O desafio do desenvolvimento sustentável e a cultura da igualdade substantiva

István Mészáros

10-13 julho de 2001


Primeira Edição: Conferência dada na Cimeira dos 'Parlamentos Latino-Americanos' sobre a “dívida social e integração latino-americana”, em Caracas, 10-13/Jul/2001. O texto original da conferência encontra-se em http://www.monthlyreview.org

Fonte: http://resistir.info

Tradução: Paulo Maurício

HTML: Fernando Araújo.


1

Duas proposições intimamente ligadas estão no centro desta intervenção: se o desenvolvimento no futuro não é desenvolvimento sustentável não existirá nenhum desenvolvimento significativo, não importando o quanto ele é urgente; apenas tentativas frustradas para realizar a quadratura do circulo, como as realizadas nas últimas décadas, marcadas por ainda maiores inapreensíveis teorias e práticas de “modernização”, condescendentemente prescritas para o chamado Terceiro Mundo pelos porta-vozes das antigas potências coloniais. Como corolário temos que a busca do desenvolvimento sustentável é inseparável da progressiva realização da igualdade substantiva . Deve também ser sublinhado neste contexto que os obstáculos a superar dificilmente poderiam ser maiores. Visto que até aos nossos dias a cultura da desigualdade substantiva permanece dominante, apesar dos usuais esforços indiferentes para contrariar o impacto devastador da desigualdade social pela institucionalização de alguns mecanismos de estritamente formal igualdade na esfera política.

Bem podemos colocar a questão: o que aconteceu no decurso subsequente do desenvolvimento histórico às nobres ideias proclamadas ao tempo da Revolução Francesa de liberdade , fraternidade e igualdade , e genuinamente defendidas por muitos durante muitos anos? Porque foram descartadas em conjunto, frequentemente com não dissimulado desprezo a fraternidade e a igualdade com a liberdade reduzida ao frágil esqueleto do “democrático direito a votar,” exercida por um número de pessoas cada vez mais cépticas e diminutas nos países que se descrevem a eles próprios como “o modelo da democracia”? E isso está longe de constituir todas as más notícias. Pois, como a história do século XX amplamente demonstra, mesmo as fracas medidas de igualdade formal são frequentemente consideradas como insuportáveis luxos para serem praticados, ou abertamente perseguidos por intervenções ditatoriais.

Após mais de um século de promessas de eliminação, ou pelo menos, de redução, a desigualdade através da “taxa progressiva” e de outras medidas, (desse modo assegurando as condições de viabilidade social do desenvolvimento), a realidade é de uma ainda maior desigualdade. O fosso tem aumentado não apenas entre o “norte desenvolvido” e o “sul subdesenvolvido” mas também no interior dos países capitalistas avançados. Um recente relatório do Congresso norte-americano (que não pode ser acusado de “inclinação para o campo da esquerda”) admitiu que os ganhos de 1 por cento da população norte-americana excedem agora os de 40 por cento das camadas mais desfavorecidas; número que nas últimas duas décadas duplicou em “apenas” 20%, escandaloso como é, mesmo no seu número mais baixo. Estes desenvolvimentos regressivos caminharam de par com a falsa oposição entre “igualdade de resultados” e “igualdade de oportunidades”, e depois mesmo votado ao abandono com a adulação da (nunca realizada) ideia de “igualdade de oportunidades”. Este resultado não pode ser considerado surpreendente. Por uma vez o “resultado” socialmente desafiante é arbitrariamente eliminado do quadro e substituído pela “oportunidade”, sendo esta ultima desprovida de todo o conteúdo. O termo totalmente vazio de resultados (e pior: negação de resultados ), “igualdade” é volvido numa justificação ideológica da negação prática efectiva de todas as reais oportunidades de todos os que delas precisam.

Houve um tempo em que os pensadores progressistas da ascendente burguesia previram optimisticamente que a dominação de um ser humano por outro seria recordado no futuro como um sonho mau. Henry Home, uma grande figura da histórica escola escocesa do Iluminismo, vaticinou que “ a Razão, reassumindo a sua autoridade soberana, banirá toda a perseguição, e no próximo século será pensado como estranho que a perseguição tivesse prevalecido entre os seres humanos. Talvez seja mesmo posto em dúvida se alguma vez ela foi realmente colocada em prática”.

