Entrevista para O Pasquim

Luiz Carlos Prestes

2-8 de novembro de 1979


Primeira Edição: O Pasquim - Ano XI – Nº540 – 02 a 08/11/1979

Fonte: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=124745&pagfis=20081

Transcrição: Lucas Silva

HTML: Fernando Araújo.


“A ditadura perdura e não devemos ter ilusões”

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Ziraldo – O mais importante desta entrevista é o fato de Luís Carlos Prestes, secretário-geral do PC, estar aqui na redação do PASQUIM, um jornal que passou dez anos resistindo à repressão. Durante todos estes anos, este fato era o mais remoto para todos nós. Agora, que o senhor está circulando por aí, subindo a rua pra falar com a gente, pode-se ter a impressão de que a situação é outra, que o país mudou completamente, e que enfim estamos respirando um grande ar de liberdade.

Luís Carlos Prestes – É. Pode ser essa impressão, mas na verdade o que mudou foi muito pouco. A ditadura perdura. Basta dizer que a Lei de Segurança Nacional está de pé, assim como o aparelho de repressão que cometeu crimes hediondos, como os que estão sendo denunciados, e que foram cometidos em segredo, de modo que a maior parte das Forças Armadas não os conhecesse. A Lei de Segurança Nacional exprime a essência do regime fascista, sendo na verdade e apenas isso um código de perseguição aos comunistas, imposto ao nosso povo pelo imperialismo americano, embora não vigore nos Estados Unidos, onde o Partido Comunista é perfeitamente legal, ganhando a cada dia maior influência junto às massas. Os países da América Latina têm adotado essa doutrina de opressão, voltada contra o povo, preparando as Forças Armadas para atingir e massacrar o próprio povo. Esta essência do fascismo ainda não foi tocada. A ditadura continua sem a legitimidade de um regime escolhido pelo povo, com governadores eleitos indiretamente, com senadores biônicos, com o pacote de abril em vigor, com a Lei Falcão em vigor, com a greve sendo considerada como crime, as restrições ainda são muito grandes. Temos alertado o povo brasileiro de que esta ditadura perdura e de que não devemos ter ilusões.

Ziraldo – Se não mudou, por que liberaram sua volta?

Prestes – Há uma necessidade de aparecerem como uma democracia, devido a uma orientação adotada pelos EUA em toda a América Latina. Vejam o golpe militar em El Salvador que foi orientado pelos EUA, com militares ligados aos monopólios norte-americanos, fazendo um golpe preventivo, diante de um general ditador que já estava isolado e impopular.

Argemiro Ferreira – Queriam evitar uma nova Nicarágua.

Prestes – Queriam evitar uma explosão pior. Tive oportunidade de ler no Diário de Portugal, dirigido por Miguel Urbano Rodrigues, um resumo de um discurso do Sr. Ulysses Guimarães, em que protestava contra a intervenção nos assuntos internos do Brasil, referindo-se a uma advertência que os americanos fizeram ao Governo Brasileiro, de que não admitiriam um segundo Irã. Temem uma explosão popular, e para isso é necessário mudar a fachada, pelos menos a face, desses regimes, e, se possível, que estes conquistem massas, e se apoiem num partido social reformista capaz de isolar os comunistas. A tática do imperialismo hoje é essa, em quase toda a América Latina e nos países onde há ditaduras militares isoladas, que perduraram durante anos seguidos – no caso brasileiro, quinze anos – sem resolver nenhum problema. Os problemas, ao invés de serem resolvidos, se agravaram. Há poucos dias, eu conversava em Moscou com Alberto Passos Guimarães, um especialista em questão agrária, e ele se referia ao aumento do número dos latifúndios, às grandes extensões de terra que estão sendo vendidas aos monopólios. A Volkswagen, a General Motors, e tantas outras, estão adquirindo vastas extensões de terras, para não falar na Empresa Jari, com três milhões e meio de hectares, quase 35 mil KM quadrados, uma potência de Estado dentro do Estado. Além disto, a dependência ao imperialismo aumentou. Basta nos referirmos à dívida externa. O país já está situado na posição do jogador que tem que tomar emprestado pra pagar empréstimos. É incontestável que a miséria do povo aumentou. Basta examinar o que era um salário real antes de 64 e o que é um salário real hoje. O salário mínimo, hoje – segundo o DIEESE – deveria ser de pelo menos seis mil cruzeiros, para recompensar o do início da década de 60, e se levássemos em conta o aumento da produtividade nesses anos, o salário mínimo deveria ser de dez mil cruzeiros. No entanto, está reduzido a dois mil e duzentos. Existe um abismo, um verdadeiro fosso, entre uma minoria rica e a grande massa da população, cada vez mais pobre. O Exército não está resolvendo nenhum destes problemas. Isto não é de hoje, pois o imperialismo sempre atuou dessa forma. A América Latina é a região dos golpes. Quando um governo começa a atingir os interesses dos monopólios e dos latifundiários, fazem um golpe militar. O regime militar instituído não resolve nenhum problema, e ao final de alguns anos está tão desmoralizado que é necessário ao próprio imperialismo trocar o sistema. Um exemplo clássico é a luta contra o tirano Machado, em Cuba, que dominara durante dez anos sem resolver nenhum problema. O imperialismo enviou personalidades do Departamento de Estado para preparar o golpe contra Machado, sugeriu então o Sargento Batista, que acabou como ditador de Cuba.

