Causas Econômicas da Revolução Russa

M. N. Pokrovsky


Introdução: Concepção Geral da História


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Que necessidade temos de olhar para o passado? Por que nos ocuparmos do que aconteceu há dez, cem, mil, dez mil anos atrás? Não seria preferível procurarmos conhecer melhor o que acontece atualmente, o que sucede em derredor de nós e de que depende nossa vida?

Estudamos o passado precisamente para compreender o presente. Na terra tudo evolui, isto é, tudo se modifica. Há centenas de milhões de anos atrás, a terra era um enorme globo incandescente rodeado de vapores e não havia e nem podia haver nela vida humana. Há dezenas de milhões de anos atrás, a vida surgiu na terra. Há uns milhões de anos, a terra já apresentava uma luxuriante vegetação, bosques enormes, multidões de animais aquáticos e terrestres de toda natureza. Mas isso em nada se parece com o mundo de hoje. Seu desenvolvimento supõe uma interminável série de modificações incessantes. As plantas, os animais atuais, descendem dos que existiram há milhões de anos.

Como se produziu tudo isto? Não foi de modo casual, mas de acordo com leis determinadas. Observando-se apenas a vida tal como ela é na atualidade, não percebemos as ditas leis, isto é, a regularidade que presidiu às suas modificações. Enquanto o passado remoto da terra não foi estudado, até se descobrirem os restos fósseis dos animais e das plantas existentes há milhões de anos atrás, os homens de ciência acreditavam que o mundo havia sido sempre igual e criado de uma só vez. Há cem anos, atrás, quando os raros investigadores se decidiam a afirmar o contrário, passavam por excêntricos ou loucos, e, no fundo, nada mais faziam que proclamar o que agora parece evidente e natural, isto é, que a vida se desenvolveu paulatinamente no decurso de um número considerável de séculos.

O estudo dos restos do mundo vegetal e animal antigo, enterrados há mais de mil anos e conservados assim até nossos dias, mostrou como essas modificações se verificaram. A fábula de que o mundo foi criado em 6 dias evaporou-se sem deixar rastros. E hoje não só não há nenhum sábio, mas nem sequer um homem medianamente instruído, que creia que os animais e as plantas foram sempre como são agora. Todo mundo sabe perfeitamente, pelos livros — e as pessoas que vivem nas cidades podem verificá-lo diretamente nos museus — que o mundo animal e vegetal anterior não se parecia com o atual, que o mundo se foi modificando no transcurso dos tempos e continua evoluindo sem cessar. Tal é a lei da Natureza.

Sábios e não sábios não só por ignorância sustentavam a doutrina da invariabilidade do mundo e da criação mosaica. É que esta doutrina tinha suas vantagens. Uma vez aceito que o mundo era imutável, não havia razão para se esperar mutações profundas da sociedade humana, que, organizada tal como nós ao nascer a encontramos, continuaria intacta nos seus fundamentos pelos séculos dos séculos. Assim era ensinada a História em outros tempos. As vantagens desse método tornam-se patentes. Era uma interpretação que agradava aos que gozavam de todos os benefícios na sociedade existente. Aqueles que tinham o poder nas mãos, que dispunham da riqueza, pensavam, o que, aliás, era natural, que assim devia ser sempre: para os ricos e privilegiados, as culminâncias; para o povo, operários e camponeses, a planície imensa do trabalho. Daí o empenho em convencer a si próprio e, sobretudo, aos demais, aos operários e camponeses, sujeitos ao seu poderio, de que o mundo devia ser assim e não podia ser de outra forma.

Se o estudo do passado da terra, do passado do mundo animal e vegetal, da Geologia e da Paleontologia, destruiu a fábula de que o mundo fora criado de uma só vez e era, por conseguinte, imutável, a História e a Arqueologia destruíram outra fábula segundo a qual a sociedade humana foi sempre, e o será pelos séculos em fora, tal como é. O homem transforma-se e se transformará como tudo. Uma ordem social aparece, outras se desmoronam, e, em seu lugar, surgem novas ordens e assim sucessivamente. Não podemos predizer nem imaginar o fim dessas modificações, mas, se as observarmos no decurso de dezenas e centenas de anos, compreenderemos então as leis que as regem. E, se não podemos preconceber qual será a sociedade humana dentro de alguns milhares de anos, podemos pelo menos saber em que sentido e por que meios se verificará sua modificação no transcorrer desse tempo.