Ironicamente, à luz em que as coisas se tornaram, o que parece difícil de acreditar é que os representantes intelectuais da burguesia ascendente alguma vez possam ter raciocinado nestes termos. Um gigante do Iluminismo francês do século XVIII, Denis Diderot, não hesitou em fazer a afirmação radical, “ se o trabalhador diário é miserável a nação é miserável”. Igualmente Rousseau, com extremo radicalismo e cortante sarcasmo, descreveu a ordem prevalecente de dominação e subordinação social deste modo: o homem pode ser resumido em poucas palavras: ”Tu precisas de mim, porque eu sou rico e tu és pobre. Chegamos então a um acordo. Eu te permitirei ter a honra de me servires, com a condição de me outorgares o pouco que te sobra em troca do sofrimento que terei ao te dirigir.”

No mesmo espírito progressista, o grande filósofo italiano Giambattista Vico insistiu que o culminar do desenvolvimento histórico é “a idade do homem na qual todos se reconhecem como iguais na natureza humana”. E muito tempo antes Thomas Munzer, o lider Anabaptista da revolução camponesa alemã prega no seu panfleto contra Lutero a causa fundamental do avanço do mal social em termos muito tangíveis, diagnosticando-o como o culto da vendibilidade e alienação. Ele conclui o seu discurso dizendo o quanto intolerável era “que todas as criaturas possam ser transformadas em propriedade – os peixes na agua, os pássaros no ar, as plantas na terra.” Isto constituiu uma perspicaz identificação do que foi o desenrolar em todo o seu poder do curso da história nos três séculos seguintes. Como convém à realização paradoxal das antecipações utópicas prematuras, ela oferece, do ponto de vista vantajoso de um capitalismo muito menos estruturado em início de desenvolvimento, uma visão muito mais clara dos perigos que se aproximam do que o que se torna visível para os participantes directamente envolvidos nas fases mais avançadas. Por uma vez a tendência social da vendibilidade universal triunfa em sintonia com a interna necessidade de formação social do capital, o que aparece a Munzer como uma violação grosseira da ordem natural das coisas (e, como sabemos, em ultima instância, coloca em perigo a própria existência da humanidade), parece agora natural, inalterável, e aceitável aos pensadores que incondicionalmente se identificam com a ordem social historicamente desenvolvida (e em principio passível de remoção) dos constrangimentos do capital.

Portanto muita coisa se torna opaca e ofuscada pela alteração do ponto histórico em que vemos a história. Mesmo o termo crucial de “liberdade” sofre uma redução ao seu núcleo alienado. Em oposição às restrições políticas da ordem feudal a liberdade é saudada como a conquista do “poder de livremente nos vendermos”, através do pretenso “contracto entre iguais”, enquanto a sepultura material dos constrangimentos sociais da nova ordem são ignorados e mesmo idealizados. Por consequência, o significado original tanto da liberdade como da igualdade é alterado em determinações abstractas e auto sustentadas, tornando a ideia de fraternidade – o terceiro membro de uma nobre aspiração então proclamada – completamente redundante de facto.

2

É o espírito de alienação que deve ser agora confrontado, a menos que estejamos dispostos a resignar-nos à aceitação do status quo e com ele à perspectiva de uma contínua paralisação social e autodestruição final do Homem. Aqueles que são os beneficiários do sistema dominante de desigualdades gritantes entre partes do mundo “desenvolvidas” e “subdesenvolvidas”, não hesitam em impor, com o maior cinismo, as consequências da sua irresponsabilidade ao resto do mundo (como recentemente fizeram ao demarcarem-se do Protocolo de Kyoto e de outros imperativos ambientais). Isto é justificado pela insistência de que os países do “Sul” devam permanecer presos ao seu actual nível de desenvolvimento, de outro modo iriam sofrer de um tratamento “iniquamente preferencial”. Aqui as potências dominantes têm o descaramento de falar em nome da igualdade! Em simultâneo aqueles que beneficiam do sistema recusam ver que a divisão “Norte/Sul” é a maior deficiência estrutural de todo o sistema, afectando cada país, mesmo os deles próprios, mesmo se no momento presente de uma forma menos extrema do que os chamados países do Terceiro-Mundo. Não obstante, a tendência em questão está longe de ser animadora mesmo para os países capitalistas mais avançados. Como ilustração podemos lembrar o alarmante crescimento de crianças pobres na Grã-Bretanha: nas últimas duas décadas, de acordo com as mais recentes estatísticas, o número de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza foi multiplicado por três , e continua a aumentar todos os anos.