Ziraldo – E os Estados Unidos ajudaram também Fidel Castro, achando que depois poderiam entrar em negociações.

Prestes – Pensavam que podiam dobrar Fidel Castro, que é um patriota honesto, que realmente defende os interesses do povo cubano.

Argemiro – Quando o senhor falou da utilização pelos EUA dos militares latino-americanos, me lembrei de que houve um período em que os militares constituíam a vanguarda da sociedade brasileira, período do qual o senhor participou ativamente, embora tivesse reavaliado sua posição depois da Revolução de 30.

Prestes – Não, não reavaliei. O exército brasileiro sempre teve uma tradição democrática, desde a proclamação da República. Meu pai era aluno de Benjamim Constante e participou da Proclamação da República. A pequena burguesia, justamente a mais pobre, é que procurava o Exército. Só fui para o exército porque não podia estudar numa academia ou universidade. Não tinha nenhuma vocação ou interesse militar, mas era a única forma que eu tinha de fazer um estudo superior, pois no Exército recebia casa, comida e fardamento. Minha mãe era pobre, vivia do soldo de viúva de um capitão do Exército, e com muitos filhos. Realmente, eu só podia estudar numa escola militar.

Ziraldo – Euler Bentes contou essa mesma história aqui.

Prestes – Em 22, quando a classe operária ainda construía o seu partido, os tenentes tomaram a vanguarda, iniciando uma luta pelas bandeiras democráticas. A maioria dos oficiais, inclusive eu, éramos apolíticos, mas fomos arrastados para a luta política pela campanha eleitoral à sucessão presidencial da época. O Correio da Manhã publicou o fac-símile de uma pretensa carta de Bernardes – depois desmentida – atingindo os brios dos militares. Eu nunca havia frequentado as festas do Clube Militar, mas quando os jornais anunciaram que haveria uma reunião a fim de discutir esse assunto, achei que era meu dever dar uma opinião, principalmente porque eu discordava de que se fizesse perícia da carta, pois já havia sido desmentida. Foi ai que os militares se entusiasmaram e entraram na política. É claro que havia causas mais profundas para isso, pois estávamos na crise do pós-guerra, em que os vencimentos dos militares não correspondiam às suas necessidades. A aliança liberal formou-se nessa época, apoiando a candidatura de Nilo Peçanha. Quando começou a conspiração, em janeiro de 22, fui um dos primeiros convidados.

Ziraldo – Era tenente?

Prestes – Sim. Mais tarde, quando houve o processo de 35, escrevi uma carta ao Dr. Sobral Pinto, contestando sua opinião de que o Exército estava no mesmo pé que a Polícia. Naquela época eram diferentes, não se podia confundir a oficialidade do Exército com a Polícia de Filinto Muller. Agora, depois de 35, a educação anticomunista intensificou-se muito no Exército, e ainda mais depois da II Guerra Mundial, com as missões americanas. Esse fator subjetivo agora tem muita importância nas Forças Armadas, mas não tenho dúvida de que a sua maioria não tem nada que ver com essa minoria de torturadores, e que a maioria da oficialidade do Exército tem tendências democráticas, não estando de acordo com este regime de assassinatos. Eu, como materialista, acho que, num momento de crise, os fatores econômicos predominam sobre qualquer fator subjetivo. As camadas médias estão sendo massacradas, e a oficialidade do Exército são essas camadas médias.

Ryff – O senhor participou muito da Revolução de 30. Indo a Porto Alegre encontrar com Oswaldo Aranha, encontrando-se com os líderes civis e militares, mas lá pelas tantas a abandonou. Muita gente acredita que, se o senhor tivesse se mantido como líder da Revolução de 30, teria conseguido lhe dar um sentido mais nacionalista e popular. Queriam que Prestes fosse governador de São Paulo, e na sua falta é que colocaram João Alberto.

Argermiro – O senhor nunca se arrependeu de sua decisão nesse período?

Prestes – Não me arrependi, nem estou arrependido. Discute-se muito esse assunto, mesmo entre as fileiras de nosso partido.

Argemiro – Algumas pessoas fazem um paralelo com a Revolução Cubana, que no início também foi uma revolução burguesa.

