Causas Econômicas da Revolução Russa

M. N. Pokrovsky


Capítulo II - A Crise Industrial e o Movimento Operário


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Já no quinquênio 1895-1900 esta situação do operário russo teve determinadas consequências políticas. No decurso dos anos 1895-1897, segundo os informes da inspeção de fábricas, o número de grevistas duplicou. O Ministro da Fazenda, em fins de 1895, numa circular secreta dirigida aos inspetores de fábricas, dizia:

“Na Rússia, por sorte, não há uma classe operária no sentido que no ocidente se empresta a essa palavra, e, por este motivo, não existe a questão operária; por isso, nem uma nem outro acharão terreno propício em nosso país, se a inspeção de fábricas estiver alerta”.

Não haviam passado dois anos quando o Ministro do Interior, numa circular secreta, como a primeira, dizia aos governadores:

 “...as greves converteram-se num fenômeno vulgar nas localidades possuidoras de uma população operária mais ou menos numerosa. Ademais, chamo particularmente a atenção para a criação entre os operários, nestes últimos tempos, das chamadas “brigadas de combate”, isto é, de grupos constituídos por operários mais revolucionários, que obrigam os menos decididos, por meio de ameaças e violências, a aderir à greve ou impedir que permaneçam no trabalho os que o desejam; além disso, fazem objeto de toda espécie de violências os operários que influem sobre seus companheiros aconselhando-os a voltarem ao trabalho, e os suspeitos de terem denunciado à Polícia ou à administração das fábricas os instigadores da greve”.

Reproduzimos estes dois trechos, não como um modelo de descrição fiel da realidade — tanto o Ministro da Fazenda como o do Interior escreviam tolices evidentes, — mas como sintoma da impressão produzida pelas greves no governo czarista. Dois anos depois de haverem afirmado que na Rússia não podia existir movimento proletário, gritavam que o complô operário se estendia por todo o país.

O que mais forte impressão produziu nos ministros foi a greve dos trabalhadores de Petrogrado em maio-junho de 1896, durante a coroação de Nicolau II (a coroação foi o pretexto formal da greve: por ocasião das festas, as fábricas permaneceram paralisadas e os operários exigiram o pagamento daqueles dias em que, por culpa alheia, não foram ao trabalho; mas os fabricantes negaram-se a aceder a esse pedido). A greve, segundo os dados oficiais, estendeu-se a 19 fábricas, com perto de 15.000 operários; em Petrogrado, calculava-se o número real de grevistas em 35.000. O “comunicado oficial do governo” assegurava que os demais operários de Petrogrado se haviam “mantido à margem” dos fiandeiros e tecelões, que tiveram o atrevimento de se declarar em greve; os operários diziam que conseguiram sustentar a greve durante tanto tempo (algumas fábricas não trabalharam durante mais de duas semanas e a maioria mais de uma semana) porque os trabalhadores das fábricas metalúrgicas sustentaram economicamente os grevistas. Durante a greve foram lançadas 25 proclamações da “Liga Petrogradense para a Luta pela Emancipação da Classe Operária”, da “Aliança Operária” e da “Aliança Operária de Moscou”. Mas o que mais amedrontou as autoridades não foi isso, e, sim, outras manifestações de caráter consciente do movimento.

 “...os traços característicos de todas estas greves — dizia o Ministro do Interior, a propósito das greves de 1896-1S97, na circular aludida mais acima — são: a apresentação pelos operários de reivindicações comuns, todas elas formuladas de um modo idêntico, a tenacidade unânime com que os trabalhadores sustentam as suas reclamações, a ordem e a tranquilidade exteriores manifestadas pelos grevistas”.

Esta última circunstância embaraçava a Polícia, acostumada a “reprimir” as “desordens” operárias. Enquanto os soldados se mostravam obedientes, a “repressão” ainda era coisa fácil, porém, no quinquênio 1895-1900, foi necessário “estimulá-los". Em abril de 1895, os operários da fábrica Kozinski de Iaroslav, declararam-se em greve. Produziram-se “desordens”, isto é, os operários formavam, simplesmente, grupos compactos nas ruas. O governador chamou o regimento de granadeiros que se achava de guarnição em Iaroslav e os soldados atiraram contra os operários, matando 13 deles. Nicolau, que apenas há um ano subira ao trono, ao receber o comunicado que lhe participava o feito, escreveu:

“Estou muito contente com a conduta das tropas durante as desordens operárias de Iaroslav”.

Eis aí o momento em que este czar começou a exterminar os operários! Todas as tropas da região militar de Moscou foram imediatamente informadas da “gratidão” do czar, para que servisse de edificação e estímulo. Acrescentemos que abrir fogo contra os grevistas não era um meio imaginado pelo governo de Nicolau II; seus aliados, os burgueses franceses, eram, a este respeito, seus mestres. Na França, durante as greves, toda a tática da Polícia consistia em excitar a multidão recorrendo a todos os meios de provocação. Dado o caráter meridional dos franceses, isto era fácil de conseguir, e a primeira pedra que voava contra a Polícia ou contra as tropas servia de sinal para disparar: as “desordens” eram um fato, e tudo mais: detenções, desterros, etc., vinham por si mesmo depois. Este mecanismo simples era facilmente assimilável em nosso país. Quando, porém, os operários, conscientemente, não querem promover “desordens”, que fazer?

Tão forte foi a impressão que as greves petrogradenses de 1896 produziram nas autoridades, que, pela primeira vez na História russa, elas resolveram satisfazer a exigência principal dos grevistas. O motivo inicial da greve foi a reclamação de pagamento dos salários durante os dias da coroação; depois, os operários incluíram em suas reivindicações outros pontos de caráter geral, sendo o primeiro a redução da jornada de trabalho, que naquela época era incrivelmente longa nas fábricas têxteis, chegando em muitos casos a 14 horas. Os tecelões exigiam a jornada de 10 horas e meia; a lei de 2 de agosto de 1897 fixou-a em 11 e meia. A autorização para se aproveitarem as horas extraordinárias, dada aos fabricantes, reduziu a lei a zero, mas na legislação russa do século XIX figurou uma lei arrancada por meio da greve.

Se, porém, se conseguiu convencer os fabricantes da necessidade de aceitar a redução da jornada (embora com trabalho, pois, na Comissão que discutiu o novo projeto de lei, os fabricantes não fizeram outra coisa senão falar na “carga” que “para sua indústria” representava essa lei, alegando o exemplo da França, etc.), foi absolutamente impossível persuadi-los da necessidade de elevar os salários. Entretanto, a maior parte das greves era provocada, precisamente, por questões de salário; e a questão dos salários foi, como vimos, a causa imediata da famosa greve petrogradense de 1896. Das 1.675 greves que, segundo a inspeção de fábricas, foram levadas a efeito, na década 1895-1904, isto é, 61% tiveram como causa conflitos sobre o valor dos salários, ou acerca das formas de pagamento, e só 284, ou 16%, a duração da jornada de trabalho. Por consequência, faziam-se concessões aos operários no ponto menos importante para estes, e que era, para os fabricantes, mais fácil satisfazer, pois em fins do ano 90 viam-se obrigados a pensar, embora não houvessem estudado as reivindicações proletárias, na maneira de reduzir a produção.