A dificuldade para nós é que ver estes assuntos numa perspectiva de curto prazo , como os organismos culturais e políticos dominantes necessariamente os colocam, trás com isso a tentação de seguir a “linha da menor resistência”, levando a nenhuma mudança significativa. O argumento associado a este modo de colocar o problema é que “os problemas resolveram-se no passado; eles estão limitados a fazer o mesmo no futuro”. Nada poderia ser mais falacioso do que esta linha de argumentação, precisamente se ela é mais conveniente para os defensores do status quo que não podem enfrentar as contradições explosivas da nossa perigosa situação a longo prazo. Todavia, como investigadores do movimento ecológico continuam a lembrar-nos, o longo prazo não é tão longo como isso, uma vez que as nuvens de uma catástrofe ambiental estão a ficar mais carregadas no horizonte. Fechar os olhos não constitui qualquer solução. Nem devemos permitir sermos enganados pela ilusão de que o perigo de confrontações militares devastadoras pertenceria ao passado, graças aos bons ofícios da “Nova Ordem Mundial”. Os perigos no que concerne a esta matéria são tão grandes como no passado, senão maiores, tendo em conta que nenhuma das contradições e antagonismos fundamentais foi resolvida com a implosão da União Soviética. Os recentes acordos do passado, e o prosseguimento aventureirista do pesadelo da “filha da guerra das estrelas,” com a mais coxa justificação possível de instalação de tais armas “contra estados párias”, representam decididos alertas a este respeito.

Durante muito tempo fomos induzidos a acreditar que todos os nossos problemas seriam felizmente resolvidos através de um “desenvolvimento” e “modernização” socialmente neutra. Era suposto que a tecnologia ultrapassasse todos os obstáculos e dificuldades. Na melhor das hipóteses esta foi uma ilusão imposta àqueles que, não possuindo qualquer papel activo nas decisões, continuaram a ter esperança de que melhorias nas suas condições de existência seriam uma realidade, como prometido. Através de uma experiência amarga eles vieram a descobrir que a panaceia tecnológica era uma evasão das contradições servida por aqueles que detêm as alavancas do controlo social. A “revolução verde” na agricultura era suposto resolver de uma vez por todas o problema da fome e da má nutrição. Em vez disso, criou corporações monstruosas como a Monsanto, incrementando o seu poder por todo o mundo de tal modo que pesticidas mais poderosos se tornam necessários para a erradicar. Ainda assim, a ideologia do remédio estritamente tecnológico continua a ser propagandeada. Recentemente, alguns governos, incluindo o inglês, começaram a falar sobre a vindoura “revolução industrial verde”, o que quer que isso possa significar. O que é claro, todavia, é que esta nova defesa da panaceia tecnológica é planeada, novamente, como uma fuga às inerradicáveis dimensões sociais e políticas dos cada vez mais intensos perigos ambientais.

Não é exagero afirmar que no nosso tempo os interesses daqueles que não podem nem imaginar uma alternativa de curto prazo à ordem estabelecida, e a uma singular projecção de correcções estritamente tecnológicas compatível com ela, colide directamente com os interesses da sobrevivência da própria humanidade. No passado, o termo mágico para julgar da saúde do nosso sistema social era crescimento , e mesmo hoje ele permanece o quadro no qual as soluções devem ser encontradas. Interrogações de que tipo de crescimento e para que fim são precisamente as que são evitadas pela glorificação incondicional do crescimento. Este é especialmente o caso já que a realidade do crescimento sem restrições sob as nossas condições de reprodução social é extremamente esbanjadora e levam à acumulação de problemas que as futuras gerações deverão enfrentar – por exemplo, um dia, elas irão ter que enfrentar as consequências da energia nuclear (pacífica e militar). Primo do crescimento, o conceito de desenvolvimento, deve também ser alvo de uma análise crítica. Em tempos ele era acolhido por todos sem hesitação, e teve grande disseminação no chamado mundo subdesenvolvido a receita norte-americana de “modernização e desenvolvimento”. Levou algum tempo até que pudesse ser percebido que existia alguma coisa fatalmente defeituosa no modelo recomendado. Pois se o modelo norte-americano – com o qual 4 por cento da população mundial gasta 25 por cento da energia e recursos estratégicos mundiais, e polui o mundo em cerca de 25 por cento – fosse seguido em todo o lado, sufocaríamos num instante. Daí a necessidade de qualificar todo o desenvolvimento futuro como desenvolvimento sustentável, de modo a construir o conceito com um conteúdo realmente factível e socialmente desejável.

