MFA e Revolução Socialista

César Oliveira


CAPÍTULO I
DA HISTÓRIA DE ONTEM ÀS NECESSIDADES DE HOJE

CEM ANOS DE SOCIALISMO EM PORTUGAL: DAS EXPERIÊNCIAS DE ONTEM ÀS INTERROGAÇÕES DE HOJE


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— Como você salientava no prefácio ao livro de Alexandre Vieira reeditado em Abril passado, a actividade de reapropriação da memória colectiva do proletariado militante é uma tarefa nos nossos dias importante, não apenas como conhecimento objectivo da sua história recente, mas como apreensão dos conteúdos da prática social e política realizada na luta contra o salariado. Neste sentido, o conhecimento do que foi o Partido Socialista em Portugal poderá ter, para além do assinalar duma efeméride, um interesse prático em Portugal.

Fez portanto no dia 10 de Janeiro de 1975 cem anos que foi fundado o Partido Socialista Português. Quero desde já deixar claro que o PSP cuja fundação tem cem anos não tem nada a ver com o Partido Socialista hoje existente. Aquele tem uma existência que decorre entre 1875 e 1933.

Podemos distinguir na história do movimento operário em Portugal, fundamentalmente, quatro fases. Primeira, a que vai de 1838 a 1871. É uma fase sobretudo caracterizada pelo associativismo mutualista, de socorros mútuos, protecção ao desemprego, à saúde e à velhice, ilustração popular, alfabetização, e que no plano da aliança de classes se saldava por uma colaboração interclassista, tentando pôr de harmonia o capital e o trabalho de modo a que o primeiro não absorvesse o segundo. Claro que isto tem a ver com o desenvolvimento das forças produtivas em Portugal, com um capitalismo liberal que não existia ainda de jacto, com uma classe operária extremamente diminuta, mais artesanal do que fabril, com uma concentração industrial fraquíssima, etc.

Em 1871, correspondendo ao desenvolvimento do capitalismo em Portugal, iniciado sobretudo a partir de 1851 com a Regeneração de Fontes Pereira de Melo, com a chamada «política de desenvolvimento dos meios materiais», acontecem três eventos que, tendo muito a ver com isto, vão fazer com que se inicie uma segunda fase do movimento operário (que designarei como a do abandono da colaboração de classes), e que são, por um lado, a Comuna de Paris, primeiro exemplo na história moderna do proletariado em que este toma o poder, apesar de efemeramente, e que tem um impacto considerável, sobretudo em Lisboa nos círculos intelectuais progressistas muito marcados já pela Questão Coimbrã de Antero de Quental, Eça de Queirós, etc., pelo realismo francês e pelo proudhonismo, e em certos sectores politizados e conscientes do operariado — tipógrafos, manufactores de tabaco, por exemplo. O próprio Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas publica um manifesto onde se dá conta do eco da Comuna. Também basta ler «O Crime do Padre Amaro» para ver como a burguesia portuguesa, concentrada à porta da Havaneza e da Agência Havas, em Lisboa, se encontrava atónita e assustada perante a conquista do poder em Paris pelo proletariado, ouvindo-se em contraponto, de vez em quando, segundo conta o Eça, um «viva o proletariado» no meio do repúdio geral.

O segundo acontecimento importante são as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, que se realizam quase simultaneamente por altura da Comuna de Paris. Estas Conferências são, poder-se-á dizê-lo, a primeira crítica sistemática do capitalismo liberal português e dos vícios da sociedade liberal. É conhecido o papel de Antero, Eça, Batalha Reis, Adolfo Coelho e outros nestas Conferências. Contudo, eles fazem uma crítica duma coisa que não existe. Isto é, criticam o liberalismo na base da sua estruturação, quando este não existia em Portugal como expressão de supremacia das relações capitalistas industriais sobre todo o conjunto da população laboriosa. Em Portugal, só nos fins do século XIX existem condições para a criação dum mercado nacional interno. Isto é importante para se ver como no desenvolvimento das forças produtivas o mercado interno, rede de transportes e outras infra-estruturas são, durante todo o século XIX, factores de condicionamento do atraso do movimento capitalista em Portugal.

O terceiro evento é a presença em Lisboa de enviados da Associação Internacional dos Trabalhadores vindos de Espanha e que criam nesta cidade três coisas distintas: uma secção da Internacional (de que descobri há pouco tempo ligações nítidas de Marx e Engels com portugueses, em 21 cartas que irei publicar), um núcleo da Aliança Democrática Socialista de Bakunine, e uma publicação chamada «O Pensamento Social», que vai aparecer em 1872 e que difundirá a doutrina do pensamento da A.I.T., publicará o «Manifesto Comunista» de Marx e Engels, sendo através do «Pensamento Social» que é veiculada toda a doutrinação revolucionária em Portugal, colaborando até Lafargue com escritos especiais. Em consequência destes três eventos, acontece que o movimento operário organizado abandona o associativismo socorrista e mutualista e, em 1872, surgem as primeiras greves de significado, em Lisboa — na metalurgia, em tipografias, nas manufacturas de tabaco. Em 1872 cria-se ainda a Fraternidade Operária, que já não é uma federação de associações de socorros mútuos, mas uma associação de resistência à exploração capitalista. Nesse mesmo ano vem a Portugal Paul Lafargue, genro de Marx (disfarçado com o nome de Paulo Farga), tentando obter aqui os votos dos internacionais portugueses para a facção marxista da A. I. T.

Em Setembro de 1872 reúne-se em Haia o Congresso da Internacional, que adoptará duas resoluções importantes: a expulsão de Bakunine da A. I. T. por ter constituído no seu interior uma associação secreta, a Aliança Democrática Socialista, e a decisão, por proposta de Marx e Engels (com o apoio nomeadamente dos votos dos internacionais portugueses) de criação de partidos socialistas por países europeus. O próprio José Fontana tinha enviado um memorando ao congresso, neste sentido. Assim, de 1872 a 1875, realiza-se em Portugal uma série de trabalhos preparatórios que haveriam de ultrapassar a criação duma associação de resistência de modo a concretizarem a ideia da fundação dum partido socialista. Durante este período há pois toda uma actividade organizativa, quer em Lisboa quer no Porto, e de modo geral no litoral do país, mas muito especialmente junto do operariado de Alcântara, que irá levar à fundação do Partido Socialista, que vem de facto a ter lugar a 10 de Janeiro de 1875, num centro de Alcântara, onde aparece José Fontana, operário suíço já participante em 1864 na fundação da Internacional e que, chegando pelo fim da década de 1860 a Lisboa, irá impulsionar a fundação do PS.

O Partido Socialista forma-se portanto quer devido à influência de eventos conjunturais, quer devido ao próprio desenvolvimento da classe operária em Portugal.

— Segundo o que descreve, o PS parece ser um produto do movimento revolucionário e, como tal, ele próprio um partido revolucionário. Ora isso não parece condizer com a prática geral que ele virá a ter. O que é, politicamente, o PS?

Efectivamente, o que é o Partido Socialista? Ele cria-se fundamentalmente não na base do marxismo a que os internacionais portugueses tinham aderido na Conferência de Haia, através do seu voto, mas, pelo contrário, estará presente em toda a sua vida o proudhonismo, a proposta dum regime social fundado na associação, que por sua vez federava associações, um socialismo que não punha logo de início a questão da propriedade como fundamental, e onde portanto oscilavam duas tendências: uma profundamente anti-eleitoralista, antipolítica (no sentido da política ser apanágio dos partidos burgueses). E na realidade o PS, de 1875 a 1909, é sobremaneira marcado por duas actividades principais: a participação na actividade eleitoral e nas eleições que decorrem no seio da Monarquia constitucional. E fácil será compreender que um partido socialista cuja principal acção se centrava nesta perspectiva num país onde havia 95% de analfabetos nas classes trabalhadoras (e que não podiam por isso votar) estava condenado ao fracasso. Para além do mais, encontrava ainda no Partido Republicano um concorrente mais sério a esse nível, pois este soube veicular um projecto político de real correspondência nas classes médias.

Por outro lado, a política do PS centrava-se sobretudo numa actividade formativa, uma e outra actividades que não punham em questão a exploração directa no local de trabalho, não organizando a nível do local de trabalho os assalariados.

Isto permitiu que a partir de 1887 os anarquistas (no fundamental a corrente anarco-comunista, pois o anarquismo individualista tipo stirniano nunca teve influência em Portugal), de origem kropotkiniana, de Malatesta, Cafiero, etc., através da publicação «Revolução Social», fossem ganhando terreno nas fábricas, nos locais privilegiados da exploração, terreno esse que vai ficando cada vez mais do seu lado para, em 1909, significar o I Congresso Sindicalista e praticamente o fim do Partido Socialista como força implantada no proletariado. Precise-se no entanto que não é o anarco-comunismo que triunfa neste Congresso, mas sim o sindicalismo revolucionário, de influência francesa — Pouget, Carta de Amiens de 1906—, que aparece como alternativa revolucionária ao reformismo e ao parlamentarismo do PS, o qual deixa então por essa altura de ter importância como força operária.

Surge assim em 1909 a terceira fase do movimento operário (que vai desta data a 1919), ano em que se funda a Confederação Geral do Trabalho (CGT), se abandona o sindicalismo revolucionário e se passa a adoptar o anarco-sindicalismo.