Precisamente no decorrer da década mencionada, o desenvolvimento da grande indústria realizara enormes progressos. A produção, em nenhum país do mundo, avançou com tanta rapidez. No que se refere ao número de fusos, a Rússia, em 1900. já ia à frente dos demais países europeus, com exceção da Inglaterra. Durante a década 1889-1899, o aumento dos fusos foi, na Europa, de 33%; na Rússia, de 76%. A fundição de ferro, nos países de um desenvolvimento mais rápido — Estados Unidos e Alemanha — aumentou, respectivamente, de 50% e 72% ; na Rússia, aumentou de 190%. No tocante à fundição de ferro, a Rússia ocupava em 1889 o sétimo lugar no mundo; em 1899 já ocupava o quarto. Todavia, o desenvolvimento da indústria não se manifesta só no aumento do rendimento das fábricas, mas também no da matéria prima industrial trabalhada pelas mesmas. Vemos aqui, do mesmo modo, que a extração da hulha, nesse mesmo período, aumentou de 131% na Rússia, enquanto na Alemanha o aumento foi de 52% e nos Estados Unidos de 61%; a extração do petróleo aumentou de 132%, e, nos Estados Unidos, a percentagem foi só de 9%. Relativamente à extração do petróleo, a Rússia em 1899 ocupava o primeiro lugar do mundo.

Este desenvolvimento da indústria apoiava-se na expansão do mercado interno, que se explica pela proletarização dos camponeses . O camponês, ao passar da situação de proprietário independente para a de jornaleiro, não contando com nenhuma produção própria, via-se forçado a comprar, cada vez mais, no mercado, aumentando, por conseguinte, a procura. Mas esta procura não crescia, nas mesmas proporções, em todos os ramos da indústria. As grandes fábricas que satisfazem principalmente as necessidades da massa popular são as têxteis: os tecidos são quase que exclusivamente destinados ao consumo pessoal. A metalurgia, só em proporções insignificantes, é destinada ao consumo pessoal: fivelas, pregos para calçados, botões, etc. A metalurgia serve principalmente para as grandes e médias explorações: fornece arados, grades, rastelos, fechaduras, ferraduras para cavalos, etc. Se o fabricante de chita tem o seu “mercado” no camponês proletarizado, que não pode contar com o tecido de produção doméstica, o da indústria metalúrgica, inversamente,; tem-no na burguesia rural.

A formação do proletariado agrário e a aparição de uma burguesia rural são dois aspectos de um mesmo fenômeno: a diferenciação de classe na aldeia. Mas estes dois aspectos não se desenvolveram de um modo completamente paralelo; o proletariado cresceu mais rapidamente que a pequena burguesia rural. Duas cifras nos mostrarão a lentidão com que se desenvolveu esta última. No período compreendido entre 1882 e 1885, os camponeses, com o auxílio do Banco Camponês, compraram cerca de dois milhões de deciatinas de terra. As grandes compras predominavam decisivamente, pois representavam cerca de 80%.

A burguesia agrária crescia, indubitavelmente, mas com que lentidão! Em mais de dez anos, a burguesia agrária só conseguiu comprar quase dois milhões de deciatinas de terra dos grandes fazendeiros (considerando como tais os que possuíam mais de 500 deciatinas), tendo ficado nas mãos destes 62 milhões de deciatinas. Num período de dez anos, os proprietários agrários não perderam sequer 4% de seus bens. E isto numa fase em que os preços do trigo eram excessivamente baixos, em que a grande propriedade agrária era pouco remunerativa e em que o proprietário declarava, às vezes, que não sabia como desfazer-se da sua terra. Contudo, no quinquênio 1895-1900 os preços do trigo começaram a subir. Se fixarmos em 100 os preços do quinquênio 1893-1897, para 1898-1904 obteremos 128. O fazendeiro sentia-se cada vez menos inclinado a “desfazer-se” de uma terra que principiava a produzir benefício. Se em fins do ano 80 os preços da terra aumentaram na Rússia muito lentamente, menos de 18% por quinquênio, no quinquênio 1898-1902 os preços se elevaram até 36%. Nas terras férteis, o aumento foi ainda mais considerável: na província de Poltava, de 103 a 207 rublos por deciatina; na de Karkov, de 85 a 138; na de Kursk, de 122 a 207, etc.

Se houvesse existido em nossa aldeia, de um lado, o jornaleiro, e de outro, o grande proprietário, nessa base ter-se-ia desenvolvido a grande propriedade agrária. Mas a existência de uma terra natal repartida ao efetuar-se a “emancipação”, junto de uma classe camponesa necessitada de terras, por um lado, e, de outro, as exigências do capital russo, acostumado aos elevados lucros da indústria(1), impeliram a avidez do fazendeiro noutra direção, para a “linha da menor resistência”.

O fazendeiro não vendia a sua terra, nem a submetia a uma dispendiosa exploração capitalista, mas, simplesmente, arrendava-a aos camponeses que dela necessitavam. Graças a isso, os preços de arrendamento aumentaram com maior rapidez que o dos cereais. Os preços dos cereais, desde os meados dos anos 90 até princípios dos anos 1900, aumentaram, como dissemos, em 28%, enquanto os preços de arrendamento aumentaram em 113%. Era assim que o “senhor” se aproveitava da “avidez” do camponês. Noutros termos: este não só devia dar todo o “lucro” que podia obter ao “fazendeiro”, graças aos preços elevados dos cereais, mas ainda se via forçado a pagar um excesso do seu bolso. Nestas condições, que possibilidade havia para o camponês de converter-se em “burguês agrário”? Só um em mil casos era possível.

Mais adiante veremos como repercutiu este estado de coisas no movimento camponês. Limitemo-nos, por ora, a ver a influência que exerceu na indústria russa. Parece claro que o impetuoso desenvolvimento da indústria metalúrgica, a que já aludimos, não se podia apoiar no crescimento do “mercado interno”, dando a estas palavras o seu verdadeiro sentido, na capacidade aquisitiva da economia camponesa. O consumo individual de ferro era mais baixo na Rússia que em qualquer outro país (1,6 puds por ano) enquanto na França, país cuja produtividade metalúrgica era inferior à nossa, o consumo anual de ferro era de 4,2 puds por indivíduo; na Inglaterra chegava a 8,1 e nos Estados Unidos a 9,7 isto é, seis vezes mais do que na Rússia.

