O Papel do Fascismo

Anton Pannekoek

Julho de 1936


Primeira Edição: International Council Correspondence, vol. 2, no. 8. julho de 1936.

Fonte: Crítica Desapiedada -

Tradução: Rodrigo Aguiar e revisado por Felipe Andrade a partir da versão disponível em: https://www.marxists.org/archive/pannekoe/1936/07/role-fascism.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


I

A principal característica do fascismo é a de organizar o pequeno capitalista e a classe média com sua visão mesquinha dos negócios privados, em uma organização de massa, forte o suficiente para controlar e vencer as organizações proletárias. Essa classe, espremida entre o capitalista e a classe trabalhadora, incapaz de combater o capitalismo, está sempre pronta para se voltar contra a luta da classe operária. Apesar da classe média odiar o grande capital e produzir slogans anticapitalistas, ela é uma ferramenta nas mãos do capitalismo, o qual paga e direciona sua ação política para a subjugação dos trabalhadores.

Suas ideias e teorias são dirigidas principalmente contra a luta de classes, contra os sentimentos e ações dos trabalhadores como uma classe separada. Contra isto, ela apresenta um forte sentimento nacionalista, a ideia da unidade da nação contra nações estrangeiras. Nesta nação, os trabalhadores têm seu lugar, não como uma classe separada, mas combinados com os empregadores na qualidade de grupos de produção industrial e agrária. Os representantes desses grupos formam conselhos consultivos para o governo. Isto é chamado de Estado Corporativo, constituído na representação direta do agrupamento econômico da sociedade por intermédio do trabalho capitalista. Ele é oposto ao sistema parlamentar pelo qual o fascismo quase não tem utilidade e é denunciado como um poder de rompimento, um pregador nocivo da dissensão interna.

O parlamentarismo é a expressão de supremacia do povo, dos cidadãos e da dependência ao governo. O fascismo coloca o Estado acima dos cidadãos. O Estado, como organização da nação, é o objetivo superior do qual os cidadãos estão subordinados. Nem a democracia, nem o direito do povo, mas autoridade e os deveres pessoais em primeiro lugar. Isto coloca o chefe do partido no topo do Estado, como um ditador para governar com seus companheiros de partido, sem a interferência dos delegados parlamentares.

É evidente que essa forma de governo corresponde às necessidades do capitalismo moderno. Em um capitalismo altamente desenvolvido, o poder não está enraizado, como era no princípio, em uma classe numerosa de produtores independentes, mas em um pequeno grupo de grandes capitalistas. Seus interesses podem ser melhor atendidos influenciando um pequeno corpo de governantes absolutos, e suas operações parecem mais seguras se a toda oposição dos trabalhadores e todas as críticas públicas forem mantidas com um punho de ferro. Portanto, é visível em todos países uma tendência para aumentar o poder do governo central e dos chefes de Estado. Embora isso seja às vezes também chamado de fascismo, faz certa diferença se o controle parlamentar é mantido, ou se é estabelecido um governo ditatorial aberto, fundado no terrorismo de uma poderosa organização partidária.

Na Alemanha, um desenvolvimento análogo do movimento nacional-socialista ocorreu um pouco mais tarde. A revolução de 1918 trouxe o “socialismo” ao poder, mas este poder foi útil para proteger o capitalismo. Os socialistas no governo deixaram os capitalistas comandarem como quisessem. As mesquinhas classes capitalistas vendo seus antagonistas dos dois lados agora unidos e funcionários socialistas envolvidos em assuntos capitalistas sujos, consideravam os interesses do estado socialista e a especulação capitalista como um princípio comum de corrupção de uma gangue internacional de enxertadores. Opunha-lhes o pequeno e honesto negócio de pequenos capitalistas e os antigos agricultores conservadores. Jovens intelectuais das universidades que encontraram seu antigo monopólio de cargos públicos violados pelos detestáveis líderes socialistas, e ex-oficiais desempregados pela diminuição do exército, organizaram os primeiros grupos de nacional-socialistas.

Eles eram nacionalistas ardentes porque pertenciam à classe média capitalista e se opunham ao internacionalismo da social-democracia dominante. Eles se autodenominavam socialistas, porque seu sentimento pequeno-capitalista era hostil aos grandes negócios e às grandes finanças. Eles também eram fortemente antissemitas. Em primeiro lugar, porque o capital judeu desempenhou um importante papel na Alemanha, especialmente das grandes lojas que causaram a ruína de pequenos lojistas. Em segundo lugar, porque numerosos intelectuais judeus inundaram as universidades e as profissões eruditas e, com frequência, pelos espíritos mais aguçados – por exemplo, advogados e médicos – deixaram seus concorrentes alemães para trás.