Até 1919 o PS não tem importância de maior, é convidado a participar num governo de União Sagrada de Afonso Costa (1916) —o que provoca nele grandes questões internas—, e só por volta de 1919 é que vê um dos seus membros chamado para o Ministério do Trabalho, em virtude duma viragem à esquerda da política republicana.

O Partido Socialista está contra o golpe de 28 de Maio de 1926 (nessa altura, aliás, só há cinco forças políticas que estão contra: o Partido Comunista, a Esquerda Democrática, de Domingos dos Santos, a «Seara Nova» e o PS; todos os outros partidos, o Republicano e o Democrático, apoiaram o golpe, o que confirma a tese de que não havia possibilidade dum regime de democracia burguesa, mostrando-se a própria necessidade dos partidos Republicano e Democrático favorecerem um regime autoritário que permitisse a estabilidade da sua organização de classe, naquele sentido), mas em 1927 são destruídas e postas fora da lei as organizações políticas proletárias e o PS continua até 1933, realizando ainda nessa data, em Coimbra, uma conferência legal.

A razão por que o regime saído do 28 de Maio não destrói de imediato também o Partido Socialista, quer parecer-me que é óbvia: é porque o salazarismo sempre terá pensado, nos anos da sua consolidação, em servir-se eventualmente do PS como ponte ideológica de ligação à classe operária, pois sabia-o reformista, fraco e sem implantação. Tal ponte seria útil, visto ser pouco perigosa, no caso de a agitação social crescer. O facto, de resto, de os nacionais-sindicalistas de Rolão Preto serem postos fora da lei antes do PS abona neste sentido.

E até 1933 é esta a história do Partido Socialista.

— Relativamente ao que de mais avançado o proletariado português manifestou na luta de classes dos princípios do século, através nomeadamente do sindicalismo revolucionário e do anarco-comunismo, houve da sua parte uma assinalável oposição à prática do Partido Socialista. Terá isso significado uma crítica prática do movimento real da classe ao conservadorismo das instituições políticas incluindo nestas o PS, ou uma crítica predominantemente doutrinária, ideológica, marcada pelo apolitismo de feição anarquista?

A actividade política em Portugal durante todo o século XIX, mas sobretudo à medida que se acentuou a decadência da própria monarquia e que se verifica após a I República, é a prática política institucionalizada mas altamente desprestigiante. O caciquismo de chefes eleitorais, o ar balofo e vazio de conteúdo de grande parte dos debates e quesílias no seio dos parlamentos constitucionais da monarquia, o facto do PS ter centrado parte da sua actividade no terreno eleitoral — aliás como táctica fundamental da II Internacional a partir de 1893 —, o seu gradualismo e etapismo reformista como luta nos quadros da democracia (que, se poderia ter algum significado em países de grandes concentrações operárias e onde o analfabetismo não era imperante, não tinha em Portugal uma correspondência real), tudo isto provocou um vivo repúdio da classe.

O PS obteve nas eleições um mínimo de 14 votos e um máximo de mil! Isto é bem elucidativo. Daí que a partir de 1909 seja bem clara a necessidade experimentada por algumas organizações operárias, sobretudo algumas associações de classe que sempre tinham estado marcadas pelo anarco-comunismo, de encontrarem uma alternativa revolucionária ao reformismo e ao legalismo (e sobretudo, à sua expressão prática, o impasse e o imobilismo), veiculados pelo PS. Porque este defrontava-se com uma situação espantosa: como partido antimonárquico e revolucionário que utilizava uma táctica parlamentar, tinha no Partido Republicano um concorrente que também era revolucionário, pois era antimonárquico, e também tinha no seu próprio ideário uma forte componente socializante. O PS estava assim espartilhado entre as condições objectivas em que decorria a luta de classes e o Partido Republicano que respondia às classes médias, então em ascensão na sociedade portuguesa, e até a parte do proletariado. Daí que a alternativa revolucionária ao PS tenha surgido na procura de restituir à organização sindical no local de trabalho a tónica central. E a posição à política parlamentar vem a manifestar-se nisso, nessa procura que visava restituir toda a capacidade de manobra e todo o dinamismo possíveis à população assalariada, na acção directa contra o patronato, no ataque frontal ao capital, sem recurso a intermediários, na greve geral, na acção exemplar, num certo preconceito ou consciência antipolíticos muito arreigados. Tudo isto são componentes que vão fazer parte da alternativa revolucionária em Portugal, numa altura em que surgem alternativas à táctica da II Internacional. Repare-se que de 1903 a 1909 surge a CGT em França, é a revolução polaca, onde participa Rosa Luxemburg, são os sovietes e os bolchevistas na Rússia, é a ascensão do anarco-sindicalismo em Espanha, é um bocado, julgo eu, a influência de Soser em França e de Labriola e outros em Itália, e julgo até que no próprio seio da II Internacional começam a surgir alternativas que vão tendo expressões diversas de país para país.