Quem prevê o futuro domina-o, visto que, ao prevê-lo, pode preparar-se afim de evitar os infortúnios porvindouros e utilizar melhor os benefícios que esse futuro deve trazer. Saber significa prever e prever significa poder ou domínio. O conhecimento do passado dá-nos, deste modo, o poder sobre o futuro

Eis porque é necessário conhecer o passado.

Mas, se só podemos perceber a regularidade das modificações verificadas na sociedade humana graças à observação das mesmas no decorrer de muitos anos, isso não significa que devamos começar nosso estudo necessariamente pelos tempos mais remotos. Podemos seguir o caminho inverso. É mais fácil observar a regularidade das modificações efetuadas na sociedade humana, partindo para o remoto. Vejamos, por exemplo, o que sucede atualmente. Em todo o mundo, os operários aspiram derrubar o poder da burguesia, isto é, dos que os exploram; noutros termos, dos que engordam à sua custa e os obrigam a depender o máximo esforço, retribuindo-lhes com o mínimo possível e embolsando a diferença existente entre o valor do objeto criado pelo operário e a retribuição que o mesmo percebe pelo seu trabalho. Pode-se perguntar: só na atualidade existe exploração? Antigamente, os privilegiados e os ricos não exploravam o povo? A exploração sempre existiu.

Antes de surgir a atual ordem burguesa, com suas fábricas, bancos, estradas de ferro, etc., existia a sociedade feudal, o direito servil, e, então, não eram os fabricantes os usurpadores do produto do trabalho dos operários, os pagadores de uma retribuição miserável, mas os latifundistas, que tiravam aos camponeses o fruto do seu trabalho, nada lhes pagando por isso. E naquela época também houve insurreições dos explorados contra os exploradores, revoluções semelhantes às atuais? Sim, mas fracassavam sempre. Por que? Porque os camponeses não tinham meios de organizar-se, isto é, de formar uma massa compacta e unida que trabalhasse segundo um plano comum. E por que isto acontecia? Porque os camponeses viviam isolados em seus tratos de terra, ajudando-se raramente uns aos outros, e, quando vendiam seus produtos, tornavam-se rivais. Quanto mais escassos no mercado o feno, o trigo, os legumes, etc., mais encarecem, e o camponês pode vendê-los com muita vantagem. Quanto mais abundantes, mais baratos, e o camponês percebe menos pela venda desses produtos. Como consequência disso, a consciência de que os homens se devem auxiliar mutuamente e de que se acham ligados uns aos outros não se pode desenvolver no camponês. Desconhecem o espírito de solidariedade. Os operários, pelo contrário, trabalham juntos na fábrica, ajudam-se constantemente nos seus trabalhos. Um operário isolado nada pode fazer e por isso todos se devem auxiliar mutuamente. Na classe operária, por consequência, desenvolve-se o espírito de solidariedade, que falta aos camponeses. Eis porque os operários se organizam melhor e mais facilmente do que aqueles. Eis porque as revoluções operárias são muito mais fortes, muito mais numerosas do que as insurreições camponesas, quehouve noutros tempos. Os camponeses não se puderam libertar de seus exploradores. Os seus levantes fracassavam constantemente. Os camponeses nunca puderam conquistar o poder, ao passo que os operários já dispõem de um dos maiores países do mundo, a Rússia, e se acham a caminho da conquista de outros países europeus.

Deste modo, observando o que sucede na atualidade, ou o que aconteceu num período relativamente recente, percebemos a regularidade das mutações históricas, ou seja, que a História é impulsionada por homens de uma ocupação determinada, modificando-se segundo a classe social que a impulsiona. Assim vemos que, quando a massa popular era composta de camponeses, a História marchava com um ritmo diferente do de agora, em que se acham os operários à frente do movimento.