3

O maior desafio do desenvolvimento sustentável, que agora devemos enfrentar, não pode ser devidamente tratado sem a remoção dos constrangimentos paralisantes de carácter adverso do nosso sistema de reprodução. Esta é a razão porque não pode ser evitada a questão da igualdade substantiva no nosso tempo como o foi no passado. Por sustentabilidade significamos o estar realmente no controlo dos processos culturais, económicos e sociais vitais através dos quais os seres humanos não só sobrevivem mas também podem encontrar satisfação, de acordo com os objectivos que colocam a si mesmos, em vez de estarem à mercê de imprevisíveis forças naturais e quase-naturais determinações sócio-económicas. A ordem social existente é edificada no antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, requerendo portanto o exercício de um controlo externo sobre todas as forças insubmissas. Adversariedade é o acompanhante necessário de tal sistema, não interessando quão elevados são os desperdícios humanos e económicos para a sua manutenção.

O imperativo de eliminação de desperdícios está claramente nos nossos horizontes como a maior exigência do desenvolvimento sustentável. A economia a longo prazo deve ir de mãos dadas com um racional e humano propósito de economia , como é próprio ao núcleo do conceito. Mas o caminho de economia racional de modo a regular o nosso processo de reprodução social na base de um controlo interno/auto-dirigido , como oposição ao externo/de-cima-para-baixo actualmente prevalecente, é radicalmente incompatível com a desigualdade estrutural e adversariedade.

Nas nossas sociedades as determinações entrincheiradas e garantes de desigualdade material são altamente reforçadas pelo modo como os indivíduos interiorizam o seu “papel na sociedade”, mais ou menos consensualmente resignando à sua categoria de subordinação aos que tomam decisões sobre as suas vidas. Esta cultura foi constituída em paralelo com a formação das novas estruturas de desigualdade do capital, sobre as fundações iníquas do passado. Houve uma interacção recíproca entre as estruturas materiais reprodutivas e a dimensão cultural, criando um círculo vicioso que prendeu a esmagadora maioria dos indivíduos no seu estritamente contido domínio de acção. Se consideramos uma alteração qualitativa para o futuro, como devemos, o papel vital do processo cultural não pode ser subestimado. Pois não pode haver uma fuga ao circulo vicioso, a menos que desenvolvamos alguma espécie de interacção – mas desta vez numa direcção emancipatória – que caracterizou o desenvolvimento social no passado. Nenhuma mudança instantânea pode ser considerada do presente – a longo prazo insustentável – modo de reprodução social para um que não mais carregue tendências destrutivas intrínsecas. O sucesso requer a constituição de uma cultura de igualdade substancial , com o envolvimento activo de todos, e a consciência da nossa própria partilha de responsabilidade implícita na operação de um tal modo de tomada de decisões sem-adversariedade.

Compreensivelmente, mesmo os maiores e mais iluminados pensadores da burguesia ascendente, como filhos do seu tempo e classe, estavam implicados na criação da longamente estabelecida cultura de desigualdade substantiva. Deixem-me ilustrar este ponto com a luta de Goethe com o significado da fantasia de Fausto, pretendendo representar a busca da humanidade na realização do seu destino. Como sabemos, de acordo com o pacto do insatisfeito Fausto com o Diabo, ele está a um passo de perder a sua aposta (e a sua alma) no momento em que encontra realização e satisfação na vida. E é deste modo que esse momento é saudado por Fausto:

Visse eu esse bulício efervescente,
P'ra solo livre pisar com livre gente!
A um momento tal então diria:
Suspende-te, tu que és tão belo!
O rasto dos trabalhos e dos dias,
Nem eternidades podem apagá-lo. –
No antegozo de tão feliz evento
Desfruto agora do supremo momento.