Julgo ser esta a explicação, que é a um tempo explicação da alternativa do sindicalismo revolucionário face ao Partido Socialista, a um tempo resposta à situação correspondente do impasse a que o eleitoralismo e o reformismo economicista da II Internacional acabou por conduzir.

— Já indicou, logo de início, que o PS antigo nada tem a ver com o actual. Mas se isso é estritamente verdade a nível orgânico, deve apesar de tudo haver uma espécie de fio condutor que liga a A. S. P. do passado, tanto mais que se integra numa certa tradição social-democrata, daquilo a que se chama, tão gostosamente, o «socialismo moderado». E a Acção Socialista Portuguesa, ao transformar-se em Partido Socialista em 1970, não terá deixado de fazer passar para o presente a sua memória do passado.

Nos primeiros anos da década de 20, há uma cisão muito importante no Partido Republicano: é a cisão Domingos dos Santos, advogado do Porto, que vai constituir um agrupamento chamado Esquerda Democrática. Nos primeiros anos de regime republicano em Portugal, a E. D. é como força de governo a única alternativa de esquerda adentro das formações republicanas clássicas. Em 1925, José Domingos dos Santos é presidente do Ministério e a E. D. está no poder. É nesse mesmo ano que o ministro Ezequiel de Campos lança os fundamentos do que poderia constituir uma reforma agrária em Portugal. Neste mesmo ano, quando os latifundiários e os grandes industriais (o grande capital), tentam derrubar no Parlamento o governo de Domingos dos Santos, a classe operária lisboeta, com o apoio, ao que parece, da CGT, do Partido Comunista, do Partido Socialista, da própria «Seara Nova», organiza uma manifestação frente a S. Bento, obrigando os parlamentares a dar o seu apoio e a sustentar aquele governo. É que era uma força política nitidamente socializante aquela preconizada pela E. D. e que, como força política no poder, tentou levar à prática. Parece-me óbvio que poderia ter sido esta uma via de alternativa ao triunfo do fascismo em Portugal, mas na realidade a burguesia também tem consciência de classe e conseguiu destruir a possibilidade dum governo de esquerda nos quadros da legalidade republicana — o que prefigurava, ao que me parece, uma política de Frente Popular. E deste modo, a burguesia republicana conseguiu deitar abaixo o governo de Domingos dos Santos e, passados meses, dava o golpe de 28 de Maio.

Julgo que grande parte do pensamento socialista e dos socialistas portugueses nos 48 anos de fascismo tem a ver com uma antiga filiação na Esquerda Democrática. Grande parte do pessoal da A. S. P. julgo que ainda alguns membros do PS actual— pertenceu ou andou próximo da E. D. Mas é verdade que não têm nada a ver com o PS antigo. Quer dizer: há mais continuidade entre a E. D., depois Aliança Republicana Socialista, Acção Socialista Portuguesa, Partido Socialista, do que com o PS que acaba em 1933.

— Após o esmagamento das organizações proletárias realizado pelo regime corporativo, após o fim do PS, é praticamente apenas o Partido Comunista que não só se mantém como irá ter um papel predominante na resistência ao novo regime. Mas isso não irá processar-se sem contradições. Que fissuras e novas perspectivas surgem?

Em 1945, por iniciativa de antigos militantes do PCP como José de Sousa, surge uma tentativa de organização política duma série de militantes que foram expulsos a vários títulos nos anos 43/45 (como Cansado Gonçalves), de militantes que no Tarrafal se dessolidarizaram do PCP, sobretudo em virtude do pacto germano-soviético e da política estalinista em curso no aproximar da Segunda Guerra Mundial, tentativa essa que vai ser a da constituição dum partido socialista, sem êxito. Penso que esta tentativa se inscreve numa actividade de esquerda, marxista, mas cujas expressões nunca ficam muito claras e nunca se consolidam; creio que só teve alguma importância (pouca e efémera) na zona de Lisboa. Em 47/48, creio que já nem sequer se fala deste PS.

Antes de me referir ao período posterior, queria ainda falar do que vem de trás.

A corrente maioritária, dominante, no seio do movimento operário organizado, foi de facto o anarco-sindicalismo e a CGT até 1934. Neste ano, a 18 de Janeiro (disto terá que se falar à parte, noutra altura), há a tentativa da greve geral revolucionária como protesto contra a fascistização dos sindicatos, e que se saldou pela maior repressão que até hoje o proletariado conheceu em Portugal. Basta dizer que são presos e julgados mais de três centenas de operários, que vão «inundar» as cadeias de Peniche, Aljube, a fortaleza de S. João Baptista em Angra do Heroísmo, e que depois são transferidos para o Tarrafal. (É curioso que a repressão que se abate sobre os anarco-sindicalistas e o PCP corresponde em 1935 à política de Frente Popular lançada por Dimitrov, salvo erro no 7.º Congresso Internacional).

O Partido Comunista cresce em Portugal a partir de 1939, sob a influência da política de unidade frentista, na ausência já completa dos anarco-sindicalistas, do ponto de vista organizativo. A partir de 1935/36, e sobretudo a partir de 37, isto é, das últimas manifestações dos anarco-sindicalistas como a tentativa de assassinato de Salazar em Julho de 1937, o PCP é de facto a única força de esquerda existente no país, organizada, com uma prática política consequente, mas fundada, esta, no frentismo popular. Em 1943, salvo erro, o MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista), em 1945, a seguir ao discurso de Salazar em que são prometidas eleições livres porque a Democracia triunfou na Segunda Guerra Mundial, é criado o MUD (Movimento de Unidade Democrática), e toda a política de esquerda em Portugal, a partir de 43, se baseia numa constante, com uma ou outra discrepância episódica: a unidade antifascista que se funda numa aliança de classes entre o proletariado, a pequena e média burguesia e «todos os portugueses honrados» (isto chega a ser dito!), e que tem o seu ponto mais alto quer no próprio MUD, quer sobretudo nas eleições para a presidência da República de Delgado, em 58. Este, apoiado inicialmente apenas pelos socialistas (visto que o PCP daria o seu apoio a outro candidato, Arlindo Vicente), faz acontecer uma coisa espantosa neste período eleitoral: quem queria as massas na rua —isto é, a esquerda, o PCP — tinha um candidato que era incapaz de o fazer. Quem não queria as massas na rua, tinha um candidato que as pôs mesmo na rua. E esta contradição, que aqui talvez caricaturize demasiado, diz bem da hesitação que no findar da década de 50 se apoderou do movimento oposicionista português. As hipóteses existentes então centravam-se ou numa via insurreccional, de luta de massas, ou noutras vias a ensaiar, do tipo «putsch» militar ou de tentativa de desagregação interna do regime. 1958 parece-me ser o encerrar de todo um período de luta sob a égide ainda do espírito democrático antifascista. Período esse que ao nível do proletariado tem a expressão adequada em 1962 (em todo o período 58/62, que é o período em que o PCP corrige aquilo que ficou conhecido por «desvio de direita»), e que vai saldar-se por essa luta extraordinária pela jornada de 8 horas do proletariado agrícola do Alentejo e do Ribatejo. 1962 é um ano chave em Portugal, com grandes lutas operárias, manifestações de rua, primeira grande crise estudantil com greves na Universidade, e o saldo repressivo de vários mortos pela polícia e numerosas prisões. Penso mesmo que 62 é o epílogo dum certo modo de fazer política em Portugal e fornece a criação de novas condições para a realizar. A expressão disso está, aliás, no facto de que se até então as tentativas no quadro da oposição para além do PCP se situavam muito em ligação com os republicanos históricos ou com os tradicionais democratas burgueses, a partir de 62 surgem no nosso país tentativas e esforços novos de organização que já só estavam virados para o futuro, que nada tinham a ver com a democracia histórica portuguesa. Depois de 62 surge assim o M. A. R. (Mov. de Acção Revolucionária), que participa na FPLN, e que é a primeira tentativa portuguesa, em Portugal, para perspectivar uma acção política socialista não social-democrata, fora dos quadros do PCP. Em 1964/65 surge a cisão no PCP que vai dar origem ao Comité Marxista-Leninista Português e à FAP (Frente de Acção Popular), e em 1969, creio que sob o impulso de toda a geração de 62, tendo em conta a experiência do MAR, da FAP e da prática política geral da esquerda revolucionária no seio da Oposição, sob o impulso também de Maio 68 em França, surge pela primeira vez de modo público em Portugal uma fissura e uma ruptura na Oposição tradicional. Pela primeira vez, em 1969, são claras duas posições no seio da Oposição: uma que considera a unidade antifascista como unidade táctica fundamental para o derrube do regime salazaro-caetanista. Outra, que considerando tal unidade uma componente inegável, juntava a esta o complemento duma opção socialista que recusava a cópia de modelos e que existia como componente fundamental da própria unidade antifascista na luta em Portugal. Esta fissura, que tem lugar em Lisboa entre a CDE e a CEUD (que depois em 1973 é recuperada através duma reposição da velha unidade), redunda no desenvolvimento da esquerda revolucionária. Nesses anos surgem os «Cadernos de Circunstância», são publicados em Paris, os «Cadernos Necessários», vem a surgir mais tarde a revista «Polémica», Silva Marques publica a sua Carta-Aberta ao Partido Comunista, há um período de prática teórica numa análise de propostas com base no marxismo, que fornece alguns resultados concretos e positivos, como por ex. a EDE (Esquerda Democrática Estudantil). Verifica-se a nível universitário, em particular, e político em geral, a procura de soluções revolucionárias que ultrapassem a democracia e a unidade antifascista e que são concretizadas quer nas tentativas teóricas como as que citei, quer nalgumas tentativas de ordem prática.