Pois bem; como se formam essas classes? Por que, antes, produção estava inteiramente nas mãos dos camponeses? Por que, naqueles tempos, não só o trigo, o linho ou a lã eram recebidos da aldeia onde cada qual trabalhava em sua fração de terra, mas, também, as botas e as roupas, feitas por artesãos isolados, que trabalhavam em suas casas, ao passo que agora temos grandes fábricas de calçados, grandes armazéns de vestuários, etc., etc.? Porque, naqueles tempos, o homem devia fazer tudo com suas mãos. Não se pode dizer que não houvesse máquinas, mas eram movidas a água, como, por exemplo, os moinhos, e pouco numerosos. Há menos de duzentos anos, o homem começou a construir máquinas movidas a vapor; mais tarde, pela eletricidade e pelo calor; atualmente, pelos motores a petróleo e por outros combustíveis. Com o aparecimento das máquinas, foi possível produzir objetos de toda natureza em muito maior quantidade e com muito mais rapidez. Sirva de exemplo o seguinte: quando se limpava o algodão à mão, era necessário empregar uma jornada inteira de trabalho para se limpar 1/2 quilo; agora, com a limpeza à máquina, um operário pode limpar, num dia, 50 quilos de algodão.

Daí resultou tornar-se desvantajoso o trabalho individual, e, como era impossível cada operário prover-se de uma máquina, começaram a agrupar-se em torno delas. Assim nasceu a produção em grande escala, assim surgiram as fábricas. Os proprietários das máquinas, os patrões ou a burguesia, converteram-se em donos de tudo. Ao passo que davam aos operários a possibilidade de trabalhar nas máquinas, tiravam-lhes tudo o que produziam, pagando-lhes uma miserável retribuição.

Assim formou-se a classe dos operários que não trabalhavam em sua casa e sim na alheia, não com suas próprias mãos, mas com o auxílio de máquinas que não lhes pertenciam. Deste modo formou-se o proletariado. Consequentemente, a aparição de uma classe social explica-se pela forma por que se rege a economia. Antes, a economia era pequena, cada qual trabalhava isoladamente; este era um regime social. Depois, o trabalho passou a realizar-se em comum e surgiu outro regime. Na base de todas as transformações achava-se, por conseguinte, uma transformação de ordem econômica.

Que obriga o homem a produzir? Isto é claro para todos. Para compreendê-lo, basta ver o que produziam os camponeses noutros tempos e o que se produz agora nas fábricas. A economia agrária produz cereais, carne, lã, linho, numa palavra, as matérias primas de que temos necessidade para a alimentação e a indumentária. As fábricas fazem conservas destes produtos, roupas, calçados, numa palavra, transformam essas matérias primas na forma mais adequada ao consumo. Tudo isto, no fim de contas, serve para sustentar a vida humana. O homem, por conseguinte, produz para ter a possibilidade de subsistir. Para isto, repito, não há necessidade de explicações, pois até uma criança é capaz de compreendê-lo. De modo que, se, na base de todas as transformações históricas, se acham as transformações de ordem econômica, isto significa que o que obriga o homem a trabalhar são suas necessidades materiais, o desejo que o impele a salvar-se da fome e do frio.

Logo, toda ação humana e toda a História têm sua base nas necessidades materiais. Dai chamar-se materialismo histórico a interpretação que damos à História. Esta concepção da História foi divulgada pela classe social, que compreendeu primeiramente a solidariedade dos interesses comuns de todos os trabalhadores e que leva a seu termo a revolução atual. A concepção materialista da História é a concepção proletária. Antes, quando a instrução se achava nas mãos da burguesia, isto é, da classe que possui os meios de produção, as fábricas, as estradas de ferro, a terra, etc., numa palavra, que vive da exploração dos demais, a História interpretava-se de outro modo. Todas as transformações da sociedade humana eram explicadas pelas transformações operadas no pensamento dos homens que dispunham da riqueza e do poder. Apresentavam as coisas do seguinte modo: a princípio, os homens não refletiam sobre a causa e o meio por que se havia formado tal ou qual ordem social e submetiam-se docilmente à mesma. Daí o não haver revoluções. Mas apareceram pessoas que começaram a criticar essa sociedade, isto é, a ver nela alguns defeitos, e contagiaram a massa com a dúvida sobre a justiça de tal ordem de coisas. A massa ouviu esses agitadores e instigadores e começou a revoltar-se Segundo a burguesia, nasceram deste modo as revoluções.

