Esta reforma é um ornitorrinco
(Entrevista ao Jornal da UNICAMP)

Francisco de Oliveira

24 de agosto de 2003


Fonte: resistir.info - http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/agosto2003/ju225pg06.html

HTML: Fernando Araújo.


Quando o PT foi constituído, em 1979, o sociólogo brasileiro Francisco de Oliveira estava entre os seus fundadores. Hoje, passados 21 anos, acusa o governo do PT ter promovido uma negociata ao fazer aprovar a Reforma da Previdência que propôs. Trata-se, afirma, de "uma mistura esdrúxula da coisa mais avançada do capitalismo financeiro com a coisa mais atrasada do subdesenvolvimento. O país será como um mamífero que bota ovo", afirmou numa sessão pública na Universidade de Campinas (Unicamp) dedicada à Reforma da Previdência.

Segundo Francisco de Oliveira, em sete anos a reforma irá concentrar no sistema financeiro uma quantia equivalente a pouco mais de 40% do PIB brasileiro. E acrescenta que até 2010 o dinheiro a ser captado pelos fundos privados chegará a 670 mil milhões de reais (223 mil milhões de euros). "Nem mesmo todas as privatizações realizados ao longo dos últimos dez anos alcançam esse valor", verifica Oliveira. E conclui tratar-se de uma reforma privatista, ao serviço do capital financeiro, considerando ser "trágico que um partido de trabalhadores tenha uma visão de Estado que é mercadológica".

Esta entrevista foi concedida a Clayton Levi, do Jornal da Unicamp.

Jornal da Unicamp — Porque o senhor afirma que a reforma da Previdência é uma grande negociata?

Francisco de Oliveira – O objetivo primordial da reforma da Previdência é de caráter fiscalista. Ela não está preocupada em ampliar os marcos da segurança social, mas em restringi-la com o objetivo de fazer caixa. Em segundo lugar, há um objetivo mais sombrio, que é o de inventar os fundos de previdência complementar para atender àqueles que têm salários mais altos que os limites estabelecidos pela emenda constitucional. Isso significa um mercado riquíssimo de seguros privados. Algumas simulações mostram que até 2010 esses fundos de Previdência, a partir da reforma, podem chegar a R$ 670 mil milhões (223 mil milhões de euros). Aos preços de hoje, esse valor corresponderia a quase 50% do PIB brasileiro. Se somarmos todas as privatizações de empresas estatais que foram feitas ao longo dos últimos dez anos, não dá nem um terço desses R$ 670 mil milhões. Portanto, o que se esconde por trás da reforma da Previdência são altos negócios. E altos negócios, no sistema capitalista, não se fazem sem negociata.

JU — Mas isso não contradiz a postura histórica das pessoas que estão no governo, que sempre usaram um discurso de esquerda contra os interesses do mercado?

Oliveira – É uma grave contradição. Um partido de trabalhadores que é a coluna vertebral deste governo, o que deveria estar fazendo é ampliar a segurança social. Em primeiro lugar, por razões de justiça social, razões de cidadania e até razões econômicas, porque a segurança social constitui um poderoso regulador dos movimentos erráticos da economia. Mas infelizmente o Partido dos Trabalhadores, por meio de sua liderança, escolheu outro caminho. É uma grave contradição.

JU – Do ponto de vista econômico, quais seriam as conseqüências negativas da reforma?

Oliveira – Afetará a renda [rendimento, na terminologia portuguesa - NE] das pessoas. Trata-se de um arrocho [contenção extrema - NE] salarial disfarçado. Ninguém está falando desse aspecto. A imprensa não dá nenhuma atenção, mas isso é um formidável arrocho salarial.

JU – Então, a quem interessa essa reforma?

Oliveira – De uma ótica fiscalista interessa àqueles preocupados com o equilíbrio fiscal do Estado. Mas interessa sobretudo ao capital financeiro, porque se criará um enorme mercado de seguros privados, que é uma espécie de maná do deserto. Deve ter sido esse o alimento de Moisés ao atravessar o deserto.