— Não serão sobretudo as coordenadas políticas internacionais que aparecem determinantes nas mudanças de que fala? Parece ser apenas após 1969 que o próprio movimento social proletário surge a formular um certo número de críticas práticas e, com isso, a permitir uma formulação teórica nova.

Concordo consigo, embora pense que uma dada fase do movimento oposicionista em Portugal se encerra de facto em 62. Em 62 é patente que a unidade/ /aliança de classes que era o apoio social da unidade antifascista desembocava sistematicamente em impasses. Por ex., em 1949, estando o Estádio do Salgueiros, no Porto, cheio por uma multidão disposta a vir para a rua manifestar-se violentamente, vai um senhor, que hoje é presidente dum partido, ao microfone dizer que nada de violências, é preciso demonstrar ao governo que somos pelo civismo e pela ordem. Ora bem, esta componente da Ordem Cívica, de Respeito pela Legalidade, que as pessoas tentavam forçar sempre mas nunca romper, encerra-se efectivamente, ao nível da Oposição política legal, em 1962 e se mostra a impossibilidade de meter no mesmo saco média burguesia, pequena burguesia, proletariado, estudantes, intelectuais revolucionários, etc., num projecto comum que apenas era antifascista.

— Isso significará antes de mais um avanço social — não apenas políticodo peso do proletariado nas relações de produção e na sociedade, que vinha aumentando desde os fins da década de 50?

É isso, é porque efectivamente de 58 a 62, em parte em consequência da movimentação política criada pelas eleições de Delgado, surgem as primeiras grandes greves, obrigando estas movimentações colectivas dos assalariados a que o governo tome medidas. Durante muitos anos, por ex., nunca o funcionalismo público tinha sido aumentado. Em Janeiro de 59, Salazar anuncia um aumento. Surgem greves, concentrações. Se de 41 a 45 tinha havido greves, nos anos 50 houve um nítido abaixamento do movimento grevista e reivindicativo. Ora, em 58 reacende-se esse movimento, que culmina com as greves de 62.

Julgo pois que o MAR e a FAP, embora diferentemente, têm muito a ver com a ascensão do movimento social do proletariado, que não encontrava saída nas perspectivas oferecidas pelas forças oposicionistas tradicionais. É evidente que no caso particular da FAP há muito a ver com o conflito sino-soviético. Mas o trabalho teórico de Francisco Martins Rodrigues fica em 64/65 como um dos marcos fundamentais da ascensão do movimento revolucionário de classe. E julgo (até porque sou insuspeito de ligações com estalinistas) que fica como a correspondente natural entre o desenvolvimento das forças produtivas e o movimento de classe.

É óbvio que em 69 estamos já numa fase do capitalismo em Portugal diferente da de 62/63. Na realidade, a guerra colonial, os primeiros planos de fomento, a emigração e toda uma série de factores de transformação estrutural e conjuntural aceleraram quer o predomínio das relações sociais capitalistas, quer a importância na população activa da classe operária fabril. E em 69 e na prática política posterior, já é a tentativa da esquerda revolucionária para fazer uma leitura da sociedade fundada cientificamente que surge nas perspectivas de alternativa à sociedade capitalista, bem como às propostas da Oposição tradicional.

— Justamente, quais são os elementos-base dessa leitura e como é que vai exprimir-se socialmente?