Em resumo, para a burguesia, as coisas passavam-se na História do mesmo modo que na fábrica ou no armazém: o patrão raciocina, projeta e manda; os operários ou os empregados obedecem.

Não é difícil compreender o erro desta explicação. Com efeito, a não ser pelo que dissemos acima, se os exploradores da classe operária, os capitalistas, não roubassem aos operários os produtos do seu trabalho, e pagassem por esses produtos o seu justo valor, que agitadores seriam capazes de obrigar essa massa a revoltar-se? Se, por meio da agitação, se, por processos de divulgação, orais ou escritos, se pode provocar a revolta, isto indica que ela pode ser provocada no seio de qualquer classe, e, por consequência, deveria ser tão possível revoltar a burguesia como os operários. Melhor ainda, seria mais fácil provocar a revolta da burguesia, pois sendo, como é, mais instruída, pode compreender mais facilmente qualquer propaganda. Por que só a classe mais pobre e por isso mesmo a mais ignorante se deixa influenciar, enquanto a classe burguesa, mais ilustrada, é em todas as partes inimiga da revolução, e, digam o que quiserem os agitadores, não os escutam e lhes viram as costas? Porque essa agitação é desvantajosa para a burguesia e se acha em oposição com os seus interesses materiais. E, ao mesmo tempo que defende estes interesses materiais, que defende o direito de explorar o trabalho alheio, vivendo tranquilamente em magníficas vivências, a burguesia não só não escuta os agitadores, mas fuzila e enforca todo aquele que lhe cai nas mãos e luta raivosamente contra os operários que aspiram a uma existência melhor.

Assim, pois, o motor da História é a luta de classe, isto é, das classes oprimidas, exploradas, dos operários e camponeses, contra as classes que as oprimem e as exploram, contra a burguesia e os camponeses ricos. Em segundo lugar, a História é movida pelos interesses materiais, ou melhor, pela necessidade que o homem tem de alimentação, vestimentas, habitações, calor, etc. Os homens aspiram a satisfação dessas necessidades e é preciso esforçarem-se para que sejam satisfeitas da maneira mais justa possível, isto é, que todos os bens terrestres se distribuam entre todos segundo suas necessidades: esta é a aspiração socialista.

Este exemplo revela que não só compreendemos o presente pelo passado, mas também explicamos o passado pelo presente, com a condição de observarmos um período de tempo suficientemente longo. Se observarmos unicamente o que acontece em volta de nós, não compreenderemos o que sucede agora. Observando-se apenas o que sucede em nossa volta, não vendo classes, mas unicamente indivíduos isolados, poderemos crer que, com efeito, a História é feita por estes. Para ver o processo histórico, isto é, o movimento da História em seu conjunto, deveremos separar-nos um pouco dela e contemplá-la, por assim dizer, de fora.

A essência da História está, pois, no desenvolvimento gradual ou, melhor, na modificação gradual da sociedade humana. O fim imediato deste desenvolvimento é o socialismo, isto é, a passagem da terra e de todos os seus produtos, assim como de todos os demais instrumentos de produção, fábricas, oficinas, etc., e todos os meios de transportes, estradas de ferro, etc., para as mãos dos que trabalham. É este o fim imediato. Mas, com isto, naturalmente, não terminará a evolução da sociedade humana. Agora não podemos predizer o que ocorrerá mais adiante, como se desenvolverá a sociedade socialista. Mas, quando forem conhecidas exatamente as leis que presidem ao desenvolvimento da sociedade humana, poderemos, então, prever a marcha da evolução humana, não só nos anos próximos vindouros, mas, também, nos séculos futuros. Não vamos, no entanto, tão longe e vejamos melhor o que ela é e o que foi.

