por meio de contradições, ele tanto cria como destrói a família; produz a geração jovem economicamente independente com a sua "cultura jovem" e arruína-a; gera as condições de uma velhice potencialmente confortável, com reservas sociais adequadas, para sacrificá-las aos interesses de sua infernal maquinaria de guerra. Seres humanos são, ao mesmo tempo, absolutamente necessários e totalmente supérfluos para o capital. Se não fosse pelo facto de que o capital necessita do trabalho vivo para a sua auto-reprodução ampliada, o pesadelo do holocausto da bomba de neutrões certamente se tornaria realidade. Mas, já que tal "solução final" é negada ao capital, somos confrontados com as consequências desumanizadoras das suas contradições e com a crise crescente do sistema de dominação.

É possível que tal desumanização não seja tão óbvia quanto a que se reflecte na luta cada vez mais intensa pela libertação das mulheres. Foram irreparavelmente destruídos os fundamentos económicos da antiga justificação histórica da opressão das mulheres, e o próprio avanço produtivo do capital desempenhou aí um papel central. Mas, novamente, podemos perceber as contradições inerentes. Em um sentido — para seus próprios propósitos — o capital ajuda a liberar as mulheres para melhor poder explorá-las como membros de uma força de trabalho muito mais variada e convenientemente "flexível". Ao mesmo tempo, precisa manter a sua subordinação social noutro plano — para a reprodução sem problemas da força de trabalho e para a perpetuação da estrutura familiar predominante — a fim de salvaguardar a sua própria dominação como senhor absoluto do próprio sócio-metabolismo.

Assim, evidencia-se claramente que os sucessos parciais podem se evaporar de um momento para o outro — as mulheres estão entre as primeiras a serem forçados ao desemprego ou a empregos parciais miseravelmente remunerados — já que os interesses globais do capital predominam sobre os mais limitados. Dado o facto de que a questão real é o sistema existente de dominação e que os sucessos significativos da liberação feminina obrigatoriamente abrem nele profundas brechas, minando a sua viabilidade, qualquer coisa que não possa ser mantida estritamente dentro de limites fixados pela busca de lucro deve ser reprimida. Ao mesmo tempo, o importante envolvimento do capital na destruição de toda a justificação económica da opressão das mulheres torna impossível solucionar este problema por meio de um mecanismo económico. (Na realidade, puramente em termos económicos, o equilíbrio aponta frequentemente na direcção oposta, contribuindo assim para o aguçamento desta contradição.)

Uma vez que a família é o verdadeiro microcosmos da sociedade — cumprindo, além de suas funções imediatas, a necessidade de assegurar a continuidade da propriedade, à qual se acrescenta o seu papel como a unidade básica de distribuição e a sua capacidade de agir como a "correia de transmissão" da estrutura de valor predominante na sociedade — a causa da liberação das mulheres afecta directa ou indirectamente a totalidade das relações sociais em toda a sua fragilidade.

Neste particular, o aparente impasse actual, sob a pressão imediata da crise económica, é bastante enganador. Isso porque, considerando o facto de uma perspectiva de tempo mais longa, podemos observar uma mudança dramática, na medida em que a família de três gerações que tínhamos antes da última guerra se transformou efectivamente agora numa família de uma geração: com todas as suas consequências altamente benéficas para a expansão da economia de consumo.

Mas nem mesmo isso é mais suficiente. Daí as pressões contraditórias por mudanças adicionais — ainda que, na realidade, se tenham esgotado as possibilidades de tais mudanças enquanto se mantiver a actual estrutura familiar — assim como pressões igualmente fortes para, no sentido oposto, restabelecer os velhos "valores da família" patriarcal, no interesse da sobrevivência continuada do capital. São a presença e a intensidade simultâneas de forças que pressionam irresistivelmente em direcções opostas que fazem da actual crise estrutural do capital uma verdadeira crise de dominação.

18.2.4

Em comparação com tudo isso, a crise de 1929-33 evidentemente foi de um tipo muito diferente. Por mais severa e prolongada que tenha sido, ela afectou um número limitado de dimensões complexas e de mecanismos de autodefesa do capital, conforme o estado relativamente subdesenvolvido das suas potencialidades globais na ocasião. Mas, antes que essas potencialidades pudessem ser desenvolvidas completamente, alguns importantes anacronismos políticos precisaram de ser eliminados, o que se percebeu durante a crise com brutal clareza e implicações de longo alcance.

Ao estourar a crise em 1929, o capital havia alcançado as fases finais de sua transição da "totalidade extensiva" para a incansável descoberta e exploração dos territórios escondidos da "totalidade intensiva", como resultado do grande impulso produtivo recebido durante a Primeira Guerra Mundial e durante o período de reconstrução do pós-guerra. Embora os diferentes países tenham sido afectados de formas diferentes (dependendo do grau relativo de desenvolvimento do capital e da sua situação como vencedores ou perdedores), as novas contradições emergiram essencialmente porque os avanços produtivos qualitativos do período já não podiam ser contidos nos limites das relações de poder historicamente antiquadas da "totalidade extensiva" predominante.

No final da década de 1870, Marx já havia observado que o capital nos Estados Unidos representava de longe a força mais dinâmica do sistema global: uma verdade que se tornou ainda mais evidente meio século depois, na década de 1920. Mas, apesar do papel vital que o capital americano desempenhou para se vencer a guerra, o status quo político da dominação global ainda em vigor (estabelecido muito tempo antes) condenava-o a ser quase um segundo violino do imperialismo britânico: anacronismo que, obviamente, não pôde ser tolerado indefinidamente.

Não surpreendentemente, portanto, o imperativo de um novo início cristalizou-se durante a "Grande Crise Mundial". As pressões devastadoras dessa crise aparentemente sem fim tornaram abundantemente claro que o capital dos Estados Unidos tinha que remodelar todo o mundo do capital à sua própria imagem, mais dinâmica, e que não havia outra alternativa, caso se quisesse superar não somente as condições criticas imediatas, mas também a perspectiva de uma depressão crónica. Por isso, sob a intensa retórica do Discurso Inaugural de Roosevelt em 1933, a mensagem realmente significativa foi a perspectiva radicalmente nova do colonialismo neo-capitalista sob a hegemonia americana. Nele se previram, não apenas as frustrações de Churchill durante a guerra como os acordos de Yalta, mas também, e acima de tudo, previu-se a absorção, para todos os fins e propósitos, dos impérios britânico e francês pelos interesses mais altos da "totalidade intensiva" do capital e a relegação das modalidades historicamente velhas de imperialismo e colonialismo à segunda divisão, o lugar que efectivamente lhes cabia.

A mitologia liberal gosta de se lembrar de Roosevelt como "homem do povo" e defensor incansável do "New Deal". Na verdade, porém, a sua reivindicação de fama histórica duradoura, mesmo que duvidosa, apoia-se no facto de ter sido um representante de visão ampla do dinamismo recém-encontrado do capital, em virtude do seu papel pioneiro de elaborar a estratégia global e de habilmente lançar as fundações práticas do neo-colonialismo.

Isto significou um ataque em duas frentes para a construção de uma nova orientação verdadeiramente global. Como o imperativo de um novo início havia surgido com base no grande avanço produtivo e na crise criada por sua interrupção, a nova estratégia envolveu, em relação a seus termos de referência domésticos, a exploração plena de todos os territórios ocultos do "colonialismo interno": daí o "New Deal" e o desenvolvimento em bases mais seguras de uma economia de consumo em expansão. Ao mesmo tempo, a necessidade de assegurar e necessariamente proteger a expansão contínua da base económica doméstica implicou a remoção cruel de todas as "barreiras artificiais" do colonialismo passado (e do capitalismo proteccionista subdesenvolvido correspondente).

Esta estratégia neocolonialista de conquistar a "totalidade intensiva" representava também uma concepção verdadeiramente global ao tentar acertar as contas com a União Soviética, não só em seu próprio interesse, mas para estar em melhor posição para controlar os movimentos anti-coloniais que emergiam.

Naturalmente, esperava-se que tudo isso tivesse sucesso sob a inquestionável hegemonia do capital dos Estados Unidos, que mais tarde propagandearia, com típica vulgaridade, sua arrogante autoconfiança ao insistir que o século XX era "o século americano". E, claro, devido ao dinamismo inerente à forma historicamente mais avançada de capital, a "nova ordem mundial" (e sua "nova ordem económica") supostamente deveria surgir e permanecer connosco para sempre pela acção de forças e determinações puramente económicas: assim afirmava a retórica, desde o primeiro Discurso Inaugural de Roosevelt até ao "fim da ideologia".

Contudo, os factos expressaram-se de modo totalmente diferente, na medida em que puseram amargamente em relevo uma das maiores ironias da história, qual seja: embora houvesse um dinamismo económico incomparável e um novo avanço produtivo de proporções potencialmente enormes nas raízes da estratégia rooseveltiana original, sua implementação real — longe de se satisfazer com mecanismos económicos tal como ocorre ainda hoje com o persistente mito da "modernização" — exigiu, para sua "descolagem", a guerra mais devastadora conhecida pelos homens, a Segunda Guerra Mundial, para não mencionar o aparecimento e a dominação do "complexo industrial-militar" no seu "percurso até a maturidade".

Se o capital americano teve muito mais que a simples iniciativa de todos estes envolvimentos — que ele na verdade dominou completamente do início ao fim, assegurando para si uma posição de vantagem esmagadora pela qual pode contabilizar enormes défices orçamentais pagos pelo resto do mundo —, eles afectaram e beneficiaram o "capital social total" (constituído como uma entidade global) no seu pulso para a auto-expansão e a dominação.

Com certeza, vários componentes nacionais da totalidade do capital sofreram derrotas imediatas humilhantes, mas só para se levantarem mais fortes das cinzas da desintegração temporária. Neste particular, os "milagres" alemão e japonês falam por si mesmos. Em outros casos, principalmente o do capital britânico, o pacto foi muito mais complicado, por uma variedade de razões, que se referem principalmente à luta de retaguarda contra a dissolução do Império britânico. Mas, mesmo nesses casos, não resta dúvida de que, no final, um grau não desprezível de reestruturação dinâmica ocorreu sob o desafio americano.

Os resultados globais destas transformações foram uma significativa racionalização do capital global e o estabelecimento de uma estrutura de relações financeiras e económicas com o Estado que foi, em geral, muito mais adequada ao deslocamento de muitas contradições do que a estrutura anteriormente existente.

18.2.5

Assim, a crise de 1929-33 não foi de modo algum uma crise estrutural do capital na formação global. Pelo contrário, forneceu o estímulo e pressão necessários para o re-alinhamento das suas várias forças constituintes, conforme as relações de poder objectivamente alteradas, muito contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento das tremendas potencialidades do capital inerentes à sua "totalidade intensiva".

Externamente isto significou:

  1. uma mudança dramática do imperialismo multi-centrado, ultrapassado, militar e político perdulariamente intervencionista para um sistema de dominação global que, sob a hegemonia norte-americana, se torna muito mais dinâmico e economicamente muito mais viável e integrado;
  2. o estabelecimento do Sistema Monetário Internacional e de vários outros órgãos importantes de regulamentação das relações inter-capitais incomparavelmente mais racionais do que havia à disposição da estrutura multi-centrada;
  3. a exportação de capital em grande escala (e com ela a perpetuação mais efectiva da dependência e do 'subdesenvolvimento" imposto) e o repatriamento seguro, em escala astronómica, de taxas de lucro totalmente inimagináveis nos países de origem; e
  4. a incorporação relativa, em graus variados, das economias de todas as sociedades pós-capitalistas na estrutura de intercâmbios capitalistas.

Por outro lado, internarmente, a história de sucesso do capital poderia ser descrita em termos de:

  1. uso de várias modalidades de intervenção estatal para a expansão do capital privado;
  2. transferência de indústrias privadas falidas, mas essenciais, para o sector público, e a sua utilização para novamente apoiar, através dos fundos estatais, as operações do capital privado, para serem novamente transformadas em monopólios ou quase-monopólios privados depois de se terem tornado mais uma vez altamente lucrativas pela injecção de fundos volumosos financiados pela tributação geral;
  3. desenvolvimento e operação bem sucedidos de uma economia de "pleno emprego" durante a guerra e por um período considerável depois dela;
  4. larga abertura de novos mercados e ramos de produção no plano da "economia de consumo" fortemente distendida, junto com o sucesso do capital em gerar e sustentar padrões extremamente perdulários de consumo, força motivadora vital de tal economia; e
  5. para coroar tudo isso, tanto no porte de seu peso económico como na sua significação política, estabelecimento de um imenso "complexo industrial/militar" como controlador e beneficiário directo da fracção mais importante da intervenção estatal: com isso, simultaneamente, o isolamento de bem mais de um terço da economia das desconfortáveis flutuações e incertezas do mercado.

Apesar de o valor intrínseco de todas estas realizações ser extremamente problemático (para dizer o mínimo), não pode haver dúvida quanto ao significado da auto-expansão dinâmica do capital e sua contínua sobrevivência. Precisamente por causa da sua importância central nos desenvolvimentos capitalistas do século XX, a severidade da crise estrutural de hoje é fortemente realçada pelo facto de várias das características mencionadas acima já não serem mais verdades, e de as tendências subjacentes apontarem na direcção da sua completa reversão: a tendência a um novo policentrismo (pense-se no Japão e na Alemanha, por exemplo), com consequências potencialmente incalculáveis, a um persistente desemprego de massa (e suas implicações óbvias para a economia de consumo) e à desintegração ameaçadora do tema monetário internacional e seus corolários. Seria tolice considerar permanentes as posições poderosamente fortificadas do complexo industrial-militar e sua capacidade de extrair e alocar para si mesmo, imperturbado, o excedente necessário para seu funcionamento contínuo na escala actual, ainda astronómica.

Algumas pessoas argumentam que, assim como conseguiu resolver os seus problemas no passado, o capital o fará indefinidamente também no futuro. Poderiam acrescentar que, se a crise de 1929-33 impôs ao capital mudanças dramáticas, que vimos testemunhando desde então, a crise estrutural actual deverá produzir remédios duradouros e soluções permanentes. O problema deste raciocínio é que ele não conta com absolutamente nada para respaldar o sonho inviável de perseguir a "linha de menor resistência" quando isso não mais é possível.

Embora seja vazio e perigoso argumentar a partir de meras analogias com o passado, torna-se auto-contraditório fazê-lo quando o assunto em questão é precisamente a crise estrutural e o colapso de alguns mecanismos e determinações até agora vitais, que se manifestam sob a forma da própria crise de controlo e dominação estabelecida. Podem-se especificar as condições para uma solução da crise actual, como veremos mais adiante. Portanto, a menos que se possa demonstrar que as tendências contemporâneas de desenvolvimento do capital podem realmente satisfazer estas condições, toda a conversa sobre a sua capacidade intrínseca de sempre resolver os seus problemas será apenas um "assobiar no escuro" para afugentar o medo.

Outra linha de argumentação insiste que o capital tem à sua disposição uma imensa força repressiva que pode usar livremente, tanto quanto quiser, na resolução dos seus crescentes problemas. Embora haja certas restrições — algumas até importantes — ao uso real, e potencial, de força bruta pelo capital, é inquestionável que a capacidade de destruição e repressão acumuladas é assustadora, e continua a multiplicar-se. Mesmo assim, mantém-se a verdade de que nada se resolve, nem jamais foi resolvido, apenas pela força. Lendas em contrário — relativas ao nazismo e ao estalinismo, por exemplo — são frequentemente usadas para justificar a cumplicidade mais ou menos activa de sectores importantes da população supostamente impotentes.

Além disso, há uma consideração ainda mais importante que se refere às características inerentes ao próprio capital. O capital é uma força extremamente eficiente para mobilizar os complexos recursos produtivos de uma sociedade muito fragmentada. Não importa ao capital em quantas partes: o seu grande recurso é precisamente a capacidade de lidar com a fragmentação. Porém, o capital definitivamente não é um sistema de emergência unificadora, nem poderia sê-lo a longo prazo, devido à sua própria constituição interna. Não é de modo algum acidental que formações estatais como as fascistas só sejam viáveis hoje na periferia do sistema do capital global, subordinadas a algum centro "metropolitano" liberal democrático e dele dependentes.

Assim, por maior que seja o êxito temporário das tentativas autoritárias de "punho de ferro" em atrasar ou adiar o "momento da verdade" — e as probabilidades de tais êxitos a curto prazo não devem ser subestimadas — num prazo mais longo elas podem somente agravar a crise. Os problemas estruturais descritos acima equivalem a um importante entrave no sistema global de produção e distribuição. Dada a sua condição de entrave, exigem remédios estruturais adequados, e não a sua multiplicação através de adiamentos forçados e de repressão. Por outras palavras, estes problemas requerem uma intervenção positiva no próprio processo produtivo problemático para enfrentar as suas contradições perigosamente crescentes, para removê-los à medida que o permita o ritmo da reestruturação real. Contra isto, é absurdo sugerir a possibilidade de o capital recorrer, enquanto isto ainda é possível, à dominação por meio de um estado de emergência completamente instável, portanto necessariamente efémero como condição permanente de sua normalidade futura.

18.2.6

As condições para administrar a crise estrutural do capital estão directamente articuladas a algumas importantes contradições que afectam tanto os problemas internos dos vários sistemas envolvidos como as relações entre eles. Resumidamente, tais problemas seriam:

  1. As contradições socio-económicas internas do capital "avançado" que se manifestam no desenvolvimento cada vez mais desequilibrado sob o controlo directo ou indirecto do "complexo industrial-militar" e do sistema de corporações transnacionais;
  2. As contradições sociais, económicas e políticas das sociedades pós-capitalistas, tanto isoladamente como na sua relação com as demais, que conduzem à sua desintegração e, desse modo, à intensificação da crise estrutural do sistema global do capital;
  3. As rivalidades, tensões e contradições crescentes entre os países capitalistas mais importantes, tanto no interior dos vários sistemas regionais como entre eles, colocando enorme tensão na estrutura institucional estabelecida (da Comunidade Europeia ao Sistema Monetário Internacional) e fazendo prever o espectro de uma devastadora guerra comercial;
  4. As dificuldades crescentes para manter o sistema neo-colonial de dominação (do Irão à África, do Sudeste Asiático à Ásia Oriental, da América Central à do Sul), ao lado das contradições geradas dentro dos países "metropolitanos" pelas unidades de produção estabelecidas e administradas por capitais "expatriados".

Como podemos ver, em todas as quatro categorias — cada uma das quais corresponde a uma multiplicidade de contradições — a tendência é para a intensificação, e não para a diminuição, dos antagonismos existentes. Além disso, a severidade da crise é acentuada pelo efectivo confinamento da intervenção à esfera dos efeitos, tornando proibitivo atacar as suas causas, graças à "circularidade" do capital, mencionada acima, entre Estado político e sociedade civil, por meio da qual as relações de poder estabelecidas tendem a reproduzir-se em todas as suas transformações superficiais.

Dois exemplos importantes ilustram conclusivamente esse facto. O primeiro refere-se ao complexo industrial-militar, o segundo à crónica insolubilidade dos problemas do "subdesenvolvimento".

Há muita esperança de criação de recursos para uma expansão económica positiva e viável por meio da re-alocação de uma parte importante da despesa militar para medidas e propósitos sociais há muito imprescindíveis. Porém, a frustração permanente dessas esperanças resulta tanto do imenso peso económico e do evidente poder estatal do complexo industrial-militar como do facto de que este complexo é antes manifestação e efeito do que causa das profundas contradições estruturais do capital "avançado". Naturalmente, uma vez que exista, continua também a funcionar como uma causa contribuinte — tanto maior quanto maior o seu poder económico e político — mas não como a causa que as produz. Do ponto de vista do capital contemporâneo, se o complexo industrial-militar não existisse, teria de ser inventado. (Como mencionado antes, de certo modo o capital simplesmente "tropeçou" nesta solução durante a guerra, depois da tentativa um tanto ingénua de Roosevelt de reculer pour mieux sauter da plataforma do New Deal, que de facto resultou num avanço muito pequeno no meio de uma depressão que não se abateu.)

O complexo industrial-militar cumpre com grande eficiência duas funções vitais deslocando temporariamente duas poderosas contradições do capital "super-desenvolvido".

A primeira, mencionada há pouco, é a transferência de uma porção significativa da economia das incontroláveis e traiçoeiras forças do mercado para as águas seguras do altamente lucrativo financiamento estatal. Ao mesmo tempo mantém intacta a mitologia da empresa privada economicamente superior e eficiente nos custos graças à absolvição a priori do desperdício total e da falência estrutural pela ideologia de fervor patriótico.

A segunda função não é menos importante: deslocar as contradições devidas à taxa decrescente de utilização(12) que se evidenciaram dramaticamente durante as últimas décadas de desenvolvimento nos países de capitalismo avançado.

É por isso que, enquanto não se encontrar uma alternativa estrutural para lidar com os fundamentos causais das contradições aqui mencionadas e que foram deslocadas com sucesso, a esperança de uma simples re-alocação dos recursos prodigiosos, agora investidos no complexo industrial-militar, fatalmente será anulada pelas determinações causais prevalecentes.

O mesmo é verdade para os problemas insolúveis do "subdesenvolvimento" forçado. Naturalmente, seria adequado que o "capital esclarecido" — uma verdadeira contradição em termos — estendesse a sua esfera de operação a todos os poros da sociedade "subdesenvolvida", activando plenamente os seus recursos materiais e humanos no interesse de sua auto-expansão renovada. Daí os esforços das Comissões Brandt e de iniciativas semelhantes que conseguem expressar um grande número de verdades parciais enquanto deixam de perceber a verdade global: o mundo "subdesenvolvido" está completamente integrado no mundo do capital, e cumpre nele várias funções vitais. Assim, podemos novamente ver uma tentativa de aliviar os efeitos do modo dominante de integração deixando intactas as suas determinações causais.

Tais propostas irreais ignoram sistematicamente que é absolutamente impossível manter os pés nas duas canoas: manter a existência do sistema de produção absurdamente ampliado e "super-desenvolvido" do capital "avançado" (o qual depende necessariamente da continuação da dominação de um "vasto território" de subdesenvolvimento forçado) e, ao mesmo tempo, impelir o "Terceiro Mundo" a um alto nível de desenvolvimento capitalista (que apenas poderia reproduzir as contradições do capital ocidental "avançado", multiplicadas pelo imenso tamanho da população envolvida).