Quer-me parecer que o movimento revolucionário socialista em Portugal, a partir de 69, mede-se no fundamental por isto: partindo duma análise das transformações operadas na sociedade portuguesa que conferiam às relações sociais capitalistas e ao predomínio crescente da classe operária e da população assalariada um peso quantitativa e qualitativamente muito superior ao da década anterior de 50, tentava-se a partir dessa leitura perspectivar uma acção revolucionária que tivesse uma correspondência natural nas modificações estruturais produzidas na sociedade. Se podemos dizer que o processo da revolução industrial entre nós acaba na última década dos anos 50 e nos primeiros de 60, em 1969 estamos já numa sociedade marcada por um capitalismo subalterno e dependente, mas de qualquer modo numa sociedade com predomínio das relações sociais capitalistas modernas mais que evidentes e na qual o produto industrial é cerca de duas vezes mais o produto agrícola. Deixou de ser uma sociedade rural e agrícola, velho sonho salazarista destruído pelo desenvolvimento capitalista moderno, para passar a ser uma sociedade industrial — dum capitalismo industrial fraco, com uma burguesia sem capacidade, que fez grande parte da acumulação de capital graças às matérias-primas coloniais, mas que, de qualquer modo, confere a esta sociedade uma especificidade que já não é aquela de 45. Basta dizer que entre 1900 a 1950 a classe operária cresce 1/2% e entre 1950 a 1970 cresce 18%.

Esta transformação estrutural vai estar na origem das perspectivas que a geração de 62, todo o movimento estudantil de 69, numa convergência, fazem avançar. De 1945, com o ministro Ferreira Dias a lançar alarme sobre a situação portuguesa num célebre livre («Linha de Rumo»), passando pelos primeiros planos de fomento, vem-se esboçando, no interior do próprio bloco social dominante, contradições que se saldam pela vitória do capitalismo industrial sobre os latifundiários agrários. De certo modo, a origem do 25 de Abril é exactamente esta: a ruptura no bloco social dominante, que agora se encontra dominado pelo capital industrial e financeiro e que não encontra de momento no poder político espaço para assegurar e desenvolver o seu próprio domínio.

— Chegando aqui, convém perguntar: e hoje? Parece-me que se vive ainda num período que, apesar dos avanços a que se referiu, se mostra extremamente difícil, um período a que se poderá chamar ainda sobre-ideológico na inoperante exaltação proclamatória, da fraqueza do movimento social de classe.

Do ponto de vista da revolução social e do socialismo, parece-me de facto que a maior parte das organizações políticas existentes representam uma inoperância real, e isso terá a ver com a debilidade do movimento real do proletariado.

Falando das forças que se situam à esquerda do PCP e do PS: os marxistas-leninistas (maoístas), salvo um ou outro documento, uma ou outra luta, parece- -me que nada têm adiantado na luta pelo socialismo em Portugal. O marxismo, o leninismo, são entendidos como um círculo fechado, uma capela, em que as posições políticas se tomam por referência a uma dada passagem ou citação, não se aplicando uma metodologia científica fundada na luta de classes real e nas suas correlações. O maoísmo conduz assim ao desfasamento teórico e organizativo face às necessidades da actual fase da luta de classes. Na realidade, é uma ideologia de justificação, sobremaneira balizada por querelas históricas, sendo a concorrência entre os grupos ao nível de se saber quem é mais estalinista ou o justo defensor da linha justa traçada por Mao. O maoísmo português funciona para os maoístas como uma bíblia evangélica. Neste sentido, são jovens velharias o que em geral proclamam. Do mesmo modo que é possível D. António Ferreira Gomes, Marcelo Caetano ou, por outro lado, Nuno Teotónio Pereira reclamarem-se do cristianismo e do catolicismo, do mesmo modo é possível as várias organizações maoístas reclamarem-se do marxismo-leninismo. Aliás, Karl Kautsky, antes de ser «renegado» (e foi ele o primeiro a falar de centralismo democrático) já dizia que o marxismo corria o risco de se transformar na cúria romana.

Quanto a ser trotskista hoje, parece-me que é um contra-senso. É mais uma vez um campo político pautado por uma querela histórica produzida nas sequelas da revolução russa, que funciona como sua referência ideológica e longínqua. O trotskismo, a meu ver, funciona como a imagem invertida do estalinismo. Saber quem teve ou não razão num dado momento histórico da revolução russa, qual era ou não a perspectiva correcta duma dada tendência que a partir de 1924 se debate nesta revolução, pode ter alto interesse para a análise do capitalismo de Estado. Simplesmente, essa análise tem muito pouco a ver com o actual (e o futuro) momento político do capitalismo em Portugal, com as forças de classe em presença, com a análise do MFA.

Um outro sector situa-se na cristalização do marxismo oficial, ligado aos compromissos internacionais derivados da Conferência de Yalta (criação das zonas de influência e fundamento último da coexistência pacífica), onde Churchill, Estaline e Roosevelt traçaram os limites das esferas de influência das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial. A análise da situação portuguesa no âmbito deste marxismo oficial, está inexoravelmente ligada quer à política dos blocos, quer à defesa do capitalismo de Estado de fachada socialista.

Quanto a outro sector de pensamento marxizante, que umas vezes fala em socialismo em liberdade,

outras em socialismo de base e outras em «inspiração marxista», não conseguindo subtrair-se à influência da II Internacional, talvez não esteja ainda suficientemente clarificado, mitigado como tem sido pela «necessidade política» da colaboração de classes.

— E o MES de onde acaba de sair?

O MES sempre foi para mim, do ponto de vista da construção da teoria revolucionária e da luta política, uma tríplice possibilidade: realizar, na perspectiva duma análise concreta da sociedade portuguesa, a proposta duma teoria revolucionária expressora dum socialismo que, partindo das condicionantes desta sociedade e recusando os modelos burocratizados ou messiânicos, fizesse avançar desde já na teoria e na prática, as condições duma sociedade que harmonizasse democracia operária e poder revolucionário sobre a burguesia, autogestão e planificação socio-económica centralizada, criação cultural e teoria colectiva, total controlo operário sobre a produção e distribuição das riquezas, com institucionalização dinâmica ao nível do Estado revolucionário desse mesmo controlo operário.

2.º, recolher de todo o pensamento revolucionário e socialista e das experiências históricas os ensinamentos necessários. Pessoalmente, e creio que grande parte dos militantes do MES, recuso o apego estático às ideologias marxistas oficiosas, à ideologização do marxismo. Este é um método de análise da globalidade da sociedade, que baseia na análise concreta das situações concretas o fundamental de si mesmo enquanto método, sendo assim que como «marxista» fazem parte da minha intervenção Marx e Engels, grande parte de Lenine (naquilo em que Lenine não é produto específico de limitações do contexto histórico russo). Para Luxemburgo, Gramsci, Pannekock, Mao Tsé-Tung (lembre-se a propósito a intransigência da sua não obediência às ordens de Estaline para ficar no Kuomitang), e todas as experiências modernas no plano teórico e organizativo, do SDS alemão, do PSU, de II Manifesto, etc. O que não significa que esteja de acordo a cem por cento com tudo isto. Quero é sublinhar que as contribuições decisivas para a revolução social não têm todas uma mesma face, provêm de vários quadrantes. Construir um novo partido comunistazinho, uma outra organização onde a verdade revolucionária tem sempre e só a mesma cara, com guardiões da pureza e coisas do género, isso não me interessa.

3.º, como organização política, o MES poderia ter, e poderá ainda vir a ter (não sou defensor de anátemas definitivos) uma contribuição qualitativa fundamental no plano da perspectivação política, da articulação entre teoria, prática política, vanguarda e luta de massas, capaz de proporcionar a construção duma via original (todas as revoluções realizadas foram «vias originais») para a destruição do capitalismo em Portugal. Centralização da direcção política, criatividade de base, debate político permanente, confronto interno e externo, ausência de monolitismo, recusa da lógica centrada na sobrevivência política do aparelho, não são factores e aspectos incompatíveis numa organização revolucionária. Creio que é indispensável uma organização política liberta de apriorismos ideológicos, de tabus e fetiches, que contribua para a construção duma vanguarda revolucionária do proletariado, entendida como produto da própria movimentação colectiva dos trabalhadores, como produto da sua consciência e autonomia de classe. Isto é, como vanguarda surgindo do interior do próprio movimento social concreto, onde se inserissem as contribuições e articulação dialéctica da actividade política de sectores não assalariados, como os estudantes e os intelectuais. Para isso, é indispensável recusar a preponderância da burocracia interna, a reprodução de certos aspectos dos aparelhos estalinistas, como o anti-intelectualismo, o basismo obreirista, o moralismo como luta «política», recusar a confusão entre ataque a posições políticas com ataques pessoais, etc.

Para mim o MES continua ainda a ser uma grande possibilidade de contribuir para avanços significativos. No entanto, há que recusar ser muleta ou ponto de apoio de quem quer que seja.

Na actual fase da luta pelo socialismo em Portugal, é óbvio que uma linha política revolucionária não pode nem resvalar para objectivos que não caibam na actual correlação de forças, nem redundar em posições imobilistas de apoio cego e surdo a soluções políticas que podem travar a conquista do poder pelo proletariado. O socialismo como objectivo político a médio prazo é uma realidade possível. Creio que para isso é necessário responder às aspirações que o proletariado exprime, ocupar posições irreversíveis no poder político e no aparelho de Estado, garantir um movimento de massas global.

Assim, e para terminar, parafraseando e adaptando o lema da I Internacional, o socialismo em Portugal será obra de todas as forças políticas, de todos os revolucionários que pretendam contribuir para que o proletariado seja o agente histórico insubstituível e o dono absoluto da sua própria emancipação.

Entrevista de Júlio Henriques


Inclusão: 23/05/2020