Prestes – Qualquer ser humano está sujeito a cometer erros, não é, mas vou dar alguns argumentos para mostrar porque, na minha opinião, não agi erradamente. Em 1929 houve uma crise econômica, e os preços do café caíram de tal forma que os governos que sucederam a 30 tiveram que eliminar e queimar mais de 70 milhões de sacas. O café estava sob a hegemonia do imperialismo inglês. Washington Luís governava defendendo os interesses da burguesia paulista, bastante ligada ao imperialismo inglês. A época era oportuna para o imperialismo americano adquirir a hegemonia e deslocar o imperialismo inglês do Brasil. Foi quando surgiu a candidatura de Getúlio Vargas, conseguindo o milagre de unificar o Rio Grande do Sul. Como isto foi possível? Seria porque a Dillon, uma firma financeira americana, entregou-lhe 160 milhões de dólares, com os quais fundou o banco do estado, financiando todos os fazendeiros? A luta da época foi entre dois imperialismos, com a participação de determinadas oligarquias do Rio Grande, de Minas Gerais e da Paraíba, contra a oligarquia paulista, que estava no poder. Era este o quadro que o Partido Comunista via.

Ziraldo – O senhor já era membro do Partido?

Prestes – Não, só entrei em 1934, mas naquela época já estudava o marxismo, apesar de ser um estudante elementar. Meus camaradas da Coluna e tenentismo, me haviam colocado como Chefe Militar da Revolução, mas depois passaram a apoiar a candidatura de Getúlio Vargas. Estávamos em Buenos Aires: Juarez Távora, Siqueira Campos, Djalma Dutra, e eu, e nossa resposta foi que jamais apoiaríamos a candidatura dos oligarcas que sempre nos perseguiram. Mas, a partir de julho de 29, pouco a pouco, Getúlio Vargas foi ganhando os tenentes. Para tentar ganhar alguns destes para minhas posições, não vacilei em ir até Porto Alegre, embora não confiasse nem em Getúlio Vargas, nem em Osvaldo Aranha, Secretário da Justiça e do Interior, e por isto viajei clandestino. Fui recebido por Vargas no Palácio Piratini, à meia-noite. “Estou aqui não para apoiar sua candidatura. Jamais apoiarei sua candidatura, porque se o senhor for eleito, continuando este mesmo regime, irá fazer a mesma coisa que os outros. Vim aqui porque meus companheiros dizem que o senhor quer fazer uma revolução. Entendo por revolução o seguinte...”Então expus o que eu entendia por revolução agrária e antiimperialista. Nessa época, como era “cristão-novo”, era bastante sectário. Depois disto, Vargas fez uma frase...aliás gostava muito de fazer frases: “O senhor tem a eloquência da convicção”.

Ziraldo – Porque o senhor se interessou pelo marxismo?

Prestes – Eu conhecia a miséria do povo nas favelas, nas cidades, mas com a marcha da Coluna vi quadros de tal miséria que fiquei alarmado: “Como um país tão rico pode ter uma miséria tão grande?” Vi homens de cabeça branca que haviam passado anos sem ter uma nota de mil réis. Vi o povo desnudo, coberto de trapos. Passei por cabanas onde só apareciam uma das filhas. As outras não podiam aparecer, não porque estivessem com medo de nós, mas porque só tinham um vestido. Vi homens ajoelhados no chão, catucando o solo com facas de cozinha, sem cabo, pegando na lâmina mesmo, quer dizer, estavam mais atrasados que os índios, que usavam uma ponta de pau, furando o chão em pá mesmo. Vi homens que não podiam comprar uma enxada, um machado. Vi quadros de miséria extremamente dolorosos, e aí foi que comecei a compreender que não seria a mudança de Bernardes por qualquer outro que resolveria este problema, que era muito mais profundo, sendo necessário analisar suas causas, e procurar os remédios. Foi com esta intenção que terminamos a marcha da Coluna. Se marchamos dois anos sem sermos derrotados, creio que poderíamos marchar outros dois anos sem derrotas, pois tínhamos condições para isso, mas percebi que quem sofria mais com a Coluna era o camponês, porque atrás de nós vinha a força da repressão, maltratando a população. Tirar uma mula de um fazendeiro não é tanto prejuízo, mas o de um camponês é. Achamos que era hora de encerrar a marcha, e examinar as causas dessa miséria. Foi com este objetivo que fui à Bolívia, onde fiquei um ano, até que todos os soldados da Coluna pudessem voltar ao Brasil. Depois fui para Buenos Aires, onde comecei a estudar.

Ziraldo – O senhor foi o único da Coluna a tomar esse caminho?