Os actuais gerentes do capital conhecem muito mais do que de facto aparentam — tal como o fizeram os próprios Edward Heath e Willie Brandt, quando ainda chefiavam os seus respectivos governos — e desconsideram esses relatórios com o "realismo cínico que corresponde directamente à agressiva reafirmação dos interesses norte-americanos dominantes:

O secretário de Estado dos Estados Unidos disse hoje não ser realista falar de uma grande transferência de recursos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento. A ênfase de Mr. Haig era utilizar as forças convencionais de mercado [sic!] para aliviar o sofrimento dos países mais pobres. Deveria haver "um sistema comercial mais aberto com regras melhoradas". A ajuda estrangeira deveria ser associada a "uma política nacional e um esforço próprio sensatos". Na visão dos Estados Unidos isto significa confiar em incentivos económicos e na liberdade individual. "A supressão de incentivos económicos acaba por suprimir o entusiasmo e a criatividade... Os governos que mais favoreceram as liberdades de seus povos também tiveram mais êxito em assegurar tanto a liberdade como a prosperidade.(13)

É realmente uma suprema ironia ouvir um representante paradigmático do complexo industrial-militar repressor cantar as virtudes infinitas das "forças de mercado convencionais" e da "liberdade individual". Infelizmente, porém, esta é também a indicação de que não há esperanças de melhorias na esfera dos efeitos, enquanto se permitir que os determinantes causais do mundo real do capital sigam o seu curso estabelecido, o qual reproduz estruturalmente os mesmos efeitos com gravidade cada vez maior e em escala sempre crescente.

Se a condição para solucionar a crise estrutural estiver amarrada à solução dos quatro conjuntos de contradições mencionadas acima, do ponto de vista da contínua expansão global e da dominação do capital, a perspectiva de um resultado positivo está longe de ser promissora. Pois é muito remota a possibilidade de sucesso até mesmo dos objectivos relativamente limitados, para não mencionar a solução duradoura das contradições de todas as quatro categorias em conjunto. O mais provável é, ao contrário, continuarmos afundando cada vez mais na crise estrutural, mesmo que ocorram alguns sucessos conjunturais, como aqueles resultantes de uma relativa "reversão positiva", no devido tempo, de determinantes meramente cíclicos da crise actual do capital.

18.3- A PLURALIDADE DE CAPITAIS E O SIGNIFICADO DO PLURALISMO SOCIALISTA

18.3.1

Reflectindo sobre os debates do Programa de Gotha, Engels fez sarcasticamente um comentário sobre o que considerou a influência deplorável de Wilhelm Liebknecht, o autor principal do Programa: "Da democracia burguesa ele trouxe e teve uma verdadeira mania de unificação.(14) Dezasseis anos antes, quando do planeado Congresso da Unidade, Marx fez uma observação semelhante sobre a questão da unificação, entretanto sem referências pessoais. Ele reconheceu que "o facto da unificação traz satisfação aos trabalhadores", mas na mesma sentença sublinhou que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo não será comprado a um preço muito alto.(15)

É importante lembrar esta atitude céptica para com a "unidade" e a "unificação" para pôr em perspectiva a recente defesa do pluralismo. Seria absolutamente incorrecto tratar deste problema como algo resultante de considerações puramente tácticas ou dos limites práticos de uma relação desfavorável de forças que já não permite a adopção de políticas socialistas consistentes mas segue, ao contrário, uma estratégia de complicados compromissos.

Outra dimensão desta problemática é que por muitos anos o movimento da classe trabalhadora esteve sujeito a pressões de inspiração estalinista que tentaram impor a "unidade" para, no interesse do "Partido Líder", suprimir automaticamente a crítica. Aqueles que se auto-designavam porta-vozes de tal "unidade" nunca se deram ao trabalho de definir os objectivos socialistas tangíveis do Gleichschaltung (isto é, forçar num molde) organizacional que defendiam, nem de avaliar as condições objectivas para formular estratégias socialistas coordenadas, junto com as imensas dificuldades para a sua realização.

Há algumas razões muito fortes para que Marx e Engels considerassem "unidade" e "unificação" conceitos bastante problemáticos: as divisões e contradições objectivas existentes nos vários componentes do movimento socialista. Devido às suas complexas ramificações internas e internacionais, tais divisões e contradições simplesmente não poderiam ser removidas por desejo nem por decreto; menos ainda do que o sonho da Convenção Francesa do século XVIII de abolir o pauperismo. Não foi necessário esperar pela erupção do conflito sino-soviético e pela guerra entre a China e o Vietname para perceber que a simples proposta ou enunciado da "unidade das forças socialistas" não traz contribuição alguma para remover os seus problemas, desigualdades e antagonismos. A tarefa de desenvolver uma força suficientemente grande para desafiar com sucesso a força do capital em seu próprio terreno implicou, desde o início, a necessidade de construir sobre determinadas fundações, as quais mostram uma grande diversidade e conflito de interesses, herdadas através da divisão social do trabalho e pelas taxas de exploração diferenciais há muito dominantes.

Já que o problema era como constituir uma consciência de massa socialista com base nas fundações disponíveis, envolvendo-se simultaneamente nos confrontos inevitáveis para a realização das finalidades e objectivos limitados, tornou-se essencial encontrar uma maneira de preservar a integridade das perspectivas últimas sem perder contacto com as demandas, determinações e potencialidades imediatas das condições historicamente determinadas. Para Bakunin e outros anarquistas, este problema não existia (assim como não preocupou a todas as espécies de voluntarismo subsequentes), já que eles não estavam interessados na produção de uma consciência de massa socialista. Eles simplesmente admitiam a convergência espontânea da "consciência instintiva das massas populares" com as suas próprias visões e estratégias.

Marx, em contraste, concebeu a questão organizacional como:

  1. permanecer fiel aos princípios socialistas, e
  2. desenhar programas de acção viáveis e flexíveis para as várias forças que compartilham os amplos objectivos comuns da luta.

Foi assim que ele resumiu na última carta citada a sua visão do Congresso da Unidade:

Os líderes lassalleanos vieram porque as circunstâncias os forçaram a vir. Se lhes tivessem dito com antecedência que não haveria nenhuma barganha sobre princípios, eles teriam que se contentar com um programa de açção ou um plano de organização para a acção comum. Em vez disso, alguém lhes permite chegar armados com mandatos, reconhece estes mandatos como válidos, e assim se rende incondicionalmente àqueles que precisam de ajuda.

Independente das circunstâncias específicas do Congresso de Gotha, o "alto preço" mencionado por Marx estava relacionado com as concessões em torno de princípios com vista a uma unidade ilusória, e não à possível e necessária acção comum.

Assim como naqueles dias, mais uma vez este é um assunto de suprema importância. Pois hoje — talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente, e do não tão recente — não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de acção comum sem uma articulação estratégica consciente de um pluralismo socialista que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada "divisão do trabalho" na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da "unidade" como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios.

Mas o reverso desta regra é igualmente válido, qual seja: a condição elementar para se realizar os princípios de uma transformação socialista (que, afinal de contas, envolve a totalidade dos "produtores associados" no empreendimento comum de mudar "de alto a baixo as condições da sua existência industrial e política e, por conseguinte, toda a sua maneira de ser") é a produção de uma consciência de massa socialista na única forma possível de acção comum que se auto-desenvolve. E a última, claro, só pode resultar dos componentes verdadeiramente autónomos e coordenados (não hierarquicamente comandados e manipulados) de um movimento inerentemente pluralista.

Por muito tempo, no movimento socialista foi comum subestimar a capacidade da burguesia de alcançar unidade. Ao mesmo tempo, havia uma tendência correspondente para super-estimar as possibilidades e a importância imediata da classe trabalhadora. Além disso, as mesmas concepções que avaliavam tão equivocadamente a unidade tinham também uma tendência para ver na conquista do poder a solução dos problemas que confrontam a revolução socialista, e não o verdadeiro início deles.

Naturalmente, se a revolução socialista é vista como de carácter primordialmente político — em lugar de uma revolução social multi-dimensional, e portanto necessariamente "permanente", como Marx a definiu — a produção e a preservação da unidade superam tudo em importância. Porém, quando se reconhece que a conquista do poder é somente o ponto de partida para revelar as reais dificuldades e contradições desta transformação "de alto a baixo, de toda maneira de ser" dos produtores associados — dificuldades e contradições muitas das quais não podem sequer ser imaginadas antes de ser encontradas de facto no curso da própria transacção em andamento —, então a necessidade de estratégias genuinamente pluralistas afirma-se como uma questão tanto de urgência imediata como de importância contínua.

Apesar de ser uma verdade abstracta que a unidade da classe dominante "só se possa revelar vis-à-vis ao proletariado",(16) ela também é bastante enganadora, pois como no capitalismo tudo é subordinado à contradição fundamental entre capital e trabalho, a unidade burguesa inevitavelmente cumpre a função de fortalecer um lado desse antagonismo. Entretanto, a dificuldade está no facto de que o mesmo é verdade para o outro lado; e ainda mais verdadeiro, como veremos a seguir. Consequentemente, a verdade abstracta esconde uma distorção de grande importância, resultante de uma doce ilusão. Por outras palavras, nega ou ignora que há um fundamento devastadoramente real para a unidade da classe dominante: o seu domínio real e o poder tangível (tanto material e económico, como político e militar) que o acompanha.

Em contraste, a unidade proletária é um problema, uma tarefa, um desafio, até mesmo um imperativo em determinadas situações de emergência, mas não uma condição real espontânea da situação determinada. Pode vir a ser por um período mais ou menos limitado e por um propósito específico, mas nunca pode ser aceite como uma condição não-problemática que persiste mesmo depois da sua realização com êxito numa situação sócio-histórica específica. Pelo contrário, ela precisa de ser constantemente recriada nas circunstâncias variáveis enquanto os fundamentos objectivos da desigualdade (devido à divisão social hierárquica de trabalho herdada e a taxa diferencial de exploração mencionadas antes) permanecerem connosco em qualquer forma que seja, como fatalmente hão de permanecer por um período histórico de transição muito mais longo do que se poderia desejar.

18.3.2

A "mania burguesa da unidade" mencionada por Engels tem sólida fundação na ordem económica dominante da sociedade e no seu fiador institucional, o Estado capitalista. As manipulações capitalistas da unidade formal (que, por vezes aparecem mascaradas de "consenso geral") significam nada mais que o selo de aprovação a um estado de coisas de facto já em vigor, oferecendo-lhe assim sua "legitimação" a posteriori.

O facto de uma classe estar no poder efectivo — não só político, graças à instrumentalidade repressiva do Estado, mas no sentido positivo de regular o próprio sócio-metabolismo fundamental — garante-lhe uma poderosa base objectiva de auto-identidade unificadora muito antes de surgir uma aguda confrontação política com a classe adversária. E mesmo onde ocorram divisões internas na "sociedade civil" burguesa, devido à tendência objectiva irreprimível de concentração e centralização do capital, o lado vencedor é sempre o "unitário" — isto é, o grande capital. O seu poder certamente multiplica-se, à medida que se acelera o ritmo de avanço em direcção ao monopólio, e cria partes grotescamente desiguais em "competição" interna, competição idealizada no passado, mas agora cada vez mais flagrantemente pré-determinada e automaticamente decidida. Daí o crescente falso pluralismo da ordem social do capital em todas as suas mutações contemporâneas.

Uma das mistificações político-ideológicas mais poderosas do capital é, na realidade, a sua simulação de "pluralismo" através da qual tem sucesso em definir sem apelação os marcos de toda a oposição admissível à sua própria dominação. Se na fase liberal democrática do desenvolvimento capitalista a demanda por pluralismo ainda significava alguma coisa (mesmo que não muito mais que as possibilidades inerentes à "liberdade negativa" de John Stuart Mill), desde o começo da fase monopolista a margem para alternativas reais tem-se tornado cada vez mais estreita, até ao ponto do seu quase completo desaparecimento em tempos recentes. Se o pesadelo monetarista hoje encontra a sua crua e desordenada articulação na N.H.A. ("não há alternativa", como os Chefes de Estado insistem em repetir, como um disco riscado, a mensagem cínica da liberdade real do capital), isto pode apenas sublinhar a gravidade da crise estrutural. Além disso, também acentua as dificuldades em manter o disfarce da tirania absoluta do determinismo económico do capital como "o bem maior para o maior número" e a apoteose das "forças do mercado tradicional e da liberdade individual".

Na verdade, desde o princípio o "pluralismo" foi um conceito extremamente problemático para o capital. Não só — nem mesmo primariamente — por causa da sua tendência para o monopólio, mas em razão da pressuposição absoluta do monopólio já no seu início, isto é, o monopólio da propriedade privada por poucos e a exclusão a priori da vasta maioria como pré-requisito prévio necessário do controlo social pelo capital. (Vale a pena mencionar aqui que o monopólio estatal dos meios de produção retém esta pressuposição vital do sistema do capital e assim perpetua a dominação do capital de uma forma diferente.) Todas as regras subsequentes do jogo "pluralista" do capital foram decretadas com base neste fundamento monopolista absoluto: em seu próprio interesse, e a ser quebrado no interesse da continuidade e sua dominação, sempre que as circunstâncias assim o exigirem.

Admitiu-se desde o princípio como verdade auto-evidente que "não pode haver alternativa ao monopólio dos meios de produção, nem à livre dominação do avassalador determinismo económico do capital. Se alguém — os seguidores de Marx, por exemplo — ousasse questionar as manifestações e implicações destrutivas de tal determinismo económico, deveria ser condenado como perigoso determinista económico" do ponto de vista da liberdade unidimensional e unidireccional do capital. O significado do "pluralismo" do capital nunca foi mais que o simples reconhecimento da pluralidade de capitais, junto com a insistência simultânea no direito absoluto do capital total ao monopólio, tanto tendencialmente como de facto.

Assim, não só é impossível haver afinidade entre pluralismo socialista e pseudo pluralismo capitalista (que não oferece e não pode oferecer uma margem maior de acção alternativa do que a determinada pelo egoísmo estreito de uma pluralidade de capitais em competição, e até mesmo isto só enquanto sua competição limitada permanecer viável); eles são, na realidade, diametralmente opostos.

No plano político, o significado do pluralismo do capital é visível no ritual ridículo da "competição" pelo poder entre os democratas e os republicanos nos Estados Unidos, da mesma maneira que na manipulação bem sucedida do poder político, em nome do capital, por um partido desprezível da Itália, os democratas cristãos, por bem mais de quatro décadas e meia sem interrupção. (É óbvio até mesmo a seus críticos capitalistas que a dominação do capital japonês esteja efectivamente associada a um curioso sistema de partido único, que habilmente explora lealdades tradicionais de uma sociedade paternalista.) E nos casos um pouco mais complicados de Inglaterra e Alemanha (onde a social-democracia apregoa abertamente a sua capacidade de melhor administrar uma "moderna economia mista" capitalista do que a alternativa conservadora, iludindo-se ao legitimar com tal nobre fundamento a reivindicação de ser "o partido natural de governo"), só a forma da mistificação "pluralista" é diferente, não a sua substância. É por isso que o conservador Edward Heath e o social-democrata Willy Brandt fizeram, quando os seus respectivos partidos estavam no governo, uma crítica dócil ao sistema. E é por isto que o sucessor de Willy Brandt, Helmut Schmidt, só conseguiu ver (e denunciar) como "desestabilização política" a simples possibilidade de um desafio socialista à dominação do capital.

Em todos estes casos, "pluralismo" significa uma sistemática privação política dos direitos civis do trabalho em sua confrontação com o capital, na forma mais adequada às circunstâncias locais. O "pluralismo" de governos que se alternam (quantos deles na Itália pós-guerra sem a menor mudança?) oferece o álibi permanente para rejeitar categoricamente qualquer mudança real e para impor cinicamente o imperativo segundo o qual "não pode haver alternativa" ao devastador determinismo económico do capital. Além disso, as instituições do pseudo-pluralismo do capital não só fornecem as garantias políticas imediatas da continuidade da sua dominação. Elas também agem como escudo mistificador que automaticamente desvia toda a critica do seu alvo real (qual seja, o circulo vicioso da auto-expansão destrutiva do capital ao qual tudo deve ser incontestavelmente subordinado) para a irrelevância personalizada de seus administradores que, de boa vontade, se esmeram em superar um ao outro na melhor lubrificação do mecanismo do sistema.

Assim, a possibilidade de mudança "consensual" é convenientemente banida para uma margem de acção fixada a priori pela premissa de que "não há alternativa" às exigências da auto-expansão do capital (mesmo a mais destrutiva), impondo desse modo com sucesso os ditames do tipo mais estreito de determinismo económico como realização última da liberdade. Sempre que os governos são chutados por eleitores "soberanos" amargamente desiludidos pela "quebra de suas promessas", o alvo diversionário da oposição política consensual assegura que nunca sejam mencionadas a enorme responsabilidade e a duvidosa viabilidade da ordem sócio-económica a que eles servem e em nome da qual fazem e quebram tais promessas. Assim, enquanto governos "pluralistas" vêm e passam com frequência mistificadora, a dominação do capital permanece absolutamente intacta.

18.3.3

Em completo contraste, a condição elementar para o sucesso do projecto socialista é o pluralismo inerente a ele, e que parte do reconhecimento das diferenças e desigualdades existentes; não para preservá-las (que é uma necessidade de toda a "unidade" fictícia e arbitrariamente imposta), mas para superá-las da única forma viável: assegurando o envolvimento activo de todos os interessados.

Desnecessário dizer que este envolvimento é impossível sem a elaboração de estratégias e "mediações" específicas, que emergem das determinações particulares das necessidades e circunstâncias mutáveis, o que representa o maior desafio à teoria marxista contemporânea. A única e exclusiva perspectiva ampla que pode servir de estrutura de referência comum para a grande variedade de forças socialistas politicamente mais ou menos organizadas e conscientes é a rejeição do slogan omnipresente de que "não há alternativa". E nem mesmo isto pode ser admitido como um dado não problemático. Não só por ser uma negatividade que necessita da sua articulação positiva para se tornar viável como estratégia mobilizadora, mas também por ser, em primeira instância, equivalente a nada mais que a mera afirmação de que "deveria haver uma alternativa". Ainda assim, a rejeição deste slogan continua a ser o ponto de partida necessário, pois aqueles que aceitam a sabedoria do "não há alternativa" — em nome do "triunfo do capitalismo organizado", ou da "integração da classe trabalhadora", ou ainda de qualquer outra coisa — dificilmente poderiam alegar que oferecem a perspectiva de uma transformação socialista, mesmo que às vezes, curiosamente, continuem a afirmá-lo.

Assim como o capital é estruturalmente incapaz de pluralismo (com a excepção de uma espécie muito limitada, que também se tem tornado cada vez mais restrita com o avanço da concentração e da centralização necessárias do capital), o empreendimento socialista é estruturalmente irrealizável sem uma articulação plena com os múltiplos projectos autónomos ("auto-administrados"), e, por isso, irrepreensivelmente pluralistas da revolução social em andamento.

O amplo princípio geral que rejeita o determinismo económico do capital oferece não mais que um ponto de partida necessário em relação ao qual todos os grupos particulares (reflectindo inevitavelmente uma multiplicidade de interesses e divisões determinados) têm que definir a sua posição sob a forma de objectivos e estratégias específicas interligados e, se as condições o permitirem, também coordenados, mas definitivamente não idênticos. O que está em jogo é a invenção de uma alternativa viável para um sistema global imensamente complexo que tem a seu favor a "maldição da interdependência" para resistir à mudança.

Isto é expresso com brutal clareza nas palavras do senhor Roy Denman, por muitos anos o principal negociador da CEE para relações de comércio internacionais:
Não há alternativa. As pessoas não são suficientemente insanas para desejar a desintegração total de todo o sistema. Contudo, os perigos são muito grandes, a situação é agora mais séria que em qualquer outro momento desde a última guerra.(17)

Assim, os porta-vozes do capital, até mesmo quando são forçados a reconhecer a severidade da crise, só encontram aquela segurança na "sanidade" existente que protege e impõe o sistema para o qual "não há alternativa". E, embora não seja muito tranquilizador depender de nada mais sólido que o último fiat de "sanidade" para defender a insanidade capitalista, continua a ser verdade que a única alternativa real à crise estrutural do capital que se aprofunda é livrar-se completamente de todo o sistema.

Ninguém pode sugerir seriamente que a "insanidade" apercebida pelo senhor Roy Denman — a "desintegração total de todo o sistema" e a sua substituição por outro sistema viável — possa ser realizada por meio de pequenos grupos de pessoas fragmentadas, isoladas. Na realidade, não existe alternativa ao programa de Marx de constituir uma consciência socialista de massa pelo empreendimento prático de envolvimento numa acção comum realmente possível e inerentemente pluralista.

Embora se torne dolorosamente óbvio que as alternativas do capital hoje se limitam cada vez mais a flutuações manipuladoras entre variedades de keynesianismo e monetarismo,(18) com movimentos oscilatórios cada vez menos eficazes, perigosamente tendentes ao "repouso absoluto" de uma contínua depressão, a recusa socialista à falta de alternativa deve ser positivamente articulada com objectivos intermediários, cuja realização possa promover avanços estratégicos no sistema a ser substituído, mesmo que apenas parciais num primeiro momento.

O que decide o destino das várias forças socialistas na sua confrontação com o capital é o grau da sua capacidade de fazer mudanças tangíveis na vida quotidiana, hoje dominada por manifestações ubíquas das contradições subjacentes. Assim, não basta focalizar determinantes estruturais — mesmo que isto seja realizado com perspicácia, de um ponto de vista adequado — se ao mesmo tempo as suas manifestações directamente sentidas forem desprezadas porque as suas implicações estratégicas socialistas não são visíveis aos interessados. O significado do pluralismo socialista — envolvimento activo em acção comum que não compromete, mas, ao contrário, constantemente renova os princípios socialistas que inspiram as questões globais — emerge precisamente da capacidade das forças participantes de combinar, num todo coerente com implicações socialistas em última análise inevitáveis, uma grande variedade de demandas e estratégias parciais que, em si e por si, não precisam ter absolutamente nada de especificamente socialista.

Nesse sentido, as demandas mais urgentes da nossa época, que correspondem directamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais — empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela liberação das mulheres e contra a discriminação racial — podem, sem uma única excepção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis.

Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas na sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu carácter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa "politização" destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política directa numa estratégia socialista, mas a efectividade de afirmar e sustentar tais demandas "não-socialistas", tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível.

As preocupações imediatas da vida quotidiana, do cuidado médico à produção de grãos, não são directamente traduzíveis nos princípios e valores gerais de um sistema social. (Até mesmo as comparações só são pertinentes e efectivas quando houver carência numa área como resultado das demandas mais ou menos injustificáveis de outra; exemplo disso são os cortes feitos hoje em serviços sociais vitais no interesse da indústria de guerra.) Qualquer tentativa de impor um controlo político directo a tais movimentos, seguindo a tradição bastante infeliz do passado não tão distante, em vez de ajudar a fortalecer a sua autonomia e a sua eficácia, corre o risco de ser contraproducente (por melhores que sejam as intenções da "politização").

É um sinal importante das condições historicamente alteradas que estas demandas e as forças que existem por trás delas já não possam ser "incorporadas" ou "integradas" à dinâmica objectiva de auto-expansão do capital. Devido à sua insolubilidade crónica, bem como pelo seu poder motivador imediato, elas deverão definir a estrutura da confrontação social num futuro previsível. Naturalmente, independentemente da sua importância, as questões acima referidas são aqui mencionadas como exemplos que pertencem a um número muito maior de preocupações específicas por meio das quais devem ser mediadas as aspirações e estratégias socialistas hoje.