Em que se apoiava nossa indústria metalúrgica? Obteremos fácil e rapidamente a resposta se observarmos o que se fazia, nas fábricas, das grandes massas de ferro fundido. Veremos, então, que os trilhos constituíam de um quarto a um terço dos produtos que fabricavam. Se acrescentarmos a isso outros materiais ferroviários, tais como chapas, rodas, etc., veremos que a nossa indústria metalúrgica satisfazia principalmente as necessidades da construção de vias férreas.

Nosso capital industrial evidenciava uma vez mais a sua dependência do capital comercial. A cobertura para os empréstimos russos, no mercado monetário internacional, representado pela Bolsa de Paris, e a chuva de ouro que daí caiu, foi aproveitada, antes de tudo, pelo capital comercial, para terminar a construção da rede ferroviária, principiada por ele nos anos de 1860. Era princípios de 1892, a extensão da aludida rede era de pouco menos de 32.000 verstas; em princípios de 1902, passava de 60.000. É necessário acrescentar que, apesar disso, a cada 1.000 verstas quadradas de superfície correspondia uma extensão das linhas ferroviárias quatro vezes inferior a dos Estados Unidos, por exemplo, onde há ainda muitos lugares desertos. A comparação com os países densamente povoados da Europa ocidental, resultaria ainda menos vantajosa para a Rússia (na Inglaterra, por exemplo, a cada 1.000 verstas quadradas de superfície correspondiam 119 verstas de linha férrea e, na Rússia, só 9 1/4 verstas. Mas, na sociedade capitalista, as linhas férreas não se constroem de acordo com as necessidades da população — falam-se dessas necessidades “para a maior beleza da expressão" unicamente, — mas levando em conta os possíveis lucros dos empresários ou do Tesouro, as necessidades estratégicas, ou outras quaisquer razões de Estado. E, como o Estado burguês é o Estado dos capitalistas, as necessidades do Estado são as do conjunto da classe dos capitalistas, salvo o lucro de cada capitalista em separado.

Este ponto de vista “do Estado” em fins dos anos 1880 já superava, na construção das linhas férreas russas, as considerações puramente comerciais, os interesses diretos dos capitalistas isolados e dos seus próprios grupos. E, assim, as considerações “de Estado” levaram a rede ferroviária além dos limites da Rússia europeia. Em 1887, decidiu-se a construção da linha férrea transiberiana. A Conferência, convocada para este fim, reconheceu unanimemente que,

“sob o ponto de vista estratégico, acelerar as comunicações entre a Rússia europeia e o Oriente distante se tornava cada vez mais urgente”, motivo por que era preciso construir a dita linha férrea, mesmo que não houvesse possibilidade de lucro “num futuro próximo”.

Deve-se atribuir quase a metade do crescimento da indústria metalúrgica russa, nos anos de 1890, à Estrada de Ferro Siberiana. Como consequência, principalmente, das necessidades dessa linha, fundaram-se novas fábricas. À medida que a construção da linha vai atingindo o seu fim, a produção de trilhos da indústria metalúrgica vai caindo de um modo evidente: em 1897 constituía 28,1% da produção dessas fábricas; em 1898, 29,1% e em 1899 baixa a 26,5%. Decresceu de um modo particular a produtividade da metalurgia do sul, que era a principal abastecedora de trilhos; essa metalurgia que levara a produção de trilhos a 60% sobre a produção total, e chegava às vezes a 70% (1895), em 1899 caiu, de repente, para 44,5%.

Ao terminar a construção da linha férrea, começou a crise da indústria metalúrgica russa. A partir de 1901, baixa a produção de trilhos, e também a fundição de ferro, embora não de um modo considerável (de 177 1/2 a 183 milhões de puds). No sul da Rússia, o número de operários metalúrgicos passou de 45.000 em 1899 a 39.000 em 1901. O salário que até então ia diminuindo como salário real, isto é, no seu valor aquisitivo, co- começa a minguar como salário nominal, isto é, na sua quantidade em rublos. Em 1901 era, em média, de 201 rublos e 37 kopeks anuais para todos os ramos da produção, em toda a Rússia; em 1903, de 200 rublos e 33 kopeks. E o preço do trigo aumentava incessantemente.

O movimento operário, cuja possibilidade o Ministro da Fazenda negava em 1895, converteu-se num companheiro inseparável do capitalismo em nosso país, como o era, já há muito tempo, do capitalismo ocidental. Esse movimento percorre com uma rapidez extraordinária todas as fases por que passou lentamente nos países capitalistas mais velhos, transformando-se, no transcorrer de dez anos, de luta “pacífica" do operário por seus interesses quotidianos, em verdadeira revolução operária.

No período de 1896-1905, que agora estudamos, pode-se notar nesse movimento três fases. Na primeira, os interesses profissionais ainda predominam decisivamente, como predominaram no movimento operário inglês durante quarenta anos (de 1850 a 1890, aproximadamente). Os operários têxteis constituem nesse período o núcleo central da massa grevista; em 1897 o número de grevistas desse ramo, segundo os dados da estatística oficial, foi de 47.000 (num total de 60.000 grevistas), enquanto, nesse mesmo ano, o número de grevistas metalúrgicos foi de 3.000, aproximadamente. As cifras oficiais são, naturalmente, inferiores à realidade, mas como o são em todos os casos, pode-se estabelecer, baseando-se nelas, a relação existente entre os diferentes grupos de operários de um modo relativamente preciso(2).

Nesse período, as greves, como acontece sempre com os movimentos puramente “profissionais”, esforçam-se por se revestir de um caráter pacífico, o qual, como vimos, põem as autoridades em apuros. Se há, então, greves que assumam caráter tormentoso, que conduzem consigo a “destruição dos bens das fábricas e de outros”, como afirmavam os comunicados do governo, e ainda, às vezes, a devastação destas últimas, os incêndios, o assassinato dos contramestres, principalmente odiados pelos operários, etc., etc. (houve uma série de greves deste gênero nas províncias de Moscou e de Vladimir nos anos 1887-1890), isto constitui um sintoma da má organização do movimento e não do seu caráter revolucionário. Quanto mais organizados estavam os operários durante as greves “profissionais”, mais consciente, mais tranquila era a sua conduta. Nas greves dos tecelões petrogradenses, não se viu nada de semelhante aos fatos que caracterizaram as greves dos operários da província de Vladimir, entre os quais eram ainda muito recentes os sinais de sua procedência camponesa.