Dissemos já que a base do desenvolvimento da sociedade humana reside na economia, ou seja, na luta do homem com a Natureza pela existência, pelo pedaço de pão e pelo carvão, etc. É claro que esta luta depende, antes de mais nada, da Natureza que rodeia o homem. Para compreender o processo histórico, isto e, o modo por que se desenvolve a História neste ou naquele pais, é necessário ter, antes, uma ideia das condições naturais do mesmo. Se olharmos para o modo como estão disseminados pela terra os diferentes povos, instruídos e não instruídos, cultos e selvagens, veremos que os povos mais cultos ocupam as partes do globo em que reina um clima temperado, em que não faz nem demasiado calor nem demasiado frio. Em sentido oposto, encontraremos os povos selvagens, ora nos países mais quentes, nos quais é impossível toda vida econômica em consequência do calor excessivo, ora nos países mais frios. As tribos primitivas que mais se assemelham ao homem de há centenas de milhares de anos são, de um lado, os esquimós, que habitam o norte polar, onde não existe nenhuma vegetação, onde só é possível subsistir graças à caça e à pesca, e, de outro lado, os vedhaki na ilha de Ceilão, quase no equador, e as chamadas tribos anãs da África central, que vivem em paragens onde não existe o inverno e onde o calor asfixiante é seguido de chuvas torrenciais.

Apesar disso, a economia pode desenvolver-se também em países muito quentes, no próprio Equador; porém, não na planície, mas nas alturas, nas montanhas, onde o ar é muito mais fresco. Assim, por exemplo, os europeus acharam na América Latina um povo muito instruído, os “Incas”, entre os quais a agricultura se achava bastante desenvolvida, a irrigação artificial, etc., numa região ocupada atualmente por um Estado que traz precisamente o nome de “Equador”. Mas os “Incas” viviam numa altura de duas ou três verstas(1) acima do nível do mar. Por conseguinte, é preciso tomar em consideração não só a latitude do lugar que nos interessa — encontra-se numa zona tórrida ou numa zona fria — mas, também, sua altitude — tratem-se de montanhas ou planícies.

A Natureza influi sobre a economia não só sob o ponto de vista do clima. Às vezes, este ou aquele caráter da economia depende da existência de um determinado animal útil. Assim, por exemplo, muitas tribos das regiões longínquas do norte da Europa e da Ásia vivem dos veados: o veado fornece-lhe os alimentos (carne), a roupa (pele) e o material para os utensílios (chifres), etc. Essas tribos lidam com rebanhos de veados semisselvagens e a epizootia dos veados significa a morte, pela fome, não só de famílias, mas de tribos inteiras. Isto sucede não só aos selvagens, mas, também, aos povos cultos: o bem estar dos habitantes da França ocidental, das margens do Oceano Atlântico, depende em grande parte das sardinhas. A população que habita essas margens vive dessa pesca e o fato de não haver sardinhas produz para os pescadores franceses os mesmos efeitos que a seca para os camponeses russos .

Isto não quer dizer que esta influência tenha sido sempre igual em todos os lugares. Não. Os homens modificam-se, e, à medida que se vão modificando, modificam também suas relações com a Natureza. Assim, por exemplo, para a população primitiva da planície russa, que ainda não dispunha de ferramentas, a floresta representava um obstáculo invencível. Abrir passagem através da floresta era muito difícil. Consegui-lo era considerado como uma façanha da qual se falava durante muito tempo. A floresta era considerada um lugar terrível, povoado por toda espécie de monstros e a população da Rússia mantinha-se habitualmente, nessa época, nos limites das florestas e das estepes. Mas chegaram à Rússia central os primeiros eslavos que trouxeram a acha de ferro. Quando, nas escavações, se descobrem restos das povoações eslavas, cemitérios, etc., reconhecemo-las imediatamente por essas achas. Com o seu auxílio, o homem abria caminho na selva, cortava as árvores e construía suas habitações com a madeira. E o que, antes, era um motivo de pavor, se converteu, pelo contrário, na base principal da economia do homem, pois a primeira economia dos eslavos foi florestal. As primeiras ocupações que encontramos são: a apicultura, a caça, a extração de peles ou de carne das feras e, depois, a chamada agricultura florestal. Cortavam as árvores, queimavam-nas, empregavam a cinza como excelente adubo e, na terra adubada, semeavam o trigo. Por conseguinte, a economia estava intimamente ligada à floresta. Isto demonstra como se transformam as relações do homem com a Natureza, à medida que se modificam as suas condições de existência.

