MFA e Revolução Socialista

César Oliveira


CAPITULO III
DEMOCRACIA BURGUESA OU TRANSIÇÃO PARA O SOCIALISMO?

M. F. A. E REVOLUÇÃO SOCIALISTA

CONSTRUIR UM PROJECTO REVOLUCIONÁRIO CLARIFICAR A LUTA PELO SOCIALISMO


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1. Nestes primeiros tempos de 1975, meteoro- logicamente frios mas politicamente em estado de fervura, que marcam o início de um ano que será certamente decisivo ou, pelo menos, altamente importante, muito se tem discutido, muitas posições se têm defrontado. No entanto, a simples enunciação da temática em discussão (unicidade sindical, nacionalizações, eleições, institucionalização do M. F. A., etc.), parece pressupor que se tenha discutido previamente a estratégia adequada para o socialismo em Portugal pois aqueles aspectos, sendo «pontos» de grande relevância, só inseridos num determinado projecto político podem ganhar dimensão. Unicidade por unicidade, eleições por eleições, ou traduzem uma luta e determinado tipo de oposições sem sentido e sem conteúdo ou pretendem escamotear a verdadeira natureza das questões que se colocam à luta política em Portugal.

A questão fundamental que se coloca no nosso país parece ser esta: dada a impossibilidade de uma democracia burguesa em Portugal (qualquer que seja a forma que possa revestir), como avançar para o socialismo tendo em conta as realidades estruturais do nosso país, os factores conjunturais que pesam na luta e nas soluções políticas e tendo em devida conta a actual correlação de forças?

Assiste-se porém ou ao escamotear da resposta a esta questão por intermédio de fórmulas vagas, arte mágica, onde cabem todas as soluções que nada explicam ou ao constante refúgio em chavões pseudo- democráticos que mistificam o valor da liberdade e da democracia, atribuindo-lhes um significado totalmente desligado da realidade da luta de classes em Portugal.

2. Podemos «encaixar» o leque das principais posições políticas que se defrontam na cena política em dois grandes grupos embora, no interior de cada um deles, existam, de posição para posição, diferenças, senda algumas acentuadas. Assim:

  1. Para o PPD, para o PSP e para o CDS a opção é, comummente, identificável pela defesa intransigente da democracia pluralista, das liberdades públicas (liberdade de quem e para quem?); recusa-se a consolidação de uma legalidade revolucionária que aprofunde o processo aberto em 25 de Abril e reforçado em 28 de Setembro por oposição ao processo eleitoral próximo, entendendo-se as eleições como instrumento essencial a partir do qual reformas de fundo serão possíveis.

A AOC integra-se neste grupo porque o reforço da posição do PS constitui a única oposição possível ao «social-fascismo (PCP)», obstáculo essencial à tomada do poder pelos trabalhadores.

[O MRPP, opondo-se o mais terrivelmente possível ao CDS não tem hostilizado as posições do PS porque para ele o inimigo principal também é «o social-fascismo» e o social-imperialismo (da URSS). Este movimento considera que o CDS representa sobretudo o imperialismo americano e como o PCP representa o «social-imperialismo» serão estes portanto os inimigos principais a atacar como principais forças da contra-revolução.]

  1. Para o PCP, para o MDP/CDE, MES, FSP a opção tem-se traduzido essencialmente numa série de recusas, expressas ou veladas, no que toca a eleições, à democracia burguesa, etc., enquanto se afirma a necessidade de nacionalizar sectores básicos da economia, de promulgar adequada legislação revolucionária, de aprofundar o saneamento, de criar condições para continuidade do processo revolucionário.

No entanto, se na primeira posição as diferenças entre o PPD e a actual direcção do PS são meramente formais, enquanto que a defesa da democracia burguesa é para o CDS uma operação táctica de embuste, no segundo grande grupo parece não haver coincidência entre os objectivos a curto prazo e os projectos de cada uma das forças que, até há pouco, conduziram algumas acções comuns.

De resto, o que poderá caracterizar o segundo grupo de posições é uma grande ambiguidade, tanto mais evidente quanto mais nítido se tem desenhado o movimento popular de massas que o PCP tem accionado como parte integrante da sua táctica ofensiva. De facto, os últimos tempos demonstraram uma verdade que alguns ainda não querem ver como evidente, ou seja, só há movimento de massas populares quando o PCP necessita de reforçar o seu poder político ou de conquistar novas posições tácticas. As veleidades infantis de certos movimentos que pretendem dirigir, à margem e em oposição ao PCP, o movimento de massas, parecem ter ficado enterradas ao anoitecer de 31 de Janeiro. O movimento de massas pode existir partilhado pelo PC e por outras forças políticas, poderá ter até conteúdos precisos (antimonopolistas, antilatifundiários, anti-reaccionários, etc.) e revestir formas e expressões de carácter radical (caso da ocupação de terras nos Alentejos). No entanto, sem o PCP não há movimento popular de massas se exceptuarmos algumas manifestações (os movimentos de massas não são apenas manifestações do MRPP).

No entanto, se urge proceder a nacionalizações e ultrapassar a democracia burguesa, pouco ou nada se tem adiantado em termos de definir, na actual correlação de forças, a via que conduza a outra solução que não a democracia burguesa; isto é, trata-se de avançar para um Estado «genuinamente democrático» segundo o PCP(1); para um «Estado amplamente democrático» segundo o MDP/CDE (a amplidão medir-se-á em percentagens? Amplamente 53% e democrático 47%, por exemplo); segundo o MES que nunca falou em Estado ou poder político, trata-se de «manter e agravar a crise da dominação burguesa», «criar contrapoderes e poder popular» e assegurar «avanços para o socialismo» intervindo a todos os níveis» (ver livrinho programático recentemente editado); para a FSP o essencial consiste em «levar ao poder a classe trabalhadora» e construir um «socialismo de base» (Conf. de Imprensa no Cinema Universal).

E o poder político? E o destino das nacionalizações? Que alianças políticas? Que alianças de classe? Que reformas no aparelho de Estado? Que política externa? Que projecto de constituição política? E o M. F. A.? Como se assegura a democracia revolucionária? Que socialismo? Que fase se propõe como substituição à democracia burguesa? Que tipo e em que sectores se vai promover a participação popular?

3. Já em textos anteriores tentámos mostrar que a tentativa de estruturar um projecto político em torno da democracia burguesa (se o pluralismo não for revolucionário, é certamente o pluralismo para a burguesia) resultará de facto em duas soluções possíveis que de resto não serão muito distantes uma da da outra. Ou um regime repressivo com instituições formalmente democráticas jogando claramente na reconversão da exploração capitalista, no reforço das ligações ao imperialismo e em mecanismos de repressão e conciliação para espartilhar reivindicações populares que a debilidade e dependência da burguesia não pode satisfazer. Ou num regime claramente parafascista (por exemplo ditadura militar de direita) se «a legalidade» da nova ordem democrático-pluralista não for bastante para contrabalançar a acção das organizações sindicais e das forças políticas de esquerda. O apoio do CDS ao PS insere-se numa estratégia que aponta para este objectivo. Por outro lado, o apelo que o PPD fez ao PCP para um «compromisso histórico» por intermédio de um seu dirigente, o sagaz, hábil e simpático carteiro N. S., mostra que o projecto social-democrata só é viável nos quadros da democracia burguesa se comprometer a única força que importa manietar à sua esquerda: o PCP. Por outro lado, como explicar o alarme lançado por Mário Soares quanto aos eventuais perigos do acelerar do processo revolucionário senão como defesa do único projecto que defende, isto é, a democracia burguesa?(2)

Os ataques ao M. F. A., o constante apelo ao general Costa Gomes em quem se personaliza todo o M. F. A. e todas as Forças Armadas, os apelos à defesa da democracia contra todas as ditaduras, inserem-se de facto numa estratégia contra-revolucionária do PS e do PPD que redunda numa táctica eleitoralista e parlamentar à qual querem atrelar o PCP, esperando assim manietar os trabalhadores portugueses.

A construção do socialismo em liberdade arrancaria pois de um compromisso pós-eleitoralista entre PCP, PPD e PS, com clara vantagem para as sociais-democracias e cujos objectivos não ultrapassariam os limites de uma gestão avançada do capitalismo com forte aparelho repressivo capaz de garantir a «paz social». As «dependências» exteriores se porventura existem para o PCP, não deixam, por isso, de existir para o PS (vejam-se os 14 000 contos da Holanda para Mário Soares).

4. A incógnita de todo o processo revolucionário é, de facto, o M. F. A. (elemento original sem termo de comparação noutros processos) que parece disposto a aprofundar o processo iniciado em 25 de Abril, apostado em não perder por votos em eleições necessariamente controladas pelas classes possidentes, tudo o que foi conquistado pelas armas e nas ruas, em desenvolver e aprofundar toda uma política de defesa dos trabalhadores (que exclui a democracia burguesa ou pluralista).

Com efeito, com o deslocamento da direcção do Partido Socialista para posições do PPD e formalmente para posições próximas do CDS (o bloco político da direita), com a sua prática política centrada na defesa de uma liberdade e de uma democracia abstractas, ficou ou estará a ficar o M. F. A. sem outra força significativa de apoio para além do PCP, o que poderá ser extremamente limitativo face ao reforço das posições progressistas e revolucionárias no seu interior.