Este caráter pacífico, não revolucionário, das primeiras grandes greves dos anos 90, deu origem a diversas ilusões dos intelectuais revolucionários da época. Já em 1890-1895 começaram a surgir grupos ou círculos de revolucionários intelectuais (as chamadas “Alianças para a Luta pela Emancipação da Classe Operária”), que pretendiam apoiar-se nas massas operárias contra o governo czarista, convertendo o movimento operário em instrumento principal da luta.

A princípio, esses círculos, adeptos consequentes do marxismo do "Grupo da Emancipação do Trabalho", colocavam-se no terreno da luta revolucionária de classe. Nas devastações das fábricas viam uma manifestação do espírito revolucionário inconsciente do proletariado. No folheto “O Csar-Fome”, que teve uma grande popularidade nesses meios, dizia-se:

“A história das devastações mostra-nos a enorme forca que encerra o protesto dos operários unidos. Deve-se ter unicamente a preocupação de que essa forca seja empregada conscientemente, que não se malgaste inutilmente na vingança contra tal ou qual patrão isolado, na devastação de uma fábrica particularmente odiada, que toda a forca dessa indignação e desse ódio seja canalizada contra o conjunto dos fabricantes, contra a sua classe, e que trave com ela uma luta constante e tenaz. Ao se porem em contacto com as autoridades, os operários compreenderão que o governo e os seus funcionários se colocam ao lado dos patrões e que as leis se elaboram de um modo tal que faculte ao patrão oprimir o operário. Ao compreender isso, os operários lutarão não só contra os patrões, mas ainda contra o injusto estado de coisas estabelecido pelas leis”.

Contudo, o aparente revolucionarismo dos operários intelectualmente mais desenvolvidos não tardou em desviar deste caminho justo uma grande parte da nossa intelectualidade revolucionária, na qual duas tendências principiaram a tomar corpo. Uma delas, que se começou a consolidar principalmente em Petrogrado depois de várias repressões contra a “Liga Petrogradense para a Luta” (que, na primavera de 1897, perdeu 64 de seus membros em consequência de prisões) e que achou a sua expressão no periódico Rabotchaia Mysl (O pensamento operário), acostumou-se a ver na luta econômica a finalidade principal da classe operária, reputando a política em si, como os narodnikis" (populistas) dos anos 1870, coisa da burguesia.

Os evidentes êxitos da agitação “profissional”, o número crescente de greves econômicas importantes (precisamente entre os operários têxteis era onde as greves se revestiam de maiores proporções: em média, na década 1895-1904, 692 operários por greves, ao passo que os metalúrgicos davam unicamente 348 e os demais ainda menos), extraviaram esses “economistas”, ocultando a seus olhos a luta de classes. É natural que, contra seus desejos e previsões, quando começou a luta política, uma grande parte de seus chefes (Prokopovich, Kuskova e outros) se achara, não nas fileiras do proletariado, mas nas da burguesia.

Entre os homens dessa contextura intelectual, porém, que, por seu caráter, recordavam os militantes de “A liberdade do povo” (Narodnaia Volia) dos anos 70, a consequência errônea do pretenso caráter não-político do movimento operário determinava tendências completamente diferentes. O operário não é revolucionário — diziam, apoiando-se nos exemplos do movimento operário russo e no que sabiam do movimento inglês (já vimos porque os operários ingleses, no decorrer do século XIX, não eram revolucionários). Não se deve esperar nenhuma iniciativa revolucionária de sua parte. Essa iniciativa, a intelectualidade é que a deve tomar. Como se pode expressar a aludida iniciativa? Como se pode mostrar ao operário o caminho que conduz à revolução? Só mediante o terror individual. Matar um governador qualquer que haja reprimido greves com uma ferocidade particular, e os operários compreenderão o que se deve fazer.

O Partido dos Socialistas Revolucionários surgiu dessa segunda tendência intelectual nos princípios do século XX(3). Se a tática dos “economistas” os desviava da política, a tática dos socialistas revolucionários desviava-os da classe operária. Não os aproximou, todavia, da grande burguesia que temia o terror não menos que as greves. Os socialistas revolucionários acharam de um modo natural a sua base de classe nos grupos da população em que era forte o individualismo econômico, em que a gente não trabalhava agrupadamente como o proletariado de fábrica, mas isoladamente. Esse grupo era, em primeiro lugar, a intelectualidade pequeno-burguesa, sobretudo os estudantes, que deram o maior número de combatentes para o terrorismo depois os agrônomos, mestres, etc. E, quando o movimento arrastou as grandes massas, os socialistas revolucionários tiveram que arranjar o seu ponto de apoio entre os camponeses. Quando estudarmos o movimento de massa da pequena burguesia urbana e rural, ocupar-nos-emos mais detalhadamente deles.

Todas as questiúnculas internas entre os revolucionários russos dificultavam a criação de um partido operário político. Formalmente, o Partido Social Democrata Operário nasceu em 1898, no Congresso celebrado em Minsk, no qual havia representantes de Moscou, Petrogrado, Kiev, Iekaterinoslav, da “Aliança Geral Hebraica” (atualmente mais conhecida com o nome de Bund”). O Congresso lançou um manifesto e o fato desse manifesto ser escrito, não por um dos diretores do movimento operário revolucionário, mas por um marxista legal(4) Struve, (futuro ministro de Wrangel, atualmente um dos chefes da reação monárquica russa) que “servia" ao mesmo tempo, em sua qualidade de escritor, aos liberais, mostra como eram débeis ainda as forcas do nosso partido em seus primeiros passos. Seus melhores militantes achavam-se naquela época no cárcere, no desterro ou no estrangeiro. Só em fins de 1900, com a formação no estrangeiro do grupo dirigente fundamental, representado pela redação da Iskra” (A Faísca), se inicia um trabalho sistemático e amplo para a preparação da revolução operária.

Convém notar que, no artigo sobre o aparecimento da Iskra, a redação se vê obrigada a retirar a solidariedade ao autor do primeiro manifesto do Partido, Pedro Struve.

“Estamos de acordo com as ideias essenciais do manifesto — dizia a redação — mas com Struve nada temos de comum”.

E só no segundo Congresso, de fato o primeiro, do Partido Social-Democrata Operário (agosto de 1903) se converteu este numa autêntica organização de combate.

Constituiria uma manifesta contradição com o método histórico do marxismo explicar esta transformação exclusivamente pela influência do jornal editado no estrangeiro. A Iskra foi um centro organizador, porém, para isso, era necessário que contasse com algo para organizar. Este material a ser organizado foi fornecido pela nova fase do movimento operário, que deve ser considerada como a segunda, e que indicava que o movimento operário na Rússia podia e devia estar politicamente organizado. Isto era tão evidente, que os revolucionários se consagraram à organização, no que foram imitados pelos funcionários czaristas, pois os mais perspicazes destes não podiam deixar de perceber que, se o movimento operário não fosse canalizado oportunamente por via legal, tomaria irremissivelmente o caminho revolucionário.

O sintoma exterior da segunda fase do movimento era, em primeiro lugar, o fato de não se apoiar nos operários têxteis (embora estes não houvessem ainda se retirado da cena e nem mostrassem ter essa intenção), mas nos metalúrgicos. Vimos que em 1897, dos 60.000 grevistas, 3.000 eram metalúrgicos e 47.000 têxteis. Em 1889, num total de grevistas um pouco inferior, os metalúrgicos foram quase 20.000, enquanto os têxteis não foram alem de 15.000; e, em 1903, sobre 87.000 grevistas, 31.000 eram metalúrgicos e os têxteis não alcançaram a cifra de 20.000. Estes dados, repetimo-lo, são de fonte oficial e não correspondem à realidade (em 1903, só no sul da Rússia, o número de grevistas chegou a 225.000), mas a correlação existente entre os diferentes grupos de operários está expressa de um modo justo.

Que significava o aparecimento do exército dos metalúrgicos? Em primeiro lugar, que o movimento se havia estendido ao setor operário que se achava em melhores condições e que era melhor retribuído. Ao passo que o salário médio dos operários têxteis era, em 1900, de 170 rublos anuais, o salário médio dos metalúrgicos era de 341 rublos anuais, isto é, o dobro mais um. Enquanto que para os operários têxteis, antes da lei de 1897, a jornada de trabalho oscilava entre 12 e 14 horas, para os metalúrgicos não passava de 11, e, em muitos casos, de dez. Na comissão de 1897, os fabricantes metalúrgicos estavam de acordo com a jornada de dez e meia horas, não acontecendo o mesmo com os têxteis, que afirmavam ser a sua ruína uma jornada de trabalho inferior a 12 horas.

Naquele período, já não se tratava dos interesses profissionais de tal ou qual grupo de operários, mas dos sofrimentos de toda classe, sofrimentos experimentados mesmo pelos representantes dessa classe, que se achavam em melhores condições. Lavrou-se, desse modo, o terreno para um movimento geral de classe que, em nenhum caso, podia ser exclusivamente econômico pois a luta de classe é sempre luta política, uma luta pelo poder. Isto era perfeitamente compreendido pelos fabricantes ingleses, que, para manter os seus trabalhadores na etapa “econômica” do movimento, “cevavam-nos” e ainda procuravam manter num estado atômico o movimento operário, apoiando os pequenos sindicatos com um número de membros não superior a cem (havia no século XIX, na Inglaterra, um sindicato cujo número de aderentes era de seis). Mais adiante nos ocuparemos detidamente da passagem do movimento operário inglês à fase revolucionária no século XX, e da formação de grandes sindicatos, como traço característico dessa fase. Na Rússia, os sindicatos e as greves estavam simplesmente proibidos, porém nenhuma proibição foi capaz de impedir o desenvolvimento econômico do movimento.

Em segundo lugar, a entrada em cena dos metalúrgicos indicava a influência direta da crise industrial, de que já falamos. Na indústria têxtil, a crise apenas se esboçou: a quantidade de algodão elaborada pelas fábricas russas entre 1897 e 1900 inclusive, aumentou, passando de 14 para 18 milhões de puds. Por conseguinte, aqui a luta era travada pela melhoria da situação ordinária dos operários e o seu resultado dependia da parte que ficasse mais forte, o fabricante ou o proletariado explorado por ele. Para a vitória, o proletariado não tinha necessidade de esmagar toda a ordem burguesa, e daí a luta adquirir um caráter “econômico” inteiramente legal em todos os povos europeus. As coisas apresentavam-se de outro modo em nosso país, pois a greve era um crime castigado por lei, mesmo que não fosse senão de um modo formal. Quando, em 1898, os operários da fábrica de fios e tecidos de Nechaev-Malsev, se declararam em greve e foram entregues aos tribunais, estes não acharam no processo “material punível” e absolveram os operários. Por isso, a Polícia lutava contra os grevistas valendo-se de meios extralegais, o que as Polícias francesa e alemã também faziam, pelo menos durante as grandes greves.

A diferença entre a Rússia e os demais países consistia, principalmente, em que as repressões em nosso país eram mais bárbaras; na Rússia, por exemplo, em certos casos, os grevistas podiam ser açoitados, coisa que, naturalmente, ninguém se atreveria a fazer na França (embora as pauladas fossem um fenômeno trivial nos Comissariados de Polícia desse país). Numa palavra, a diferença entre o movimento operário legal, “econômico”, e o movimento ilegal, revolucionário, consistia no fato do primeiro chocar-se com os interesses isolados dos burgueses, e o segundo com todo o regime burguês. É sempre assim que se apresenta o movimento operário durante as crises.

A crise é determinada, não pela má vontade de tal ou qual burguês, mas por todo o regime capitalista. Nunca o operário sente tanto o peso do aludido regime, como por ocasião das crises, e nada contribui com tanta forca para dar um caráter solidamente revolucionário como estas últimas.

A modificação do caráter do movimento repercutiu imediatamente nas novas reivindicações dos grevistas: em vez das reivindicações anteriores, estritamente “práticas", amiúde insignificantes, às vezes ridículas (como, por exemplo, a querela sobre quem devia pagar os gastos ocasionados pelo extermínio dos percevejos nos quarteirões operários, o patrão ou os próprios operários), aparece uma reivindicação de princípio, de caráter proletário geral, não só para a Rússia, mas para todo o mundo, a jornada de trabalho de oito horas. Aos metalúrgicos era mais fácil apresentar esta reivindicação, pois em 1901 uma parte deles conquistara a jornada de dez horas, enquanto os operários têxteis, mesmo em Petrogrado, se viam obrigados a lutar, em 1903, pela jornada de treze horas.

Os operários metalúrgicos que primeiro apresentaram esta reivindicação foram os das oficinas ferroviárias, em Tiflis, em outubro de 1901; mas imediatamente foram acompanhados, em março de 1902, pela fábrica de Votkun, o que não constitui simples casualidade. As oficinas ferroviárias contavam com a massa operária menos constante em sua composição, pois os operários eram continuadamente mudados de um lugar para outro, de acordo com as necessidades da rede ferroviária. Eis que o movimento estalava numa oficina e passava a outra, estendendo-se como num campo de pólvora. Em 1901, declararam-se em greve as oficinas de Saratov (duas vezes), de Tambov, de Tiflis; em 1902, os da linha Krasnoiarki e Vladikavkas (em Rostov sobre o Don), que deu o sinal para uma das maiores greves desse período na Rússia; em 1903, as oficinas da linha de “Varsóvia" (em Petrogrado) e da linha do sudeste (em Borisoglebske), etc., etc.

A reivindicação da jornada de oito horas era um repto lançado ao regime capitalista, e não foi em vão que se incluiu entre as palavras de ordem de 1.° de maio a realização do Primeiro Congresso Internacional. Era uma reivindicação unilateral do proletariado, a proclamação do seu direito sem tomar em consideração os interesses dos patrões, ao passo que toda greve “econômica”, não revolucionária, os considerava. Para os patrões, considerados de um modo isolado, a jornada de 8 horas, pela forca das coisas, era objetivamente irrealizável, a menos que existissem excepcionais circunstâncias favoráveis. Assim, por exemplo, em 1905-1907, alguns patrões russos, em conversações particulares, mostraram-se de acordo com a jornada de 8 horas, com a condição de se aumentarem posteriormente os direitos tarifários: por meio de um imposto sobre os compradores de suas mercadorias, pensavam encher o vazio que havia de produzir em seus lucros a jornada de 8 horas. Falando em termos gerais, trata-se de uma diminuição tal dos lucros patronais, que, se o burguês dele fala, é unicamente preocupado com as ameaças de algo pior; depois da greve de outubro de 1905, o programa dos kadetes falava em estabelecer a jornada de 8 horas “na medida do possível”. Como se fosse possível, sem embargo da forca, arrancar do burguês o rublo arrebatado ao operário!

O caráter evidentemente revolucionário assumido pelo movimento operário fez o governo czarista refletir, e, muito especialmente os funcionários, sobre cujos ombros cairiam as responsabilidades da manutenção da “ordem”. Já em 1901, Sviatopolk-Mirks (o Ministro de “confiança” durante a guerra russo-japonesa e, ao mesmo tempo, o chefe dos gendarmes, isto é, o chefe de toda a “Polícia política”) escrevia:

— “Os agitadores, que se impuseram como fim converter os operários em massas organizadas para a luta contra o governo e para a realização de suas ideias, obtiveram, desgraçadamente, consideráveis vantagens. Durante os três ou quatro últimos anos, surgiu no seio da classe operária russa um tipo especial de intelectual ilustrado às pressas, que considera como um dever negar a religião e a família, desprezar a lei, não se submeter às autoridades e escarnecer delas. Essa juventude, afortunadamente, não é ainda muito numerosa nas fábricas, mas esse punhado de insignificantes que dirige, por meio do terror, a massa inerte dos operários”.

É natural que para um gendarme o operário revolucionário apareça com as cores mais sombrias, mas o mais importante é o reconhecimento pelo mesmo gendarme que o operário revolucionário dirige a massa. Quando os gendarmes raciocinavam sobre a forma por que deviam agir, como poderiam lutar contra tal estado de coisas, chegavam a uma conclusão completamente inesperada: fazer o mesmo que os agitadores, porém com um fim oposto: não contra o czar mas a seu favor. O governador de Odessa, Schuvalov, ao fazer-se, em 1889, a pergunta: “Que fazer?", respondia:

 “É necessário abrir caminho à instrução, é preciso facilitar a fundação de salas de leitura e bibliotecas, difundir profusamente entre os operários livros baratos, grátis, se possível, sobre assuntos de interesse local e geral."

 Esses livros, no juízo de Schuvalov, poderiam competir eficazmente com a “literatura ilegal, que é principalmente negativa”. E, sobretudo,

“é necessário reduzir a jornada de trabalho”, construir boas vivendas, fazer com que os operários elejam delegados encarregados de controlar a qualidade da comida, etc., etc.”.

Deste modo, foi esboçado nos últimos anos do século XIX o programa que floresceu, a princípio em Moscou e mais tarde em toda a Rússia, nos primeiros anos do século atual, sob o nome hoje geralmente conhecido de “zubatovismo". O chefe da polícia política (OKRANA) de Moscou, que emprestou o seu nome a esse sistema, não foi o seu único autor. A ideia “flutuava no ar”. No dia 14 de janeiro de 1902 foram aprovados em Moscou os estatutos da “Sociedade de Socorros Mútuos dos Operários Mecânicos”. A Sociedade devia ser uma organização puramente proletária; em suas fileiras não eram admitidos os “intelectuais” (ou, para dizer noutros termos, os “agitadores”); como exceção podiam ser admitidos, na qualidade de sócios protetores, os membros da Polícia, os da inspeção e da administração de fábricas e os servidores do culto. Isolados assim de toda influência “perniciosa", os metalúrgicos moscovitas viam-se rodeados da mais imediata e, por assim dizer, da mais terna tutela do chefe principal da Policia de Moscou daquele tempo, o famoso Trepov.

O chefe de Polícia velava pela integridade da caixa da Sociedade; examinadas e referendadas previamente todas as instruções publicadas pela mesma, mandava seus representantes a todas as reuniões, podia apresentar qualquer questão, e, quando ele próprio dava a honra de apresentar-se, recebia... vinte votos. Depois disso, é natural que o chefe de Polícia não pudesse confiar a Sociedade a ninguém, que devesse vigiar as eleições do comitê e que, para maior simplicidade, designasse simplesmente os candidatos, selecionando-os em assembleia geral.

Em 14 de fevereiro eram aprovados os estatutos e a 19 do mesmo mês 50.000 operários assistiram no Kremlin a cerimônia religiosa celebrada ao pé do monumento de Alexandre II. Essa massa chegou a infundir certo medo ao ministro do Interior, que mandou uma circular na qual dizia que isso estava muito bem, naturalmente, mas que era melhor que não se repetisse.

Que os temores do Ministério do Interior não eram infundados não se demorou a confirmar. Para as massas politicamente pouco conscientes — e naquela época a maior parte dos operários era politicamente pouco consciente, — e para os quais a figura do chefe de Polícia era imutável (cargo exercido pelos mais “respeitáveis” catedráticos da Universidade de Moscou, que se consagravam à “educação” dos operários e sobre os quais exerciam direção imediata), — o “zubatovismo” representou um enorme progresso no desenvolvimento da consciência de classe e à compreensão do antagonismo existente entre os interesses do operário e os do fabricante. Imitando grosseiramente os agitadores revolucionários — recordamos que a essência do “zubatovismo” era uma imitação perfeita da agitação social-democrata, — os agentes de Zubatov chegaram até a prometer aos trabalhadores que o governo não tardaria em tomar as fábricas dos patrões e entregá-las aos operários. O governo, segundo eles, estava disposto a tudo fazer pelos operários contanto que estes não dessem ouvido às prédicas dos “agitadores”.