Prestes – Não, outros tomaram, ainda outros se aproximaram, mas nenhum dos chefes ou dirigentes. Não sei se isto aconteceu pela minha origem social, pois era o mais pobre dos líderes. Em Buenos Aires procurei estudar o marxismo, e mantinha uma casa comercial junto com o Tenente Orlando Ribeiro, que me dizia abertamente: “Comunista, jamais serei!”.

Ziraldo – Qual é seu relacionamento com seu velho amigo Cordeiro de Farias?

Prestes – Amigos são uma coisa. Camaradas de luta, que estiveram juntos, que tiveram uma amizade durante dois anos, é outra. Isto não se pode apagar, mas quando ele voltou da FEB nos encontramos, e sua posição já era bastante anticomunista, tentando me fazer entender de que o que eu fazia era orientado por um centro estrangeiro, o que considero um insulto. Este direcionamento não existe. Cada Partido Comunista é soberano na elaboração de sua orientação. Depois disto, esteve comigo na Polícia, quando fui preso, mas foi lá para me reconhecer, para ver se era eu mesmo, porque Filinto Muller não tinha muita certeza.

Ziraldo – Mas o Cordeiro de Faria fala do senhor com grande respeito.

Prestes - Compreendo que ele tenha que ressaltar muito a Coluna, porque é o que tem de mais positivo na vida.

Argemiro – Por que se cometeu o erro de achar que havia condições para um golpe em 35?

Prestes – Foi uma avaliação malfeita. Agora, não nego, absolutamente, a importância de todo movimento feito com honestidade, com boas intenções patrióticas, e o movimento de 35 era fundamentalmente antifascista, conseguindo barrar o Fascismo no Brasil. Não considero o Estado Novo de Getúlio Vargas como um regime fascista, e sim parafascista. Não chegou ao fascismo, apesar dos grandes compromissos com o Integralismo, por causa de 35. A partir de 10 de novembro, Getúlio não quis mais saber do Integralismo, que ficou desmoralizado. Os integralistas fizeram mais contra os comunistas do que a polícia, pois eram os dedo-duros que entregavam as pessoas, desmoralizando-se com isso. Não convinha mais a Getúlio Vargas nem nomear um ministro Integralista, mesmo depois de já ter prometido o Ministério da Educação ao Plínio Salgado. Portanto, não renego o movimento de 35. Agora, estou certo de que houve erros, como este de construir o partido nos quartéis e não nas fábricas, por ser mais fácil ou cômoda a agitação nos quartéis. O trabalho dos comunistas nos quartéis deve ser de propaganda, de preparar os soldados para apoiarem o movimento da classe operária, e não de agitação, pois quem dirige este movimento é a classe operária. Houve erros mesmo do ponto de vista da situação econômica. A crise de 29 teve seu ponto mais baixo em 33, e em 35 já se saia dela.

Félix – Mas agora com uma depressão, está havendo uma abertura.

Prestes – A situação econômica atual realmente é muito grave, e apesar disto, o Sr. Figueiredo da anistia, faz concessões, mas há interesses muito mais sérios por trás. A classe operária tem obtido alguns aumentos salariais porque isto interessa aos próprios monopólios. Cito novamente o caso de El Salvador, onde houve uma rebelião preventiva, para evitar uma explosão maior, uma repetição da Nicarágua.

Argemiro ­– Na entrevista do Ryff, ele frisou que 35 não foi uma revolução comunista e sim de uma frente popular.

Prestes – Era um movimento anti-fascista e nacional-libertador. Frente ao integralismo, apresentamos um programa nacional-libertador: reforma agrária, desapropriação das empresas estrangeiras, etc. Isto era justo, mas tínhamos que ter adotado uma tática para o omento, concentrando-nos exclusivamente na luta antifascista. Hermes Lima, por exemplo, participava da Aliança Nacional Libertadora, mas não era antiimperialista, nem concordava com uma reforma agrária radical. Com isto a Frente única estreitou-se. Reitera, contudo, minha posição de não renegar minha participação em 35, pois sei que foi um movimento honesto, de patriotas, que almejava impedir o avanço do Fascismo no Brasil.

Ziraldo – Mas essa intentona virou um cavalo de batalha pra justificar tudo que se fez depois. Hoje temos centenas de desaparecidos em troca daqueles “irmãos mortos na calada da noite”.

César – O General Dilermando disse que virou anticomunista radical quando viu seus companheiros mortos na calada da noite.

Ziraldo – Como é que foi isso? O pessoal que se levantou foi lá no dormitório e matou soldados dormindo?

Prestes – Não, houve uma luta interna. Como é que os oficiais poderiam estar dormindo se o regimento todo estava de prontidão? Há poucos dias, Sr. Jarbas Passarinho declarou essa falsidade. É uma calúnia sem nenhuma veracidade, mas que vem sendo repetida.

Ziraldo – Isso é dito todos os dias!

Ryff – