Declaração do Partido Comunista do Kampuchea (PCK) para o Partido Comunista dos Trabalhadores da Dinamarca

Nuon Chea

Julho de 1978

Tradução autorizada

Documentation Center of Cambodia (DC-Cam)

Origem: discurso do Vice-Secretário do Partido Comunista do Kampuchea, Nuon Chea, em julho de 1978.

Fonte para a tradução: Documentation Center of Cambodia.

Tradução: Rick Magalhães de Sá.

HTML: João Batalha.

Direitos de Reprodução: © Todos os direitos reservados pelo Documentation Center of Cambodia (DC-Cam). A tradução da obra para o Arquivo Marxista na Internet foi autorizada pela organização em novembro de 2025.


Nota da edição

Essa declaração foi feita oralmente em duas partes, nos dias 30 e 31 de julho de 1978. Foi recebida por Peter Bischoff, chefe da delegação visitante e, na época, membro do Politburo Político do Comitê Central do Partido Comunista dos Trabalhadores da Dinamarca. Ele não é mais membro do Partido. A visita ao Kampuchea foi organizada pelo Partido dinamarquês com o objetivo de obter informações sobre as condições do pós-guerra e as políticas do partido governante. O Partido Comunista dos Trabalhadores da Dinamarca não tinha então (e, como resultado dessa visita, ainda não tem) relações partidárias com o PCK. Nuon Chea discursou para a delegação em Khmer, idioma nacional do Kampuchea. Suas observações foram traduzidas para o inglês por Ngo Pin, intérprete oficial do Kampuchea Democrático [Nota: Ngo Pin atualmente trabalha para o Governo Real do Camboja com o cargo de Secretário de Estado para o Planejamento], e transcritas integralmente em dinamarquês por Peta Bischoff. O texto a seguir foi retraduzido para o inglês por Peter Bischoff e editado, resumido e anotado por Laura Summers.

Em nome do Partido Comunista do Kampuchea, eu gostaria de expressar nossa profunda gratidão pela sua visita ao Kampuchea. É uma grande honra e uma fonte de encorajamento para nós tê-lo aqui...

I. Sobre a construção do Partido (1960 – 1967)

Desde o início acreditamos que era necessário ter um partido liderado pela classe trabalhadora e basear-nos nas contradições da sociedade cambojana. Naquele período, isso é, em 1960, a sociedade cambojana era neocolonial e semifeudal. A contradição entre a nação cambojana e o imperialismo americano era muito acentuada. Essa era a contradição externa. Quanto à contradição interna, ela se dava, por um lado, entre a classe trabalhadora e os capitalistas e, por outro, entre os camponeses pobres da classe feudal. Naquele tempo, capitalistas e reacionários oprimiam juntamente o nosso povo.

Com base nessas contradições, o partido definiu suas tarefas revolucionárias: realizar a revolução nacional-democrática; combater o imperialismo americano e a classe feudal; libertar a nação cambojana e a classe camponesa pobre. Foi estabelecida, assim, essa linha estratégica para a revolução nacional-democrática:

(1) O partido que conduzisse a revolução deveria ser um partido da classe trabalhadora. Deveria dirigir a revolução diretamente, sem permitir que outras classes assumissem a liderança – nem da revolução, nem do próprio partido. O partido tinha que definir as forças da revolução: em primeiro lugar, as forças estratégicas, e em segundo lugar, as forças táticas.

(2) As forças estratégicas eram os operários, os camponeses e uma parte da pequena burguesia. Desses, consideramos a classe operária como a classe fundamental, enquanto a pequena burguesia era equivalente a uma força aliada. Os capitalistas nacionais eram forças suplementares. Além disso, considerávamos algumas personalidades de alto escalão dentro da classe dominante – alguns grandes capitalistas, funcionários do serviço civil e do governo, e alguns monges budistas – também como forças suplementares. Essas pessoas precisavam possuir uma visão patriótica, progressista e nacional; isto é, progressistas em relação aos reacionários.

Com base nessa classificação de forças, tentamos construir uma frente democrática nacional com o objetivo de combater o imperialismo americano e seus lacaios. Gostaríamos de enfatizar que todas essas forças dependiam da liderança da classe trabalhadora e do partido.

(3) Nosso partido adotou duas formas de luta: a luta política e a luta armada. Ambas estão inter-relacionadas. A luta política foi conduzida tanto por meios legais quanto ilegais, sendo a forma ilegal a base fundamental de nossa ação hoje. Hoje, combatemos de maneira aberta e clandestina, tendo a luta secreta como o alicerce de nossa resistência. Definimos essas formas de combate com base em nossa própria experiência: defender, expandir e consolidar nossas forças exigiu atuar dessa maneira.

(4) Travamos a luta tanto nas cidades quanto no campo.

(5) A luta no campo era a luta fundamental, especialmente nas áreas mais atrasadas e remotas. Essas eram as áreas de base.

(6) Reconhecemos que tínhamos de travar uma guerra popular, superar todos os obstáculos e fazer todos os sacrifícios para, com determinação, alcançar a vitória e lançar a ofensiva final. Decidimos nunca nos colocar na defensiva, mas sempre tomar a iniciativa.

(7) Nossa linha estratégica tinha as seguintes premissas: independência, soberania e autossuficiência. Baseava-se no direito de, com dignidade, determinar o nosso próprio destino.

(8) Nossa luta baseava-se na solidariedade internacional com todos os partidos irmãos do mundo e com todos os povos e países que se opõem ao revisionismo, ao imperialismo, ao neocolonialismo e a qualquer forma de colonialismo.

Esses princípios e práticas não são novos. Eles já foram reconhecidos em todo o mundo, mas revisamos com vocês porque refletem nossa própria experiência. Temos seguido esses princípios em nossa luta e aprendemos com eles. Essa linha foi adotada pelo primeiro congresso do nosso partido em 30 de setembro de 1960.

Gostaria de salientar que pôr essa linha em prática não foi fácil, especialmente antes de 1970. Em 1960, fomos duramente afetados pelo vigésimo congresso do partido na União Soviética. O Vietnã também se opôs à nossa linha partidária, especialmente à luta armada, assim como à nossa linha de independência, soberania e autossuficiência. Segundo os vietnamitas, deveríamos realizar a revolução nacional-democrática com base nos documentos do vigésimo congresso da União Soviética. Afirmaram ainda que não estava claro como as classes deveriam ser divididas no Kampuchea. Eles acreditavam que a classe feudal possuía uma função progressista no Kampuchea e seria capaz de fazer a revolução conosco. Além disso, acreditavam que a revolução poderia ser alcançada por meio do parlamento e com base na cooperação entre as diferentes classes. Naquela época e agora, eles viam e a ainda veem nossa linha como golpista e excessivamente à esquerda. Mas nós defendemos a linha do nosso partido. Tendo definido corretamente a linha e as atividades do partido, enviamos a maioria dos nossos quadros para trabalhar no campo. Mantivemos apenas alguns nas cidades.

Nosso exército foi construído do zero, de um pequeno núcleo a uma grande força. No início, criamos alguns corpos secretos de autodefesa e selecionamos os melhores jovens. Naquela época, quase todos os quadros precisavam desempenhar trabalhos ilegais, enquanto apenas alguns atuavam legalmente – no parlamento, na administração ou na imprensa. O trabalho legal visava mobilizar as forças populares, mas o trabalho fundamental era aquele realizado no campo e entre os trabalhadores; esse trabalho tinha que ser feito ilegalmente e em segredo. Isso significava que nossos inimigos – os imperialistas americanos, seus lacaios e as classes reacionárias – não conseguiam descobrir quem estava liderando nossa revolução. Eles sabiam os nomes de alguns camaradas, como Khieu Samphan(1). Eles pensavam que esses camaradas eram os reais líderes da revolução, mas eles não conheciam os reais líderes. E como só podiam agir contra pessoas conhecidas, a maioria dos nossos líderes puderam trabalhar em segurança.

Entre 1960 e 1967, organizamos e consolidamos muitas bases no campo. O movimento em prol da produção e contra os latifundiários era muito forte. Os camponeses confrontaram a classe dominante. Eles não tinham nada, mas usaram tudo o que podiam: pedras, facas, paus, machados. Algumas esposas de camponeses pobres participaram levando seus filhos para manifestar em frente à Assembleia Nacional. As forças revolucionárias eram muito fortes nesse período. Permitimos que os membros do nosso partido, oriundos da classe trabalhadora, fossem para lá trabalhar entre os camponeses pobres e médios.

Nas cidades, houve um movimento paralelo entre trabalhadores e estudantes. Eles exigiam que o governo cortasse ajuda norte-americana e expulsasse o embaixador dos Estados Unidos. Os manifestantes queimaram a bandeira americana em frente à embaixada(2).

- No campo, o movimento popular irrompeu. Os que passavam fome levantaram-se contra os traidores, os reacionários e os agentes da administração. O slogan era “Fazer a Revolução Nacional-Democrática”, isto é, lutar contra o imperialismo americano. O espírito patriótico estava muito acentuado. Todos sentiam que precisavam combater o imperialismo americano. Mas dividimos a luta em duas partes: a luta nacional e a luta democrática. Nesta última, entoamos slogans exigindo direitos para estudantes, operários e camponeses; salários mais altos; terras para os camponeses; melhores preços para o arroz, a coalhada de feijão e a carne; além melhores condições de vida para o povo. A luta abrangeu questões de toda ordem e envolveu todas as regiões e formas de ação. O inimigo tentou nos reprimir, mas falhou, pois lutamos tanto abertamente quanto em segredo, travando grandes e pequenas batalhas ao mesmo tempo. Dessa forma, fomos capazes de defender e fortalecer as forças revolucionárias gradualmente.

- Por meio da luta, consolidamos a liderança do partido, recrutando bons quadros entre os operários, camponeses, funcionários da administração pública, monges budistas e mulheres. Na luta, fomos capazes de forjar quadros de todas as classes sociais. Assim, as contradições em nossa sociedade se intensificaram: as contradições entre operários e capitalistas, entre camponeses e latifundiários, entre operários e funcionários do governo. O inimigo intensificou seus esforços para suprimir nosso movimento. Nessa situação, diante dessas acentuadas contradições, tivemos uma reunião do Comitê Central. Decidimos que não continuaríamos mais a luta legal e que precisávamos começar a insurgência. Isso aconteceu em janeiro de 1968.

O embaixador soviético em Phnom Penh se opôs a nós. Os soviéticos disseram que nosso partido havia enlouquecido por iniciar uma luta armada. Eles começaram a construir um novo partido voltado contra nós, reunindo pessoas que se renderam ao inimigo e que eram traidoras, oportunistas e vagabundas. O Vietnã também se opôs à nossa luta armada. Os quadros vietnamitas às escondidas, distribuindo panfletos aos nossos quadros, como o livro de Lenin, Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo. Disseram que éramos esquerdistas demais.

Dizemos isso para deixar claro que o Vietnã não nos ajudou! Muitas pessoas interpretam isso de forma equivocada. Foi nesse momento que nosso partido consolidou sua posição como independente e soberano. Percebemos que nosso caso era diferente. Precisávamos levar em conta a situação concreta para resolver nossas contradições sociais. Talvez em outros lugares fosse diferente, mas aqui era assim. Tivemos que definir nossa linha com base em nossas próprias contradições. A situação era favorável à luta armada. Como nosso partido estava unido nesse princípio e nessa linha, e como nosso povo apoiava a revolução de todo o coração, a revolta contra as classes dominantes começou em 17 das 19 províncias. Não tínhamos armas dignas de nota e não recebemos ajuda externa. Tínhamos apenas algumas carabinas capturadas dos inimigos. Às vezes tínhamos armas, mas não munição. Outras vezes, mesmo sem munição, carregávamos fuzis apenas para intimidar o inimigo. Passo a passo, conseguimos expandir nossas forças porque seguimos a linha de guerra popular do partido.

II. A Luta Armada (1968-1975)

O povo nos apoiou escondendo comida e ocultando nossas forças de guerrilha e nossos quadros. Isso ensinou nossos quadros a serem vigilantes e a seguirem a linha do partido de se unir-se às massas e confiar nelas. Nosso exército não era muito grande naquela época. Lutávamos com arcos e flechas, especialmente nas áreas de base do nordeste. Conquistamos a confiança do povo mostrando-lhes que as armas tradicionais podiam matar o inimigo. O povo então passou a acreditar na linha do partido e na revolução. O inimigo usou todo tipo de armamento, especialmente no nordeste, onde se localizava a base do nosso Comitê Central. Mas essa região era muito forte; o inimigo não pôde fazer nada contra nós. No entanto, a revolução vietnamita estava em apuros na época, porque o inimigo havia construído vilas estratégicas no Vietnã do Sul. Sem ter para onde fugir, os vietnamitas nos pediram refúgio, e o obtiveram. Isso levou ao golpe de Estado de 18 de março de 1970 no Camboja.

Os EUA procuraram destruir nossa revolução, mas, como éramos fortes, começamos a estabelecer nosso próprio poder estatal nas áreas libertadas. Obtivemos sucesso imediato em 70% das zonas rurais; se os EUA não tivessem invadido, poderíamos ter libertado todo o país em junho de 1970. Entre 1967 e 1968, muitos dizíamos que éramos ultraesquerdistas; em 1970, todos concordaram que nossa posição era correta. Todos nos seguiram. Os países socialistas e outros países do mundo nos apoiaram, o que nos permitiu prosseguir com nosso trabalho econômico, militar e internacional de forma ainda melhor do que antes. Mas gostaria de salientar que, mesmo em condições favoráveis, mantivemos em segredo a existência do nosso partido e continuamos a desenvolver a luta clandestina como tática fundamental. Dominamos a situação porque tínhamos nossas bases nas zonas rurais e porque contávamos com as forças da frente unida(3).

