No documento abaixo, fica evidente aquilo que o filme de Helder Martins omitiu: Padre Cícero foi um homem político de posições bastante controvertidas
A carta que transcrevemos em seguida, da autoria do padre Cícero Romão Batista, enviada ao então senador Epitácio Pessoa é um documento importante porque mostra as suas preocupações, já naquele tempo, pela ocupação do Amazonas por empresas estrangeiras que, a partir daí, iniciaram um trabalho sistemático de penetração no nosso território. Acontecimentos recentes mostraram como os seus temores tinham fundamento.
Certamente, há, na forma como o autor expressa o seu pensamento, algumas incompreensões quanto a certas particularidades dos interesses em jogo, referindo-se inclusive, ao perigo de elementos da raça amarela também se apoderarem de trechos do território amazonense. A confusão é evidente. Deixou-se envolver pela terminologia em voga no tempo, quando havia uma campanha sistemática contra a vinda de colonos japoneses para o Brasil. Mas, pelo teor da carta, vê-se perfeitamente que ele não se dirigia ao colono japonês que vinha para o nosso país trabalhar na lavoura, mas às grandes companhias que representavam o expansionismo do capitalismo japonês que entrava agressivamente na América Latina. E, no particular, o padre Cícero infelizmente tinha razão. A sua carta-denúncia é de dezembro de 1927. Em 25 de novembro de 1928 - pouco antes de um ano, portanto - o “diário Oficial” do Estado do Pará publicava os termos de uma concessão feita pelo governo daquele Estado ao japonês Hachiro Fukuhara, que por sua vez, representava a Companhia Nipônica de Plantação do Brasil S/A, nas seguintes proporções: um milhão e trinta mil hectares, sendo 400.000 no município de Monte Alegre, 600.000 no de Acará, 10.000 no de Marabá, 10.000 no de Conceição do Araguaia, 10.000 na Estrada de Ferro de Bragança.
Entre as suas cláusulas reguladoras figuravam as seguintes: a) utilização (por parte dos concessionários japoneses) das quedas d’água existentes dentro da concessão; b) direito de pedir desapropriação de terras, situadas fora da concessão, para efeito de utilizar-se de força hidráulica nelas existentes; c) direito de fazer a navegação dos rios Acará, Tocantins e Amazonas e outros que lhe vierem, de construir armazéns, docas, melhoramentos em portos nas terras concedidas; d) construir e manter nas terras concedidas ou nas cidades de Monte Alegre e Acará ou noutro local conveniente as fábricas ou instalações que lhe convierem, para beneficiamento ou preparo dos produtos das terras da concessão, podendo, entretanto, exportar os ditos produtos em bruto, manufaturados ou beneficiados, qualquer que seja a natureza destes produtos, tanto agrícolas como minerais e outros; e) criar estabelecimentos bancários e efetuar todas as operações desta natureza; f) - construir e manter o serviço de comunicações telegráficas; g) - isenção de todos os impostos, taxas e contribuições de qualquer origem, natureza ou denominação que sejam, durante 50 anos; h) - direito de pesquisas minerais; i) - adotar arbitramento para qualquer solução de qualquer divergência com o Governo do Estado; j) - direito de comprar terras do Estado e incorporá-las a fim de gozar dos mesmos favores; k) - O concessionário poderá por conta própria, executar a construção de estradas de ferro, rodagem, campo de aviação e meio de transporte aéreo, por aparelho de qualquer natureza e l) - O concessionário poderá instalar núcleos de povoações com polícia de segurança, defesa contra incêndio, podendo adotar o plano de regras que melhor lhe convier para construção ou edificação desses núcleos.
O padre podia não ser profeta, como alguns ainda acreditam, mas tinha muita sensibilidade e visão dos acontecimentos.
A CARTA
Juazeiro, 3/12/1927
Endereçando esta epístola a V. Exma., faço-o colimando com um objetivo e quero apelar, em nome de Deus e de nossa pátria, para o nunca desmentido patriotismo de V. Exma., assaz demonstrado nas conjunturas mais difíceis da política brasileira no sentido de, dado o alto prestígio de que dispõe, por embargo a que, sob vários pretextos, se esteja retalhando o território de nossa cara pátria, vendendo ou fazendo concessões de suas terras a sindicatos estrangeiros. Rogo a V. Exma., que se digne a empregar todos os seus esforços no Senado, no sentido de que se legisle sobre o assunto, proibindo terminantemente negociações desta ordem, lesivas à integridade territorial da nossa pátria.