Outro tipo de demanda envolve um compromisso sociopolítico mais óbvio e directo, embora este conjunto tão pouco possa ser caracterizado como especificamente socialista. Por exemplo, a luta que se intensifica para preservar a paz contra interesses disfarçados do complexo industrial-militar, ou a necessidade de restringir o poder das transnacionais, ou ainda de estabelecer uma base de cooperação e troca que assegure as condições de desenvolvimento real no "Terceiro Mundo" está bastante óbvio que o capital não tem condições de atender a nenhuma destas demandas e, portanto, que o seu controlo sobre as forças por trás delas está diminuindo, também é verdade que o potencial liberador da sua perda de controlo não pode ser realizado sem a articulação de estratégias socialistas adequadas e suas formas organizacionais correspondentes.

As demandas que manifestam directamente a necessidade de uma alternativa socialista estão relacionadas com a perdularidade inerente ao modo de funcionamento do capital. Paradoxalmente, o capital consegue impor à sociedade a "lei de ferro" do seu determinismo económico sem sequer conhecer o significado de economia. Há quatro direcções principais nas quais se manifesta, com consequências crescentemente danosas, a perdularidade necessária do capital à medida que se alcançam os limites últimos do seu potencial produtivo:

  1. a procura incontrolável por recursos — isto é, a irreprimível tendência crescente do capital ao uso "intensivo de recursos", da qual o uso "intensivo de energia" é só um exemplo — sem consideração pelas consequências futuras sobre o ambiente, nem pelas necessidades das pessoas afectadas pelas suas assim denominadas "estratégias de desenvolvimento";
  2. a crescente intensdade de capital dos seus processos de produção, inerente à concentração e à centralização necessárias de capital, que contribui grandemente para a produção do "subdesenvolvimento" não só na "periferia" mas também no centro de seu domínio "metropolitano", gerando desemprego maciço e devastando uma base industrial antes florescente e perfeitamente viável;
  3. o impulso crescente em direcção à multiplicação do valor de troca, no princípio simplesmente divorciado, mas agora abertamente oposto ao "valor de uso" ao serviço da necessidade humana, para manter intacta a dominação do capital sobre a sociedade; e
  4. o pior tipo de desperdício: o desperdício de gente, pela produção em massa de "pessoas supérfluas" que, como resultado tanto dos avanços "produtivos" do capital como das suas dificuldades crescentes no "processo de realização", não podem mais ajustar-se aos esquemas estreitos da produção de lucro e da multiplicação perdulária do valor de troca. (O facto de a produção em massa de "tempo supérfluo" do número crescente de "pessoas supérfluas" seja o único tempo de vida das pessoas reais não pode ser, claro, objecto de preocupação para as dedicadas personificações do capital.)
18.3.4

Em relação a todas estas tendências e contradições do capital, as demandas de mudança só podem ser formuladas em termos de uma alternativa socialista global por isso que a renovação do marxismo se torna tão vital, pois, apesar das críticas acerca da "crise do marxismo", não há nenhuma teoria alternativa séria em condições de tratar desses problemas em toda a sua complexidade e abrangência.

À parte os recentes críticos hostis de Marx (como os "novos filósofos franceses" e os seus colegas "pós-modernos"), que podem seguramente ser ignorados devido aos seus interesses ideológicos excessivamente óbvios e ao padrão intelectual correspondente, as várias reflexões críticas tendem a focalizar aspectos limitados da crise social corrente. Elas oferecem respostas e soluções que só são parcialmente aplicáveis, e evitam precisamente aquelas questões abrangentes que definem os horizontes estratégicos de qualquer alternativa viável.

Ao mesmo tempo que é necessário resistir à inclinação de alguns marxistas a desconsiderar este tipo de crítica como "populista" — pois, seguramente, deve haver um lugar importante para o "populismo" de inspiração socialista numa estrutura genuinamente pluralista de acção comum — o interesse em assuntos locais e formas de organização "enraizadas no seu meio", bem como a tarefa de entender as suas tradições históricas e "peculiaridades", está longe de ser suficiente. Deve ser complementada pelo enfrentamento de suas muitas e mais largas ramificações e ligações com a totalidade social, de forma que o seu impacto cumulativo fortaleça as hipóteses da estratégia socialista, em vez de impulsioná-la na direcção da fragmentação e da dispersão.

Se no passado a teoria marxista teve uma tendência a esquecer essas preocupações, preferindo concentrar-se nos princípios gerais da alternativa socialista, isto deveu-se em grande parte às condições historicamente defensivas. Enquanto prevaleceram tais condições, era compreensível, na verdade necessária ainda que problemática, a constante reafirmação da validade última das perspectivas globais — em desafiante desconsideração à tranquila auto-expansão do capital tida como, basicamente, irrelevante. Porém, nas condições alteradas da ofensiva necessária, a reafirmação abstracta e auto-tranquilizadora das perspectivas gerais — como uma declaração de fé — está completamente fora de lugar. Pois o dito de Marx "Hic Rhodus. hic salta" pede a integração da totalidade das demandas sociais, das preocupações "não socialistas" quotidianas mais imediatas até as que questionam abertamente a ordem social do capital em si, numa alternativa estratégica teoricamente coerente e viável do ponto de vista instrumental e organizacional.

Assim, a verdadeira questão é como estabelecer firmemente uma direcção global a ser seguida, ao mesmo tempo em que se reconhecem plenamente as circunstâncias limitadoras e o poder de imediaticidade que se opõem a atalhos ideais. A revolução social marxista define o período de transição em termos de objectivos identificáveis, junto com as mediações teóricas, materiais e instrumentais necessárias para a sua realização. Nesse sentido, para relacionar alguns tópicos vitais, é necessário investigar como seria possível:

  1. produzir uma mudança radical e ao mesmo tempo salvaguardar a continuidade necessária do sócio-metabolismo (que pede a aplicação prática contínua do princípio metodológico marxista relativo à reciprocidade dialéctica entre continuidade e descontinuidade);
  2. restruturar "de alto a baixo" todo o edifício da sociedade, que simplesmente não pode ser derrubado com a finalidade de uma reconstrução total, como vimos na Parte II;
  3. passar da actual fragmentação das forças sociais à sua coesão no empreendimento criativo dos produtores associados (que implica o desenvolvimento bem sucedido da consciência de massa socialista, resultado de se assumir responsabilidade pelas consequências das práticas produtivas e distributivas auto-administradas);
  4. realizar genuínas autonomia e descentralização dos poderes de decisão, em oposição à sua concentração e à sua centralização existentes, que não podem de modo algum funcionar sem "burocracia";
  5. transcender a divisão e a "inércia circular" entre sociedade civil e Estado político pela unificação das funções de trabalho e tomada de decisão;
  6. abolir o segredo de governo, predominante por toda a parte, instituindo uma nova forma de auto-governo aberto pelas pessoas interessadas.

Muitos temas importantes da teoria marxista do século XX são partes integrantes da tentativa de se resolver estas questões de transição, assim como a reavaliação do papel dos sindicatos e partidos na estrutura do pluralismo socialista voltou a assumir a sua importância fundamental. Alguns podem querer negar que tais assuntos sejam importantes hoje. Mas aqueles que não adoptam esta perspectiva deveriam simplesmente concordar que um envolvimento activo pode ser o modo mais frutífero de enfrentar a "crise do marxismo".

18.4 - A NECESSIDADE DE SE CONTRAPOR À FORÇA EXTRA-PARLAMENTAR DO CAPITAL
18.4.1

A despeito de todos os protestos contrários da "direita radical", vivemos numa era em que, graças às dinâmicas internas de "hibridização" do controlo sócio-metabólico estabelecido, a dimensão política é muito mais proeminente do que na fase clássica de ascendência histórica do capital. Naturalmente, o exame adequado deste problema não deve restringir-se às instituições directamente políticas, como o Parlamento. É muito mais amplo e mais profundo. De facto, as mudanças que temos testemunhado no funcionamento do próprio Parlamento — mudanças tendentes a privá-lo inclusive das suas limitadas funções autónomas do passado — não podem ser explicadas de modo circular pela mudança da máquina eleitoral e das práticas parlamentares correspondentes. Os porta-vozes da hipostasiada "absoluta soberania do Parlamento e seus embates retóricos com os seus colegas parlamentares sobre a miragem da perda da soberania para Bruxelas" (por exemplo) estão longe da verdade. Procuram soluções para as deploradas mudanças onde elas não podem ser encontradas: nos limites do próprio domínio político parlamentar. Todavia, o problema é que os acontecimentos actuais, absolutamente perturbadores quando vistos de uma perspectiva política auto-referente, só podem ser entendidos dentro da estrutura abrangente dos processos de reprodução material e cultural, pois é ela que exige o cumprimento de determinadas, porém mutáveis, funções da esfera política no curso das transformações históricas e dos ajustes da auto-afirmação da ordem sócio-metabólica dominante como um todo.

Como já vimos em vários contextos, o desenvolvimento do século XX foi caracterizado pela crescente influência de factores "extra económicos". Por outras palavras, o século XX testemunhou a ascensão à proeminência de forças e procedimentos "extra económicos" que costumavam ser avaliados com grande cepticismo e rejeitados como estranhos à natureza do sistema do capital no momento da sua ascensão histórica triunfal. No início da crise estrutural do sistema ocorrida na década de 1970, os representantes da "direita radical" romperam com a forma keynesiana da intervenção consensual do Estado capitalista (dominante por um quarto de século depois da Segunda Guerra Mundial). Com isso, muitos políticos envolvidos esqueceram-se instantaneamente de que eles próprios estavam profundamente comprometidos com as práticas pecaminosas que agora denunciavam sonoramente. Esses políticos também se negaram a encarar o facto — não importa se com a ajuda da hipocrisia, do fingimento cínico ou se proveniente da ignorância genuína — de que o novo curso exigiria pelo menos uma intervenção do Estado nos processos sócio-económicos (agora, mais do que nunca, em nome do big business) tão grande quanto na variante keynesiana. A única diferença era que, adicionada à generosa ajuda dada ao big business — desde enormes incentivos fiscais até práticas corruptas de "privatização",(19) desde abundantes fundos de pesquisa (especialmente em proveito do complexo militar-industrial) à facilitação mais ou menos aberta da tendência ao monopólio — a "direita radical" precisou de impor também toda uma série de leis repressivas sobre o movimento dos trabalhadores. Ironicamente, as leis repressivas contra o trabalho tiveram que ser introduzidas "suavemente" por meio dos bons serviços dos "parlamentos democráticos", com a finalidade de negar à classe trabalhadora até mesmo os ganhos defensivos do passado, de acordo com as cada vez mais estreitas margens de acumulação do capital nas circunstâncias da crise estrutural em andamento.

Assim, para as perspectivas da emancipação do trabalho, a importância da luta política e da crítica radical do Estado — inclusive das suas "instituições democráticas", principalmente o Parlamento — nunca foi tão grande quanto na actual fase histórica de aparente "encolhimento dos limites do Estado". Como a angustiante situação de mil milhões de pessoas se tornou dolorosamente óbvia, o sistema do capital, mesmo na sua forma mais avançada, esquece miseravelmente a espécie humana. O mesmo pode ser dito da dimensão política do controlo socio-metabólico. Até mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital — o Estado liberal-democrático, com a sua representação parlamentar e as suas garantias democráticas formais e institucionalizadas de "justiça e imparcialidade", bem como com as suas apregoadas garantias contra o abuso de poder — fracassou em todas as promessas que a auto-legitimavam.

A crise da política em todo o mundo, incluindo as democracias parlamentares dos países capitalistas mais avançados — que assume frequentemente a forma de uma compreensível amargura e de um resignado afastamento da actividade política das massas populares — é parte integrante do agravamento da crise estrutural do sistema do capital. As alegações de "dar poderes ao povo" — seja a da ideologia do "capitalismo popular" (armado com uma porção de acções sem direito a voto) ou sob os slogans de "oportunidade igual" e "imparcialidade" num tema de incorrigível desigualdade estrutural — são absurdas demais para serem levadas a sério mesmo pelos seus mais proeminentes propagandistas. Ao contrário, em vez da repetida promessa do "encolhimento dos limites do Estado", o futuro provavelmente trará maior imposição de determinações políticas regressivas sobre o dia-a-dia das massas populares. Por mais desencorajadoras que sejam as suas formas institucionais dominantes e as suas práticas de auto-perpetuação, não há opção fora da política. Mas, precisamente por essa razão, a política é importante demais para ser deixada aos políticos; na verdade, uma democracia digna deste nome é importante demais para ser deixada às actuais democracias parlamentares viáveis do capital e à pequena margem de acção dos parlamentares, mesmo dos grandes parlamentares".

Quando é concedido aos representantes da esquerda, o título de "grande parlamentar" é usado pelo sistema Conservador (com "c" minúsculo, incluindo a liderança da ala direita do Partido Trabalhista) como uma forma de auto-congratulação e auto-elogio. Tais personalidades políticas são tidas como "grandes parlamentares" porque, segundo a lenda, "aprenderam a dominar as regras do procedimento parlamentar e, com a ajuda delas, "continuam a levantar os assuntos desconfortáveis". Entretanto, a verdade realmente desconfortável é que os assuntos assim levantados são invariavelmente ignorados ou declarados "fora da pauta" pelo próprio Parlamento. Dessa forma, os apologistas do sistema parlamentar substantivamente anti-socialista podem demonstrar à "opinião pública democrática" que não existe outro caminho para lidar com os problemas da sociedade a não ser por meio da submissão do jogo parlamentar às leis e ao rigoroso cumprimento de seus procedimentos, os quais produzem "grandes parlamentares" também na esquerda política. Futilidade e marginalização política são os critérios a ser promovidos ao alto posto de "grande parlamentar" na esquerda. Desse modo, alguns deles são admitidos no hall da fama para colocar o sistema da democracia parlamentar além e acima de toda a "crítica legítima" concebível.

Na verdade, dada a marginalização política inseparável da aceitação das amarras parlamentares como a única estrutura legítima da acção política, a aceitação das regras internas do jogo parlamentar — mesmo se praticada com propósito radical — só pode produzir o auto-encarceramento parlamentar da esquerda. Ironicamente, do modo como funciona actualmente o sistema parlamentar, até mesmo pessoas com credenciais impecáveis da ala direita — mas com grandes ilusões sobre o seu próprio papel na determinação do resultado dos debates políticos — como Roy Hattersley, estão infelizes com o conformismo cego que os leva a aceitar as regras mais recentes do jogo parlamentar. Queixam-se, claro que totalmente em vão, de que a liderança do partido deveria prestar mais atenção aos princípios professados no passado. De facto, testemunhamos hoje a liquidação até dos mais brandos princípios sociais-democratas para assegurar uma "aliança eleitoral mais ampla". É assim que — num artigo publicado no Independent, em 12 de Agosto de 1995, sob o título "Roy Hattersley conta a Tony Blair onde ele tem errado" —, de modo manifesto, ele argumenta:

Sou um crente apaixonado no novo trabalhismo, um antigo adversário da velha cláusula IV (que promete a posse comum dos meios de produção) e um herético que deseja cortar completamente os elos formais dos trabalhistas com os sindicatos. Mas entendo por que os membros do partido se preocupam com o facto de nos termos ocupado tanto com os problemas da classe média que começamos a ignorar as necessidades dos desfavorecidos e dos excluídos ... A ideologia é o que mantêm os partidos estáveis e dignos de crédito, bem como honestos. A longo prazo, a estima do público pelo partido seria protegida por uma afirmação contundente de intenção fundamental. O socialismo— que é proclamado na nova cláusula IV — exige que a pedra fundamental seja a redistribuição de poder e riqueza. Se esse objectivo fosse reafirmado, muitos dos problemas desapareceriam.

O autor deste artigo parece preocupado com o facto de o Partido Trabalhista — do qual há não muito tempo Hattersley era o vice-líder na Câmara dos Deputados — ter falhado na "redistribuição de poder e riqueza", durante toda a sua longa história. The Times é muito mais realista quando elogia Tony Blair dizendo que a ideologia do "novo trabalhismo", defendida pelo líder da oposição, carrega pouca relação com o socialismo do passado. É "pragmático, amigo dos negócios".(20)

18.4.2

O estreitamento da margem de acumulação lucrativa do capital afectou grandemente as perspectivas do movimento dos trabalhadores até mesmo na maioria dos países de capitalismo avançado. Não só piorou o padrão de vida da força de trabalho em emprego formal (para não mencionar as condições de milhões de pessoas desempregadas e sub-empregadas), mas, como mencionado na última secção, também reduziu as possibilidades da sua acção auto-defensiva como resultado da legislação autoritária imposta às classes trabalhadoras pelos seus parlamentos supostamente democráticos.

Ainda hoje este processo não está completo. Não há um ano sequer em que as classes trabalhadoras não sejam confrontadas por novas medidas legislativas inventadas contra os seus órgãos de defesa e formas de acção tradicionais. Ao mesmo tempo, a própria forma parlamentar de representação tornou-se extremamente problemática mesmo nos seus próprios termos de referência.

Certa vez Hegel resumiu nos seguintes termos a justificação para a autonomia relativa dos representantes parlamentares — um argumento ainda usado para racionalizar o facto de os representantes parlamentares não se sentirem obrigados a prestar contas aos seus eleitores:

a sua relação para com os seus eleitores não é a de agentes com uma comissão ou uma instrução específicas. Uma obstrução adicional para o serem é o facto de que a sua assembleia deve ser um corpo vivo no qual todos os membros deliberam em comum e reciprocamente se instruem e convencem.(21)

No funcionamento real dos parlamentos actuais nada corresponde à caracterização hegeliana, nem mesmo no grau limitado em que poderiam merecer aquela descrição. Quaisquer que tenham sido as perspectivas dos membros particulares do Parlamento, sobre as quais gostariam de "deliberar em comum e reciprocamente instruir-se e convencer-se", não têm qualquer peso os argumentos que poderiam ser capazes de apresentar a seu favor, mesmo se defendidos com ênfase. De facto, o assim denominado "three line whip"(NT) compele-os a votar de acordo com ordens da liderança do seu partido, sob pena de "perderem os seus whip", o que significa ser "não eleito" como candidato ao Parlamento. Esta prática é adoptada não apenas nos assuntos políticos mais importantes, mas até em debates sobre a pertinência ou não de se introduzir licenças para cães. E a este respeito não deve haver qualquer diferença entre os principais partidos políticos. Exemplo disso aconteceu quando o primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson, "de centro esquerda", certa vez ameaçou brutalmente os seus colegas dissidentes da esquerda do partido dizendo-lhes que, a menos que se comportassem, ele não iria renovar as suas licenças para cães".

Este é um dos problemas mais desafiadores para o futuro, pois ao longo do século XX testemunhamos a degradação da política parlamentar — no passado enraizada na pluralidade de capitais e na margem de ganhos relativos que poderiam caber também à classe trabalhadora, derivados da divergência correspondente de interesses — a uma espécie de conspiração contra o trabalho como antagonista do capital. Este tipo de conspiração tem lugar não tanto entre partidos, mas no interior de cada um deles. Entre eles isto acontece apenas no sentido da profana "política do consenso" destas últimas décadas, apesar da geração da névoa institucionalizada da política de adversários" parlamentar. Porém, o aspecto mais importante é a constituição interna e o funcionamento dos próprios partidos, inclusive dos partidos parlamentares do trabalho. O modo como são constituídos e administrados exclui qualquer possibilidade de até mesmo se levantar a questão da mudança do controlo socio-metabólico estabelecido. Pelo contrário toda a actividade política parlamentar está condenada — tanto no governo como na oposição — à estabilização ou reestabilização do sistema do capital. Por isso, já há muito tempo a linha-mestra das políticas parlamentares tem sido como desproteger o trabalho (não aberta e formalmente, mas em termos substantivos), de modo a anular os ganhos obtidos pela instrumentalidade dos partidos e sindicatos anteriores da classe trabalhadora. A política de cambalhotas do Partido Trabalhista Britânico (que agora, respeitosamente, se chama "Novo Trabalhismo") e o similar "não envolvimento" do Partido Comunista Italiano de todos os princípios e convicções anteriores são boas ilustrações de como o antagonista do capital vem sendo efectivamente desprotegido no curso desses desenvolvimentos.

O principal papel dos partidos social-democratas (sob uma variedade de nomes, incluindo os dos antigos partidos comunistas hoje rebaptizados) limita-se actualmente à entrega do trabalho ao capital e a usar as pessoas como forragem eleitoral para os propósitos da legitimação espúria do status quo perpetuado sob o pretexto do processo eleitoral "aberto" e "plenamente democrático". Esta acomodação parlamentar não crítica dos partidos da classe trabalhadora nem sempre ocorreu, muito embora sempre tenha sido extremamente problemática a "observância estrita dos procedimentos parlamentares" aos quais se esperava que eles se submetessem quando entrassem na arena eleitoral. Ou seja, o movimento dos trabalhadores, quando da sua criação, tinha objectivos muito mais amplos e incomparavelmente mais radicais do que os que poderiam ser realizados dentro da estrutura principal do órgão político criado pela burguesia em ascensão: o Parlamento. De facto, até mesmo o movimento da social-democracia alemã — que começou a ceder às pressões pela acomodação já no período de vida de Marx — continuou a prometer uma transformação social radical pela implementação de reformas estratégicas até capitular abertamente às demandas do expansionismo nacional burguês quando da irrupção da Primeira Guerra Mundial. Porém agora, com o fim da ascensão histórica do capital, praticamente inexiste margem de reforma em favor do trabalho. Assim, a corrente principal da "reforma" e da legislação parlamentares tem por objectivo não o isolamento total de um punhado de parlamentares socialistas, mas a castração do movimento dos trabalhadores em geral.

Cada instituição singular do sistema está completamente envolvida neste empreendimento, em que pese a mitologia das "garantias democráticas" que supostamente deveriam ser oferecidas pela "divisão dos poderes": uma mitologia que infectou até mesmo alguns intelectuais bem conhecidos da esquerda. O que seria supostamente uma das principais garantias democráticas — o "Judiciário independente nada teme" — continua a demonstrar, em toda a ocasião possível, capacidade "pendente" de impor as leis repressivas do "Parlamento democrático" contra o trabalho, em completa harmonia com os interesses e imperativos da ordem estabelecida. O seu comportamento durante a greve de um ano dos mineiros ingleses foi exemplo notável de "militância judiciária". Mas, claro, o Judiciário não precisa de uma confrontação social importante, como a revelada por esse exemplo, para cumprir o papel anti-democrático de acordo com a sua consciência de classe. Em todo o assunto fundamental ele fá-lo dentro da normalidade. Assim, num recente e final, na lei local — julgamento, os senhores das leis britânicas atacaram os sindicatos mesmo na sua função básica de negociador de salário, minando dessa forma a própria existência. Como informou o Financial Times:

Ontem, os magistrados decretaram unanimemente que os empregadores estão legalmente autorizados a reter o aumento no pagamento de empregados que se recusarem a assinar contratos pessoais que abolem os seus direitos negociados pelos sindicatos.(22)

Este julgamento claramente marcado pela consciência de classe foi na realidade extensão retroactiva de uma lei anti-sindicato instituída em 1993 pelo governo conservador na Inglaterra, ainda que tais procedimentos sejam normalmente falseados, com característica hipocrisia, como "esclarecimento legal politicamente independente". A hipocrisia de tais actos anti-democráticos só é superada pela "argumentação" que apela à credulidade dos suficientemente ingénuos para considerá-la seriamente. Assim,

Lord Slynn argumentou que não havia evidência no facto de que a retenção do aumento de salário daqueles que permaneceram no sindicato visasse primariamente evitar ou intimidar a adesão a este, mesmo que o próprio não-reconhecimento em si pudesse tornar o sindicato menos atraente para os membros ou sócios em potencial.(23)

Não cabe dúvida com relação às ginásticas e acrobacias mentais necessárias para produzir racionalizações como estas, que requerem a capacidade única de se colocar de cabeça para baixo para escrever longas sentenças da suprema corte, sem sequer corar. Ao mesmo tempo, tais actos da mais elevada instância judiciária democrática e independente também confirmam que a "separação dos poderes" n a dominação do capital significa somente uma coisa: a separação institucionalizada e legalmente imposta entre o poder e o trabalho e o seu exercício contra os interesses do trabalho. Por isso não pode haver esperança de se instituir mudanças estruturais significativas na estrutura socio-política estabelecida e bem defendida, mesmo que leve um milhão de anos. Esta é a razão pela qual continuam inevitáveis as frustrações permanentes e invariáveis derrotas dos socialistas genuínos, esperançosos de alcançar os seus objectivos por meio de reformas parlamentares. Longe de serem simples questões pessoais, os seus fracassos acentuam a sabedoria do grande poeta húngaro Attila József, que escreveu:

nem sequer os melhores truques do gato conseguirão apanhar o rato simultaneamente fora e dentro da casa.(24)

18.4.3

A crítica radical do sistema parlamentar não começou com Marx. Encontra-mo-la expressa de forma poderosa, já no século XVIII, nos escritos de Rousseau. Partindo do pressuposto de que a soberania pertence ao povo e que, portanto, não pode ser legalmente alienada, Rousseau argumentou que, pelas mesmas razões, ela pode ser transformada legitimamente em qualquer forma de abdicação representacional:

Os representantes do povo não são, nem podem ser, seus representantes, não passam de seus comissários, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda a lei que o povo não ratificar directamente; em absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; uma vez eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso que dela faz mostra que merece perdê-la.(25)

Rousseau fez ainda a importante observação de que, embora o poder Legislativo não possa ser divorciado do povo nem sequer pela representação parlamentar, as funções administrativas ou executivas devem ser consideradas sob uma luz muito diferente. Como explicou:

no exercício do poder legislativo, o povo não [pode] ser representado, mas no do poder Executivo, o qual é a única força que ´ aplicada para tornar a lei efectiva, ele pode e deve estar representado.(26)

Rousseau tem sido sistematicamente falsificado e indevidamente utilizado pelos ideólogos "democratas", incluindo o "jet set socialista" por ter insistido em que "liberdade não pode existir sem igualdade"(27) — o que exclui até mesmo a melhor forma de representação, considerada por ele hierarquia necessariamente discriminatória / iníqua. Desse modo, ele propôs uma forma de exercício de poder político e administrativo muito mais praticável do que a que lhe é atribuída, ou de que é acusado. Significativamente, neste processo de falsificação tendenciosa, os dois princípios vitalmente importantes da teoria de Rousseau, adaptados adequadamente também pelos socialistas, foram desqualificados e abandonados. Contudo, a verdade é que, por um lado, o poder fundamental de tomar decisão nunca deveria ter sido divorciado das massas populares, como demonstrou conclusivamente a história de verdadeiro horror do sistema estatal soviético, administrado contra o povo pela burocracia estalinista em nome do socialismo da forma mais autoritária. Por outro lado, em todos os domínios do processo reprodutivo social, o cumprimento de funções administrativas e executivas específicas pode ser de facto delegado a membros da comunidade, contanto que seja realizado segundo regras definidas autonomamente e apropriadamente controladas em todas as fases da tomada de decisão substantiva pelos produtores associados.

Assim, as dificuldades não residem nos dois princípios básicos tais como formulados por Rousseau, mas no modo pelo qual devem ser relacionados ao controlo político e material do processo sócio-metabólico pelo capital. Conforme os princípios da inalienabilidade do poder de determinar as regras (isto é, a "soberania" do trabalho não como uma classe particular mas como condição universal da sociedade) e da delegação de papéis e funções sob regras bem específicas, definidas, flexivelmente distribuídas e adequadamente supervisionadas, o estabelecimento de uma forma socialista de tomada de decisão exigiria invadir e reestruturar radicalmente os domínios materiais antagónicos do capital. Um processo que deveria ir bem além do princípio da soberania popular inalienável de Rousseau e seu corolário delegatório. Ou seja, numa ordem socialista, o processo "legislativo" deveria ser fundido no próprio processo de produção de tal modo que a necessária divisão horizontal do trabalho — discutida no capítulo 14 — fosse complementada em todos os níveis, do local ao global, por um sistema de coordenação auto-determinado do trabalho. Esta relação contrasta agudamente com a perniciosa divisão vertical do trabalho do capital, que é implementada pela "separação dos poderes" num "sistema político democrático" alienado e inalteravelmente imposto às massas trabalhadoras. Ora, a divisão vertical de trabalho sob o comando do capital infecta incuravelmente todas as facetas da divisão horizontal do trabalho, das funções produtivas mais simples aos processos mais complexos da selva legislativa. E esta é uma selva legislativa cada vez mais densa não só porque as suas regras e componentes institucionais se multiplicam ao infinito e mantêm sob forte controlo o comportamento real ou potencialmente desafiador do trabalho, alertando para os pleitos limitados do trabalho e protegendo a dominação global do capital sobre a sociedade em geral. Em qualquer tempo particular do processo histórico em desdobramento — desde que tal conciliação seja de alguma maneira possível —, conciliam-se os interesses separados da pluralidade de capitais com a dinâmica incontrolável da totalidade do capital social que tende por último para sua auto-afirmação como entidade global.

Numa recente retomada da crítica de Rousseau da representação parlamentar, Hugo Chávez Frias, o líder de um movimento radical na Venezuela — o Movimiento Bolivariano Revolucionário (MBR-200) —, escreveu com respeito à crise crónica do sistema sócio-politico do país:

Com o surgimento dos partidos populistas, o sufrágio foi convertido numa ferramenta para adormecer o povo venezuelano com o fim de escravizá-lo em nome da democracia. Durante décadas os partidos populistas basearam o seu discurso em inumeráveis promessas paternalistas criadas para dissolver a consciência popular. As mentiras políticas alienantes pintaram uma "terra prometida" a ser alcançada através de um jardim de rosas. A única coisa que os venezuelanos teriam que fazer seria ir às urnas eleitorais e esperar que tudo fosse resolvido sem o mínimo esforço popular. ... Assim, o acto de votar foi transformado no começo e no fim da democracia.(28)

Entre todas as personalidades públicas, incluindo todos os sectores da sociedade, o autor destas linhas é o segundo em estima popular na Venezuela (atrás apenas de Rafael Caldera) e encontra-se bem acima de todos os políticos aspirantes nos partidos. Se quisesse, poderia ganhar facilmente eleições para altos cargos, o que refuta o argumento habitual segundo o qual as pessoas que só criticam o sistema político existente assim o fazem porque não podem satisfazer as árduas exigências das eleições democráticas. De facto Hugo Chávez, ao escrever o discurso acima (1993), rejeita, por razões muito diferentes, o "canto de sereia" dos formadores da opinião política, que tentam pacificar as pessoas dizendo que não há necessidade de se preocuparem com a crise porque falta pouco tempo para "as próximas eleições". Ele assinala que, enquanto o conselho político habitual pede "um pouco mais de paciência" até que as eleições programadas se realizem em poucos meses, "a cada minuto centenas de crianças nascem na Venezuela com a saúde ameaçada por falta de comida e medicamentos, enquanto biliões são roubados da riqueza nacional, sangrando o que ainda resta do país. Não há razão que justifique qualquer crédito a uma classe política que demonstrou à sociedade não ter a menor vontade de instituir qualquer mudança. Não há nenhuma razão para baixar a guarda e arrefecer as lutas populares até novo aviso. Em troca, temos muitas razões para continuar a pressionar o acelerador da máquina que move a história".(29) Por esta razão, Chávez contrapõe ao sistema existente de representação parlamentar a ideia de que 'O povo soberano deve transformar-se no objecto e no sujeito do poder. Esta opção não pode ser negociável para revolucionários'.(30) Quanto à estrutura institucional na qual este princípio deve ser realizado, ele projecta-a no curso de uma mudança radical:

O poder eleitoral do estado federal tornar-se-á o componente político-jurídico pelo qual os cidadãos serão depositários da soberania popular, cujo exercício permanecerá daqui para a frente realmente nas mãos do povo. O poder eleitoral será estendido a todo o sistema sócio-político da nação, estabelecendo os canais para uma verdadeira distribuição policêntrica de poder, deslocando o poder do centro para a periferia, aumentando o poder efectivo da tomada de decisão e a autonomia das comunidades e municipalidades particulares. As Assembleias Eleitorais de cada municipalidade e estado elegerão Conselhos Eleitorais que possuirão um carácter permanente e funcionarão com independência absoluta dos partidos políticos. Eles serão capazes de estabelecer e dirigir os mecanismos mais diversos de democracia directa: assembleias populares, referendos, plebiscitos, iniciativas populares, vetos, revogação, etc. ... Assim, o conceito de democracia participativa será transformado numa forma na qual a democracia baseada na soberania popular se constitui como a protagonista do poder. É precisamente nestas fronteiras que temos que traçar os limites de avanço da democracia bolivariana. Então nós deveremos estar muito perto do território da utopia.(31)

Se tais ideias podem ser transformadas em realidade ou deverão continuar sendo ideais utópicos é uma questão que não pode ser decidida nos limites da esfera política. Em si mesma, esta é uma necessidade de transformação radical que pressagia, desde o início, a perspectiva de "fenecimento do Estado". Na Venezuela, o país em que até 90 por cento da população se rebela pela abstenção eleitoral contra o "absurdo do voto",(32) contra as práticas políticas tradicionais e o uso apologético legitimador ao qual é submetido o "sistema democrático eleitoral", com a falsa pretensão de que o sistema está inquestionavelmente justificado pelo "mandato conferido pela maioria", nenhuma condenação do vazio paternalismo parlamentar pode ser considerada excessiva. Nem se pode argumentar seriamente que a elevada participação eleitoral seja a prova de um consenso popular democrático realmente existente. Afinal de contas, em algumas democracias ocidentais o acto de votar é compulsório e não acrescenta mais valor legitimador que as formas mais extremas de abstencionismo abertamente crítico ou resignadamente pessimista. Não obstante, a medida da validade da crítica radical ao sistema de representação parlamentar é o empreendimento estratégico de não só exercitar a "soberania do trabalho em assembleias políticas, — não importa o quão directas elas possam ser em relação à sua organização e ao seu modo de tomada de decisão política —, mas na actividade de vida produtiva e distributiva auto-determinada dos indivíduos sociais em todo o domínio singular e em todos os níveis do processo sócio-metabólico. Isto é o que traça a linha de demarcação entre a revolução socialista, que é socialista na sua intenção — como a Revolução de Outubro de 1917 —, e a "revolução permanente" de transformação socialista efectiva. Sem a transferência progressiva e total da tomada de decisões reprodutivas e distributivas materiais aos produtores associados não pode haver esperança para os membros da imunidade pós-revolucionária de se transformarem em sujeitos do poder.

18. 4.4

Na segunda metade do século XX, ninguém argumentou mais convincentemente a favor de garantias legislativas contra o abuso do poder político e a violação dos direitos humanos que Norberto Bobbio. Consciente da desumanidade praticada, em nome do socialismo, pelo sistema do tipo soviético, combinou os melhores traços do liberalismo com as aspirações do socialismo democrático. Rejeitando firmemente a ideia da "democracia directa", ele advogou a instituição de garantias e melhorias dos direitos humanos por meio do sistema legislativo parlamentar.(33) Mas, significativamente, a melhoria das condições existentes, por meio de direitos formalmente garantidos, advogada por Bobbio, tem se tornado progressivamente mais dependente das mudanças das determinações e imperativos materiais do sistema do capital. Consequentemente, uma crítica radical desse sistema como ordem sócio-metabólica parece ser pré-condição necessária para avaliar as medidas legislativas com ele compatíveis.

Numa entrevista concedida em 1992, Bobbio enfatizou que, na nossa época, o direito à liberdade e ao trabalho, juntamente com os direitos individuais à previdência social, deve ser complementado com os direitos das gerações actuais e futuras viverem num meio ambiente despoluído, com o direito de auto-regular a procriação humana, de garantir a sua privacidade contra todas as transgressões perpetradas pelo omnipresente Estado controlador. E de garantir-se legalmente contra os sérios perigos que afectam cada vez mais o património genético.(34) Por mais que possamos concordar com todas essas necessidades, é inquietantemente claro que somente por meio de um bem sucedido confronto com os enormes interesses materiais e políticos contrários seria possível até mesmo a decretação parlamentar de garantias e dos direitos advogados — com excepção, talvez, do formal "direito à liberdade" que, para a maior parte da humanidade, é na prática esvaziado de todo o conteúdo material pelo actual controlo sócio-metabólico. Além disso, a decretação formal em si não pode oferecer garantias da sua implementação, como testemunham amplamente os inumeráveis princípios constitucional-democráticos solenemente proclamados e as incontáveis leis "que não pegam" que adornam as legislações. Pois elas "não pegam" precisamente porque podem, ou talvez pudessem, restringir o poder do capital. Num mundo de desemprego crónico, de constantes ataques até mesmo aos escassos vestígios do "Estado de bem-estar social" e do sistema de previdência social, vive-se sob a pressão de explorar tudo ao máximo, desde os recursos não-renováveis até os avanços eticamente mais questionáveis feitos na biotecnologia e na informática, directamente subordinados aos ditames da acumulação lucrativa do capital. Neste mundo, somente em sonho se poderia fazer oposição diametral a esses desenvolvimentos por meio dos bons ofícios de uma legislatura iluminada. Igualmente, seria milagre que um sistema de controlo reprodutivo estruturalmente incapaz de planear e impedir o impacto nocivo do seu próprio modo de operação pudesse codificar e respeitar, até mesmo a curtíssimo prazo, os direitos das gerações futuras em conflito com os seus imperativos materiais. Naturalmente, essa circunstância não invalida o argumento do filósofo italiano, para quem a esquerda deveria lutar de todas as maneiras possíveis para tornar as pessoas conscientes dos méritos de tais necessidades como parte da sua crítica à ordem social vigente. Mas isso coloca imediatamente em relevo as desesperadoras limitações das instituições legislativas disponíveis para solucionar os profundos problemas reprodutivo-materiais identificados pelo próprio Bobbio.

A social-democracia, na sua longa história, primeiro perseguiu a alternativa de tentar introduzir grandes mudanças nas relações de classe predominantes graças à reforma parlamentar e, depois de poucas décadas de fracasso em levar adiante os objectivos da transformação socialista, terminou por renegá-los totalmente. De modo algum isso foi acidental ou simplesmente "traição pessoal" dos representantes da social-democracia parlamentar aos seus antigos princípios. O projecto de instituir o socialismo pelos meios parlamentares estava condenado desde o início, pois eles sonharam a realização do impossível e prometeram transformar gradualmente em ordem socialista — algo radicalmente diferente — um sistema de controlo da reprodução social sobre o qual eles não tinham, e nem poderiam ter, qualquer controlo significativo dentro do Parlamento e por meio dele.

Como vimos, o capital — por sua própria natureza e suas determinações internas — é incontrolável. Portanto, investir as energias de um movimento social na tentativa de reformar um sistema substantivamente incontrolável é um empreendimento muito mais infrutífero do que o trabalho de Sísifo, já que a simples viabilidade mesmo da reforma mais limitada é inconcebível sem a capacidade de exercer controlo sobre aqueles aspectos ou dimensões do complexo social que estamos tentando reformar. Desde o princípio, isso foi o que condenou e tornou auto-contraditório o empreendimento parlamentar social-democrata. Por décadas os partidos social-democratas continuaram a iludir-se a si próprios e aos seus eleitores de que seriam capazes de instituir, "no devido tempo", por meio da legislação parlamentar, uma reforma estrutural do incontrolável sistema do capital.

O beco sem saída da social-democracia não foi de modo algum o caminho original do movimento socialista. Somente com o surgimento e a consolidação da Segunda Internacional, seguir o caminho da reforma e da acomodação parlamentar se tornou a orientação dominante nos partidos políticos da classe trabalhadora. Naturalmente, os apologistas cegos do abandono de todos os objectivos socialistas pelas orientações dos actuais líderes da social-democracia e dos partidos trabalhistas tentam retrospectivamente reescrever a história, sugerindo grotescamente que

O original — e, para a sua época, audacioso — objectivo do socialismo era o capitalismo democrático. Somente a partir da "década de 1840", quando Marx e Engels roubaram o termo, "socialismo" se tornou um projecto cuja ambição era destruir o capitalismo. A cláusula IV (da Constituição do Partido Trabalhista Britânico de setenta anos atrás) permanece um texto fundamentalmente marxista, apesar da sua linguagem vacilante e do desejo dos seus autores de distanciar o Partido Trabalhista dos piores excessos da ditadura do proletariado de Lenine. Daí a importância da declaração de Blair (actual líder). Ele está desafiando o seu partido a, finalmente, enterrar o socialismo marxista.(35)

Os factos históricos, intencionalmente postos de lado pelos apologistas, dizem o contrário. A negação radical da ordem capitalista aconteceu bem antes de Marx e Engels terem posto os seus olhos na Inglaterra. Pelo ângulo da classe trabalhadora, as perseguidas sociedades secretas comprometidas com a negação das incorrigíveis — portanto, irreformáveis e "não-democratizáveis" — iniquidades da ordem estabelecida datam ainda da Revolução Francesa e suas conturbadas consequências. Na verdade, a primeira relação de Marx com as demandas intransigentes do socialismo anti-capitalista radical aconteceu precisamente em tais sociedades secretas da classe trabalhadora durante a sua permanência na França, ainda jovem, bem antes de começar a escrever o seu seminal Manuscrito económico e filosófico de 1844. Alguém que coloque seriamente no papel a proposição de que um movimento revolucionário histórico-mundial foi inventado por dois jovens intelectuais alemães exilados que "roubaram o termo socialismo" está completamente fora de contacto com a realidade. Tão desmiolado quanto é quem pontifique, só porque sonha com isso, que ao substituir o duradouro compromisso com a propriedade pública na cláusula IV da Constituição do Partido Trabalhista pela declaração vazia e sem princípios do "novo trabalhismo" Tony Blair pudesse realmente "enterrar o socialismo marxista" — "se ele encontrar as palavras certas", como diz a desejosa projecção.

A perda de sentido do movimento da classe trabalhadora ocorreu na última terça parte do século XIX, e as suas consequências negativas evidenciaram-se com o sucesso parlamentar — e a acomodação — dos partidos social-democratas e trabalhistas. Por si só, tal sucesso pode ser considerado uma vitória de Pirro pelo seu impacto, a longo prazo, sobre a causa da emancipação do trabalho. O preço pago foi o fatal enfraquecimento estrutural da potencialidade de luta do trabalho, causado pela aceitação das amarras parlamentares como a única forma legítima de contestar a dominação do capital. Em termos práticos, isso significou a divisão catastrófica do movimento nos denominados "braço político" e "braço sindical" do trabalho, com a ilusão de que o "braço político" poderia servir ou representar, codificando legislativamente, os interesses da classe trabalhadora organizada nas empresas industriais capitalistas pelos sindicatos de cada ramo do "braço sindical". Mas, com o passar do tempo, tudo aconteceu exactamente ao contrário. O "braço político", ao invés de fazer valer o seu mandado político em estreita colaboração com o "braço sindical", utilizou as regras do jogo parlamentar com a finalidade de subordinar os sindicatos a seu favor e das determinações políticas finais do capital, impostas através do Parlamento. Assim, em vez de reforçar politicamente a capacidade de luta do "braço sindical" nas suas disputas com as empresas, o "braço político" — em nome da sua própria exclusividade política — confinou os sindicatos às "disputas estritamente económicas do trabalho". Dessa maneira, o que se supunha ser o "braço político do trabalho" terminou por desempenhar um papel crucial na activa imposição ao trabalho — pela força da "legislação parlamentar de representação" — do interesse vital do capital: "banir a acção sindical politicamente motivada" como categoricamente inadmissível "numa sociedade democrática".

Tanto o reformismo como as suas realizações necessariamente precárias foram resultados dessa articulação dividida do movimento trabalhador como "braço político" e "braço sindical". Dentro da estrutura de comando global do capital, como estrutura racional da legitimidade e da autoridade democráticas, a operação desse modelo dividido trouxe consigo a necessária aceitação e internalização das coacções objectivas materiais do capital. Concomitantemente, o trabalhismo reformista manteve por algum tempo a ideia contraditória de que os objectivos socialistas eram inteiramente compatíveis com as coacções materiais do capital. Nesse espírito, Harold Wilson e outros líderes trabalhistas afirmaram que a conquista "dos altos escalões de comando da economia" tornará possível que "um dia" o socialismo se realize. Na verdade, "conquistar os altos escalões" revelou ser nada mais do que a nacionalização dos sectores falidos da indústria capitalista, compensando generosamente os seus antigos proprietários pelos seus bens inúteis: um processo que poderia, de qualquer forma, ser facilmente revertido por actos parlamentares de "privatização", uma vez que a sua lucratividade para o capital tivesse sido assegurada por meio de generosos investimentos estatais, financiados por impostos extorquidos das pessoas comuns. Ironicamente, esse caminho, com as suas curvas e oscilações auto-contraditórias, conduziu da armadilha reformista do movimento do trabalho à completa desintegração do próprio reformismo social-democrata, por meio do qual não somente se renunciou aos professados "objectivos últimos" socialistas, mas até mesmo às referências ao termo "socialismo", que passaram a ser evitadas como praga.

Outra ironia que sublinha a lógica perversa da acomodação parlamentar dentro dos limites anti-trabalho da estrutura de comando político global do capital é o destino dos partidos "revolucionários" da Terceira Internacional. Aí se coloca nitidamente que determinações estruturais fundamentais estavam em actividade nas clamorosas derrotas sofridas pela esquerda institucionalizada no decorrer do século. E para piorar a situação essas derrotas aconteceram apesar das crises profundas da ordem socioeconómica e política em vigor. Nesse sentido, o "caminho italiano do socialismo" e o subsequente "grande compromisso histórico" do Partido Comunista Italiano, no contexto das mesmas amarras da representação e da acomodação parlamentares, com uma idêntica divisão do movimento dos trabalhadores italianos entre o "braço político" e o "braço sindical", tal como visto nos países onde havia partidos social-democratas e trabalhistas, revelaram ser tão desastrosas para o movimento socialista quanto a desintegração das variantes social-democratas do reformismo.

Assim, diante da dolorosa experiência histórica à qual o trabalho tem sido sujeitado pelo fracasso dos partidos parlamentares tanto da Segunda como da Terceira Internacionais, não é muito difícil perceber que não existe esperança de uma efectiva re-articulação do radicalismo socialista sem que se superem as contradições que necessariamente nascem da fracassada divisão entre o "braço político" e o braço sindical" do trabalho. Paradoxalmente, a separação e a compartimentalização reformistas dos "dois braços" do trabalho só podem resultar numa paralisante "acefalia" do movimento: ou seja, a mais ou menos consciente internalização da lógica do capital, tanto em termos do seu constrangimento material como também dos seus princípios reguladores político-democráticos legislativamente protegidos. Isso porque a conformidade com as regras do sistema determina aprioristicamente em favor do capital o que pode e o que não pode ser "racionalmente disputado e contestado", não apenas no domínio político, mas ainda mais em relação à viabilidade de questionar e desafiar a estrutura estabelecida do processo de reprodução social. Assim, como resultado da divisão sintonizada com essas regras, o "braço político" perde o poder material por meio do qual o movimento dos trabalhadores poderia efectivamente opor-se à lógica do capital e à sua força de auto-afirmação. Perde ainda o poder de lutar não apenas por concessões mínimas, que podem ser contidas e, se necessário, revertidas na moldura estrutural existente, mas pela instituição de uma ordem alternativa da reprodução social. Ao mesmo tempo, enquanto o "braço político" se tornou impotente por privar-se da força combativa material do trabalho produtivo — que é vitalmente importante para a continuação da reprodução do capital —, o "braço sindical" foi obrigado a abandonar inclusive a preocupação legítima não só com uma mudança estrutural maior, mas até mesmo com qualquer objectivo político. Ao contrário, foi constrangido a resignar-se com melhorias marginais. E mesmo a busca por tais melhorias marginais e parciais precisa de ficar estritamente subordinada às mudanças conjunturais e às limitações das unidades particulares do capital com as quais as unidades locais do "braço sindical" são, por lei, autorizadas a entrar em "disputa económica".

18.4.5

Aqui o problema insuperável é a natureza do poder sob a dominação do capital – problema que permanecerá caso não haja uma reorientação fundamental do objectivo estratégico da transformação socialista. Políticos reformistas, seja do tipo social-democrata, seja do daqueles que fantasiam o "caminho italiano para o socialismo" dentro dos limites paralisantes do capitalismo actualmente existente, nunca encararam este problema. De facto, não poderiam encará-lo porque, se o fizessem, poderiam expor o carácter irrealizável das suas estratégias auto-contraditórias. Ao tentarem reformar o incontrolável, também pressupunham um poder que não existia nem poderia existir como alavanca para a prometida transformação da ordem social estabelecida. Tal alavanca não poderia existir pela simples razão de que o poder de capital social total, como controlador do processo de reprodução sócio-metabólica, é indivisível, apesar das mistificações perpetuadas pela ideologia burguesa sobre "a divisão de forças" na esfera política.

Compreensivelmente, portanto, as estratégias construídas sobre os dois pilares de 1) reformar o incontrolável e 2) "conquistar os mais altos postos de comando" do sistema estabelecido, por meio da alavanca de um poder inexistente, teriam que terminar com a derrota auto-imposta da esquerda histórica. Como vimos acima, isso necessariamente aplicou-se, mutatis mutandis, também às sociedades pós-revolucionárias "do socialismo realmente existente" de tipo soviético. Pois, as "personificações do capital" pós-revolucionárias das sociedades de tipo soviético, embora não funcionassem em e por meio de um ambiente parlamentar deixaram de enfrentar a incontrolabilidade do capital onde ela se afirmava maciçamente: isto é, como o regulador do processo de reprodução sócio-metabólica. Assim, dada a sua incapacidade de identificar no nível sócio-metabólico o verdadeiro objecto de intervenção e reestruturação estratégicas, tentaram exercer o poder de forma extremamente voluntarista, numa tentativa de solucionar a sua verdadeira falta de poder com respeito aos imperativos materiais objectivos e às necessidades expansionistas cegamente seguidas — porém cumpridas cada vez com menos eficiência — do sistema do capital pós-capitalista.

O facto de o capital, como um modo de reprodução sócio-metabólico, ser incontrolável — a verdadeira causa sui compatível com "melhorias e correctivos" dos efeitos e consequências, mas não da base causal do sistema, como já vimos em vários contextos — significa não somente que o capital é irreformável, mas também que não pode compartilhar o poder, mesmo a curto prazo, com forças que pretendam transcendê-lo como "objectivo final", não importa quão longo seja o prazo. Esta é a razão pela qual as estratégias de "reforma gradual" da social-democracia tinham que resultar em absolutamente nada em termos de potencial transformador socialista. Enquanto o capital permanecer como o regulador efectivo do sócio-metabolismo, a ideia de "luta igual" entre capital e trabalho está destinada a permanecer uma mistificação. Isso porque essa é uma ideia perpetuada e realçada pelos rituais de enfrentamento parlamentar dos "representantes do trabalho" com os seus adversários legislativos: um enfrentamento sem competição", cuja premissa auto-contraditoriamente aceite é a permanência da posição material do capital. As limitadas disputas políticas no Parlamento, estritamente reguladas por instrumentos e instituições da "violência legítima" que se apoiam na estrutura global de comando político do capital, não podem ser um enfrentamento contra o capital, mas entre alguns dos seus componentes mais ou menos diferenciados. Os membros do Parlamento que professam a sua submissão quer aos variados interesses empresariais, quer às secções do trabalhismo reformista, de boa vontade se submetem aos constrangimentos necessários à definição de seus objectivos legislativos de acordo com as regras auto-beneficentes do "Estado constitucional" do capital social global. Ao mesmo tempo, os representantes do trabalho que tentam manter uma postura crítica radical ou são mantidos fora do Parlamento, ou são totalmente marginalizados no seu interior. Em contraste com o sistema parlamentar, nas sociedades pós-capitalistas as "personificações do capital" funcionaram sob mistificação bem diferente, mas igualmente prejudicial. Tentaram tratar o capital ou como uma entidade material — o depositário neutro da "acumulação socialista" — ou como "mercado social", mecanismo igualmente neutro: ignorando que o capital, na verdade, é sempre uma relação social. Assim, mesmo que a nova legalidade do capital tivesse que assumir uma forma diferente, o fetichismo do capital dominou as sociedades pós-capitalistas da mesma forma que imperou sob o capitalismo.

A relação entre capital e trabalho não pode ser considerada simétrica, dada a impossibilidade de equilibrar o poder em disputa e muito menos de alterá-lo a favor do trabalho. O conceito de "equilíbrio de poder" como regulador da força sócio-política interna pertence apenas ao mundo do capital, influenciando com "legítimo interesse" as inter-relações variáveis entre os menores e os maiores constituintes do capital social total articulado em qualquer ponto particular na história. A sempre crescente "selva legislativa", mencionada na secção 18.4.3, é o corolário necessário desse tipo de articulação estrutural do capital social como um todo. A essa articulação — sujeita às limitações práticas originadas da tendência monopolista do sistema — segue-se inevitavelmente também a luta que busca na arena legislativa alterar o equilíbrio entre os componentes particulares do capital. E isto inclui também as limitadas possibilidades de acção legislativa concedidas aos sectores do trabalhismo reformista na periferia do equilíbrio, constantemente renovado e do mesmo modo superado, entre as cambiantes unidades do capital. (Um bom exemplo desse tipo de melhoria marginal orientada para o equilíbrio é a "iluminada" legislação "em favor do trabalho" de Sir Winston Churchill, em 1906, sobre os níveis do salário mínimo, bem como as últimas controvérsias na União Europeia, solicitando igual remuneração para os grupos de trabalhadores que se transfiram de um país-membro ao outro. Apesar da impecável descendência legislativa churchilliana, a derrubada completa da boa e velha "legislação sobre salário mínimo" pela "direita radical" sob Margaret Thatcher e seus sucessores demonstra a extrema precariedade daquelas "conquistas do trabalho" sob circunstâncias históricas significativamente alteradas, exactamente como a controvérsia actual esconde os interesses subjacentes de auto-protecção do capital e a necessária fragilidade das medidas trabalhistas a eles associadas.).

Embora os interesses dos integrantes particulares do capital possam ser equilibrados com sucesso — ainda que de maneira estritamente temporária —, não pode haver equilíbrio entre os interesses e o poder respectivamente do capital e do trabalho. O trabalho ou é o antagonista estrutural e a alternativa sistémica ao capital — e, nesse caso, "compartilhar a força" com o capital é uma auto-contradição absurda — ou permanece a parte estruturalmente subordinada (o constantemente ameaçado "custo de produção") do processo de auto-reprodução ampliada do capital e, como tal, totalmente sem poder. A força efectiva do trabalho na ordem sócio-económica existente parcial e negativa como, por exemplo, a arma da greve. Por conseguinte, ele não pode ser mantido na sua negatividade indefinidamente, porque a premissa prática necessária de tal operação — como na extraordinária greve pacífica de um ano dos mineiros ingleses — é a continuação do funcionamento da ordem sócio-metabólica, cujas partes não em greve devem ser capazes de assumir a carga do trabalho temporariamente negado. A ideia de uma greve política geral é uma proposta radicalmente diferente. Para ser bem sucedida, deve ter por objectivo uma mudança fundamental na própria ordem sócio-reprodutiva, de outro modo o seu impacto, como nas greves gerais do passado, fatalmente será em seguida anulado. Assim, o paradoxo do poder que desafia o movimento socialista é o facto de, mesmo na sua parcialidade, o exercício da força negativa do trabalho actualmente existente ser insustentável a longo prazo. Somente a sua força potencialmente positiva é verdadeiramente sustentável porque, pela sua própria natureza, não se limita à busca de objectivos parciais. A condição da sua realização é a força positiva do trabalho, entendido como alternativa sistemática ao modo de controlo do capital, que deve considerar-se a si próprio como o princípio estrutural radical do sócio-metabolismo como um todo. Assim, qualquer que seja a maneira com que o olhamos — quer na sua negatividade parcialmente contestadora, quer como a potencialidade positiva da completa transformação socialista —, toma-se claro que sob nenhuma circunstância pode alguém pensar no poder do trabalho compartilhado com o capital (ou ao contrário), apesar das ilusões tão bem conhecidas e das resultantes e inevitáveis derrotas do reformismo parlamentar.

Da relação assimétrica entre o capital e o trabalho também decorre que — em completa contradição com as práticas de representação associadas às relações internas da pluralidade do capital — o trabalho não pode ser representado. De certo modo, é verdade que o capital também não pode ser representado, mas existe uma diferença radical em relação à posição do trabalho. A ideia de o próprio capital ser representado no domínio parlamentar pode apenas projectar a ilusão do poder compartilhado e equilibrado com o trabalho, como encontramos nos inumeráveis contos de fadas da ideologia burguesa e reformista. Mas o postulado de "igualdade" e "imparcialidade", com base no qual nem o trabalho nem o capital estão directamente representados no domínio legislativo, supostamente regulado por algum misterioso "processo próprio da lei", em sintonia com a ideia de Marx Weber de que os "juristas" são os criadores autónomos do "Estado ocidental", não é nada mais que uma camuflagem mentirosa e interesseira das relações de poder existentes. A grande diferença é que o capital como um todo não é representado porque não precisa de representação, visto que já está no controlo completo do processo sócio-metabólico, incluindo o controlo efectivo — extra-parlamentar — da sua própria estrutura de comando político, o Estado. O trabalho, de outro lado, em princípio não pode ser representado porque as suas formas possíveis de "representação" — mesmo que fosse possível organizá-las na esfera política com base na "igualdade" e na "justiça", o que é impossível em vista das relações materiais e ideológicas de poder — teriam que ser completamente estéreis, pois não podem alterar as determinações estruturais extra-parlamentares do modo fortemente arraigado de reprodução sócio-metabólica do capital.

Naturalmente, isso não significa que o sistema historicamente desenvolvido de representação parlamentar seja irrelevante para a afirmação das regras do capital sobre a sociedade. Nem se pode considerar o seu valor para o capital somente pela sua indubitável força de mistificação ideológica. Longe disso, pois a representação parlamentar é capaz de realizar algumas funções vitais na ordem sócio-metabólica existente. Em parte, o papel regulador essencial do Parlamento consiste em legitimar (e, desse modo, também "internalizar") a imposição das severas regras da "legalidade constitucional" sobre o trabalho potencialmente recalcitrante. Mas o papel do Parlamento não está, de modo algum, limitado a isso. No seu desenvolvimento histórico, sujeitar o trabalho à auto-legitimação da "legalidade constitucional" ficou em segundo plano em relação à sua função crucial, original e primeira, que consistiu e consiste em permitir à pluralidade de capitais encontrar, em todos os momentos do desdobramento da dinâmica do sistema, o necessário (mesmo que sempre temporário) modus vivendi e o equilíbrio de poder entre os seus componentes. É assim que o capital social total pode afirmar as suas regras na esfera política sob as condições da "democracia parlamentar".

Como vimos acima, o sistema do capital é constituído de componentes incorrigivelmente centrífugos, em cuja base se encontra a igualmente incorrigível ligação estrutural conflictiva comum a todos os seus componentes, desde o microcosmo até às maiores corporações transnacionais. O capital, como totalidade social, mantém a força centrífuga sob controlo (e deve fazê-lo de uma forma adequada) por meio das regras universalmente dominantes e das determinações estruturais que objectivamente definem o próprio capital como um modo de controlo sócio-metabólico. As determinações em questão são internas não apenas ao sistema como um todo, mas também a cada um dos seus componentes. Por outras palavras, elas devem ser compartilhadas por todos os diversos componentes particulares do capital, não obstante os interesses conflituantes de uns vis-à-vis d os outros. Sem compartilhá-los — o que simultaneamente também significa compartilhar o vital interesse comum de serem partes do sistema de controlo da reprodução sócio-metabólica, do qual emerge a consciência de classe auto-centrada das "personificações do capital" —, não poderiam operar entre si como uma pluralidade de capitais afirmando os seus interesses particulares dentro das restrições estruturais globais e da auto-preservação dinâmica do seu sistema em toda a situação histórica dada. Eis como o capital em si, articulado como o modo de reprodução sócio-metabólica actualmente existente, pode manter sob controlo a intransponível força centrífuga das suas partes constituintes. Não simplesmente anulando esta força — com o que o sistema do capital deixaria de ser um sistema viável sui generis —, mas complementando-a por meio dos imperativos da reprodução sistémica global e, desse modo, apenas impedindo o impacto desintegrador das insuperáveis interacções de conflito.

É assim que o Estado do sistema do capital alcança a sua enorme importância, não somente como a estrutura reguladora global das contingentes relações políticas, mas também como um constituinte material essencial do sistema no seu todo, sem o qual o capital não poderia afirmar-se como a força controladora do modo estabelecido de reprodução sócio-metabólica. Dessa maneira, nas circunstâncias da "democracia constitucional", o sistema parlamentar é uma parte essencial na manutenção, sob um controlo adequado, da força centrífuga da pluralidade do capital. Nesse processo, os interesses da multiplicidade dos capitais podem ser adequadamente representados, pois a representação dos mais diversos interesses do capital no Parlamento, sob o comando estrutural global político do capital, está completamente em sintonia com as determinações gerais do controlo sócio-metabólico. Apesar do antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, que também afecta os constituintes particulares do capital, os conflitos entre a pluralidade dos capitais — sujeitos aos limites globais das determinações mencionadas acima — compensam-se mutuamente. Eles nunca podem ser dirigidos contra o sistema do capital, sem o qual a pluralidade dos capitais divergentes não poderia sequer ser imaginada e muito menos existir. Assim, a força reguladora da representação parlamentar, até onde a pluralidade do capital diz respeito, é completamente adequada como representação genuína e também como preservação (ou "eternização") de um poder — a força de controlo sócio-metabólica — já existente. Mas, precisamente por essa razão, o trabalho não pode, por princípio, ser representado, na medida em que o seu interesse vital é a transformação radical da ordem sócio-reprodutiva estabelecida, e não a sua preservação: a única compatibilidade possível com a representação parlamentar sob a estrutura de comando político global do capital. É assim que na esfera política, sob todas as formas históricas conhecidas do sistema parlamentar, a relação assimétrica entre o capital e o trabalho anula os interesses emancipatórios do trabalho.

Há uma outra maneira pela qual a política parlamentar serve aos interesses do capital como sistema metabólico, assim como aos interesses dos seus múltiplos constituintes. De acordo com a dinâmica mutável do desenvolvimento do capital social total, o Parlamento oferece a estrutura que permite deslocamentos de longo alcance na operação estratégica do sistema vis-à-vis d o trabalho. Isso aconteceu nas décadas do pós-guerra com o movimento do "butskellismo" (ou "uma única nação conservadora" paternalista) até as estratégias selvagens da "direita radical" de Thatcher. Muito revelador nesse particular é o nítido contraste entre duas soluções parlamentares para a crise estrutural do capital, tal como percebidas e aconselhadas por diferentes secções do capital inglês em 1979. O primeiro dos quinze longos anos de dominação do Parlamento inglês pelo governo de Margaret Thatcher também testemunhou o eclipse da linha política anterior do Partido Conservador, resumido numa nostálgica entrevista concedida em Fevereiro de 1979 à rede de televisão BBC pelo antigo primeiro-ministro Harold Macmillan. Foi assim que "Super-Mac" — que mais tarde iria denunciar sarcasticamente como vulgares e míopes, por "vender a prata da família", as corruptas políticas de privatização do governo Thatcher — resumiu a sua proposta de solução para a crise, já então evidente, tentando manter-se em sintonia com o espírito do "consenso político" do Estado keynesiano orientada para o bem-estar social, seguido pelas secções dominantes do capital inglês por duas décadas e meia depois da Segunda Guerra Mundial:

Talvez o caminho fosse colocar, de algum modo, todos juntos e dizer, "Rapazes, tudo depende de nós; vamos pôr mãos à obra e aumentar a produção total da riqueza comercial". Isto é o que queremos... Estou certo de que no nosso país as pessoas receberiam bem uma verdadeira liderança — "garotos e garotas, vamos nos reunir e construir aquele mundo maravilhoso que está ao nosso alcance"... Estou certo de que existem forças agora que, pudéssemos ao menos unir, quer no governo, quer numa unidade das grandes organizações dos empregadores e sindicatos, quer nas igrejas — todas as pessoas que formam a opinião – diriam "Basta; nós precisamos começar de novo".É uma questão de moral; precisamos ter determinação e precisamos recuperar a coragem.(36)

Poucos meses depois dessa entrevista, o Partido Conservador, sob a liderança de Margaret Thatcher, foi eleito para o governo. Num curto período de tempo todos os membros parlamentares do Partido Conservador, a favor da "nação única", foram taxados de incapazes e brutalmente afastados da política, exactamente como seriam mais tarde os membros da ala esquerda do Partido Trabalhista sob a liderança dos ex-esquerdistas Michael Foot e Neil Kinnock. A intenção já não era estimular os "garotos e garotas" a unir-se com o governo e com as "grandes organizações de empregadores e sindicatos", para a causa da "questão moral" de buscarem juntos "um novo começo" sob a forma do aumento da "produção de riqueza comercial". Longe disso, a mudança de guarda no Partido Conservador (e não apenas naquele partido) colocou como item principal na agenda política a opressão "constitucional" dos órgãos de defesa da classe trabalhadora. "Os garotos e garotas" no Parlamento — antigos colegas de Macmillan — ocupavam-se com leis punitivas anti-trabalho e medidas industriais e financeiras concebidas e instituídas no mesmo espírito em favor do capital. E a mudança do domínio político de algumas secções do capital para outras mais agressivas não foi, de modo algum, um aperfeiçoamento exclusivamente inglês. Pelo contrário, o desdobramento estrutural da crise do sistema do capital provocou em todos os países "capitalistas avançados" medidas políticas, industriais e financeiras muito semelhantes, bem como as racionalizações ideológicas correspondentes.

Por mais difícil que seja acreditar no que os nossos olhos lêem na passagem abaixo, temos que lhe dar a atenção devida como um exemplo típico originário da "direita radical" dos Estados Unidos. Sintetiza a "teoria económica objectiva" de um importante e expert/especulador financeiro e influente lobbista, James Dale Davidson.(37) Em prol dos méritos "científicos" da linha anti-trabalho, ele argumenta:

Como investidor, você deve ser sempre cauteloso com as suposições correctas acerca das relações económicas. Isso é especialmente verdadeiro num tópico como [surpresa, surpresa!] salários, quando súplicas e considerações políticas se transformam em obstáculos no caminho da verdade. A verdade é que quaisquer que sejam as suas intenções, é tremendamente difícil para os empregadores nas sociedades de mercado "explorar" os trabalhadores. Isso é quase impossível quando os trabalhadores são livres para desenvolver os seus talentos e movimentar-se de uma oportunidade para outra. [Isto é, na terra-do-nunca da utopia do "capitalista do povo".] Surpreendentemente [desta vez, uma surpresa real], é muito mais comum os trabalhadores explorarem os capitalistas. Em geral, essa é a função dos sindicatos dos trabalhadores. Eles aumentam o nível de salário acima do nível de mercado. O resultado é que os investidores recebem uma porção menor da renda da empresa do que receberiam se as coisas fossem diferentes. ... a existência de instituições democráticas durante períodos em que o aumento da tecnologia impulsiona a economia mais ou menos garante que os trabalhadores explorem os capitalistas.(38)

De modo característico, a descrição das mudanças favoráveis ao capital nem sequer menciona a cruel intervenção dos "parlamentos democráticos", que solapa a limitada força defensiva dos sindicatos, por meio da debilitação em larga escala da força de trabalho e da concomitante criminalização da luta contra ela. Tudo é atribuído, com a costumeira objectividade científica, aos factores tecnológicos estritos. Como se nem as forças políticas que o autor, na condição de lobbista, tenta ansiosamente influenciar com todos os meios à sua disposição existissem. É assim que se supõe que as leis anti-sindicato do passado recente se tornam completamente irrelevantes para a compreensão desses desenvolvimentos. Dizem-nos que tão-somente a tecnologia racionalmente inquestionável explica por que "os sindicatos estão agora a coxear nas sociedades do Ocidente, pois a tecnologia está a reduzir as economias de escala. Isso explica por que os diferenciais de renda estão novamente aumentando, visto que trabalhadores não-especializados são obrigados a procurar emprego com salários de liquidação".(39) Na verdade, eles são "obrigados a encontrar emprego se puderem, não com salário de liquidação", mas frequentemente com salário bem abaixo do nível de subsistência, dado o impacto devastador do desemprego crónico nas idealizadas "economias de escala correctamente ajustadas" do sistema do capital contemporâneo. Evidentemente, tudo isso nada tem a ver com a selvajaria das leis anti-sindicatos, nem com a desumanizante brutalidade do "desemprego estrutural". Na verdade, o próprio desemprego deve ser o artifício mais astuto já imaginado pelo trabalho para "explorar os capitalistas e investidores", pobres desamparados, obrigando-os a "receber uma porção menor da receita do que eles poderiam receber de outro modo"; "outro modo" que seria possível se os desempregados lhes permitissem fazer a economia funcionar sob as condições mais generosas de geração de renda do pleno emprego.

Mas, saindo do mundo da fantasia cuidadosamente construído pelos cínicos apologistas do capital para voltar à realidade, existem mais duas condições agravantes a ser consideradas aqui. A primeira é que a acomodação do trabalho às coacções paralisantes da estrutura parlamentar no momento do aprofundamento da crise estrutural do capital faz com que ele seja gravemente afectado pelo impacto negativo das mudanças ocorridas na estrutura de poder do capital social total e pela pequena margem de acção que elas lhe podem oferecer, mesmo para os mais limitados ganhos defensivos. A actual submissão do trabalhismo reformista às forças radicalmente opostas aos interesses da classe trabalhadora demonstra que a fase histórica das estratégias defensivas já se esgotou. Paralelamente à transformação dos tradicionais partidos social-democratas e trabalhistas em mansos defensores da tímida — e, em seus próprios termos de referência, ineficaz — reforma socioeconómica e política do trabalhismo liberal, a social democratização dos partidos comunistas do Ocidente oferece exemplos dolorosamente óbvios da derrota sofrida pela esquerda histórica em razão desses deslocamentos e mudanças no interior dos limites da acomodação parlamentar. Uma mudança irónica nessa infeliz, mas eloquente, história é o facto de que alguns proeminentes políticos da ala direita do Partido Trabalhista britânico se encontrem agora marginalizados por suas "inaceitavelmente francas opiniões esquerdistas", que, dizem, prejudicam as perspectivas do "novo trabalhismo no governo; tais opiniões são, de facto, inaceitáveis a tal ponto que eles próprios se sentem obrigados a anunciar a sua retirada da política na próxima eleição geral, evitando assim a humilhação da "derrota eleitoral". À sua maneira, essa mudança histórica acentua, por meio da "preparação para governar" adoptada pelos líderes do partido, o facto de não se poder tolerar nem mesmo as promessas não cumpridas da velha cláusula IV, pois sempre que o trabalhismo reformista assume o governo o capital continua no comando.

A segunda condição agravante é ainda mais séria, já que coloca em questão a própria sobrevivência da humanidade. A despeito da pioria das condições sócio-económicas e até da eliminação da margem para ajustamentos menores a favor do trabalho — com o activo envolvimento de medidas autoritárias legislativas e a cumplicidade do seu próprio partido —, o capital é incapaz de resolver as suas crises estruturais e de reconstituir com sucesso as condições da sua dinâmica expansionista. Ao contrário, para permanecer no controlo do sócio-metabolismo, ele é compelido a invadir territórios que não pode controlar nem utilizar para os fins da acumulação sustentável de capital. Além disso, para permanecer no comando da reprodução social, por maior que seja o custo para a humanidade, o capital deve minar até mesmo as suas próprias instituições políticas, que no passado funcionaram como um correctivo parcial e como uma espécie de válvula de segurança. Nesse passado, ainda estava mais ou menos aberta a via do deslocamento expansionista das crescentes contradições do capital que se acumulavam. Hoje, pelo contrário, as opções do sistema do capital estreitaram-se em todo o mundo, inclusive na esfera da política e da acção parlamentar correctiva. Essa redução das opções de recuperação da expansão traz consigo o imperativo de dominar directamente também a política por um cruel "consenso político" entre o capital secular e o "novo trabalhismo num complemento apropriado às tendências autoritárias da "nova ordem mundial" que não se restringe apenas ao Partido Trabalhista inglês. A consumação desse consenso cruel — longe de ser o último triunfo do capital, como afirmam as fantasias absurdas sobre o "fim da história conflitual" — antes prenuncia o perigo de um colapso maior, que afectaria não apenas um número limitado de elementos centrífugos do capital, não apenas um sector chave como a finança internacional, por exemplo, mas o sistema global do capital na sua totalidade. Precisamente por causa desse perigo adquire relevância e urgência a necessidade de contrapor à força destrutiva extra-parlamentar do capital a correcta acção extra-parlamentar de um movimento socialista radicalmente re-articulado.

18.4.6

Quando a fase histórica de conquistas defensivas estiver exaurida, o trabalho, na condição de antagonista estrutural do capital, só poderá fazer avançar a sua causa — mesmo minimamente — na medida em que assumir uma postura ofensiva e, mesmo quando estiver lutando por objectivos mais limitados, encarar como seu objectivo a negação radical e a transformação positiva do modo de reprodução sócio-metabólica. Somente a adopção de uma estratégia global viável permite que os passos parciais se tornem cumulativos, em nítido contraste com todas as formas conhecidas do trabalhismo reformista que desapareceram sem deixar traços, como gotas de água nas areias do deserto.

No passado, as conquistas defensivas sempre estiveram estreitamente ligadas às fases de expansão do sistema do capital. Eram retiradas da margem de concessões de que dispunha o sistema, e que também podiam ser positivamente transformadas em vantagens para si próprio. Mesmo sob as mais favoráveis circunstâncias, elas não poderiam trazer a prometida realização "gradual" do socialismo. Devido à sua própria natureza, eram apenas concessões conjunturais realizadas sob condições favoráveis ao próprio capital e somente na qualidade de "glória reflexa" eram proveitosas também para o trabalho. Uma vez, porém, que a fase histórica das concessões expansionistas do capital ficou para trás, também a acompanha a capitulação total do trabalhismo reformista que testemunhamos nas últimas décadas. Sob as actuais condições, não apenas novos ganhos defensivos do trabalho estão fora de questão, como muitas das concessões do passado devem ser gradualmente extorquidas, dependendo este gradualismo apenas do potencial impacto desestabilizador na continuidade da auto-reprodução do capital no caso de muitas serem retomadas num pequeno intervalo de tempo. É isto o que torna moderada a tendência à equalização da taxa diferencial de exploração nos países de capitalismo avançado, ao menos enquanto o capital social total dos países envolvidos tiver fôlego para compensar essas concessões por meio da dominação neo-colonial sobre áreas do planeta que oferecem ao "capital metropolitano", graças à margem mais elevada de exploração praticável, uma margem de lucro bem mais alta. Contudo, mesmo esses factores paliativos actuais deverão ser temporários e removidos com o desdobramento da crise estrutural do capital.

Alguns "realistas" insistem (com slogans como "acabou a festa") que os constrangimentos que afectam o sistema devem ser aceites como permanentes, instando também a que aceitemos a permanência da subordinação estrutural do trabalho ao capital. Eles pensam que acabou a fase radical da militância do trabalho, acrescentando que no passado tudo não passou de uma grande ilusão romântica; isso para não mencionar os "teóricos" e "doutores vira-casacas" do "novo trabalhismo" que atribuem as aspirações revolucionárias passadas do movimento socialista às habilidades "literárias" dos jovens Marx e Engels.

A dificuldade daqueles que defendem a submissão permanente do trabalho ao capital é que eles são forçados a hipostasiar a permanência absoluta do sistema do capital. Isso só é possível desde que se escondam totalmente, inclusive dele próprios, os aspectos mais destrutivos do controlo sócio-metabólico do capital que não apenas são visíveis aos socialistas mas a todos aqueles que se disponham a fazer os cálculos ambientais mais elementares. No passado, a perspectiva estratégica do trabalhismo reformista não se angustiava com essas preocupações, portanto a distinção entre o "domínio da sociedade sobre a riqueza" em vez do "domínio alienado da riqueza sobre a sociedade" não poderia ter absolutamente nenhum significado para ele. Porém, nos dias de hoje estes problemas não devem mais ser ignorados. Nem é possível identificar o trabalhismo reformista que necessariamente se esvazia e se desintegra, com o próprio trabalho. Hoje é óbvia a constatação de que a história do trabalhismo reformista se caracteriza por sua integração progressiva à estrutura de comando político do capital e pela sua completa desintegração, por meio de sua acção capituladora mesmo como reformismo.

Desse modo, os "realistas" que projectam a harmonia tranquila entre o capital e a força de trabalho social-democrata simplesmente ignoram a questão, pois somente o reformismo acomodado pode ser visto em tranquila harmonia com o capital, desde a supremacia histórica do sistema até à sua fase de desenvolvimento destrutivo e desintegrador. Esta concepção também mostra uma singular incapacidade de enxergar que a própria classe do trabalho não tem como evitar o facto de ser antagonista estrutural do capital, mesmo que em condições favoráveis à perspectiva reformista — aquelas em que as demandas da força de trabalho social-democrata "tem ser adequadamente conciliadas e contidas nos limites do sistema e usadas para fins da sua expansão dinâmica acumuladora —, o capital conceda prontamente ganhos defensivos ao trabalho. Porém, tudo isso é radicalmente alterado quando, por qualquer razão, a via de expansão dinâmica sofre algum bloqueio. Do trabalho então se espera que limite as suas aspirações — inclusive as que surgem directamente das suas necessidades mais elementares — aos imperativos da "razão" do capital, pregada por seus próprios lideres reformistas como um "realismo necessário".

Sob essas condições alteradas, caso elas se prolonguem (como deve ocorrer devido à crise estrutural do sistema), o antagonista do capital é compelido a contemplar a viabilidade de uma ofensiva estratégica que vise à transformação radical da ordem sócio-metabólica estabelecida. Será compelido a fazê-lo mais cedo ou mais tarde, mesmo que o processo de reavaliação da orientação estratégica do movimento socialista seja muito difícil, pois deverá considerar (e aprender com) as experiências frustradas e as expectativas negadas; ainda que, esperamos, também da progressiva melhoria da estrutura organizacional adequada e das medidas tácticas pelas quais os objectivos estratégicos adoptados podem ser alcançados.

Outro argumento frequentemente usado a favor da acomodação permanente alerta para o risco de um movimento revolucionário socialista ter de enfrentar medidas autoritárias extremas. Este argumento é apoiado pela ênfase que dá ao imenso poder destrutivo ao alcance do capital e ao inegável facto histórico de que nenhuma ordem jamais cede de boa vontade a sua posição de comando na sociedade, utilizando, se necessário, a forma mais violenta de repressão para conservar o seu domínio. A fraqueza deste argumento é dupla, apesar das circunstâncias factuais que parecem apoiá-lo.

Primeiro, desconsidera que a confrontação antagónica entre capital e trabalho não é um confronto político/militar no qual um dos antagonistas possa ser preso ou trucidado no campo de batalha. Se há grilhões nesta luta, estão aplicados ao trabalho, já que o único tipo de grilhões compatível com o sistema deve ser suficientemente "flexível" para habilitar a classe do trabalho a produzir e ser explorada. Nem se pode imaginar que o poder autoritário do capital seja usado exclusivamente contra um movimento revolucionário socialista. As medidas repressivas sobre o trabalho das duas últimas décadas — para não mencionar os muitos exemplos de emergências históricas passadas sob o sistema do capital que foram caracterizadas pelo uso da violência — fornecem uma indicação do que de pior poderá advir de futuras confrontações mais agudas. Mas esta não é uma questão do tipo ou isto ou aquilo, que ofereça alguma garantia de tratamento justo e benevolente no caso de submissão e acomodação deliberada do trabalho. O assunto depende da gravidade da crise e das circunstâncias nas quais os antagonismos se desdobrem. Por mais desagradável que esta verdade possa parecer aos socialistas, o grilhão mais pesado que o trabalho tem que suportar, enquanto o movimento não conseguir operar uma ruptura estratégica de transição para uma ordem sócio-metabólica radicalmente diferente, é o fito de continuar atado ao capital para a continuidade da sua sobrevivência. Mas isso é tão ou mais verdade para o capital, com a diferença qualitativa de que ao capital é impossível realizar uma ruptura para o estabelecimento de uma outra ordem social. Para o capital, realmente, "não há alternativa" — e nunca poderá haver — à sua dependência estrutural da exploração do trabalho. Este facto fixa limites bem demarcados à capacidade de o capital subjugar permanentemente o trabalho pela violência, forçando-o a usar contra a classe trabalhadora os "flexíveis" grilhões mencionados. A violência pode ser usada selectivamente, contra grupos limitados do trabalho, mas não contra a organização de um movimento de massa revolucionário. Por isso é tão importante o desenvolvimento da "consciência comunista de massa" (para usar a expressão de Marx), em contraste com a vulnerabilidade da orientação sectária estreita.

A segunda observação é igualmente importante porque se refere às determinações mais íntimas do sistema do capital como ordem sócio-metabólica necessariamente orientada para a expansão e dirigida para a acumulação. Ainda que o uso do poder por meio do equipamento repressivo possa, em situações de emergência, servir ao propósito de recompor as relações de poder a favor do capital, o facto de que ele é extremamente perdulário mesmo nos próprios termos de referência do sistema. É fundamental que se leve em conta ser impossível assegurar a expansão e a acumulação necessárias de capital com base na perpetuação da emergência economicamente perdulária, para não mencionar os perigos políticos associados a ela e que não são de forma alguma desprezíveis. A ideia de um "Big Brother" permanente que domina com sucesso o trabalho já é fantástica demais até mesmo para a ficção orwelliana, quanto mais para a realidade do modo de reprodução sócio-metabólica do capital, pois este estará necessariamente condenado ao desaparecimento se não puder assegurar permanentemente a sua própria reprodução pela apropriação dos frutos do trabalho cada vez mais produtivo e a concomitante realização ampliada de valor, inconcebível sem um processo dinâmico de "consumo produtivo" Contudo, nem a melhoria da produtividade do trabalho, com o necessário crescimento da socialização do processo de trabalho como sua condição prévia, nem a necessária expansão do "consumo produtivo" são compatíveis com a ideia de um estado permanente de emergência. Além disso, como argumentou correctamente Chomsky há muitos anos atrás, o sistema de vigilância que acompanha a manutenção bem sucedida de um domínio autoritário permanente envolve o absurdo (e, claro, o custo correspondente) da regressão infinita associada à obrigação de monitorar não apenas toda a população, mas também o próprio pessoal encarregado do monitoramento, além dos monitores dos monitores(40) etc. Devemos acrescentar ainda que a ideia da dominação permanente do capital pelo uso da violência como premissa necessária à unidade total do capital global contra as forças de trabalho nacionais que estão efectivamente sob o controlo das unidades particulares do capital na ordem global existente (que não é unificada). Este postulado vazio de unidade e uniformidade global do capital ignora arbitrariamente a lei de desenvolvimento desigual. Não só ela, mas também a evidência histórica de que o exercício da força em grande escala — por meio da guerra — nunca prescindiu de massas geralmente motivadas por séculos de rivalidades nacionais para poder impor violência contra os seus iguais do lado dos inimigos. De facto, a articulação nacional do sistema global do capital, longe de ser um acidente histórico, foi incentivada pela necessidade de um grau mínimo de consenso que permitisse ao capital manter o controlo sobre a força de trabalho. Caso contrário, as rivalidades inter-capitalistas, inclusive as conflagrações internacionais mais abrangentes, passariam a ser riscos inadministráveis do ponto de vista do capital social total, anulando a lógica interna do sistema de intensificar ao máximo o conflito de interesses e fazer prevalecer os mais fortes no bellum omnium contra omnes hobbesiano. Pois, na ausência de um grau suficientemente alto de consenso entre capital e trabalho no mesmo país — geralmente presente em alto grau nos conflitos entre nações em toda a situação de significativa disputa inter-capitalista —, o próprio sistema do capital correria o perigo de ser vencido pelo trabalho, seu antagonista. (De facto, alguns socialistas radicais tentaram sem sucesso combater este consenso com o programa que conclamou os trabalhadores, quando da irrupção da Primeira Guerra Mundial, "a voltar as suas armas contra as burguesias nacionais".) Em resumo, todos os argumentos a favor da manutenção da dominação permanente do capital pela imposição da violência em massa definem de modo auto-contraditório as suas condições de realização. Como foi mencionado na secção 18.2.5, é insana a ideia de projectar a dominação do capital, na sua confrontação directa com o trabalho, pela via de um estado de emergência completamente instável, e necessariamente passageiro, como condição permanente da sua normalidade futura. Certamente, ninguém duvida que o uso da violência pode adiar, por um período de tempo mais ou menos longo, o sucesso dos esforços positivos de emancipação do trabalho; mas não pode evitar o esgotamento das potencialidades produtivas do capital. Mais do que isso, ao contrário, o uso da violência em massa arruína as condições objectivas do domínio do capital, apressando o seu esgotamento.

Como antagonista do capital, a grande dificuldade do trabalho é que, apesar de o único objectivo viável da sua luta transformadora ser o poder sócio-metabólico do capital — com o seu controlo estrutural/hierárquico, não simplesmente pessoal, mas objectivo, sobre a esfera produtiva material, do qual outras formas de "personificação" podem (e, sob as estratégias mal concebidas, com o tempo devem) nascer —, esse objectivo fundamental não pode ser alcançado sem a conquista do controlo da esfera política. Além disso, essa dificuldade é intensificada pela tentação de se acreditar que, uma vez neutralizadas as instituições políticas do sistema capitalista herdado, o poder do capital estaria firmemente sob controlo; uma crença fatal que só poderia acabar nas conhecidas derrotas históricas do passado.

Como vimos no capítulo 2, o sistema do capital é composto de elementos incorrigivelmente centrífugos, complementados pela dimensão coesiva do poder de controlo da "mão invisível", e das funções legal e política do Estado moderno. O fracasso das sociedades pós-capitalistas está no facto de terem se oposto à determinação centrífuga do sistema herdado sobrepondo aos seus elementos particulares conflituantes a estrutura de comando extremamente centralizada de um Estado político autoritário. Elas, ao contrário, deveriam ter atacado o problema crucial de como solucionar — por meio da reestruturação interna e da instituição do controlo democrático substantivo — o carácter contraditório e o correspondente modo centrífugo de funcionamento das unidades reprodutivas e distributivas particulares. Portanto, a simples remoção das personificações privadas capitalistas do capital não poderia cumprir esse papel, nem mesmo como um primeiro passo a caminho da prometida transformação socialista, pois a natureza contraditória e centrífuga do sistema herdado foi de facto mantida pela imposição da política de controlo centralizada em prejuízo do trabalho. O sistema sócio-metabólico tornou-se, assim, mais incontrolável do que antes, devido à incapacidade de substituir produtivamente a "mão invisível" da antiga ordem reprodutiva pelo autoritarismo voluntarista das novas personificações "visíveis" do capital pós-capitalista. Inevitavelmente, isso provocou a crescente hostilidade dos castigados sujeitos do trabalho excedente politicamente extraído contra a ordem pós-revolucionária. O facto de a força de trabalho ter sido submetida a um cruel controlo político e, às vezes, até à desumana disciplina dos campos de trabalho das massas não significou que as personificações do capital de tipo soviético estivessem no controlo do sistema. A incontrolabilidade do sistema reprodutivo pós-capitalista manifestou-se pela incapacidade crónica de alcançar os objectivos económicos, escarnecendo das decantadas vantagens da "economia planejada". Isso selou o seu destino ao privá-lo da sua alegada legitimidade e fazer do seu colapso uma simples questão de tempo. Nos estágios finais de existência do sistema de tipo soviético, as personificações pós-revolucionárias do capital tentaram desesperadamente contrabandear a "mão invisível" para dentro das suas sociedades, rebaptizando-a — para torná-la aceitável — de "socialismo de mercado"; isso apenas acentuou o facto de que, mesmo depois de sete décadas de "controlo socialista", o sistema pós-capitalista permanecia irremediavelmente incontrolável, e absolutamente incapaz de produzir um controlo de democrático substantivo das suas unidades produtivas e distributivas.

É claro que a reconstituição e a substantiva democratização da esfera política são a condição necessária para uma intervenção sobre o controlo sócio-metabólico do capital, pois o poder do capital não está, e nunca estará, limitado a estritas funções produtivas. Para controlá-las, o capital deve ser complementado pelo seu próprio modo de controlo político. Isso significa que a estrutura material de comando do capital não pode afirmar-se sem a estrutura de comando político global do sistema. Assim, uma alternativa ao controlo sócio-metabólico do capital deve abranger todos os aspectos complementares do processo de reprodução social, desde as funções estritamente produtivas e distributivas até às dimensões mais amplas da direcção política. Como está no controlo real de todos os aspectos vitais do sócio-metabolismo, o capital pode dar-se ao luxo de definir a esfera de legitimação política como questão estritamente formal, eliminando desse modo, a priori, a possibilidade de ser legitimamente contestado na sua esfera de acção substantiva. Ao dobrar-se a tais determinações, o trabalho, como real antagonista do capital existente, pode apenas condenar-se à permanente impotência, pois a instituição de uma ordem sócio-metabólica alternativa só será viável pela articulação da democracia substantiva, definida como actividade auto-determinada dos produtores associados tanto na política como na produção material e cultural.

É característica singular do sistema do capital que, na sua normalidade, as funções materiais reprodutivas sejam executadas num compartimento separado, sob uma estrutura de comando substancialmente diferente da ampla estrutura de comando político do capital corporificada no Estado moderno. Essa separação e essa "disjunção", constituídas ao longo da supremacia histórica do capital dirigida para a auto-expansão do valor de troca, de modo algum são desvantajosas para o próprio sistema. Ao contrário, as personificações económico-gerenciais do capital podem exercer a sua autoridade sobre as unidades reprodutivas particulares, antecipando um feedback do mercado a ser convertido no devido tempo em acção correctiva, e o Estado cumpre as suas funções complementares, em parte na esfera internacional do mercado mundial (inclusive a garantia dos interesses do capital em guerras se necessário for), em parte diante de uma força de trabalho potencial ou realmente recalcitrante. Assim, nos dois casos, o antagonista estrutural do capital é firmemente mantido sob controlo pela compartimentação e pela radical alienação dos produtores do poder de tomar decisões — em todas as esferas — num sistema ajustado às necessidades da reprodução e da acumulação ampliada do capital.

Em completo contraste, um modo de controlo reprodutivo alternativo — socialista — é inimaginável sem que ocorra a superação da disjunção e da alienação existentes. A condição necessária para realizar as funções da reprodução directamente material de um sistema socialista é a restituição do poder de tomar decisões aos produtores associados — em todas as esferas de actividade e em todos os níveis e coordenação, desde os empreendimentos locais até ao mais amplo intercâmbio internacional. O "fenecimento do Estado" não se refere a algo misterioso ou remoto, mas a um processo perfeitamente tangível que precisa de ser iniciado ainda no presente. E na transição para a genuína sociedade socialista é necessária a progressiva reaquisição dos poderes alienados de decisão política pelos indivíduos. Sem a reaquisição desses poderes, é inimaginável o novo modo de controlo político total da sociedade pelos seus indivíduos, assim como a operação quotidiana não contraditória e, portanto, coesiva/planeável das unidades produtivas e distributivas particulares pela auto-administração dos produtores associados.

A reconstituição da unidade das esferas de reprodução material e política é a característica definidora essencial do modo socialista de controlo sócio-metabólico. A criação das suas mediações necessárias não pode ser deixada para um futuro distante, contrariando o que diz a teoria apologética do "nível mais alto do comunismo", pois, se não forem dados imediatamente os primeiros passos como parte orgânica da estratégia transformadora, eles nunca serão dados. Conservar a dimensão política sob uma autoridade separada, divorciada das funções reprodutivas materiais da força de trabalho significa manter a dependência e a subordinação estrutural do trabalho e consequentemente impossibilitar a tomada de medidas subsequentes em direcção a uma transformação socialista sustentável. Foi nesse sentido, tão revelador quanto fatal, que o sistema soviético, em vez de activar o poder de decisão autónomo dos produtores, reforçou a disjunção entre as funções do Estado e a força de trabalho sob o seu controlo, impondo, sob o pretexto de "planeamento", as ordens do seu aparato político sobre os processos produtivos directos. Nem mesmo a eternidade poderia transformar em sistema socialista auto-administrado uma ordem sócio-metabólica aprisionada por determinações estruturais tão irremediavelmente alienadas.

18.4.7

Nas circunstâncias do "capitalismo avançado" actualmente existente, a deterioração das condições da força de trabalho não poderá ser contestada — muito menos questionada a dolorosa submissão estrutural do trabalho — sem uma restruturação fundamental do movimento socialista, para transformar a sua actual postura defensiva noutra capaz de uma acção ofensiva. Ou seja, esgotaram-se não apenas o modo tradicional de controlo político parlamentar, mas também a acomodação reformista do trabalho.

É importante ter em mente que se o trabalho quer conseguir alguma coisa nas actuais circunstâncias, uma renovação da forma parlamentar de legislação política é inevitável. Tal renovação só se tornará viável pela criação de um movimento extra-parlamentar como força vital condicionante do próprio Parlamento e da estrutura legislativa de uma sociedade globalmente em transição. Considerando a situação actual, o trabalho, como antagonista do capital, é obrigado a defender os seus interesses não apenas com uma, mas com as duas mãos atadas às costas. Uma delas presa pelas forças abertamente hostis ao trabalho e a outra pelos seus próprios partidos e lideranças sindicais reformistas, que cumprem a função especial de personificações do capital no interior do próprio movimento do trabalho ao serviço da acomodação total, de capitulação aos imperativos materiais "realistas" do sistema. O que sobra então na actual articulação limitadora do movimento de massas do trabalho, dar murro em ponta de faca, não pode sequer ser considerado uma arma estritamente defensiva; apesar de os porta-vozes do "novo trabalhismo", nas suas "Comissões de Justiça", relacionarem as benfeitorias da "grande e boa" sociedade capitalista e proclamarem que a luta em curso está completamente de acordo com os critérios de "imparcialidade" e "justiça". Sob tais condições, cabe ao movimento dos trabalhadores decidir entre resignar-se a tais limites ou dar os passos necessários para desatar as próprias mãos, por mais difícil que venha a ser essa última linha de acção. Hoje, os líderes trabalhistas admitem abertamente, como Tony Blair no discurso de Derby, pronunciado por coincidência no dia 1 de Abril. "O Partido Trabalhista é o partido dos empresários e das indústrias modernas na Inglaterra.(41) Isso representa a fase final da traição total a tudo o que foi iniciado pela velha tradição social-democrata. Como podemos ler em The Times, de Londres:

Na sua famosa estratégia de " cocktails de camarão" nos almoços da City [com o líder anterior, John Smith, o trabalhismo já antes abordou os empresários. Mas a nova comissão [sobre as "Políticas Públicas e o Empresariado Britânico", estruturada pelos trabalhistas segundo o modelo da sua "Comissão de Justiça"], especialmente no que diz respeito à sua relação com o partido, é diferente. "A ideia da ofensiva dos " cocktails de camarão" era provar que não queríamos brigar", afirma um dos colegas de Blair. "Agora estamos avançando um pouco mais: queremos mostrar que podemos fazer negócios com o empresariado."(42)

A única dúvida é saber se a classe do trabalho vai aceitar ser tratada como o ingénuo do 1.º de Abril, e por quanto tempo a estratégia de capitulação ao grande empresariado poderá ser seguida depois da próxima vitória eleitoral de Pirro. Além de tudo isso, sabemos que Margaret Thatcher "negociou com Gorbachev", e vice-versa, no mesmo espírito do "não há alternativa" que hoje está sendo militantemente advogado pelo "novo trabalhismo" na qualidade de "partido do empresariado moderno". Da mesma forma que também sabemos o que, no final, ocorreu com Gorbachev, com a baronesa Thatcher e com suas glorificadas estratégias.

Na estrutura do sistema parlamentar, a disputa entre capital e trabalho nunca foi, nem poderia ser, "justa e igual". O capital não é em si uma força parlamentar, apesar dos seus interesses poderem ser adequadamente representados no Parlamento, como mencionamos antes. O que necessária e antecipadamente decide contra o trabalho no confronto político com o capital, confinado ao Parlamento, é o inescapável facto de que o capital social total não pode deixar de ser uma força extra-parlamentar par excellence. É o que acontece quando os representantes da pluralidade de capitais afirmam os interesses do seu sistema como um todo contra o trabalho, e quando acertam entre si, com a ajuda das "regras do jogo parlamentar", os aspectos legais e políticos das suas diferenças particulares.

Naturalmente, quando chega a hora de impor as determinações do capital aos governos parlamentares dos trabalhistas, não se pode tolerar a desobediência dos seus primeiros-ministros. Há aproximadamente dez anos, o senhor Campbell Adamson — um ex-director-geral da Confederação da Indústria Britânica — fez uma confissão indiscreta numa entrevista de televisão. Contou que havia realmente ameaçado Harold Wilson (então primeiro-ministro trabalhista do governo britânico) com uma greve geral de investimentos se não respondesse favoravelmente ao ultimato de sua Confederação. Adamson candidamente admitiu que a sua ameaça era inconstitucional (nas suas próprias palavras), acrescentando que "felizmente" não houve necessidade de prosseguir com aquela intenção, já que o "Primeiro-ministro concordou com as nossas demandas".

Portanto, a própria constitucionalidade é um joguete nas mãos dos representantes do capital, para ser rude e cinicamente utilizada como um artifício auto-legitimador contra o trabalho. As personificações do capital, quando atropelam a "constitucionalidade democrática", não são, obviamente,, mandadas para a Torre de Londres — como sem dúvida seriam por um semelhante ultraje ao rei na Alta Idade Média. Pelo contrário, são até mesmo elevadas à condição de Cavaleiros ou à Câmara dos Lordes, inclusive pelos governos trabalhistas. Os que pensam ser esta uma "peculiaridade dos ingleses" devem lembrar-se do que aconteceu ao presidente — o guardião ex officio da Constituição americana — no tão falado caso "Irão-Contras". O Comité do Congresso norte-americano que investigava o caso concluiu que a administração Reagan era culpada de "subverter a lei e solapar a Constituição". Obviamente, esse veredicto, em que pese a gravidade das suas implicações para o "domínio da lei" (jamais levada em consideração pelos Hayeks da vida), não teve a menor consequência para o "presidente Teflon", nem resultou na introdução de necessárias salvaguardas constitucionais para prevenir violações similares da Constituição americana no futuro.

Quando se trata dos representantes políticos do trabalho, a questão não se resume a simples casos de fracasso pessoal ou de cederem às tentações das gratificações oferecidas às suas posições privilegiadas. É muito mais grave do que isso. O problema é que, como chefes ou ministros de governo, eles supostamente deveriam ser capazes de controlar politicamente o sistema, mas nada fazem de semelhante, pois operam no interior da esfera política, pré-determinada a priori a favor do capital pelas estruturas de poder existentes do seu modo de reprodução sócio-metabólico. Sem desafiar radicalmente e desalojar materialmente as estruturas profundamente enraizadas do modo de controlo sócio-metabólico do capital, a capitulação ao poder do capital é apenas uma questão de tempo, normalmente numa velocidade que quase supera a da luz. Podemos pensar em Ramsay MacDonald, Bettino Craxi, Felipe Gonzáles, François Mitterand — ou mesmo em Nelson Mandela, o prisioneiro que se converteu no novo defensor da indústria bélica da África do Sul(43) — mas a história deprimente é sempre a mesma. Frequentemente a esperança de um "papel realista e responsável" supostamente apropriado de futuros ocupantes de cargos nos altos escalões ministeriais já é suficiente para produzir as mais inesperadas surpresas. Aneurin Bevan, o então ídolo da ala esquerda do Partido Trabalhista e o mais firme oponente da corrida nuclear na Inglaterra, não hesitou em despojar-se dos seus princípios socialistas e insultar os seus ex-camaradas da ala esquerda durante a conferência anual para a elaboração da política do partido, com a desculpa de que dele, como secretário do Exterior designado de um futuro governo trabalhista, não se deveria esperar "que entrasse nu no fórum de negociação internacional e se sentasse assim à mesa de conferência para defender os interesses do país", qual seja, a posição privilegiada do imperialismo britânico como membro do exclusivo "clube nuclear".

A classe trabalhadora foi um "apêndice tardio" ao sistema parlamentar burguês sempre tratada por ele como tal depois de entrar nos seus corredores, pois nunca pôde comparar-se mesmo que remotamente, com o poder do capital como o fundamento efectivo do sistema político parlamentar. Ainda que as regras formais e os custos materiais para entrar no Parlamento pudessem tornar-se equitativos — o que claro, é impossível diante da monstruosa desigualdade de riqueza entre as classes, assim como perante as vantagens ideológicas e educacionais gozadas pelas classes dominantes na condição de detentoras do controlo material e cultural da "ideologia dominante" —, a situação não seria significativamente alterada. A questão fundamental diz respeito à relação entre a estrutura política parlamentar e o modo de reprodução sócio-metabólico existente totalmente dominado pelo capital.

Por outro lado, a disjunção entre economia e política, essencial ao desenvolvimento histórico do sistema do capital, colocou um desafio enorme, ainda não enfrentado pelo movimento dos trabalhadores. O fracasso da esquerda histórica está inextrincavelmente associado a essa circunstância, já que a articulação defensiva do movimento socialista tanto reflectiu directamente tal disjunção como se acomodou a ela. O facto de a fatal aceitação de tais determinações estruturais não ter sido voluntária, muito menos de bom grado, mas uma acomodação imposta, não altera o facto de o trabalho ter caído na armadilha da margem desesperadamente estreita para uma acção auto-emancipatória no interior da estrutura dada. Esta acomodação foi imposta ao trabalho como pré-condição necessária à autorização para entrar na esfera parlamentar da "emancipação política" e ter acesso às limitadas melhorias materiais reformistas, depois de as forças originalmente extra-parlamentares de oposição radical terem aderido a tal via. O espaço para esse tipo de articulação reformista do movimento de massas do trabalho foi aberto "no pequeno canto do mundo europeu" com a sua " hinterland" global e imperialista, pela fase de expansão dinâmica — portanto capaz de "permissividade" — do desenvolvimento do capital, na segunda metade do século XIX, levando quase um século para esgotar-se. A separação paralisadora entre o "braço político" e o "braço sindical" do trabalho acima mencionada foi complemento apropriado e apoio a esse tipo de desenvolvimento, na medida em que ofereceu, de modo muito discriminatório, algumas vantagens materiais limitadas às classes trabalhadoras de alguns países privilegiados à custa da super-exploração das massas do resto do mundo. A perspectiva de uma radical mudança estrutural — o socialismo alcançado por mudanças graduais — resultante da aceitação acrítica dos incorrigíveis limites estruturais do sistema foi, desde o começo, apenas uma ilusão, ainda que inicialmente alguns políticos reformistas e dirigentes sindicais acreditassem genuinamente nela. O facto é que, depois de inícios muito diferentes, o movimento socialista aceitou a separação entre o seu "braço político" e o "corpo sindical" que lhe possibilitava operar no interior da estrutura parlamentar criada pelas personificações do capital para defender e administrar os interesses do sistema do capital. Contudo, a vitória da estratégia reformista dentro do movimento socialista não foi de modo algum acidental ou a consequência de aberrações pessoais contingentes ou, ainda, de traições burocráticas. Foi, isto sim, o coroamento necessário da adaptação do movimento à estrutura política parlamentar pré-estabelecida e da sua acomodação à disjunção estrutural peculiar entre as características políticas e económicas do sistema do capital. O sucesso da ofensiva socialista é inconcebível sem a recusa radical de tais determinações estruturais da ordem estabelecida e sem a reconstrução do movimento do trabalho na sua integridade, não apenas com os seus "braços", mas também com a plena consciência dos seus objectivos transformadores como alternativa estratégica necessária e viável ao sistema do capital.

18.4.8

O problema insolúvel da estrutura das instituições políticas actuais é a desigualdade fundamental entre capital e trabalho existente nas relações materiais de poder do conjunto da sociedade, que se afirma enquanto não se altera radicalmente o modo actual de reprodução metabólica. Nesse sentido, é importante citar uma passagem dos Manuscritos económicos de 1861-63, de Marx:

O trabalho produtivo — como produtor de valor — enfrenta sempre o capital como trabalho de trabalhadores isolados, seja qual for a combinação com que esses trabalhadores entram no processo de produção. Assim, enquanto o capital representa o poder produtivo social do trabalho para os trabalhadores, o trabalho produtivo representa sempre para o capital apenas o trabalhador isolado.(44)

Se amanhã, por um milagre, os parlamentos aprovassem unanimemente uma lei determinando, por exemplo, que a partir de depois de amanhã o poder social do trabalho produtivo fosse reconhecido pelo capital e que o trabalho produtivo não devesse ser mais representado vis-à-vis o capital como trabalho de trabalhadores isolados, o mundo não perceberia qualquer diferença. Nem poderia perceber, pois o capital, tal como é materialmente constituído — por meio do trabalho alienado e acumulado —, representa, de facto e objectivamente, o poder sócio-produtivo do trabalho. É essa relação objectiva de dominação estrutural que encontra a sua corporificação adequada também nas instituições políticas do sistema do capital. E é essa ainda a razão pela qual a pluralidade do capital pode ser adequadamente representada na estrutura da política parlamentar, enquanto o trabalho não. As relações de poder material existentes — incorrigivelmente iníquas — tornam a "representação" do trabalho vazia (como representação parlamentar estritamente política da classe materialmente subordinada do trabalho) ou auto-contraditória (em termos tanto da representação eleitoral do trabalhador isolado, como da "participação democrática" do radical antagonista estrutural do capital, que, apesar de tudo, está alegremente predisposto a aceitar as migalhas das acomodações marginais reformistas). Nenhuma reforma política nos parâmetros do sistema existente permitiria sonhar em alterar essas relações de poder material.

O que torna as coisas ainda piores para os que buscam mudanças significativas no interior dos limites do sistema político estabelecido é que esse sistema pode reivindicar, a seu favor, genuína legitimidade constitucional para o seu actual modo de funcionamento, com base na inversão historicamente constituída do actual estado de coisas. Ou seja, enquanto o capitalista não for apenas a "personificação do capital", mas também "a personificação do carácter social do trabalho, do lugar de trabalho total em si",(45) o sistema pode alegar que representa o poder produtivo, vitalmente necessário, da sociedade vis-à-vis os indivíduos, incorporando os interesses de todos, sendo, portanto, a base de continuidade das suas existências. Dessa forma, o capital firma-se diante da sociedade não apenas como poder de facto, mas também como poder de jure na sociedade, já que ele se apresenta como condição necessária e objectiva da reprodução societária e, portanto, como o fundamento constitucional da sua própria ordem política. A legitimidade constitucional do capital é historicamente baseada na expropriação directa dos produtores das condições de reprodução sócio-metabólica — os instrumentos e materiais do trabalho —, portanto a alegada "constitucionalidade" do capital (como a origem de todas as constituições) é inconstitucional; mas esta verdade intragável perde-se nas brumas do passado remoto. Historicamente, os "poderes sócio-produtivos do trabalho, ou os poderes produtivos do trabalho social, primeiro desenvolveram-se como o modo de produção especificamente capitalista, por isso aparecem como algo imanente à relação capital e dela inseparável".(46) O modo de reprodução sócio-metabólico do capital legitima-se e eterniza-se como sistema legitimamente inquestionável. Só se aceita como legítimo o questionamento de aspectos menores de uma estrutura global inalterável. Desaparece a verdadeira questão que habita o plano da reprodução sócio-económica — qual seja, poder produtivo do trabalho efectivamente exercido e a sua necessidade absoluta para assegurar a reprodução do próprio capital. Isso acontece, em parte, devido à ignorância da origem histórica não legitimável da acumulação primitiva do capital e à concomitante e geralmente violenta expropriação da propriedade como pré-condição do modo actual de funcionamento do sistema; e, em parte, devido à natureza mistificadora das relações produtivas estabelecidas. Ou seja,

as condições objectivas do trabalho não aparecem como subsumidas ao trabalhador, ao invés disso, é ele que aparece subsumido àquelas. O CAPITAL EMPREGA O TRABALHO. Mesmo na sua simplicidade, essa relação é uma personificação de coisas e uma reificação de pessoas.(47)

Nada disso pode ser contestado e solucionado por uma reforma política parlamentar. Nem mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, como as da avalanche de votos, em 1945, a favor do Partido Trabalhista da Inglaterra. Tal avalanche, no entanto, foi precedida pelo reflorescimento da crítica do sistema em razão dos sacrifícios impostos às massas populares durante a depressão que se abateu sobre o país durante a longa depressão do período entre guerras e a dura realidade da guerra que se seguiu. Seria absurdo esperar a abolição por decreto político da 'personificação de coisas e reificação de pessoas", assim como seria absurdo esperar a proclamação de tal reforma nos limites das instituições políticas do capital. O sistema do capital não pode funcionar sem a perversa inversão das relações entre pessoas e coisas: o poder reificado e alienado do capital que domina as massas. Da mesma forma, seria um milagre se os trabalhadores, que no processo de trabalho confrontam o capital como "trabalhadores isolados", pudessem reaver o controlo dos poderes sócio-produtivos do seu trabalho através de algum decreto político, ou mesmo por uma longa série de reformas parlamentares decretadas sob a ordem sócio-metabólica de controlo do capital. Em tais questões, não há como evitar o conflito inconciliável em torno de objectivos materiais "mutuamente excludentes".

O capital não pode abdicar dos seus — usurpados — poderes sócio-produtivos em favor do trabalho, nem pode compartilhá-los com ele, na medida em que eles constituem o poder global de controlo da reprodução societária sob a forma da "dominação da riqueza sobre a sociedade". Por isso é impossível escapar, dentro do domínio do sócio-metabolismo fundamental, à severa lógica dos interesses "mutuamente excludentes". Ou a riqueza, sob a forma do capital, continua a comandar a sociedade humana, levando-a aos limites da auto-destruição, ou a sociedade de produtores associados aprende a comandar a riqueza alienada e reificada usando os poderes produtivos resultantes do trabalho social auto-determinado dos seus membros individuais. O capital é a força extra-parlamentar par excellence que não pode ser politicamente limitada no seu poder de controlo sócio-metabólico. Essa é a razão pela qual a única forma de representação política compatível com o modo de funcionamento do capital é aquela que efectivamente nega a possibilidade de contestar o seu poder material. E, justamente porque é a força extra-parlamentar par excellence, o capital nada tem a temer das reformas decretadas no interior da estrutura política parlamentar. A questão vital, da qual tudo depende, é que "as condições objectivas do trabalho não aparecem como subsumidas ao trabalhador", mas, ao contrário, "este aparece subsumido àquelas", por isso mesmo nenhuma mudança significativa é viável sem que se volte a esta questão, tanto por meio de políticas capazes de desafiar o poder e os modos de acção extra-parlamentar do capital como na esfera da reprodução material. Portanto, o único desafio que poderia, de modo sustentável, afectar o poder do capital seria aquele que simultaneamente assumisse as funções produtivas decisivas do sistema e adquirisse o controlo sobre todas as esferas correspondentes de tomada de decisão política, em vez de ser limitado pelo confinamento circular da acção política legítima à legislação parlamentar.

Certamente, a castração da política socialista é perfeitamente compatível com as relações de poder do capital e com o seu único modo viável de operação, em todas as suas formas. Já que "as condições objectivas do trabalho não aparecem como subsumidas ao trabalhador" — muito pelo contrário —, o trabalhador como trabalhador isolado no processo de trabalho pode legitimamente ser considerado como tal noutras importantes esferas do processo de reprodução e distribuição social. Na política, ele ou ela podem politicamente agir como eleitores (isolados) que tomam as suas decisões estritamente sozinhos na privacidade da cabina de votação. E na esfera material do "consumo produtivo", da maior importância, que completa o ciclo da reprodução ampliada do capital eles podem novamente surgir como "consumidores soberanos" — estritamente individuais e isolados — que não mantêm qualquer relação com a sua classe. Ao contrário, agem desta vez consultando, não as suas consciências moral e política na inviolabilidade da cabina eleitoral, como o fizeram na condição de "eleitores soberanos", mas sua "consciência racional (ou "faculdade racional") para calcular e maximizar as "utilidades marginais privadas". O sistema pós-capitalista de tipo soviético manteve essa mesma relação, apesar da abolição da forma do capitalista privado como personificação do capital. O trabalhador permaneceu subsumido às condições objectivas do trabalho, ao controlo autoritário do Estado gerido pelas personificações pós-capitalistas do capital. Na qualidade de trabalhadores isolados, que sob nenhuma circunstância poderiam organizar a si próprios vis-à-vis da autoridade controladora do processo de trabalho, poderiam ser premiados como indivíduos "stakhanovistas" exemplares (a serem emulados por outros) ou punidos e enviados aos milhares aos campos de trabalho como "sabotadores criminosos" e "agentes inimigos". Mas o trabalho em si não poderia adquirir legitimidade como agente colectivo do processo de trabalho, muito menos assumir o controlo da reprodução sócio-metabólica como um todo. Embora, sob o planeamento autoritário, a ideia do "consumidor soberano" não pudesse ser mantida, a questão do consumo também era regulada numa base individual profundamente discriminatória — mesmo no caso de "stakhanovistas" e "trabalhadores exemplares". Foi mantida inclusive a ficção do "voto secreto", pela qual os "indivíduos socialistas" deveriam consultar as suas "consciências moral e política" na privacidade da cabina de votação, e chegar às esperadas respostas unânimes que legitimavam o estado de coisas. Tudo isso de modo algum é surpreendente, pois diferenças substantivas do campo da política e no "consumo produtivo" só seriam viáveis caso se alterasse radicalmente o princípio estrutural do sistema do capital, que deve manter os trabalhadores — de um modo ou de outro — subsumidos às condições objectivas do seu próprio trabalho.