A Polícia, em várias greves, apoiou diretamente os grevistas, deu-lhes socorros, etc. Sob essa influência, os operários organizados por Zubatov puseram-se a afirmar que

 “havia passado o tempo em que existiam senhores e escravos, em que estes, como as abelhas, nutriam gratuitamente seus amos. Agora, os escravos viverão como senhores”.

Os patrões ingleses, entre outros meios para a conservação do seu domínio, preocupavam-se zelosamente em preservar os operários do desenvolvimento da consciência de classe e sustentavam que seus interesses e os dos patrões não eram contraditórios, e que ambos podiam sempre chegar a um acordo. O patrão russo, sem fazer concessão alguma, empurrava o operariado para uma direção contrária. Foi essa intransigência do nosso patrão que fez o “zubatovismo” fracassar completamente. À primeira vista, não parecia difícil compreender que o “socialismo policial”, que era uma garantia contra o socialismo autêntico, exigia uma série de concessões. Entretanto, logo que os fabricantes se sentiram senhores do “zubatovismo” começaram a gritar.

Recordemos que no nosso país se procurava sempre seduzir, por todos os meios, o capital estrangeiro, para a indústria. Os industriais consideravam a Rússia, naturalmente, uma país selvagem, cuja população vivia unicamente para encher, com o seu trabalho, as burras dos capitalistas. Quando se declarava uma greve em suas fábricas e a Polícia a “sufocava”, ainda era suportável. Mas que a Polícia apoiasse as greves isto não compreendiam e nem podiam consentir. Uma greve organizada pelos agentes de Zubatov numa fábrica pertencente a um “cidadão francês”, provocou uma escândalo enorme, que ocasionou até a intervenção do embaixador de França, etc. Os industriais têxteis moscovitas, pertencentes, como vimos, à categoria dos exploradores mais rapaces, aproveitaram-se do escândalo e gritavam ainda com mais forca. O medo ao “socialismo policial” transformava-se até em europeus por alguns momentos. Afinal, a melhor maneira de agir é a francesa; a maneira russa fica muito cara. Por isso, o Ministério da Fazenda apresentou um projeto para a criação de um corpo de inspetores de fábrica, eleitos pelos operários, e mesmo um projeto de legalização das greves. O primeiro projeto converteu-se em lei (10 de junho de 1904); o segundo ficou como recordação do pânico que se apoderara dos círculos patronais. Porém, o pânico foi neutralizado por um remédio simples: nesse mesmo ano de 1903 Zubatov foi afastado do serviço(5). Como sempre, a culpa do fracasso recaiu sobre um determinado indivíduo. Entretanto, não se renunciou à ideia do “zubatovismo”, que se transferiu para Petrogrado, onde achou um instrumento fiel na pessoa do reverendo Jorge Gapon...

Veremos adiante o papel desempenhado por esta nova tentativa de socialismo policial no desenvolvimento da revolução operária. Os progressos realizados pela consciência de classe, em consequência da agravação da crise industrial, não puderam ser contidos pelo “zubatovismo”; ao contrário, este, contra a sua vontade, contribuiu para o mesmo.

Durante os primeiros anos do século atual, o movimento operário deu dois passos à frente. Em primeiro lugar, saiu dos muros das fábricas e dos limites dos bairros operários para surgir nas ruas das grandes cidades. Em segundo lugar, adquiriu o caráter da luta aberta não só contra os fabricantes e seus servidores, mas também contra os servidores do czarismo. As greves começaram a complicar-se com manifestações. Quem não viu as primeiras manifestações da massa popular russa contra a forca armada, contra a Polícia, gendarmes e cossacos, dificilmente poderá imaginar a impressão produzida por elas na própria massa, e principalmente entre os burgueses e intelectuais que, salvo os estudantes, eram mais testemunhas que atores.

Dir-se-ia haver arrebentado um dique.

“Pelo visto, a coisa se faz no nosso país à francesa, e não à alemã”, dizia-se no meio dos intelectuais.

O aspecto dessa massa, que evidentemente não temia os cossacos, que não se dissolvia ao aparecerem os “defensores da ordem”, mas que respondia aos seus golpes e que cedia, enfim, à força das armas, e surgia no dia seguinte ainda mais densa e numerosa, esse espetáculo desfechou um golpe na crença, geral pouco tempo antes, da inalterabilidade da autocracia. Todo o mundo compreendeu que a queda desta não era mais que uma questão de quantidade: esse mesmo movimento, quinze, vinte vezes mais compacto e mais vasto, e a revolução seria um fato. Até a burguesia, para a qual a impossibilidade da revolução na Rússia era um dogma que justificava a sua covardia servir diante do poder czarista e a sua impudicícia e rapacidade em relação aos operários, começou a duvidar da solidez de seus ídolos e falou... de Constituição,

As manifestações iniciaram-se em Karlov, no dia 19 de fevereiro de 1901, por ocasião do quadragésimo aniversário da libertação dos camponeses; porém as manifestações de Moscou de 23 a 26 de fevereiro é que foram verdadeiramente imponentes. Nelas, precisamente, sentiu-se pela primeira vez o sopro da revolução. Foram organizadas pelos estudantes, porém converteram-nas em revolucionárias os proletários que concorreram aos milhares rechaçando vários ataques dos cossacos. Pela primeira vez, apareceram nas ruas de Moscou barricadas, precursoras das de dezembro de 1905. As manifestações prosseguiram depois em Petrogrado (em março e sobretudo em maio, onde os acontecimentos culminaram com as refregas da fábrica de Obukov(6), nas quais seis operários foram mortos e oito feridos).

Porém, em Tiflis (abril), em Ekaterinoslav (dezembro), e em várias outras cidades, a Polícia também levou desvantagens. Essas não eram senão as primeiras rajadas da tormenta; o outono do ano seguinte foi testemunha de um acontecimento que teve, para o movimento operário russo, uma importância tão considerável como a greve nas fábricas Morozov, em 1885. Referimo-nos à famosa greve de Rostov de novembro de 1902, que se iniciou, como tantos outros movimentos, nas oficinas ferroviárias e não demorou em propagar-se por todos os estabelecimentos importantes da cidade.

O estado de espírito dos operários era tal, que, durante uma semana, as autoridades não se decidiram a tomar nenhuma medida. “Ocorreu algo de inaudito na Rússia”, diz um documento da época: meetings diários ao ar livre, assistidos por uma imensa multidão que escuta com grande emoção discursos insolentes sobre a autocracia, sobre as arbitrariedades e violências dos funcionários, sobre a parcialidade dos tribunais, sobre a exploração capitalista; uma multidão que responde com “sim” estentórico à pergunta do orador: “Temos necessidade de liberdade política?" Essa multidão era formada pelo público mais heterogêneo do mundo, que acudiu de todos os recantos de Rostov para contemplar o nunca visto espetáculo: operários que abandonaram as oficinas para ouvir discursos, oficiais mecânicos, comerciantes, funcionários, damas com os lorgnons [monóculo ou pince-nez] na mão. As autoridades, desconsertadas, não sabiam o que fazer, e a Polícia e os cossacos ouviam os discursos dos oradores social-democratas”. As autoridades, voltando a si, compreenderam que os chicotes e os sabres não bastavam, era necessário recorrer à bala: uma descarga cerrada dos cossacos contra a multidão causou seis mortos e doze feridos graves. Os cossacos, todavia, logo fugiram a galope e os meetings continuaram apesar de tudo. Já em 1902, o operário russo abandonara definitivamente sua fidelidade ao czar.

Um ano mais tarde, durante o verão de 1903, esse operário pôs-se de pé, não mais numa só cidade, porém em todo o sul da Rússia, de Odessa a Bakú. Foi este o primeiro caso de greve geral, na Rússia, em todos os ramos da produção e que alcançou, como já dissemos, mais de 200.000 operários. Se na primavera de 1901, diante do povo moscovita, se agitou a sombra das futuras barricadas de dezembro, agora Odessa, Kiev, Ekaterinoslav e Bakú tinham ante seus olhos as primeiras pinceladas do quadro traçado definitivamente em outubro de 1905.

Durante as greves, "as cidades têm um aspecto particular”, diz o documento a que vimos aludindo.

“Todas as tendas, todos os escritórios, as padarias, as oficinas estão fechadas; as carruagens e os bondes não circulam; não há jornais, os trens estão detidos nas estações; montanhas de mercadorias enchem os cais; os vapores permanecem nos portos, sem movimento. Encarecem os produtos de primeira necessidade. Não há pão nem carne. Há verdadeiras batalhas para se obter um pouco de pão. Não há eletricidade nem gás; à noite, a escuridão envolve as ruas, o interior das casas está mal iluminado com velas. Ninguém limpa as ruas, não há vendedores de miudezas e nem mesmo engraxates (?). A vida comercial e industrial está completamente paralisada, enquanto, sob o ponto de vista da atividade social, reina uma grande agitação na cidade. Milhares de operários saem à rua e organizam meetings e assembleias – nos quais oradores social-democratas pronunciam discursos e manifestações com bandeiras vermelhas. Cantam-se canções revolucionárias e lançam-se gritos subversivos. Numerosas patrulhas de Polícia e soldados circulam”.

Em Moscou, em 1901, a multidão era, por sua composição, quase que exclusivamente operária, embora marchasse ao lado e, em parte, atrás dos intelectuais pequeno-burgueses. Em Petrogrado, na greve de Obukov, achamo-nos já em presença de operários insurrecionados de uma só cidade e de dois estabelecimentos (na ação, além dos operários da fábrica de Obukov, entraram os da fábrica têxtil da Viborg). No sul da Rússia, no verão de 1903, vemo-nos na. presença da classe não mais de trabalhadores, porém do proletariado. E, como para acentuar a sua absoluta unidade de classe, em Odessa, tiveram uma atuação extraordinariamente ativa na greve as organizações locais dos agentes de Zubatov, chefiados por um tal Schaevich. Quando este último tomou a palavra numa assembleia operária, tencionando fazer voltar à razão as “ovelhas” de outrora, perguntou-lhes:

“Que quereis, quebrar a cabeça contra a parede ou perfurá-la?”,

ressoou uma resposta unânime:

“Quebrar nossas cabeças contra a parede”.

O socialismo policial, por suas próprias mãos, cavara sua sepultura...


Notas de rodapé:

(1) Em 50% de nossas grandes fabricas, aproximadamente, o lucro, segundo dados oficiais, superava 5%, ou seja o tanto por cento médio do capital naquela época. Mas, segundo outros dados, não oficiais, os patrões não declaravam nunca ou seus verdadeiros lucros. (N. do A.). (retornar ao texto)

(2) A massa principal das fabricas têxteis achava-se concentrada na região industrial central, onde o operário era também camponês em 50 % dos casos. Cada operário tinha o seu pedaço de terra na aldeia. Por isto, o patrão podia pagar ao operário salários inferiores aos do verdadeiro operário urbano. E, com efeito, em 1890, o salário dos operários têxteis era inferior ao salário médio de toda Rússia: 166 rublos anuais, quando o salário, para todos os ramos da produção, era, em média, de 79 rublos. No que se refere aos têxteis petrogradenses, não se tratava de camponeses das aldeias vizinhas, mas de proletários urbanos típicos. Mas, como os preços eram fixados pela região moscovita, os patrões petrogradenses negavam-se a pagar os salários que os patrões metalúrgicos davam. Enquanto um metalúrgico percebia em Petrogrado, em média, 363 rublos anuais, o têxtil só percebia 205, com a particularidade de ser a jornada de trabalho dos metalúrgicos de onze a dez horas e a dos têxteis de quatorze. Isto havia de estimular o descontentamento entre os têxteis petrogradenses, e não ha nada de surpreendente no fato deles entrarem em greve. Naturalmente, além das causas de ordem econômica, não podia deixar de haver uma determinada influencia de natureza política; a existência constante de círculos operários em quase todas as fabricas de Petrogrado preparara, até certo ponto, o terreno (N. do A.). (retornar ao texto)

(3) O Partido dos Socialistas-Revolucionários constituiu-se definitivamente, do ponto de vista orgânico, por ocasião do 1.° congresso celebrado nos dias 27 de dezembro de 1905 a 4 de janeiro de 1905, isto é, depois do aniquilamento da insurreição de Moscou. No Congresso, os elementos da extrema direita separaram-se para formar o “Partido Socialista Popular”, cujos chefes visíveis eram Miakotin e Peschekonov. Na primavera de 1906, em Moscou, separou-se a chamada “oposição” e em Petrogrado, os “maximalistas”. (retornar ao texto)

(4) Sobre o “marxismo legal” veja-se mais adiante o movimento da pequena burguesia, em geral. (N. do A.). (retornar ao texto)

(5) Zubatov suicidou-se em 1905, impressionado com o avanço da revolução. (retornar ao texto)

(6) Em princípios de 1901, o estado de espírito revolucionário fazia grandes progressos entre os operários de Petrogrado. Em l.º de maio, produziram-se choques sangrentos entre a força publica e os operários no arrabalde de Viborg. Os trabalhadores da fabrica de Obukov defenderam-se tenaz e heroicamente contra os ataques da força publica. A “defesa de Obukov” provocou grande agitação em Petrogrado e arrastou milhares de operários e estudantes ao movimento. (retornar ao texto)

Inclusão 20/01/2015