A princípio, não percebemos nossas contradições com o Vietnã. Sinceramente, pensávamos que os vietnamitas eram nossos amigos. Mas, ao invés de ajudar-nos, o Vietnã veio para tomar o controle de nossas forças, fortalecer suas próprias tropas e dominar nosso partido por completo. Havia muitas dificuldades. Tínhamos de lutar contra as forças americanas e de Thieu enviadas para ajudar Lon Nol, enquanto ao mesmo tempo tentavam nos apunhalar pelas costas. Nosso partido, naturalmente, decidiu resolver primeiro a principal contradição, isto é, alcançar a vitória sobre Lon Nol.

A contradição entre nós e o Vietnã se aprofundou em 1973, quando o Vietnã se uniu aos EUA na mesa de negociações. Os EUA imediatamente impuseram condições, obrigando o Vietnã a pressionar o Kampuchea a sentar-se à mesa de negociações. Eles tentaram, mas nós recusamos. Os vietnamitas, então, fizeram o possível para minar nossa revolução. Entretanto, enquanto o Vietnã e o Laos depunham as armas, os EUA mobilizaram todas as suas forças para bombardear o Kampuchea – todas as suas forças no Sudeste Asiático! – por 200 dias e 200 noites, a fim de nos forçar à mesa de negociações. Nosso partido se opôs resolutamente a se curvar perante os EUA. Se tivéssemos feito, os traidores de Lon Nol em Phnom Penh teriam ganhado tempo para fortalecer suas forças. Decidimos lutar até o fim. De todo modo, fomos capazes de resistir à guerra aérea dos EUA e, ao derrotá-la, a confiança em nossa linha partidária cresceu. Cada vez mais pessoas se convenciam de que nossa linha estava correta. Devo deixar claro que a conscientização sobre a linha do partido não surgiu da noite para o dia, nem se deu por meio de estudos teóricos. Cresceu como resultado das experiências concretas e do sofrimento do povo, bem como do ódio de classe. Foi somente através da prática que a compreensão da linha do partido se aprofundou.

Em 1974, um ano após a guerra aérea, nosso partido decidiu lançar uma grande ofensiva final para libertar Phnom Penh e todo o país da estação seca de 1975. O Vietnã foi naturalmente informado. Os vietnamitas acreditavam que os EUA não permitiriam que vencêssemos. Além disso, não estavam dispostos a aceitar que obtivéssemos a vitória antes deles. Consequentemente, recusaram-se a transportar as munições enviadas da China e de outros países, mas sobretudo da China. Tivemos que utilizar munições capturadas do inimigo; não recebemos nada do Vietnã. Os vietnamitas se opuseram à nossa vitória porque queriam libertar Saigon e, em seguida, enviar suas forças para libertar Phnom Penh, a fim de construir um aparato político aqui e criar um novo partido, eliminando assim o Partido Comunista do Kampuchea e estabelecendo uma Federação Indochinesa.

Apesar dessas condições difíceis, nosso partido fez o melhor que pôde e libertou Phnom Penh em 17 de abril de 1975, duas semanas antes da libertação de Saigon. Assim que libertamos todo o país e garantimos nossa independência e soberania — em junho de 1975 — os vietnamitas enviaram suas tropas para ocupar nossa ilha, Koh Way. Nós a defendemos e forçamos o Vietnã a recuar. O que queremos deixar claro é que, durante todo o período da revolução nacional-democrática, houve uma luta árdua e complexa, envolvendo dificuldades com a União Soviética e com o Vietnã, mas nós as superamos e conquistamos a vitória.

Pergunta: Na época da fundação do Partido Comunista, houve alguma discussão sobre a linha política para o período que antecederia o comunismo?

Está escrito no programa do nosso partido que continuaremos nossa revolução socialista e avançaremos rumo ao comunismo após a revolução nacional-democrática, mas não entramos em detalhes. Definimos as nossas tarefas atuais de construção socialista após a libertação.(4)

Nossas principais tarefas são defender o poder do nosso Estado e dar continuidade à revolução e à construção socialista. Desde a libertação, temos defendido nosso território e nossa soberania em uma luta árdua e complexa, especialmente contra o Vietnã. Acreditamos que essa luta se prolongará por muito tempo, pois o Vietnã possui ambições enormes. Pretende forçar o Kampuchea a integrar uma Federação Indochinesa e continuará a perseguir objetivos expansionistas em todo o Sudeste Asiático.

Quanto às condições de vida, basicamente resolvemos nossos problemas por meio de projetos de irrigação. Estamos acumulando capital para o desenvolvimento do nosso país com base na independência e autossuficiência.

III. Sobre a Construção Ideológica do Partido

Ter a linha política correta não bastava para garantir a vitória. Nosso partido precisava, além disso, de uma postura revolucionária firme. Isso se devia em parte ao fato de que grande parte de nossa luta era ilegal. Assim, às vezes, se nossos quadros não fossem ideologicamente comprometidos, rendiam-se ao inimigo ou, uma vez capturados, revelavam segredos. Para evitar isso, enfatizamos educação ideológica.

Durante a luta, enfrentamos muitas dificuldades. Por exemplo, quadros separados de suas famílias e sem uma firme posição ideológica às vezes decidiam voltar para junto delas e abandonar a revolução. Em outras ocasiões, alguns quadros trabalhavam clandestinamente dentro da administração inimiga e recebiam salários muito altos. Por carecerem de uma postura revolucionária sólida, acabavam sendo comprados. Assim, nosso partido pôde perceber que a ideologia era o fator-chave tanto para a implementação da linha política quanto da linha organizacional. A edificação ideológica do partido se dava de duas formas: eliminando as concepções ideológicas incorretas e consolidando as concepções ideológicas corretas do partido. Por exemplo, tivemos que:

(1) Edificar o posicionamento ideológico da classe fundamental do partido — a consciência da classe trabalhadora. Para isso, tivemos que definir as diferentes classes em nossa sociedade e as contradições entre elas. Partindo dessa base, armamos ideologicamente nossos quadros com os pontos de vista da classe trabalhadora. Isso foi feito explicando o espírito do sacrifício pelo bem coletivo e a necessidade de abandonar a propriedade privada em favor da propriedade coletiva; além de ensiná-los disciplina partidária, amor pelo trabalho do partido, métodos de autocrítica e formas de unir-se estreitamente às massas;

(2) edificar o posicionamento ideológico do patriotismo e do internacionalismo revolucionário, sendo o primeiro o posicionamento fundamental. Com isso, queremos dizer lutar energicamente para fazer nossa própria revolução, lutando com sucesso contra o imperialismo e o revisionismo em nosso país. Isso impulsiona e apoia a luta internacional. Falar apenas de internacionalismo sem fazer a revolução no próprio país não faz sentido. Temos que ser concretos quanto a isso. Ensinamos nosso povo o princípio da autossuficiência para evitar nos tornarmos um fardo para os países amigos. Embora possam querer nos ajudar, precisam fazer suas próprias revoluções e melhorar o padrão de vida do próprio povo. Portanto, buscamos ao máximo evitar ajuda externa e superar todas as formas de sofrimento sem recorrer a auxílio, a menos que seja absolutamente necessário. Por um lado, procuramos evitar sermos muito nacionalistas e, por outro, evitar sermos muito internacionalistas;

(3) edificar o posicionamento ideológico de manter constantemente o ardor revolucionário, sobretudo o desejo de ser como as pessoas comuns, em especial os camponeses pobres. É por isso que os nossos quadros do partido e nossos homens e mulheres do exército não recebem salários; são instruídos a servir o partido e a receber apenas dele. Dessa forma, evitamos criar uma nova classe dominante separada do povo;

(4) consolidar o conceito de visão voltada às massas e de linha de massas — isto é, ter plena confiança nelas e viver entre elas, em especial entre os camponeses pobres. Só assim a revolução poderá alcançar a vitória e ampliar suas forças. Enfatizamos isso aos quadros porque há alguns com origens pequeno-burguesas — especificamente intelectuais — que não possuem verdadeira confiança nas massas, sobretudo nos camponeses pobres. Procuramos fazê-los compreender que essas pessoas simples são capazes de tudo: derrotaram o inimigo, realizam trabalhos produtivos — enfim, fazem de tudo. E por serem capazes de tudo, devemos servi-las;

(5) os quadros também recebem instruções sobre vigilância revolucionária, ou seja, sobre como se manterem vigilantes contra o inimigo;

(6) Nós os munimos de uma compreensão do materialismo dialético, para que possam analisar a realidade e entender os posicionamentos ideológicos do partido.

Todos esses pontos de vista ideológicos foram difundidos nas seções e células do partido. Isso não foi feito pela leitura de documentos, mas pela análise das atividades diárias, identificando o que foi feito de errado e corrigindo as falhas.

Quanto aos nossos livros, eles têm apenas algumas páginas, pois documentos breves são mais adequados para camponeses pobres. Também oferecemos alguns cursos, em sua maioria curtos, para pequenos grupos de duas a três pessoas, voltados ao trabalho clandestino – uma ou duas vezes por mês. Há também outros cursos realizados cerca de duas vezes por ano, nos quais os membros do partido são apresentados a conceitos revolucionários e educados sobre nossa linha política, ideológica e organizacional.

Mesmo agora, após a libertação, acreditamos que o fator ideológico é fundamental. Na formação de quadros, enfatizamos a destruição de antigos pontos de vista ideológicos da sociedade que ainda se mantêm fortes. Entre os quadros dirigentes, também enfatizamos a defesa e a fortalecimento da consciência da classe trabalhadora. Isso visa evitar o revisionismo. Quando um partido se torna revisionista, não é porque um membro comum se tornou revisionista, mas sim porque a liderança está levando o partido ao revisionismo. Embora falemos muito pouco sobre o revisionismo fora do partido, dentro do partido temos lutado muito contra ele. É em parte por essa razão que evitamos usar os documentos de terceiros. Baseamo-nos principalmente em nossas próprias análises de luta de classes — isso é o mais concreto. Alguns de nossos quadros que viveram no exterior e trabalharam com partidos comunistas estrangeiros solicitam regularmente documentos estrangeiros, alegando que negligenciamos o estudo do marxismo-leninismo. Mas lhes dizemos que o marxismo-leninismo se desenvolve por meio da luta do povo; nossas experiências são documentos marxista-leninistas genuínos.

IV. A Linha de Organização do Partido

Construímos o partido ideológica e organizacionalmente com base em nossa análise de classes, tomando as classes camponesa pobre e operária como classes fundamentais. Aqueles ingressaram vindos da pequena burguesia ou de outras classes tentaram promover os pontos de vista dessas classes, mas tiveram de renunciar às suas antigas posições e desenvolver a consciência de classe operária. Os quadros são avaliados com base em suas atividades concretas. Seu espírito deve ser puro, incorrupto e livre de ligações com o inimigo. Investigamos suas histórias de vida e origem social antes e depois de entrarem na revolução. Fazemos isso para evitar infiltração, por exemplo, de agentes da CIA, da KGB ou do Vietnã. Ao adotarmos esses princípios organizacionais, conquistamos a unidade do partido e conseguimos expurgá-lo de elementos nocivos(5). Não obtivemos sucesso absoluto — O inimigo ainda insiste em minar o partido. Consequentemente, estamos nos esforçando para fortalecer a educação política e ideológica e expurgar o partido.

Em resumo, podemos dizer que nosso partido está integrado e unido por meio desse trabalho político, ideológico e organizacional. Tem se fortalecido continuamente. Aprendemos que, quando se tem um partido forte e puro, há um movimento revolucionário forte. Ainda temos um longo caminho a percorrer nessa jornada, e os inimigos — imperialistas, revisionistas e vietnamitas — continuam a nos combater. Portanto, o fortalecimento do partido prossegue de geração em geração. Esperamos evitar a possibilidade da próxima geração se tornar revisionista. Se conseguirmos proteger os interesses de nosso país, também contribuiremos para a luta em todo o mundo. Sabemos do surgimento do revisionismo na União Soviética e isso nos entristece. E também sabemos da destruição do partido indonésio pelo inimigo. Aprendemos com essas experiências e com as experiências de outros partidos. Procuramos não nos desviar do caminho.

Pergunta: Existe o perigo — vindo de fora do país ou de dentro do partido — de uma nova classe ser criada?

Para esclarecer a natureza da luta interna no partido, sim, existem ambos os perigos. Dentro do partido, há uma contradição entre as concepções de propriedade privada e de propriedade coletiva. Se não tomarmos cuidado, isso pode se tornar antagônico. A outra contradição é externa. O Vietnã, em particular, está tentando minar nosso partido pelos meios militares, políticos, econômicos e ideológicos. Os vietnamitas também tentam infiltrar-se em nosso partido. Não estamos preocupados com a agressão militar externa. Nossa maior preocupação é com o inimigo interno.

Pergunta: Por que o trabalho ilegal ainda é o trabalho fundamental ou básico?

Após a libertação, o trabalho secreto é fundamental. Não utilizamos mais os termos “legal” ou “ilegal”, mas sim os termos “secreto” e “aberto”. O trabalho secreto é fundamental em tudo o que fazemos. Por exemplo: as eleições dos camaradas para a liderança do partido são secretas, os locais onde nossos líderes vivem são secretos, mantemos em segredo os horários e os locais das reuniões, e assim por diante. Por um lado, trata-se de um princípio geral e, por outro, é uma forma de nos protegermos do perigo da infiltração inimiga. Enquanto houver luta de classes ou imperialismo, o trabalho secreto seguirá fundamental. Somente através do sigilo podemos dominar a situação e obter a vitória sobre o inimigo que não consegue descobrir quem é quem.

Isso também se aplica às relações exteriores. Por exemplo, a União Soviética pediu para vir a Phnom Penh após a libertação. Eles estavam se preparando para enviar homens à embaixada. Dissemos que não poderíamos recebê-los e eles ficaram furiosos. Baseamos todas as nossas ações no sigilo, em defesa dos interesses das classes trabalhadoras.

Pergunta: Por que vocês não mencionam os soviéticos publicamente?

Dentro do partido, lutamos resolutamente contra a União Soviética, mas agora temos muitos inimigos – o imperialismo americano, a Tailândia, o Vietnã – e, por razões táticas, devemos limitar nossos inimigos ao mínimo possível. Deve ficar claro que nos opomos à União Soviética e ao revisionismo, mas nossa linha política precisa ser diferente da linha adotada na China, pois somos um país pequeno.

Vejamos outro exemplo: nossa atitude em relação aos “três mundos”. Temos o mesmo ponto de vista, exatamente o mesmo, mas, quanto ao que fazemos, precisamos ter em mente os interesses concretos de nosso país.

Pergunta: Você tem um programa de partido?

Sim, temos um, mas apenas em cambojano. Ainda temos muitas tarefas a cumprir; não realizamos trabalho de propaganda suficiente no exterior. O inimigo vietnamita conseguiu difundir tanta propaganda contra nós justamente por causa das nossas deficiências nessa área.

V. Sobre o Trabalho Concreto Antes e Após a Libertação

Antes da libertação, as atividades legais diziam respeito ao trabalho conduzido por diferentes organizações, como o grêmio estudantil, as associações de trabalhadores, a associação de mulheres e outras entidades. Fazíamos tudo o que era permitido pelas leis do inimigo. Também existiam subcategorias de atividades não legais ou não públicas – formas semiabertas, semissecretas ou de legalidade parcial. Celebrar o 1º de maio, por exemplo, era ao mesmo tempo um ato legal e ilegal. Mesmo que a classe dominante pudesse nos pegar, nós celebrávamos o 1º de maio. Mantivemos a tradição uma vez que ela foi firmada. Talvez no seu país seja diferente.

O Partido Comunista do Kampuchea nunca foi legalizado. O mesmo vale para outras organizações progressistas que criamos. Desenvolvemos a tática do sigilo, em primeiro lugar, para nos defendermos; em segundo, para mobilizar mais forças; e, por fim, para servir à nossa luta – por exemplo, na mobilização de intelectuais. Descobrimos que eles não se uniriam a nós se utilizássemos formas semi-legais, mas com formas legais – como celebrações e visita a templos –eles participavam. Assim, conseguimos fazê-los aderir gradualmente à nossa causa. Muitas atividades semissecretas, semi-ilegais e secretas foram organizadas para proteger as atividades totalmente ilegais e clandestinas do centro do partido. Assim, quando o inimigo atacava de fora, atingia apenas as atividades semi-ilegais e semissecretas, e nós conseguíamos defender o partido e sua liderança. Numa sociedade neocolonial e semifeudal, precisávamos atuar em completo sigilo – tanto dentro do partido quanto em outras organizações. Isso também se aplicava aos membros do partido trabalhavam entre as massas. Desde a libertação, continuamos o trabalho secreto, pois consideramos a linha estratégica mais importante do que a tática. Publicamos os nomes de apenas alguns de nossos quadros e membros – poucos precisam ser tornados públicos. Durante a guerra, todos eles atuavam em segredo nessa área; aprendemos com a experiência sangrenta do Partido Comunista da Indonésia(6).

Operando em sigilo, nossa organização segue as seguintes regras: são necessários três membros para formar uma célula – por exemplo, em uma fábrica. Se houver mais de três membros, um secretário da célula deve dirigir o trabalho do partido. Se houver até seis pessoas, formamos duas células distintas, sem qualquer contato entre si. Mesmo com cinco membros, organizamos duas células partidárias separadas, que trabalham em total segredo e de independente. Se o inimigo descobrir uma célula, as demais poderão continuar seu trabalho. Não há contatos diretos entre as células. Em cada fábrica, há um quadro dirigente; apenas ele tem conhecimento disso e pode se dirigir diretamente à liderança. Esses procedimentos também se aplicam a outros setores, como o estudantil. Formamos células que desconhecem umas às outras e que são incapazes de estabelecer contato entre si. O mesmo vale para as comunicações entre o quadro dirigente designado e a liderança: os contatos são feitos por meio de um intermediário. Se o inimigo capturar o quadro dirigente, ele não será capaz de identificar a liderança, apenas o mensageiro. Essa é nossa organização secreta.

Com base em nossa experiência, o sigilo é apenas um aspecto da construção da organização. De importância ainda maior é o nível ideológico dos quadros dirigentes designados, que devem mostrar grande disciplina. Precisávamos ser especialmente cautelosos quando o trabalho era realizado nas cidades. Os quadros podiam ser forçados a sair às pressas e, por isso, não deveriam viver com suas famílias; quando o faziam, as coisas se complicavam e demoravam mais tempo para escapar. Tivemos algumas experiências amargas com essas questões. Depois disso, decidimos observar a disciplina partidária com maior rigor. Permitam-me dizer que falamos aqui de experiências e condições concretas de nosso país. Cabe a vocês decidir o que podem extrair dessas experiências. Oferecemos esses exemplos movidos por sentimentos revolucionários fraternos.

O sigilo significava contornar a lei. Por exemplo, precisávamos confeccionar nossos próprios documentos de identidade, para que nossos nomes não constassem nos registros oficiais. Se o inimigo documentos autênticos, fotos e autorizações de trabalho, poderia nos localizar com facilidade. Além disso, se os revolucionários permanecessem sem ocupação, o inimigo poderia percebê-los. Abrimos uma livraria para nós mesmos, mas, a fim de evitar revelar nossos nomes, abrigamo-nos sob o nome de uma terceira pessoa. Durante a guerra, muitos quadros precisaram deixar seus cargos periodicamente, e tínhamos de protegê-los. Os contatos e reuniões aconteciam à noite – assim como as aulas de treinamento político. Trancávamo-nos em uma sala por dois ou três dias, até concluirmos o trabalho. Os contatos entre líderes publicamente conhecidos – como aqueles que trabalhavam no parlamento – e líderes clandestinos eram organizados por meio de duas ou três outras pessoas. Empregamos diversas táticas para superar a opressão do inimigo. Para reuniões em uma casa, por exemplo, usávamos sinais, como um lenço na frente da casa. Se o lenço estivesse no lugar, era seguro entrar; se não estivesse, o inimigo estava presente. No início, perdemos muitas pessoas porque o inimigo conhecia os sinais secretos. Com isso, aprendemos a não entrar na casa diretamente, mas passear pela vizinhança, talvez entrar numa loja, beber alguma coisa e perguntar o que estava acontecendo na casa. Às vezes, pessoas boas nos contavam algo em segredo sobre o inimigo. Às vezes, os vizinhos não eram revolucionários, mas nos avisavam se houvesse espiões ou agentes por perto.

Também utilizávamos mensageiros para levar recados, cartas, carregar munições etc. Eles não tinham permissão para saber nossos verdadeiros endereços residenciais, caso fossem capturados, poderiam ser forçados a revelá-los. Precisávamos de uma ponte composta por duas ou três outras pessoas. Se um mensageiro não aparecesse, ficávamos sem fazer nada por dois ou três dias – mas, depois disso, éramos obrigados a nos mudar para outro lugar. Quando o inimigo descobriu isso, eles torturaram os mensageiros capturados para nos encontrar. Por experiência própria, aprendemos a abandonar imediatamente um esconderijo se um mensageiro se atrasasse duas ou três horas. Em algumas ocasiões, inimigo chegou imediatamente, e tivemos de recorrer às armas para permitir a fuga dos quadros dirigentes. Isso pode lhes dar uma ideia de nossas experiências. As táticas e as técnicas têm apenas importância secundária; o mais importante é o ponto de vista de classe dos quadros.

Desde a libertação, nossa experiência diz respeito a atividades antipartidárias organizadas dentro do próprio partido. Elas geralmente envolvem agentes da CIA, vietnamitas e da KGB. Nossa experiência nessa área é bastante recente, mas, pelo que conseguimos constatar, parece que agentes da CIA, vietnamitas e da KGB vêm atuando dentro do nosso partido há muito tempo. Quando notamos que havia algo errado, julgamos tratar-se de uma contradição interna e tentamos resolvê-la por meio da persuasão, da autocrítica e assim por diante. Por exemplo, o partido precisou emitir diretrizes a uma filial sobre as condições de vida do povo. Quando nada mudou, percebemos que havia algo errado. Onde surgiam desvios à esquerda ou à direita, examinávamos cuidadosamente o histórico dos quadros. Também buscávamos a opinião das massas. Assim, conseguimos identificar gradualmente os agentes inimigos. Em geral, constatamos que eles vinham participando de atividades inimigas há muito tempo. Às vezes, bons camaradas eram presos e torturados e, depois, acabavam se rendendo ao inimigo. Após a libertação, passavam a atuar como agentes. Nós os recebíamos de volta, os aceitávamos, sem considerar o que havia acontecido na prisão. Agora percebemos que haviam se tornado agentes do inimigo.

É amplamente conhecido que os EUA planejaram tomar o poder de nós seis meses após a libertação. O plano envolvia uma ação conjunta dos EUA, da KGB e do Vietnã. Haveria uma ofensiva combinada, vinda de dentro e de fora. Mas esmagamos o plano. Imediatamente após a libertação, evacuamos as cidades. Os agentes da CIA, da KGB e do Vietnã que estavam ali se dirigiram ao interior, e não conseguiram pôr o plano em prática. Os infiltrados no partido não puderam reagir de imediato, mas os descobrimos mais tarde, quando tentaram organizar golpes de Estado. Suas atividades estavam coordenadas com a agressão vinda de fora. Não eram pessoas poderosas; sua intenção era aproveitar a oportunidade proporcionada pelos ataques do Vietnã para assassinar nossos líderes e, em seguida, anunciar o feito ao mundo. No entanto, quando os vietnamitas atacaram, nosso exército os derrotou e capturamos os traidores dentro do partido.

Embora digamos que os planos foram frustrados, isso não significa que o inimigo desistiu. Precisamos continuar fortalecendo e a defendendo nosso partido e nossa liderança, além de deter as pessoas que se infiltraram em nosso partido. Sabemos que o plano atual não envolve apenas agentes vietnamitas, mas também tem relação com o imperialismo americano e com a KGB. Todos eles! Algo similar está acontecendo no Iêmen – tanto no Norte quanto no Sul – e no Afeganistão. Mas, à medida que essas coisas acontecem, a verdadeira face dos soviéticos se torna cada vez mais evidente.

Pergunta: Trata-se de uma cooperação entre a CIA e a KGB ou de uma rivalidade pelo controle do Kampuchea?

Ambos. Por um lado, cooperam; por outro, são rivais. Por exemplo, o Vietnã nos atacou entre outubro e dezembro do ano passado, enquanto os Estados Unidos conduziam operações perto de nossas ilhas costeiras e ao longo da fronteira com a Tailândia, com seus agentes da CIA. Eles competem pelo controle ao mesmo tempo – essa é uma forma aberta de cooperação. Quanto à forma secreta, alguns agentes da CIA se juntaram aos vietnamitas para entrar no Kampuchea. Como os EUA não conseguiram penetrar em nosso país, precisaram depender do Vietnã. Os vietnamitas não fazem distinção na escolha de agentes: aceitam qualquer um que queira combater o Partido Comunista do Kampuchea – até mesmo agentes da CIA!

O aparato da liderança deve ser defendido a qualquer custo. Se perdermos membros, mas preservarmos a liderança, ainda podemos continuar a obter vitórias. Defender a liderança do partido é algo estratégico. Enquanto ela existir, o partido não morrerá. Não há comparação entre perder dois ou três quadros dirigentes e perder 200 ou 300 membros – é preferível perder estes últimos. Caso contrário, o partido fica sem cabeça e incapaz de conduzir a luta. Isso foi demonstrado pela experiência do Partido Comunista da Indonésia, cuja liderança foi destruída em 90%. Levou muito tempo para que se reestruturassem: treze anos se passaram desde 1965 e o partido ainda não se recompôs. Não sabemos quanto tempo levará até que recuperem a força ofensiva que possuíam antes. Construir uma boa liderança é estratégico; leva-se de dez a vinte anos para formar um bom dirigente comunista. Perder um deles significa perder muito. E até mesmo o sigilo do partido pode se perder.

VI. Construindo e Liderando o Movimento Revolucionário

Como já dissemos, a partir de 1960 consideramos os operários, os camponeses, a pequena-burguesia e as personalidades patrióticas progressistas como forças estratégicas. A classe operária é a classe progressista, enquanto o campesinato é a mais numerosa. Os demais são forças secundárias e aliadas. Os capitalistas progressistas nacionais eram forças táticas secundárias, mobilizadas apenas em circunstâncias específicas. O próximo passo foi definir a linha estratégica: a luta rural era a luta fundamental. Antes de 1960, havia alguma confusão sobre isso; dividimos nossos quadros entre cidades e o campo, de acordo com suas habilidades. Não tínhamos uma linha partidária clara; desenvolvemos bases no campo, mas o inimigo destruiu cerca de 90% delas. Além disso, não éramos fortes nas cidades. Percebemos, em 1959, que nos faltavam as forças estratégicas necessárias para levar adiante a revolução!