No entanto, com suprema ironia, Goethe mostra que o grande entusiasmo de Fausto está deslocado. Pois o que ele saúda como o grande trabalho de conquista de terra aos pântanos é os Lémures cavando a sua sepultura. E apenas uma intervenção celeste pode, no fim, salvar Fausto, resgatando a sua alma das garras do Diabo. A grandeza de Goethe é evidente na forma como indica o porquê da busca de Fausto ter que acabar em ironia e insolúvel ambiguidade, mesmo se Goethe não se pôde distanciar da visão do mundo do seu herói, apanhado pela concepção de “desigualdade iluminada”. Este é a súmula da visão faustiana:

Apresso-me a dar corpo ao que pensei ,
a voz do amo efeito produz.
Erguei-vos todos, escravos, trabalhai!
Fazei que se veja o que imaginei.
Tomai a ferramenta, enxada, pá!
O planeado tem de ser feito, e já.
A clara ordem, o esforço sem detença,
Merecem a mais bela recompensa;
E se queres consumar a obra ingente,
Para mil braços é bastante uma mente.

Claramente a consigna da esmagadora maioria da humanidade para desempenhar o papel de “mãos”, pedir que “Tomai a ferramenta, enchada, pá!” ao serviço de “uma mente”, e obedecer “a voz do amo” respeitando “A clara ordem, o esforço sem detença”, é absolutamente insustentável a longo prazo, não importando o quanto faz lembrar o actual estado das coisas. Como podemos considerar os seres humanos confinados a tal papel de “P'ra solo livre pisar com livre gente!”? As instruções dadas por Fausto ao capataz sobre o modo de controlar os trabalhadores levam directamente às actuais formas, reflectindo o mesmo espírito insuportável:

- Como puderes,
Contrata-me trabalhadores,
Prende-os com chicote ou favores,
Força-os, e paga o que quiseres!
Quero notícias dia a dia, e a tempo,
De como vai a escavação do campo.

E que significado podemos nós dar ao “grande plano em favor da humanidade” de Fausto quando sabemos que a ordem social do capital é radicalmente incompatível com o planeamento necessário para a própria sobrevivência da humanidade? Como Mefistófeles descreve a perspectiva que se nos apresenta com brutal realismo:

De que serve tanta coisa criada?
O que se cria desfaz-se logo em nada!
«Acabou-se!» Qual é disto o sentido?

Os “ mil braços ” ao serviço de “ uma mente ” não nos oferece, obviamente, nenhuma solução. Nem o místico coro de anjos na última cena do Fausto de Goethe a contrariar a ameaça de Mefistófeles de “ O que se cria desfaz-se logo em nada!(1)

Num tempo diferente Balzac, numa das suas grandes novelas, Melmoth Reconciled, retoma o tema de Fausto, socorrendo de um modo muito diferente Melmoth/Fausto – que, graças ao seu pacto com o diabo, goza de uma saúde ilimitada ao longo da sua vida. Neste caso não há necessidade de intervenção divina. Pelo contrário, a solução é oferecida com extrema ironia e sarcasmo. Melmoth com muita habilidade salva a sua própria alma – quando sente a morte a aproximar-se e quer romper o pacto com o diabo – ao realizar um acordo com outro homem, Castanier, em apuros por desfalque, trocando a sua alma em perigo com este, que não hesita em entrar no negócio que lhe confere saúde ilimitada. E a garantia de Castanier, quando por sua vez chega à ideia de como se escapar do ultimo problema, é através da obtenção de uma outra alma em troca da sua, comprometida com o diabo, continuando de um modo intricado o sarcasmo de Balzac, o que nos leva até ao profético diagnóstico de Thomas Munzer da alienação usurpadora. Castanier dirige-se ao mercado de títulos, absolutamente convencido que terá êxito em encontrar alguém cuja alma possa obter em troca da dele, dizendo que no mercado de títulos “ mesmo o Espírito Santo tem a sua cotação (O Banco do Espírito Santo do Vaticano na lista dos grandes bancos).

No entanto, é suficiente seguir, nem que seja por uns dias os distúrbios dos mercados de títulos de modo a apercebermos que a solução de Melmoth/Castanier não é mais realista hoje do que a intervenção celestial de Goethe. O nosso desafio histórico de obtenção de condições de um desenvolvimento sustentável deve ser resolvido de um modo muito diferente.

Desprender-nos da cultura da desigualdade substantiva e progressivamente substitui-la por uma alternativa viável é o caminho que necessitamos seguir.


Notas de rodapé:

(1) do “Fausto” de Goethe, tradução portuguesa por João Barrento, Ed. Circulo de Leitores, 1999. (retornar ao texto)

Inclusão: 29/12/2021