Eis aqui outro exemplo ainda mais eloquente: quando os primeiros povoadores europeus chegaram à América, a população indígena, os peles vermelhas dedicavam-se exclusivamente à caça. Pequenas tribos erravam pela planície imensa e como única ocupação perseguiam as feras. Mas, chegando os europeus à América, ao cabo de duzentos anos, naquelas planícies em que vagavam as hordas caçadoras, apareceu um dos Estados mais cultos do mundo, com uma magnífica agricultura, com enormes fábricas, com estradas de ferro, etc. Na atualidade, os Estados Unidos são um país que, do ponto de vista técnico, se acha na vanguarda de todos os países do mundo. Foi isto o que sucedeu quando os europeus, que trouxeram consigo a cultura europeia, isto é, os processos e os hábitos do trabalho europeu, chegaram à América, cujos primitivos habitantes se dedicavam exclusivamente à caça.

Se destes exemplos gerais passarmos ao exemplo da Rússia, de cuja história nos vamos ocupar, veremos que as condições naturais das planícies do oriente da Europa, ocupadas pelo povo russo, se distinguem pelo seu caráter rigoroso. No nosso país, o inverno é longo e o verão curto. Por isso, os trabalhos agrícolas ocupam na Rússia uma pequena parte do tempo. Na Rússia central, é precisa arar, semear e colher num período de cinco meses. Num dos nossos vizinhos, a Alemanha, os trabalhos agrícolas podem prolongar-se durante sete meses, isto é, a maior parte do ano, ao passo que na Rússia os agricultores nada têm que fazer na terra durante a maior parte do ano. E, se avançamos mais para o oeste, na França, nas margens do Oceano Atlântico, encontramos tais condições climatéricas que permitem ao homem trabalhar durante o inverno, isto é, todo o ano. Assim, na Bretanha ou nas hortas das redondezas de Paris, durante todo o ano crescem legumes! Daí falar-se em legumes de verão e legumes de inverno. Não é difícil compreender que nesses países, onde se pode trabalhar a terra durante todo o ano, o rendimento do trabalho agrícola é maior que naqueles países em que o agricultor trabalha somente uma parte do ano. Noutras palavras: naqueles países a acumulação de bens realiza-se com maior rapidez. Assim, pois, em consequência do nosso clima rigoroso, o desenvolvimento agrícola da Rússia tinha que se efetuar mais lentamente do que nos países de melhores condições climatéricas.

É natural que, enquanto a principal ocupação do povo russo fosse a agricultura, a Rússia marchasse na retaguarda dos demais povos. Só conseguiu alcançá-los quando começou o desenvolvimento das indústrias e apareceram as fábricas. Estas podem transformar não só a matéria prima que o país proporciona, mas, também, a que vem de países longínquos. Nossas fábricas de tecidos trabalham com o algodão da América ou do Turquestão. O comércio e a indústria, por conseguinte, aceleram extraordinariamente o desenvolvimento da economia e tornam-na independente das condições naturais.

Convém dizer aqui que, mesmo do ponto de vista do desenvolvimento comercial, a Rússia se acha em condições menos favoráveis do que os países da Europa Central. A água foi, e continua sendo, a melhor via de transporte. O melhor meio de comunicações entre os diversos países é o mar. Noutros tempos, quando não havia estradas de ferro, era o único meio de comunicação. O grande comércio só se podia efetuar pelo mar; pela via terrestre, só era possível transportar escassas mercadorias, e caras, pois o transporte das mesmas por meio da forca animal, de um pais para outro, era excessivamente custoso.

O mesmo acontece atualmente.