Foi somente depois de 1960 que conseguimos alocar nossas forças corretamente. A maioria delas foi trabalhar entre os camponeses; um número ligeiramente menor atuou entre a pequena-burguesia – estudantes e intelectuais –, e uma parcela muito pequena trabalhou entre os capitalistas nacionais e com figuras de alto escalão da administração. Assim que estabelecemos essa linha, pudemos expandir nossas forças muito rapidamente. Em especial, consolidamos bases nas áreas rurais. À medida que o movimento de massas se fortalecia, passamos a desenvolver atividades tanto legais quanto ilegais, e chegamos até mesmo a organizar manifestações em massa. Entre 1962 e 1963, em particular, nossas forças tornaram-se cada vez mais robustas. (7)

Os melhores dos nossos quadros trabalharam entre os camponeses pobres, construindo bases nas regiões mais remotas. Eles tiveram que se transformar para poder trabalhar entre os camponeses. No início, surgiram muitos problemas. As condições nas cidades e no campo eram bastante diferentes: nas áreas rurais, as condições de vida eram muito precárias, mas haviam poucos inimigos; nas cidades, as condições de vida eram melhores, porém haviam muitos inimigos. Ambos os ambientes apresentavam vantagens e desvantagens, e os quadros eram selecionados de acordo com isso. Havia muita malária no campo; alguns quadros se recusavam a trabalhar lá, mas tínhamos tarefas a cumprir e precisávamos fortalecer sua convicção ideológica.

Ao analisarmos esse período, percebemos que não teríamos alcançado uma vitória tão expressiva sem antes superar esses obstáculos. Identificamos dois principais pontos de virada: se não tivéssemos nos reorganizado em 1960, não teríamos conseguido iniciar a luta armada em 1968; se não tivéssemos iniciado a luta armada em 1968, não teríamos sido os senhores da situação na época do golpe de Estado de 1970. Caso contrário, o inimigo poderia ter destruído nossas forças. Se o senhor da situação, confiar em suas próprias forças, ser soberano – essas palavram só têm significado se tivermos as forças do povo em nossas mãos. Se não as tivermos, eles cairão nas mãos do inimigo. O mais importante era compreender e controlar as forças nacionais de nosso país. Essa foi para nós uma grande lição.

Buscamos enfatizar o que é correto na mobilização de forças – isso é importante em todas as fases da revolução. Hoje, no período da revolução socialista, nossa força é maior do que era durante a revolução nacional-democrática. Veja, por exemplo, os pequenos capitalistas que foram evacuados das cidades. No início, tiveram dificuldades para viver no campo, mas, gradualmente, passaram a se orgulhar da revolução. Eles veem as perspectivas para seus filhos, percebem que nossa revolução é pura e que somos independentes e soberanos. Sabem que podemos nos defender do Vietnã e têm confiança em nós. Quanto aos intelectuais que permaneceram no exterior, alguns nos apoiam. Na França, uma associação expressou solidariedade conosco contra o Vietnã. Agora somos mais fortes do que na primeira revolução: 85% da população pertence à revolução, como operários e camponeses, e entre 80 e 90% dos intelectuais também a integram. Apenas 10% são diferentes. Procuramos educar essas pessoas para que compreendam que a revolução é benéfica para eles e para seus filhos. Assim, tornamo-nos cada vez mais fortes.

Reunimos forças de diferentes estratos sociais em distintos períodos, porque todos reconhecem o espírito patriótico dos comunistas. Os feudalistas falavam mal do Vietnã e dos Estados Unidos, mas não faziam nada. Eram corruptos e permitiram que o Vietnã avançasse – 100 quilômetros, 200 quilômetros, meio quilômetro – além da fronteira, corrompendo a polícia.

Os vietnamitas, portanto, infiltraram-se em nosso país por meios que eles chamavam de “ilegais”, especialmente em Takeo e Svay Rieng. Mas quando o poder passou para as mãos do partido, todos viram que podíamos erguer a bandeira da independência. Perceberam que os comunistas eram íntegros, que vivíamos como pessoas comuns, enquanto nos velhos tempos, quando se vivia de modo capitalista, a sociedade se desintegrava. Assim que o povo compreendeu isso, seguiu o caminho comunista, e pudemos mobilizar forças com facilidade.

VII. Formando a Frente Unida Nacional

Como conseguimos fazer Sihanouk se unir a nós? Conseguimos mobilizar forças após o golpe de Estado porque já vínhamos nos preparando havia muito tempo. Éramos os senhores da situação — tínhamos um exército e algumas armas. Assim, pudemos formar uma frente unida. Chegamos até a permitir que o rei Sihanouk se tornasse o presidente dessa frente. Mas isso não significou nada, pois éramos nós os senhores da situação. Após o golpe, Sihanouk foi reduzido do tudo ao nada, enquanto para nós ocorreu o oposto — tanto nas cidades quanto no campo. As forças provenientes das bases da sociedade foram essenciais para fazer com que os níveis superiores se unissem a nós. Essa é a primeira lição.

A segunda lição e experiência diz respeito às atividades de frente. Não foi um período fácil. O inimigo — os EUA, os franceses e os revisionistas soviéticos — tentou corromper Sihanouk e afastá-lo da frente. Sihanouk não nos abandonou porque vínhamos obtendo vitória após vitória nas bases. Ele nos teria deixado se não fosse por isso, especialmente em 1973, quando o Vietnã se sentou à mesa de negociações com os EUA. Sihanouk tinha medo de ficar sozinho; perguntava repetidas vezes se conseguiríamos continuar a luta. Queria negociar, mas dissemos que lutaríamos até o fim.

Em terceiro lugar, descobrimos que precisávamos travar uma luta dentro da frente com Sihanouk, ao mesmo tempo, que nos uníamos a ele externamente. Sihanouk fazia exigências; e nós as concedíamos, desde que não contrariasse nossa política estratégica. Tivemos de ser muito flexíveis com ele. O lema do partido era: "Não empurre ninguém para o inimigo".

VIII. A Luta Armada (1960 – 1963)

Nossa luta nas cidades tinha dois componentes: a luta legal e a luta secreta. A luta urbana não era tão importante quando a luta no campo, mas seu impacto foi sentido em todo o país e até em nível internacional. Além disso, essa luta teve um efeito significativo sobre o nível intermediário da classe dominante, apesar de a cidade ser o quartel-general da classe dominante e de seu aparato de opressão.

Parte do trabalho legal foi realizada na Assembleia Nacional. Não buscamos conquistar assentos; utilizamos personalidades patrióticas para fazer propaganda. Essas figuras não atuavam em nome do partido, mas o partido estava, em essência, por trás dessa propaganda. O trabalho era limitado: apenas permitíamos que nossos militantes usassem slogans estratégicos para despertar o povo. Ao mesmo tempo, usávamos jornais, espalhávamos rumores e orientávamos o povo a seguir os deputados que havíamos conseguido colocar na Assembleia. Assim, atuávamos nas altas esferas, fazendo o povo nos acompanhar, enquanto simultaneamente trabalhávamos nos níveis de base.

Embora pudéssemos trabalhar legalmente na Assembleia Nacional, nossos deputados às vezes eram alvos de repressão. Então tentávamos infiltrar nossas ideias em outros deputados, dizendo-lhes: “Se você disser isto e aquilo, o povo o seguirá e o elegerá novamente”. E às vezes, eles faziam isso. Quando nossos slogans eram usados diante do povo, o povo aplaudia – e os deputados ficavam satisfeitos. Mais tarde, vinham nos perguntar o que deveriam dizer, e nós aproveitávamos para introduzir mais de nossos slogans por meio deles. Alguns de nossos camaradas não compreendiam essa tática e pensavam que, fazendo isso, poderíamos fortalecer a influência da classe dominante. Mas não acreditávamos que isso causasse qualquer dano. Se conseguíssemos transmitir a essência de nossas ideias ao povo, poderíamos conquistar parte desse povo para o nosso lado. Houve, porém, dificuldades na luta através de nossos jornais.

Quando a classe dominante percebia que determinado jornal havia sido criado secretamente pelo partido, ele era fechado em menos de três meses. Em seguida, deixávamos os camaradas escrever anonimamente para jornais de caráter mais neutro. Às vezes, o jornal cortava metade do texto – mesmo assim, continuávamos a fazê-lo, apenas para conseguir divulgar algumas ideias. Também permitíamos que nossos militantes respondessem a artigos reacionários desses jornais, escrevendo cartas aos editores e pedindo que deixassem de publicar opiniões reacionárias. No caso dos jornais mais reacionários – aqueles que não podiam ser contidos de nenhuma outra forma – convocamos manifestações em massa diante de suas redações. No caso do Phnom Penh Presse, um jornal da CIA e o mais reacionário de todos, deixamos o povo saquear o local(8). Entre outras atividades nas cidades, promovíamos performances artísticas para o povo e organizávamos viagens a áreas rurais para festivais, cerimônias e outros eventos. Assim, conseguimos fortalecer cada vez mais nossas forças em todos os níveis da sociedade.

Escolher o slogan certo – aquele que se adequasse à situação, sem pedir demais, nem de menos – foi crucial para o nosso trabalho nas cidades. Não usávamos palavras como “revolucionário”, “comunista”, ou “vermelho”, por exemplo. Em vez disso, usamos termos que todos aceitariam, como “Combater o imperialismo americano”, “Lutar pela soberania”, etc. O povo tinha um medo especial das palavras “comunista” e “revolucionário”. Mas fizemos com que adotassem a linha do partido, em sua essência, ao divulgarmos essa linha partidária. Se, dessa forma, conseguíssemos que o povo a seguisse – mesmo aqueles que, de outro modo, temiam a “revolução” e o “comunismo” – então esse povo, apesar de seus temores, seriam capazes de erguer a bandeira do nosso partido.

Nós chegamos até a atuar dentro do movimento dos monges budistas, fazendo-os nos seguir ao dizermos que defenderíamos o país e a religião. Se o país fosse dominado por estrangeiros, não existiria mais religião alguma. Assim, os monges também ergueram a nossa bandeira, mesmo que não gostassem do comunismo. Trabalhamos não apenas entre os monges de baixo escalão – que, de todo modo, não eram tão reacionários – mas também entre os monges de alto escalão que controlavam grandes partes do país. Usamos slogans contra a dominação estrangeira da cultura do Kampuchea. Dessa forma, os monges se tornaram patriotas, apoiando-nos sem sequer se darem conta disso.

Também trabalhamos com personalidades de destaque, como Penn Nouth(9). Nesse caso, precisávamos ser cautelosos: tínhamos de solicitar suas ideias, sem fazer propostas ou fazer propaganda. As personalidades patrióticas de alto escalão não constituíam uma força importante, mas estávamos tentando reunir todas as forças em apoio à luta, especialmente nas cidades. Perguntávamos, por exemplo: “O que Vossa Excelência pensaria se os EUA atacassem nosso país?” Ele então refletia sobre o assunto, e nós, discretamente, introduzíamos ideias sobre o que deveria ser feito. Esses dignatários, por sua vez, nos ouviam e transmitiam as ideias a outros sob sua influência. Assim, Penn Nouth sequer sabia que estava propagando em favor dos comunistas.

Essas foram as diferentes formas de luta legal nas cidades. No entanto, dávamos maior ênfase à luta secreta. Sem ela, a luta legal não teria obtido êxito. As duas formas de luta interagiam e se complementavam, mas o trabalho clandestino era o mais importante.

Tivemos de educar constantemente nossos quadros tanto sobre o trabalho clandestino quanto sobre o legal. Quando a situação era favorável, eles preferiam atuar legalmente, para ter a chance de obter um título, dinheiro, etc.; e, quando a situação se tornava difícil, preferiam trabalhar secretamente. Por isso, precisavam ser educados de forma contínua, para que fossem capazes de permanecer firmes em seus postos, mesmo correndo risco de vida. Não podiam assumir novas responsabilidades por conta própria, antes que o partido lhes concedesse autorização. Esse era um trabalho ideológico.

Antecipando as dificuldades, tomamos precauções. Estabelecemos bases no campo para acolher pessoas envolvidas em trabalhos clandestinos nas cidades. No entanto, uma vez que o sigilo fosse rompido, esses camaradas não podiam mais participar de atividades secretas no campo. Uma vez expostos – sempre em trabalho aberto. Precisávamos ter cuidado com o destino de cada pessoa, para que ninguém soubesse de antemão. Caso soubessem, o inimigo poderia descobrir.

Quando os quadros enfrentavam dificuldades, costumavam pedir para ser enviados ao campo, mesmo quando o sigilo ainda não havia sido rompido. Por causa disso, tivemos de trabalhar passo a passo com o seu posicionamento ideológico e manter vigilância sobre aqueles que atuavam nas cidades – tanto secretamente quanto legalmente – observando especialmente suas condições de vida e circunstâncias pessoais. Aqueles que trabalhavam secretamente não podiam manter empregos como as pessoas comuns, por isso tivemos de ajudá-los a conseguir trabalho até certo ponto.

De acordo com a linha correta do partido, fomos capazes de construir e defender nossas forças. Algumas foram destruídas pelo inimigo, mas, em sua maioria, conseguimos protegê-las – especialmente após o golpe em 1970, quando tínhamos amplas zonas libertadas. As localizações de nossas bases mais importantes eram mantidas em segredo, nem mesmo a tecnologia eletrônica dos EUA conseguiu descobri-las. Embora os bombardeios norte-americanos tenham causado grandes destruições, eles não foram muito eficazes, pois permanecemos fiéis à nossa linha clandestina de luta. As forças vietnamitas no Vietnã eram menos bem ocultadas e menos discretas do que nós e, por isso, sofreram mais perdas. Mesmo os vietnamitas que estavam aqui foram atingidos com mais frequência do que nós.

Nosso povo e nossos soldados chamavam os B-52 de “os cegos”. Quando vinham, lançavam bombas às cegas, sem se importar se atingiam algo ou não. Nosso povo não tinha muito medo dos B-52.

Aprendemos que, enquanto preservássemos nosso sigilo, nossa luta poderia continuar pelo tempo que fosse necessário. Até mesmo a artilharia norte-americana era ineficaz quando não se sabia quem éramos ou onde estávamos. Dentro de limites, é claro – alguns de nós foram atingidos. Mas dissemos aos nossos quadros que não tivessem medo, que se mantivessem bem escondidos e então todos seríamos capazes de expulsar os imperialistas norte-americanos.

[Nuon Chea concluiu sua declaração neste ponto, pois o tempo alocado para a reunião havia expirado](10)