De facto, trata-se de buscar os fundamentos de uma liberdade e de uma democracia entendidas no interior de um processo revolucionário, cuja directriz essencial será sempre a de reforçar cada vez mais no poder político e nos processos de nacionalizações, não apenas a participação das massas populares mas o controlo permanente da globalidade do processo revolucionário por expressões diversas de poder popular. Sem iniciativa popular, sem participação efectiva, sem controlo popular a todos os níveis, o caminho da revolução portuguesa será o de um capitalismo de Estado burocrático, centralizado, onde os aparelhos se substituirão à acção e à vontade colectivas. Ora o M. F. A. parece essencialmente empenhado na dinamização popular.

Mas a dispersão das forças de esquerda não-dogmática, a sua fraqueza quantitativa, a presença no interior do PS, de bases e quadros não sociais-democratas manietados por uma direcção direitista, a indefinição política de uma ou outra organização de esquerda, podem ser factores de atraso ao processo revolucionário, exactamente porque não podem, por agora e a curto prazo, garantir ao M. F. A. um apoio substancial, capaz de pluralizar politicamente o avanço decisivo do processo.

Efectivamente, nem o MES, nem a FSP nem a LUAR constituem de per si organizações capazes de substituírem, simultaneamente, uma alternativa na luta de massas ao PCP (de sentido revolucionário e de expressão antiburocrática) e ponto de apoio ao M. F. A. com força aproximada à do Partido Comunista. Por outro lado, parece faltar a cada uma destas organizações, capacidade para definir de modo rigoroso e claro qual o sentido e significado político da sua unidade com o PCP e com o MDP/CDE e qual o poder político que permitirá realizar quer os objectivos tácticos daquela unidade quer o acelerar do processo para a revolução socialista, impedindo ao mesmo tempo a reconversão do capitalismo e a recuperação do poder político pelas forças ao serviço da burguesia.

O M. F. A. poderá pois ficar perante um dilema dramático: ou avança apoiado numa frente política, de certo modo indefinida e sem uma clara dimensão política, mas onde é clara e indiscutível uma hegemonia do PCP ou para o processo, facilitando a concretização das posições contra-revolucionárias e demo-burguesas do PS, do PPD e do CDS. Qualquer destas duas opções se for concretizada poderá levar, obviamente, a fissuras no interior do próprio M. F. A., a não sei que, a curto prazo, se consolidem condições para a formação de uma força revolucionária de alternativa à burguesia e ao reformismo, capaz de «jogar de igual para igual» quer com o PCP quer com o próprio M.F. A. e que possa definir, por capacidade criadora, importância numérica e por descomprometimentos internacionais, quer um projecto político revolucionário, consequente e global, quer os termos de uma unidade rigorosa e clarificadora com o PCP e com o MDP/CDE.

No interesse das massas trabalhadoras e do processo revolucionário aberto em 25 de Abril e da dinâmica revolucionária do próprio M. F. A. é pois urgente aglutinar, fundir e dar a dimensão política efectiva às forças de esquerda existentes. Só assim a esquerda não social-democrática, a esquerda socialista revolucionária, o M. F. A. poderão impor às sociais- -democracias (PPD e PS) as regras de um jogo que não é o do capitalismo nem o da sua gestão avançada, nem o da democracia pluralista.

5. Se no domínio da política económica e social os objectivos tácticos têm sido mais ou menos claramente definidos pelo PCP, pelo MES e pelo MDP/CDE e poderão encontrar até uma expressão maleável no Plano Económico, a ausência de um projecto político revolucionário e consequente pode comprometer as medidas concretas propostas naquele terreno.

De facto, o que é um Estado genuinamente democrático? E um Estado amplamente democrático? O que são contrapoderes? Como se concretizam os «avanços para o socialismo?» Como se evita o capitalismo de Estado burocrático?

Estas são algumas das questões suscitadas pela ambiguidade referida atrás e a que se não tem dado resposta.

Parece óbvio que o fundamental das tarefas que se colocam à esquerda não-social-democrata é o seguinte: definir um conjunto de medidas económicas e sociais que se integrem num poder político revolucionário garantido pela dinâmica progressista do M. F. A.

Quer se queira quer não (pese embora a uma ou outra organização já citada), as medidas concretas, a luta de massas, os avanços para o socialismo, nada são e nada representam de sólido e significativo se não forem capazes de se exprimir num poder político globalizador, garante do reforço do processo revolucionário e da democracia, da liberdade e da capacidade de iniciativa das massas populares. Só assim ficará claramente salvaguardada a centralização espartilhante, a burocracia contra-revolucionária e o dogmatismo sectários.