Repito, pois, que, antes de existirem estradas de ferro, a via de comunicação mais cômoda e mais barata era o mar; o transporte de mercadorias em grandes quantidades podia efetuar-se unicamente por via marítima. Assim se explica a indústria e o comércio começarem a desenvolver-se naqueles povos europeus que tinham acesso mais fácil ao mar. Começam a desenvolver-se, em primeiro lugar, nos países das costas do Mediterrâneo, como a Grécia e a Itália; depois, nos países insulares, como a Inglaterra, ou países como a Holanda, tão intimamente unida ao mar que, em alguns lugares, apenas se chega ao nível do mesmo. A Rússia, desse ponto de vista, está muito desfavorecida. A Rússia central, na qual se desenvolveu principalmente a História, acha-se a uma distância de 600-800 verstas do mar mais próximo; ademais, a parte oriental do Báltico, o mar Branco e o golfo do mar Glacial cobrem-se de gelo no inverno e são inacessíveis à navegação. O mar Negro, no sul, não gela, porém dista da Rússia central, não 600-800 verstas, mas muito mais de mil. É verdade que afluem ao sul vários rios caudalosos como o Dnieper, o Don, o Volga, mas estes rios gelam no inverno e, no mais importante deles, o Dnieper, que desemboca no mar Negro, existem obstáculos que dificultam constantemente a navegação; o maior desses rios, o Volga, não desemboca no mar, mas num lago, que, apesar de ser chamado mar Cáspio por suas enormes dimensões, não tem saída alguma.

Todas estas circunstâncias determinaram que na Rússia central o comércio, e com ele a indústria e a agricultura, se desenvolvesse com mais dificuldade do que noutras partes. Era mais difícil para a Rússia começar, por esse motivo, mas, uma vez iniciada, avançou, como veremos mais adiante, com maior rapidez que os outros países, pois o aparecimento do comércio e da indústria provoca sempre novos progressos da ciência e da técnica. Isto acelera, por sua vez, extraordinariamente, o desenvolvimento econômico e dá possibilidade ao homem de defender-se com êxito contra as condições naturais desfavoráveis, vencendo a Natureza.

A parte setentrional da África é ocupada pelo deserto estéril do Saara e enquanto viveram nela os árabes não foi possível quase nenhum cultivo. Só nos lugares em que havia água se formavam oásis, que eram, contudo, pouco numerosos. Quando os franceses ocuparam a parte setentrional da África trouxeram consigo sua técnica. Os franceses começaram a perfurar o solo e não tardaram em descobrir que no Saara havia água — ainda que se achasse a uma grande profundidade — e que era possível consegui-la por intermédio de poços artesianos. Uma vez obtida assim a água, os franceses construíram um sistema de irrigação artificial, graças ao qual surgiu uma série de oásis cheios de palmeiras, que fornecem magníficas colheitas de tâmaras. Estas constituem, nessas regiões, quase que o único alimento, substituindo o pão, a carne, etc. Assim, pois, graças à superioridade da técnica europeia, foi possível converter-se em jardins floridos o que antes era considerado como um deserto condenado para sempre à esterilidade.

Outro exemplo mais novo e ainda mais admirável. Graças aos recentes progressos da ciência, conseguiu-se não só fazer surgir uma vegetação em lugares considerados estéreis, mas criar variedades de plantas completamente novas.

Resumindo: o homem depende da Natureza e a História avança com maior ou menor rapidez, conforme forem as condições naturais a que cada povo se ache submetido. Mas este poder da Natureza não é ilimitado. O homem pode vencer a Natureza e, portanto, ela não é a base da economia. A Natureza constitui apenas o material para essa economia. A base da economia é o trabalho humano: quanto mais perfeito for este trabalho, quanto mais tenaz e inteligente, menos dependerá o homem da Natureza. E não é difícil prever que, no futuro, quando a ciência e a técnica chegarem a um grau de perfeição que, agora, não podemos imaginar, a Natureza será, nas mãos do homem, uma substância maleável, com a qual fará o que melhor lhe aprouver.


Notas de rodapé:

(1) Uma versta corresponde a 1.067 metros. (retornar ao texto)

Inclusão 20/01/2015