O poder extra-parlamentar do capital só pode ser enfrentado pela força e pelo modo de acção extra-parlamentares do trabalho. Isso é ainda mais importante se levarmos em conta a completa desintegração do reformismo parlamentar do movimento do trabalho, proclamado e seguido no passado, com o fito de fornecer o trabalho ao capital sob a forma de substância eleitoral fragmentada. Rosa Luxemburgo escreveu há muito tempo, profeticamente, que

o parlamentarismo é o viveiro de todas as actuais tendências oportunistas da social-democracia ocidental. ... fornece fundamento às ilusões do oportunismo actual, tais como a valoração exagerada das reformas sociais, a colaboração entre partidos e classes, a esperança de um desenvolvimento pacífico para o socialismo etc. ... Com o crescimento do movimento do trabalho, o parlamentarismo transformou-se na mola impulsionadora dos carreiristas políticos. É por isso que tantos ambiciosos fracassados da burguesia afluem para os estandartes dos partidos socialistas ... [O objectivo é] dissolver o sector de classe activo e consciente do proletariado na massa amorfa de um 'eleitorado'.(48)

A dissolução, tratada por Rosa Luxemburgo como uma ameaça, foi completamente realizada nos nossos dias, utilizando a noção de "eleitorado amorfo" como o seu fundamento ideológico legitimador. Por esse processo, não apenas a social-democracia ocidental claramente reformista, mas também os afiliados anteriormente revolucionários da Terceira Internacional, se transformaram em partidos liberais burgueses, consumando dessa forma a capitulação do "braço político" do trabalho aos imperativos "racionais" e "realistas" do capital. Tudo isso veio a ocorrer de um modo muito mais fácil do que se poderia imaginar previamente, pois o processo de dissolução das estratégias defensivas do trabalho foi objectivamente auxiliado e sustentado pelas relações de poder material do sistema do capital, que, no processo de produção e consumo, pode apenas reconhecer o trabalhador e o consumidor isolado e, na esfera política, o eleitor equivalente ao trabalhador impotente. Essa é a razão pela qual a política "representacional", ao invés de efectivar a prometida "via italiana para o socialismo" — teve finalmente que se degradar em todas as suas partes até ao nível do exercício de relações públicas comuns, excretando das suas entranhas e catapultando para o ápice da política parlamentar criaturas "representativas", como o magnata da media Silvio Berlusconi, exactamente no país do, outrora, Partido Comunista de Gramsci.

Naturalmente, nos países de "capitalismo avançado", contra o pano de fundo do clamoroso malogro histórico do reformismo e da política representacional em geral, qualquer mudança é impensável sem a reconstituição radical do movimento do trabalho — na sua integridade e em escala internacional — como força extra-parlamentar. A separação, que cava a sua própria sepultura, entre o 'braço político" e o "braço sindical" do trabalho comprova todos os dias nada mais ser do que um anacronismo histórico irremediável. Isso ocorre em relação não apenas ao seu óbvio fracasso na arena política ao longo de todo o século, mas também devido à sua incapacidade de atrair para si os milhões de "pessoas supérfluas" desempregadas, expulsas do processo de trabalho a uma velocidade alarmante pelos imperativos desumanizadores do "capital produtivo". Ao definir as suas estratégias como movimento político organizado, a força de trabalho ainda empregada não pode dar-se ao luxo de desconsiderar por mais tempo as aflições profundas — assim como a grande força potencial — desses incontáveis milhões, mesmo porque amanhã o mesmo destino deve atingir crescentes parcelas da força de trabalho ainda empregada. Dado o papel facilitador e servil da política a favor do modo de controlo sócio-metabólico do capital — ideologicamente racionalizado e justificado por slogans do tipo "aumento da produtividade", "vantagem competitiva", "disciplina de mercado", "globalização", "eficiência de custos", enfrentar o desafio dos "cinco pequenos tigres", ou qualquer outro —, muito pouco se pode esperar das instituições parlamentares como estão hoje articuladas. Somente uma intervenção radical na "economia" perdulária do processo reprodutivo material da ordem estabelecida pode rectificar com sucesso a impotência do trabalho, desde que ela consiga afirmar-se contra os factores mais desfavoráveis hoje dominantes pela acção articulada de um maciço movimento extra-parlamentar. É isto que põe em relevo a actualidade histórica da ofensiva socialista.

Devemos enfatizar novamente que, como mencionamos na secção 18.1.1, a actualidade histórica da ofensiva socialista — dada a exaustão das concessões interesseiras que o capital podia fazer no passado a um movimento do trabalho defensivamente articulado — não significa que o sucesso esteja assegurado nem que a sua realização esteja próxima. "Histórica", aqui, significa, por um lado, que a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na organização e a orientação do movimento socialista se apresentou na agenda histórica; e, de outro lado, que o processo em questão se desdobra sob a pressão de determinações históricas poderosas, empurrando a função social do trabalho na direcção de uma ofensiva estratégica prolongada caso queira realizar não apenas os seus objectivos potencialmente globais, mas também os seus objectivos mais limitados. O percurso à frente é provavelmente muito árduo e , certamente, não tem atalhos nem pode ser evitado.

As mediações históricas necessárias, vistas como passos viáveis para a realizada ordem sócio-metabólica alternativa do trabalho são inerentes tanto à perseguição do objectivo — uma intervenção radical, não confinada à esfera política, que constitua uma contestação directa das estruturas materiais da própria relação capital que subsume o trabalho às condições reificadas e alienadas do seu exercício, condenando o sujeito do processo de produção à total impotência dos trabalhadores isolados — como à forma de acção necessariamente extra-parlamentar pela qual este objectivo pode ser progressivamente traduzido em realidade. Pois, dada a própria natureza deste empreendimento, para haver qualquer possibilidade de sucesso, é necessário enfrentar e superar já nos primeiros passos — ainda que no início apenas em contextos limitados — a perniciosa disjunção entre economia e política, que serve apenas ao modo sócio-metabólico de controlo do capital, assim como a separação entre os seus braços "político" e "sindical", que por si própria derrota o trabalho, como se comprovou com dolorosa contundência nos últimos cem anos.

Devemos também salientar que a negação prática materialmente efectiva das estruturas reprodutivas dominantes por meio de acção e organização extra-parlamentar não implica a ausência de leis nem mesmo a rejeição apriorística do próprio Parlamento. Envolve, contudo, a contestação organizacionalmente sustentada dos limites cerceadores favoráveis ao capital, que as tendenciosas "regras do jogo" parlamentar impõem ao trabalho, como antagonista do capital. Naturalmente, mesmo numa genuína sociedade socialista do futuro, não se pode ignorar a questão da legislação nem agir como se fosse inexistente. O que decidirá a questão será a relação entre os produtores associados e as regras que eles definirão para si próprios graças a formas apropriadas de tomada de decisão. Certamente, Marx estava convencido de que, numa sociedade socialista desenvolvida, muitas das inevitáveis exigências de regulamentação exigidas poderiam ser atendidas por meio dos costumes e tradições estabelecidos pelas decisões autónomas e inter-relações espontâneas dos indivíduos que vivem e trabalham numa estrutura de sociedade não concorrencial. Sem isso, é inconcebível a supressão da política como esfera alienada, tornando impensável também o "fenecimento do Estado". Mas também é claro que, para o futuro previsível, muitas das exigências de regulamentação geral devem permanecer associadas a procedimentos legislativos formais. Por isso, "a sabedoria parlamentar de iludir os outros e iludir-se ao iludi-los", citada na secção 18.1.3, deve ser considerada "tanto pior" e não "tanto melhor".

Portanto, o papel do movimento extra-parlamentar do trabalho é duplo. Em vez de auxiliar a reestabilizar o capital nas crises, como ocorreu em situações importantes do passado reformista, ele deve, por um lado, afirmar os seus interesses estratégicos como alternativa sócio-metabólica pelo confronto e pela necessária negação, em termos práticos, das determinações estruturais da ordem estabelecida que se manifestam na relação capital e na concomitante subordinação do trabalho no processo sócio-económico de reprodução material. Por outro lado, o poder político do capital dominante no Parlamento precisa e deve ser contestado por meio da pressão que as formas de acção extra-parlamentar podem exercer sobre o Legislativo e o Executivo, como testemunhamos pelo impacto causado pelo movimento de "uma única questão" contra a taxação por cabeça, que desempenhou papel decisivo na queda de Margaret Thatcher do cimo da pirâmide política. Sem a contestação extra-parlamentar estrategicamente orientada e sustentada, os partidos que se alternam no governo podem continuar a oferecer a si próprios alibis recíprocos para o fracasso estrutural do sistema em relação ao trabalho, confinando efectivamente o movimento do trabalho ao papel de um apêndice inconveniente, mas marginalizado, no sistema parlamentar do capital. Portanto, em relação tanto ao domínio reprodutivo material como ao político, a constituição de um movimento socialista extra-parlamentar de massas estrategicamente viável — em conjunção com as formas tradicionais de organização política do trabalho, hoje desesperançadamente sem rumo e fortemente necessitadas do apoio e da pressão radicalizantes de tais forças extra-parlamentares — é uma pré-condição vital para a contraposição ao maciço poder extra-parlamentar do capital.


Notas de rodapé:

(1) Lenine, "On the Slogan for a United States of Europe", Collected Works, vol. 21, pp. 339-40 (escrito em Agosto de 1915) [ed. port. Obras escolhidas em três tomos, op. cit, tomo 1, p. 569)]. Também vale mencionar que, neste contexto, segundo The Times (22 de Julho de 1995), com base numa informação da AP de Moscovo,
A Corte Suprema (russa) premiou, com 9.400 libras esterlinas, por danos, Valentio Varennikov, um participante do golpe soviético de 1991 que foi absolvido no ano passado das acusações de traição.
É significativo nesta pequena notícia que Varennikov tenha insistido na época do projectado mas, claro, jamais realizado, julgamento, que ele queria ser julgado publicamente pela sua alegada participação no golpe falso e mal conduzido de Gorbachev, de modo a ser capaz de revelar o que realmente tinha acontecido e quem deu as ordens. Não poderia, portanto, ter sido mais apropriado que o "golpe que nunca existiu" fosse seguido por um "julgamento que nunca existiu", e que todo aquele assunto sórdido tivesse por conclusão o pagamento de uma grande soma de dinheiro — em termos de rublos russos uma verdadeira fortuna — a um acusado pela Corte Suprema do país, em vez de uma sentença de prisão. (retornar ao texto)

(2) Marx, The Poverty of Philosophy. Londres, Lawrence & Wishart, s.d., p. 123. (retornar ao texto)

(3) Marx, Lohn, Preis, und Profit, (Wages, Price and Profit). MEW. vol. 16, p. 153 [ed. bras. Salário, preço e lucro, op. cit., p. 337]. (retornar ao texto)

(4) Id., ibid., itálicos de Marx, [ed. bras., op. cit., p. 377]. (retornar ao texto)

(5) "Tirando o facto que era apenas o levante de uma cidade em condições excepcionais, a maioria da Comuna não era, de modo algum, socialista nem o poderia ser. Com um pouco de bom senso, porém, eles poderiam ter chegado a um acordo com Versalhes útil para toda a massa do povo — a única coisa que poderia ser alcançada na ocasião" (Marx, Carta a Domela Nieuwenhuis, 22 de Fevereiro de 1881). (retornar ao texto)

(6) Id. ibid. (retornar ao texto)

(7) "Discurso pronunciado numa reunião de activistas da Organização de Moscovo do PCR(b)", 6 de Dezembro de 1920. Lenine, Collected Works. vol. 21. pp. 44 1-2. (retornar ao texto)

(8) Anotações de um repórter sobre o discurso feito por Marx na reunião celebrada em Amesterdão a 8 de Setembro de 1872 (cf. MEW, vol. 18, p. 160). (retornar ao texto)

(9) Marx, Carta a N. F. Danielson, 19 de Fevereiro de 1881 (MEW, vol. 35, p. 157, itálicos de Marx). (retornar ao texto)

(10) Marx, Gründrisse, pp. 408 e 410 (edição alemã: pp. 311 e 313-4). (retornar ao texto)

(11) Id, ibid., pp. 409-10 (edição alemã, p. 313). (retornar ao texto)

(12) Estes problemas foram discutidos nos capítulos 15 e 16. O facto de o fim da Guerra Fria não ter permitido a distribuição dos "dividendos da paz". deixando o complexo industrial-militar em posição dominante nos países líderes capitalistas, acentua a importância destas arraigadas conexões económicas. (retornar ao texto)

(13) The Times, 22 de Setembro de 1981. (retornar ao texto)

(14) Engels, Carta a A. Bebel, 1.ª—2 de Maio de 1891. (retornar ao texto)

(15) Marx, Carta a Wilhelm Bracke, 5 de Maio de 1875. (retornar ao texto)

(16) Lukács, "Tactics and Ethics" (1919), Political Writings, 1919-1929. Londres, NLB, 1972, p. 31. (retornar ao texto)

(17) The Sunday Times, 21 de Fevereiro de 1982. Podemos ver novamente, o quanto se utiliza o imperativo desesperado de uma cega submissão ao determinismo económico do capital para decretar o reconhecimento de que "não há alternativa" (uma vez mais, apenas uma outra "lei" burguesa da "natureza") como critério incontestável da "sanidade" e da liberdade. (retornar ao texto)

(18) É profundamente enganoso representar estes dois como polaridades opostas, com a sugestão de que o segundo introduz algumas inovações importantes em relação ao primeiro. De facto, por muito tempo, cada variedade de keynesianismo foi uma aventura quixotesca que carregava dentro de si o seu Sancho Pança friedmanesco — na fase " stop " da sua política semafórica de " stop and go " — e vice-versa. Mas talvez um modo mais adequado de captar a sua verdadeira significação e o seu impacto seja reconhecê-los como um cancro nos intestinos um do outro, intensificando reciprocamente as consequências das suas acções separadas. O facto de que o cancro do monetarismo teve que emergir recentemente de forma particularmente funesta das entranhas keynesianas — apoiando abertamente com a sua alegada visão "iluminada" a maioria das brutais ditaduras militares, do Chile a El Salvador, para não mencionar o todo poderoso complexo industrial-militar norte-americano — só mostra que o desenvolvimento que se pretende não problemático (na verdade desenvolvimento modelo) já não se sustenta mais. Enquanto isso, lenta mas seguramente, aumenta a aceleração, na direcção oposta, de mais uma oscilação do pêndulo: sem dúvida, em pouco tempo seremos apresentados à outra variante keynesiana de milagre, mesmo que por um período muito mais curto do que os "dias felizes" da expansão do pós-guerra. Neste sentido, os apologistas do capital continuam a lembrar-nos a frase que verdadeiramente "não há alternativa". Mas esperar pela restauração da saúde do capital ao seu estado vigoroso anterior pela acção de qualquer um dos dois, ou realmente os dois juntos, é — ao lado do fiat de "sanidade" — outro notável exemplo da perigosa doce ilusão que domina a nossa vida sócio-económica na actualidade. (retornar ao texto)

(19) Imagine o governo, na sua sabedoria, a montar um grupo de trabalho de peritos cuja tarefa seria inventar um sistema para dar má fama à privatização. O primeiro passo seria transferir o monopólio dos serviços públicos para o sector privado com um mínimo de competição e, pelos primeiros cinco anos, um regime de preços muito generoso. O segundo passo seria designar reguladores que, tendo permitido a esses serviços públicos amealhar uma enorme base de lucros, se inclinariam mais para os interesses accionistas que dos clientes ao decidir a estrutura de preços da indústria. O terceiro passo, vital, seria permitir aos directores e presidentes destes serviços privatizados confirmarem que tais indústrias monopolistas negociam com dinheiro do Banco Imobiliário, pagando a si próprios enormes salários, opções em acções e aposentadorias privilegiadas. Não importa que muitas destas pessoas não tenham sequer um único osso empresarial nos seus corpos. Não importa que a maioria nunca sequer tenha assumido um risco em suas vidas. Elas parecem ser motivadas pelo lema do filme Wall Street, de 1980. 'A ambição é boa'. O governo, então, não teria nenhuma necessidade de um tal grupo de trabalho. O sistema já existente cumpre muito bem esta tarefa." Se alguém pensa que esta citação vem de uma publicação socialista pequena, prepare-se para uma grande surpresa, pois ela foi retirada do artigo editorial — sob o título "Privatization is now a dirty word" (Privatização é agora um palavrão), que apareceu em 14 de Agosto de 1994 no jornal conservador britânico de maior circulação, The Sunday Times. De facto o editorial termina com um lamento: "Este jornal apoia a privatização. Nós não temos nada com aqueles que criticam os ganhos financeiros que se concedem àqueles que exibem genuína iniciativa. Infelizmente, o governo fez tudo muito fácil para que o nome de privatização, respeitado no passado fosse arrastado em infâmia". (retornar ao texto)

(20) "Burden of opposition", The Times, 1 de Agosto de 1995. (retornar ao texto)

(21) Hegel, The Philosophy of Right, p. 201. (retornar ao texto)

(22) Robert Taylor, "Blow for unions in derecognition case", Financial Times, 17 de Março de 1995. (retornar ao texto)

(23) Id., ibid. (retornar ao texto)

(24) Attila József, Eszmélet ("Consciência" ou, mais precisamente. "Tomada de consciência") (retornar ao texto)

(25) Rousseau, The Social Contract, Everyman Edition, p. 78 (ed. bras. O contrato social, S. Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 108). (retornar ao texto)

(26) Id., ibid., p. 79. (ed. bras. op. cit., p. 109). (retornar ao texto)

(27) ld., ibid., p. 42. (ed. bras., op. cit., p. 66). (retornar ao texto)

(28) Hugo Chávez Frias, Pueblo, Sufragio y Democracia, Yara, Ediciones, MBR-200, 1003, pp.5-6 (retornar ao texto)

(29) Id., ibid., p. 9. (retornar ao texto)

(30) Id, ibid, p. 11 (retornar ao texto)

(31) Id., ibid., pp. 8-11. (retornar ao texto)

(32) Id., ibid., p. 9. (retornar ao texto)

(33) Ver Norberto Bobbio: Política e cultura, Einaudi, Torino, 1955. De Hobbes a Marx, Napoli, Morano Editore, 1965. Saggi sulla scienza política in Italia, Roma & Bati, Editori Laterza, 1971. Quale Socialismo? Discussione di un'alternativa, Torino, Einaudi, 1976. Dalla strutura alla funzione: Nuovi studi di teoria del diritto, Milão, Edizioni di Comunitá, 1977; The future of democracy: a defense of the rules of the game, Oxford, Polity Press, 1987. (retornar ao texto)

(34) Nas palavras de Bobbio: "Actualmente estão em primeiro plano não só os direitos à liberdade, ou o direito ao trabalho e à segurança social, como também, por exemplo, o direito da humanidade actual, e ainda das gerações futuras, a viver num ambiente não contaminado, o direito à procriação auto-regulada, o direito à privacidade diante da possibilidade que hoje o Estado tem de saber exactamente tudo o que fizemos. Além disso, queria assinalar a gravíssima ameaça à conservação do património genético gerada pelo progresso técnico da biologia, ameaça à qual não se poderá responder senão pelo estabelecimento de novos direitos", Bobbio. " Nuevas fronteras de la izquierda ", in: Leviatán, n.º 47, Madrid, 1992, apud Lozano, Gabriel Vargas, Más allá del derrumbe: Socialismo y democracia en la crisis de civilización contemporánea, México & Madrid, Siglo XXI Editores, 1994, p. 117. Atentar especialmente nos capítulos 'Opciones despois del derrumbe" e "El socialismo liberal" para os inteligentes comentários do autor sobre o trabalho de Bobbio. (retornar ao texto)

(35) Peter Keller. "Blair can reinvent socialism — if he finds the right words", The Sunday Times, 9 de Outubro de 1994. (retornar ao texto)

(36) "Harold Macmillan at 85: An interview", The Listener, 8 de Fevereiro de 1979. p. 209. (retornar ao texto)

(37) James Dale Davidson é criador e presidente da "União Nacional dos Contribuintes", organização de direita "e a força dirigente da Convenção Constitucional para o equilíbrio do orçamento", de acordo com a publicidade enfática do seu livro citado a seguir. O seu sucesso em equilibrar o orçamento dos Estados Unidos também é uma boa medida da qualidade das suas teorias. (retornar ao texto)

(38) James Dale Davidson e Sir (agora Lord) William e Rees-Mogg, Blood in the streets: investment profits in a World Gone Mad, Londres, Sidgwick & Jackson, 1988. pp. 156-7. O título do livro refere-se a um famoso ditado do barão Nathan Rothschild: "A época de comprar é quando o sangue corre nas ruas". (retornar ao texto)

(39) Id., ibid., p. 157. (retornar ao texto)

(40) Ver Noam Chomsky, "The responsibility of Intellectuals", in The Dissenting Academy, Nova Iorque, Theodore Roszak, Random House, 1967,-e Harmondsworth, Penguin Books, 1969. (retornar ao texto)

(41) Philip Basset, "Labour shows it means to do business with business", The Times, 7 de Abril de 1995. Blair fez esta confissão, de estar na chefia do partido das empresas inglesas, durante uma festa perante a Conferência Feminina Trabalhista em Derby no 1.º de Abril de 1995. (retornar ao texto)

(42) ld., ibid., A "Comissão sobre Políticas Públicas e Negócios Britânicos", recentemente inaugurada pelo Partido Trabalhista, como nos informa o artigo de Phillip Basset do Times, incluirá entre uma pletora de luminares: David Sainsbury, líder do grupo de supermercados (o conselheiro de Yeltsin), professor Richard Layard da London School of Economics, e Sir Christopher Harding, ex-presidente da British Nuclear Fuels e, por vinte anos, director da Hanson, um dos maiores contribuintes do Partido Conservador e mais activos sustentáculos dos empresários". (retornar ao texto)

(43) "O presidente Mandela deu ontem um importante impulso à multimilionária e crescente indústria de armamentos da África do Sul oferecendo-lhe, pela primeira vez publicamente, a sua bênção pessoal … O endosso público foi bem recebido pelos fabricantes de armas da África do Sul, que acreditam que o seu apoio os ajudará a assegurar transacções futuras. Abba Omar, falando em nome da Armscor, a agência bélica estatal, disse: "O presidente deu pela primeira vez inequivocamente o seu apoio à indústria de armamentos. Não é exagero dizer o quanto este seu selo de aprovação nos é importante"" (Inigo Gilmore, "Mandela applauds South Africa's rising arms trade", The Times, 23 de Novembro de 1994). (retornar ao texto)

(44) MECW, vol. 34, p. 460. Itálicos de Marx. (retornar ao texto)

(45) Id. Ibid., p. 457. Itálicos de Marx. (retornar ao texto)

(46) Id.. ibid., p. 456. Itálicos de Marx. (retornar ao texto)

(47) Id., ibid., p. 457. Maiúsculas e itálicos de Marx. (retornar ao texto)

(48) Rosa Luxemburgo, "Organizational questions of the "Russian Social Democracy"", publicado sob o título "Leninism or Marxism?", em The Russian Revolution and Leninism or Marxism, introdução de Bertram D. Wolfe, The University of Michigan Press, Ann Arbor, 1970, p. 98. (retornar ao texto)

(NT) "Whip" é chicote ou, também, um membro de um partido que, no parlamento, é responsável pela disciplina partidária, desde a comparência às votações e comissões até ao voto de cada parlamentar nas questões em disputa; "three line" refere-se ao ritual de controlo que ocorre no interior do parlamento inglês (N.T.). (retornar ao texto)

Inclusão: 29/12/2021