Esses nacional-socialistas foram financeiramente apoiados pelos interesses dos grandes capitalistas, especialmente pela indústria de armamento que sentiu seus interesses ameaçados pelas crescentes conferências de desarmamento. Eles formaram grupos ilegais de capitalismo contra o crescente bolchevismo. Então veio a crise mundial, agravando as condições na Alemanha exaurida pelas indenizações do tratado de paz. A revolta da classe média desesperada elevou o Partido Nacional-Socialista à posição do mais poderoso partido e permitiu-lhe tomar o poder político, bem como tornar seu líder o ditador da Alemanha.

Aparentemente, essa ditadura das ideias da classe média é dirigida contra o grande capital e contra o movimento da classe trabalhadora. No entanto, é claro que um programa pequeno capitalista de retorno aos tempos antigos das pequenas empresas não pode ser realizado. Logo ficou evidente na Alemanha que o grande capital e a aristocracia proprietária de terras ainda são os verdadeiros mestres por trás do partido nacional-socialista. Na realidade, este partido atua como um instrumento do capitalismo para combater e destruir a organização dos trabalhadores.

Tão forte era o poder dos novos slogans que eles atraíram um amplo número de trabalhadores com eles, que se juntaram ao Partido Nacional-Socialista. Os trabalhadores haviam aprendido a seguir seus líderes, mas estes líderes os desapontaram e foram derrotados pelos líderes mais fortes. O esplendor e o poder espiritual dos ideais socialistas e comunistas haviam diminuído. O nacional-socialismo prometeu aos trabalhadores um socialismo melhor, uma trégua de classes em vez de uma guerra de classes. Ele ofereceu a eles um lugar apropriado na nação como membros de um povo unido, e não como uma classe separada.

Devido à vitória do fascismo, ou seu equivalente em determinados países, as classes trabalhadoras nesses países retrocederam em sua luta sistemática e ascendente pela emancipação. Suas organizações foram aniquiladas, ou no caso dos sindicatos, colocadas diretamente sob o comando dos funcionários do estado capitalista. Os jornais dos trabalhadores foram suprimidos, a liberdade de expressão proibida, propaganda socialista e comunista proibida e punidas com prisão, campos de concentração ou longo encarceramento. Na uniformidade imposta da opinião, não há espaço para ensinamentos revolucionários. O caminho regular do progresso em direção ao poder proletário no desenvolvimento do esclarecimento e organização por meio de propaganda e discussão, o caminho da revolução e liberdade, é bloqueado pelo muro de concreto da reação.

Assim é como aparece na superfície. No entanto, analisando mais profundamente o problema, isso significa apenas que para os trabalhadores a maneira pacífica e suave de aumentar o poder está bloqueada. Dissemos anteriormente que o direito à liberdade de expressão, o direito de organização, o direito de propaganda e de formação de partidos políticos eram necessários para o capitalismo. Isso significa que eles são necessários para garantir um trabalho regular da produção capitalista e do desenvolvimento capitalista. Isto quer dizer que, uma vez que eles se foram, o antagonismo de classe deve finalmente explodir em fortes revoltas e violentos movimentos revolucionários. A classe capitalista tem que decidir se ela prefere este caminho.

Ela possui suas razões para tomar esse caminho. Sente fortemente que a pesada crise mundial de hoje está tremendo o sistema capitalista no coração. Sabe que a produção reduzida é incapaz de alimentar toda a classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, de gerar lucros suficientes. Ela não consegue solucionar as próprias perdas. Assim, percebe que os trabalhadores, famintos pelo desemprego, devem se levantar e as revoltas aumentarão. E tenta evitá-los fortalecendo sua própria posição, forjando o conjunto da classe capitalista em uma unidade forte, colocando o poder do Estado em uma armadura forte e amarrando os trabalhadores a este estado por meio de fortes grilhões. Dessa maneira, o estado rouba os trabalhadores dos seus antigos meios de defesa, dos seus porta-vozes socialistas e suas organizações. Esta é a razão por que nesses últimos anos o fascismo se tornou poderoso.