JU – O senhor acha que ainda há margem de manobra para alterar alguma coisa significativa na reforma da Previdência?

Oliveira – Sou pessimista. Os deputados estão falando em nome de quem? Deveriam estar falando pela força eleitoral que a institucionalidade do sistema partidário lhes confere. Nesse ponto há um corte. E nesse corte a instituição política do partido ganha uma autonomia em relação à chamada base social e não tem quem refaça essa ligação porque a institucionalidade dá direito ao partido de ser autônomo em relação à sua base. Ele perde o compromisso e você não tem como cobrar. O mandato representativo é ao mesmo tempo delegativo. Uma vez com o mandato, ele age de maneira autônoma. Isso é fatal para a relação com a base. Exemplo disso é que os destaques propostos para alterar o texto da reforma foram retirados. Isso demonstra que não há muita diferença hoje, no Brasil, entre situação e oposição. Há uma mistura de interesses.

JU – O senhor compara a atual política econômica do governo a um ornitorrinco. Por quê?

Oliveira – A economia periférica capitalista brasileira é um ornitorrinco. É uma combinação esdrúxula de setores altamente desenvolvidos, um setor financeiro macrocefálico, mas com os pés de barro. O ornitorrinco brasileiro não é bem como o ornitorrinco da Oceania. Ele é uma figura magra, esquelética, sustentando uma cabeça enorme, que é esse sistema financeiro, mas com pernas esquálidas e anêmicas, que são a desigualdade social e a pobreza extrema. Esse ornitorrinco não é como o subdesenvolvimento, que surgiu de uma singularidade histórica, quando o capitalismo mercantil alcançou a América, destruindo as civilizações pré-colombianas, e criando outras sociedades, chamadas subdesenvolvidas porque não eram um elo na cadeia do desenvolvimento, mas uma coisa criada pelo encontro do capitalismo com outras sociedades. O ornitorrinco não é mais isso, porque os traços originários da sociedade brasileira já desapareceram ao longo de 500 anos e, portanto, são outros.

JU – O senhor também diz que a opinião pública está sendo manipulada para reforçar a imagem negativa do funcionário público. De que maneira isso está ocorrendo?

Oliveira – As classes dominantes da sociedade brasileira são patrimonialistas. É uma sociedade que não distingue o público do privado, o mercado do Estado. Quem se aproveita disso são as elites e as classes dominantes. Isso gerou um Estado mal conformado, cujos serviços são precários de fato, uma macrocefalia, ao mesmo tempo gigante e inoperante. É esta imagem que chega ao povão. O povão enfrenta filas. A cara negativa do Estado brasileiro é esta cara medonha que o povo vê. Mas quem o povo vê? Ele não vê o Estado porque o Estado é uma abstração teórica. A materialidade do Estado que o povo vê é o funcionário público que o atende, e às vezes o atende mal. Então há uma relação de amor e ódio entre o povão e o funcionário público. A imagem negativa que se faz do funcionário público é, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa. Verdadeira porque de fato os serviços do Estado são ruins, os profissionais são estressados e as instalações são ruins. Mas também é uma imagem falsa porque estas condições não foram criadas pelo funcionário público e sim pela forma em que o Estado brasileiro foi montado e pela predação que as classes dominantes fazem sobre o Estado brasileiro, como por exemplo destinar 30% do orçamento público para pagar juros da dívida interna e externa.

JU – Em sua opinião, quais seriam as conseqüências da reforma para a universidade pública caso o texto do governo seja aprovado sem grandes modificações?

Oliveira – No médio e longo prazo a primeira conseqüência é tornar a universidade menos atraente para futuros professores. Isso pode desfalcar a universidade de quadros importantes. Essa conseqüência não vai demorar para aparecer. Outra conseqüência, mais importante, de longo prazo, é a incapacidade de dotar a universidade pública dos recursos à altura dos desafios do presente, desafios de um sistema que é cada vez mais movido pela ciência e tecnologia. Se nós descuidarmos da universidade, estaremos indo irremediavelmente para um lugar eternamente subordinado na divisão internacional do trabalho capitalista. Pode haver uma regressão. Só quem faz pesquisa científica no Brasil é a universidade pública. Se tirar isso desaba tudo, porque a contribuição do setor privado para ciência e tecnologia no Brasil é ridícula.

JU – Qual seria, em sua opinião, o papel da universidade pública nesse momento de mudanças turbulentas?

Oliveira – Nesse momento de transição, a universidade deveria ajudar a iluminar as possibilidades reais que o povo brasileiro tem para retomar o crescimento e diminuir as desigualdades sociais, com suas pesquisas e seus acervos sobre a história brasileira. Isso ajuda muito. Na questão da energia nuclear, por exemplo, físicos importantes que atuavam em universidades públicas fizeram a crítica das opções da energia nuclear durante a ditadura, apontando os riscos. Angra dos Reis [central nuclear brasileira - NE] está aí confirmando toda a crítica que se fez naquela época. A universidade ajuda nesse sentido. A universidade não substitui a ação cidadã, mas ilumina o campo de estudo e leva à reflexão porque é o lugar onde se desenvolve o conhecimento. É a única instituição que tem capacidade de autocrítica. Sua matéria de trabalho é a dúvida, é a crítica.

JU – O que o senhor quis dizer exatamente ao afirmar que estaria havendo uma crise de representatividade nos partidos políticos, em especial no PT, partido do qual o senhor é um dos fundadores históricos?

Oliveira – Está havendo essa crise no PT, especificamente. O partido diz que está representando os trabalhadores. Mas quais trabalhadores, de quais setores? O PT foi fundado por um movimento sindical que hoje está muito danificado pela globalização, pela reestruturação produtiva. Não foi à toa que o setor sindical que mais cresceu na CUT, por exemplo, foi o dos funcionários públicos, porque até então eles não tinham sido muito afetados. A partir de agora, as instituições formadas para representar esse setor de trabalho serão danificadas. E isso leva a perder capacidade de representação.

JU – Segundo o senhor, essa crise de representatividade estaria gerando descontentamentos internos no PT, o que daria margem para a articulação de uma dissidência. Está em gestação algum novo movimento dentro do PT?

Oliveira – Não existe movimento em gestação. Inclusive, se dissesse isso estaria alvoroçando os caçadores de bruxas. O que existe é uma crescente insatisfação que passa por vários setores, incluindo parlamentares, militantes, gente que não se sente bem, que tem vergonha do que está acontecendo. Exemplo disso é que na primeira votação da reforma da Previdência, a Câmara saiu triste. Os deputados estão com a consciência perturbada, sobretudo aqueles de esquerda e do PT, porque estão conscientes de que deram uma mancada. Ninguém comemorou a vitória do governo. Quando os parlamentares aprovaram o impeachment de Collor (Fernando Collor de Mello), houve uma explosão de alegria na Câmara. Dessa vez, não tem alegria nenhuma relacionada a essa vitória do governo.

JU – No que o senhor acha que pode resultar esse descontentamento interno no PT?

Oliveira – Não sei. Seria apostar. Por enquanto não haverá uma recomposição porque a direção do partido está tratorando os dissidentes. A curto prazo não vejo nada. O que vejo é uma coisa subterrânea, uma crescente insatisfação, uma amargura.

JU – Em sua visão, o que teria levado um governo petista a adotar uma postura que contraria o seu discurso histórico?

Oliveira – É uma boa questão e também a coisa mais difícil a ser elucidada. A gente pode tentar uma solução fácil, dizer que eles traíram, que foram cooptados pelo grande capital, e tudo isso também é verdade. Mas a elucidação completa é muito difícil. Eu desconfio que há o predomínio de uma nova classe dentro do PT e que isso influiu poderosamente no partido.

JU – E quais seriam as raízes dessa nova classe?

Oliveira – As raízes estão na posição a que certos trabalhadores foram levados, por exemplo, na administração de fundos de previdência, nas estatais, na administração do Fundo de Amparo ao Trabalhador, na convivência com organizações do tipo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Isso vai criando uma ideologia comum. Isso consegue criar um descolamento, porque o trabalhador que exerce a administração de um fundo fica dividido. E nessa divisão, quem ganha é o lado administrador de fundos. Isso deveu-se a poderosas modificações na sociedade brasileira pelo processo de globalização e sobretudo pelo processo de financeirização da economia. Isso atingiu camadas de trabalhadores e os transformou em gestores de fundos capitalistas.

JU – Por que essa suposta nova classe interna do PT teria emergido justamente no momento em que o partido alcança o ponto máximo do poder?

Oliveira – O poder é o momento propício, além do fato de que você se vê obrigado a administrar uma economia capitalista. O PT é muito mal preparado teoricamente para administrar uma economia capitalista. O PT tem especialistas em fundo de previdência e gente que sabe como administrar isso. Mas quem faz o papel teórico de pensar o Estado no PT?

JU – Isso tem a ver com a sua crítica à ausência de intelectuais no núcleo duro do governo?

Oliveira – Isso poderia parecer um ressentimento por não ter sido convidado a compor o governo. Devo dizer, de saída, que abomino o poder e não estou fazendo nenhuma bravata. Quando Luiza Erundina se elegeu prefeita de São Paulo, uma das primeiras pessoas para quem ela ligou foi para mim, convidando-me para o cargo de secretário de Planejamento. Minha resposta imediata foi negativa. Não quero nada com o poder, não me seduz e estou vacinado contra ele. Mas é sintomática a falta de intelectuais no grupo do governo. Isso mostra a oligarquização do partido e uma disputa ferrenha pelo monopólio da interpretação do governo. Porque intelectual sempre perturba, sobretudo com os intelectuais que o PT tem.

JU – No momento em que um partido de esquerda assume um alinhamento com a direita, sem oposição, qual seria o futuro da esquerda no Brasil?

Oliveira – Diria que é nebuloso. Não tem futuro previsível porque houve um embaralhamento grande. O PT foi a formação mais consistente de esquerda que o Brasil conheceu porque conseguiu fazer confluir vários movimentos que se amalgamaram no partido. No passado, houve o Partido Comunista que quase chegou a isso porque tinha massa popular. O partidão chegou a ter 10% dos votos para presidente em 1945, tinha uma reconhecida influência sobre os sindicatos e tinha a nata da intelectualidade brasileira. Depois o partidão entrou num processo de clandestinidade que o levou ao fisiologismo descarado e às alianças com a direita. O PT repete essa história triste do partidão. O PT é depositário de uma longa trajetória da esquerda brasileira. Se ele malbaratar essa herança, o destino da esquerda estará gravemente comprometido.

JU – Ao mesmo tempo em que o senhor diz que o PT estaria malbaratando sua herança ideológica, todos sabem que vários grupos dentro do partido estão criticando essa postura. Em sua opinião, o que pode sobrar do PT?

Oliveira – Sobra enquanto máquina partidária. O PT já é a máquina partidária mais importante do país e continuará a ser. Isso tem enorme importância porque essas são as instituições credenciadas para operar na política. Além disso, o partido tem ramificações em vários setores da sociedade, ligados a diversos interesses e, portanto, vai sobrar como partido. Mas como partido transformador duvido que sobre alguma coisa.

JU – Nesse caso, qual o futuro daqueles que pretendem preservar as raízes históricas do PT?

Oliveira – O futuro mais imediato que os aguarda é uma expulsão. A direção do partido forçará as pessoas a tomarem outro caminho. A longo prazo, é imprevisível. Não se cria um partido novo da noite para o dia nem sem bases sociais. Além disso, nessa sociedade, é cada vez mais difícil criar um partido político no estilo clássico. Não adianta ficar como o PSTU [pequeno partido trotzquista - NE] bradando em nome de um proletariado que não adere a ele. Os partidos políticos que se criam são como máquinas.


Inclusão: 21/11/2021