Trata-se pois de definir claramente um projecto político revolucionário (cuja discussão é cada vez mais urgente) e que consagre:

  1. a aliança dos trabalhadores com a pequena burguesia (de modo a subtraí-la da esfera de influência da reacção) sob a clara hegemonia de uma linha proletária;
  2. um conjunto de medidas anticapitalistas que poderão passar a curto prazo por um capitalismo de Estado, com controlo dos trabalhadores e formas de democracia claramente definidas;
  3. um conjunto de reformas na saúde, na previdência social, na habitação, no urbanismo, nos transportes, que garantam a defesa dos trabalhadores e institucionalizem formas de gestão colectiva;
  4. um conjunto de medidas a tomar no aparelho de Estado de modo a promover uma descentralização administrativa e formas institucionais de participação popular na administração local e regional;
  5. uma política extrema de não-alinhamento e de efectiva aproximação com os países progressistas do Terceiro Mundo, de modo a concretizar a alternativa ao eixo de dependências do bloco capitalista.
  6. a definição do regime político (englobando todas as forças políticas não-sociais-democráticas (PCP e MDP/CDE) e forças de esquerda não dogmáticas e antiburocráticas que permita a democracia e a liberdade na efectividade do exercício de um poder revolucionário, institucionalize expressões de poder popular e garanta a irreversibilidade das medidas concretas no campo económico/social.

Perguntar-se-á: qual a função que caberia ao PPD e à direcção social-democrata do PS?

Parece, pois, que duas soluções seriam possíveis: ou esses partidos «alinhariam» no novo curso sob pressão dos próprios acontecimentos e das massas populares ou, como partidos eleitoralistas que de facto são, acabariam por desaparecer da cena política. O desafio à capacidade criadora das forças políticas de esquerda está lançado pela própria realidade social do nosso país. Parece que a originalidade da situação portuguesa reside nas Forças Armadas e na impossibilidade democrática da burguesia, num país que não é nem subdesenvolvido nem industrializado. País charneira entre o Terceiro Mundo e a Europa industrializada, Portugal defronta-se com uma problemática económica que exige maleabilidade, invenção e realismo eficiente como características principais da resposta que todos os revolucionários terão de dar.

Não há modelo revolucionário aplicável a uma realidade política profundamente determinada por um elemento espúrio: o M. F. A.

E não basta dizer que, pelo facto do centro da decisão política fundamental ser o M. F. A., as soluções poderão aproximar-se daquelas outras que têm tido lugar na América Latina, no Médio Oriente e na África. Há de facto em Portugal um elemento que por imbricado com o M. F. A. perturbará por certo os adeptos de soluções militares progressistas ao estilo terceiro-mundista: uma esquerda implantada nas massas trabalhadoras, cuja importância e cujas propostas têm alterado continuamente a dinâmica interior do M. F. A.

O marxismo, a teoria revolucionária como elemento de perspectivação revolucionária de soluções concretas para problemas específicos à sociedade portuguesa e como resposta às condições particulares em que decorre a luta política, terá de ter sobretudo uma capacidade de criação e de invenção que permita o avanço para o socialismo sem o comprometer.

Se o reformismo, a social-democracia e as tentativas maoístas se revelaram incapazes de conduzir, na Europa, os trabalhadores a uma luta coerente, eficaz e perspectivada pelo socialismo, os problemas que se põem em Portugal parecem exigir soluções globais alternativas porque terão de ser resposta a situações que em grande parte nada têm a ver com a Europa.

Ter-se-á clarificado nestas páginas o caminho para o avanço pelo socialismo em Portugal?

O nosso objectivo foi o de contribuir, com este volume, para clarificar um processo e para construir um projecto revolucionário adequado à realidade portuguesa.

4 Fevereiro 1975


Notas de rodapé:

(1) O Projecto Político do PCP para os problemas em aberto na sociedade portuguesa tem sofrido contínuas precisões. As afirmações de Álvaro Cunhal em 2.2.75 na Conferência Unitária dos Trabalhadores faz pensar que o PCP propõe o socialismo a curto prazo. O discurso de Jaime Serra em Bragança contrasta com a «brandura» das anteriores posições do PCP. A uma certa ambiguidade e «moderação» decorrentes do Congresso Extraordinário em 20.10.74, tem o PCP substituído um conteúdo revolucionário mais preciso e inserido numa ofensiva de massas. (retornar ao texto)

(2) Mário Soares, em discursos proferidos no Alentejo, no primeiro fim-de-semana de Fevereiro, faz «ameaças» ao processo revolucionário português, baseando-se nas dependências económicas externas de Portugal. Como «travão necessário» à radicalização do processo, a única saída para Mário Soares é assim a democracia pluralista, forma estatal e difusa de que o PS nunca dá conteúdo. (retornar ao texto)

Inclusão: 23/05/2020