Em certo momento, o capitalismo parecia estar no melhor caminho de enganar os trabalhadores por meio de falsa democracia e falsas reformas. Agora está virando para o outro lado: a pesada opressão. Isto deve levar os trabalhadores à resistência e determinar a luta de classes. Por que o capitalismo faz isso? Não por vontade própria, mas compelido por forças econômicas materiais inerentes à sua natureza mais íntima; pela crise pesada que põe em risco seus lucros e provoca seu medo pela revolução.

O fascismo triunfante se vangloria de ter bloqueado para sempre o caminho ao comunismo. A sua reivindicação deve-se ao fato de ter esmagado o movimento dos trabalhadores. O que ele realmente esmagou foram só as formas ineficazes e primitivas. Ele destruiu as ilusões, as antigas crenças socialistas, os partidos socialistas e comunistas – todas as coisas obsoletas que dificultam o progresso. Ele destruiu ao mesmo tempo as antigas divisões do partido que incitavam trabalhadores contra trabalhadores. Assim, ele restaurou sua unidade de classe natural.

Partidos são grupos de opinião comum; as organizações dependem da associação – ambos são acidentes secundários. A classe é a primeira realidade fundada na natureza do próprio capitalismo. Pela tradição, os trabalhadores consideravam a opinião política e a filiação na organização como a verdadeira distinção entre trabalhadores e capitalistas. Eles pensavam e sentiam em termos de partidos e sindicados – e pela tradição devem continuar a fazer isso por algum tempo. Agora, eles estão constrangidos a pensar e sentir em termos de classe. Sem quaisquer muros dividindo, eles estão um do lado do outro e se veem como camaradas, sujeitos à mesma exploração capitalista. Nenhuma disciplina partidária pode chamá-los para a ação; eles terão de pensar e tomar as próprias ações quando o fardo do capitalismo fascista se fizer sentir muito pesado. A névoa de opiniões partidárias opostas, de slogans políticos e de estreiteza sindical que obscureceram a natural consciência de classe, foi destruída. A realidade afiada e implacável do capitalismo os confronta e, para combatê-la, eles têm apenas a si mesmos, isto é, a sua unidade de classe em que podem confiar.

Os partidos políticos da classe trabalhadora – falamos da Alemanha e Itália – desapareceram; somente os líderes no exílio continuam a falar como se eles fossem os partidos. Isto não significa que eles desapareceram para sempre. Se vir a ocorrer uma revolta da classe da classe trabalhadora, eles voltarão e se apresentarão novamente como líderes. Eles devem ser aniquilados novamente, agora pelos trabalhadores, pelo reconhecimento consciente de que são obsoletos.

Isto não quer dizer que não haverá mais partidos no futuro, que a função deles está concluída. Sem dúvidas, novos partidos surgirão em períodos revolucionários para expressarem em novas situações as inevitáveis diferenças de opiniões táticas no interior da classe trabalhadora. Neste sentido, os partidos são elementos necessários do desenvolvimento social. A classe trabalhadora não pode receber opiniões e plataformas prontas de algum Partido Ditador que alega fazer o trabalho de reflexão por ela, e proíbe a opinião independente. A classe trabalhadora tem que pensar e descobrir o caminho por conta própria. Então, as opiniões sobre o que é e o que deve ser feito serão diferentes porque suas vidas – embora em geral parecidas – eram diferentes em particular. Grupos de opinião em comum serão formados para debater e propagar suas ideias, combater os cientistas da classe capitalista e realizar a disputa espiritual com outros grupos. Este é o caminho da autoeducação para a classe trabalhadora.

Neste sentido, os partidos devem ser chamados de grupos de escotismo na floresta do capitalismo. Eles têm que investigar os caminhos, estudar a ciência e as circunstâncias, discuti-las em debates mútuos, apresentar suas ideias, explicações e conselhos a seus colegas de trabalho. Dessa forma, eles são os instrumentos necessários para construir o poder intelectual da classe trabalhadora.

Sua tarefa não é agir no lugar dos trabalhadores, fazer o verdadeiro trabalho de luta dos trabalhadores e arrastar a classe por trás deles. Eles não terão o poder de se colocar no lugar da classe. Unidade de classe e ação de classe serão primordiais, e a opinião do partido subordinada.

II

Existem pontos semelhantes entre a Itália e a Alemanha fascista, e a Rússia bolchevista. Eles são governados por ditadores, chefes de partidos ditadores – o Partido Comunista na Rússia, o Partido Fascista na Itália e o Partido Nacional-Socialista na Alemanha. Estes partidos são grupos grandes e fortemente organizados que, por seu zelo e entusiasmo, sua devoção à causa, sua disciplina e energia, são capazes de dominar o estado e o país, e fazer impor o selo de uma grande e dura unidade.

Essa é uma semelhança na forma; o conteúdo é diferente. Na Rússia, o capitalismo de estado desenvolve as forças produtivas; capital privado não é tolerado. Na Itália e Alemanha, o estado e o partido governante estão intimamente ligados ao capitalismo privado de grande escala. Porém, aqui também, uma superior organização econômica está inclusa nos objetivos fascistas.

Grandes empresas sempre significam uma certa organização de produção, transporte e serviços bancários nas mãos de um pequeno número de direções individuais. E estas relativamente poucas pessoas têm controle e poder sobre a massa dos capitalistas menores. Os governantes políticos já estavam conectados com esses grandes capitalistas antes. Agora, o programa fascista proclama que é tarefa do poder do Estado dirigir e regular a força econômica. O aumento do nacionalismo em todos países, e a preparação para a guerra mundial, como expressa no slogan da autarquia, isto é, a completa confiança de cada Estado em seus próprios recursos, impõe aos líderes políticos uma estreita cooperação com os líderes da indústria. Se no antigo capitalismo o estado era o instrumento necessário da indústria, a nova indústria se torna também um instrumento necessário do estado. Governar o estado e a indústria dominante fundem-se em um só. A imposição de regulação às empresas privadas, agora quer dizer que, pelo poder fascista, a maioria dos capitalistas menores estão completamente submetidos às grandes empresas.

Sem dúvida, no capitalismo fascista a classe dominante apega-se ao princípio do empreendimento privado, senão por outros, pelo menos para si mesma. A disputa silenciosa dos grandes capitalistas, monopolistas e banqueiros pela supremacia e pelo lucro continua nos bastidores. No entanto, se a crise econômica durar, a crescente miséria, as rebeliões dos trabalhadores ou da classe média forçará os governantes a regulamentações mais eficientes da vida econômica. Atualmente, os economistas capitalistas olham para a Russa e estudam sua economia como um possível modelo, e como uma saída. “Economia planificada” é o discurso de políticos em muitos países. Um desenvolvimento do capitalismo europeu e americano na direção de alguma forma de capitalismo de estado pode oferecer-se como um meio de impedir, frustrar ou retroceder a uma revolução proletária. Então, isso será depois chamado de socialismo. Se compararmos com o último programa, o “plano” do Partido Socialdemocracia Belga para regular o capitalismo, a diferença não é fundamental. De fato, o plano belga pode ser chamado de uma tentativa de competir com o fascismo em uma ação de salvação do capitalismo.

Se agora compararmos aqueles três partidos, o Partido Socialdemocrata, o Partido Comunista e o Partido Fascista, descobrimos que o principal objetivo deles é o mesmo. Eles querem dominar e governar a classe trabalhadora. É claro que a fim de salvar os trabalhadores, devem fazê-los felizes e livres. Todos dizem isso.

Seus meios, suas plataformas são diferentes; eles são concorrentes e cada um ofende o outro chamando-o de contrarrevolucionário ou criminoso.

A social-democracia faz um apelo à democracia; os trabalhadores escolherão seus senhores pelo voto. O Partido Comunista (P.C.) recorre à revolução; os trabalhadores obedecem ao chamado do P.C., derrubam o domínio capitalista e colocam o P.C. no cargo. Os fascistas fazem um apelo aos sentimentos nacionais e aos pequenos instintos capitalistas. Todos aspiram a alguma forma de capitalismo ou socialismo de estado, onde a classe trabalhadora é comandada e explorada pelo Estado, pela comunidade de líderes, dirigentes, oficiais e gerentes de produção.

Sua base comum é a opinião de que as massas trabalhadoras são incapazes de conduzir seus próprios interesses. Muito incapazes e estúpidos, como eles acreditam, devem ser liderados e educados por poucos hábeis.

Quando a classe trabalhadora luta por sua verdadeira liberdade a fim de tomar a direção da produção e o domínio da sociedade em suas próprias mãos, encontrará todos aqueles partidos opondo-se a ela.


Inclusão: 12/09/2021