Outrossim: que as concessões já feitas sofram as restrições que se façam necessárias no sentido de se evitar possíveis desentendimentos internacionais. Este meu sentir é também o de todos os nossos concidadãos que amam, que se interessam, que desejam ver o Brasil marchar, sob todos os pontos de vista, na vanguarda das nações. Precisamos de um nacionalismo inteligente, sadio, sem embargos de espírito de cordialidade, de fraternidade mesmo, que deve existir entre as Nações, unindo os povos, mas respeitando-se a integridade territorial de cada país, que os seus filhos receberam dos antepassados e devem transmitir intata às gerações vindouras.
A maneira por que, entretanto, está sendo orientada a nossa política, permitindo a qualificação de verdadeiras colônias estrangeiras - outras tantas pátrias futuras, talvez dentro do nosso caro Brasil - está exigindo que as vistas dos verdadeiros estadistas, notadamente as de V. Exma., o seu maior expoente, se voltem para o estudo desses casos, evitando possíveis complicações internacionais num futuro não muito remoto. A exploração das nossas florestas, do nosso solo, das nossas minas, e enfim, de todas as riquezas de nossa Pátria, pertencem aos brasileiros e aos seus governos que trabalham e querem o seu engrandecimento. Mais moço, tudo envidaria no sentido de evitar o predomínio do estrangeiro no comércio e na indústria de nosso país, com supremacia sobre nossas terras, por entender descabida, criminosa esta situação singular de estrangeiros emigrados para a nossa cara Pátria.
Em vez de concessões, aforamentos e vendas de terras brasileiras a americanos, japoneses e ingleses, melhor seria que o Governo fizesse arrendamentos de terras a serem cultivadas com prazos mais ou menos longos, de acordo com as indústrias a serem exploradas, mas nunca alienação de nossas terras, feitas a sindicatos de qualquer nacionalidade. Essas concessões são impatrióticas e poderão concorrer como já disse, ou dar lugar a complicações diplomáticas, sempre perigosas e inconvenientes. Neste sentido acabo de expedir um cabograma aos Exmos Srs. Presidente da República, do Senado e da Câmara, para o qual tomo a liberdade de chamar a atenção do culto espírito de V. Exma, pedindo mais uma vez o seu valioso apoio para a ideia que externo no mesmo despacho, assim expresso: “Posto que no declínio da existência, vem sendo a última etapa que a Providência aprouve limitar para os meus dias terrenos, sou levado, não só como brasileiro, porém, também como político que veio do Império para o regime republicano ao qual tenho servido sem desfalecimento, e ainda é principalmente como sacerdote católico que desejo uma Pátria forte e unida, a protestar com veemência contra a indébita concessão de terras brasileiras, sob capciosos fundamentos, porém virtualmente lesivos aos interesses pátrios, constituindo um atentado criminoso à integridade territorial do nosso Brasil. Ontem, era a cessão da grande faixa de terra à Bolívia, no Amazonas, território incorporado ao país, graças ao civismo do cearense e à alta visão diplomática de Rio Branco; hoje, é a concessão de 100 mil quilômetros quadrados feita pela companhia da Estrada de Ferro Norte-Mato Grosso a um sindicato americano, isto com aquiescência da nossa chancelaria e à revelia do Congresso Nacional, e, finalmente, a vasta extensão, ainda no Amazonas, de terras vendidas ao capitalista americano Ford. Até à raça amarela, os japoneses, já se pretende vender ou fazer concessões de terras brasileiras. Sangra-me o coração - pois nele ainda sinto acesa a chama do patriotismo e comigo está a maioria dos brasileiros - ver o plano inclinado a que estão arrastando o Brasil na vertigem da insânia. Parafraseando Clemenceau, acho que o Brasil também tem filhos que não permitirão sejam postas em leilão e retalhos suas terras. Seria medida de alto alcance se o Congresso Nacional, ainda este ano, votasse uma lei vedando concessão desta natureza, porque fatos desta ordem, desagregando a nação, fermentam o espírito da revolta, dando lugar à guerra civil, único meio, triste aliás, para as grandes reivindicações. Salvemos a nossa cara terra. Salvemos o Brasil.”
Termina aí, Exmo. Sr. Senador, o carbograma que passei e a que me referi acima. Espero e confio que V. Exma., o homem político para o qual se voltam as esperanças do Brasil, tudo fará para fazer cessar esses abusos, que estão concorrendo para tornar a República mal vista por nossos concidadãos. Aguardo a honrosa resposta, e subscrevo-me de V. Exmo, patrício, atento amigo e admirador.
Cícero Romão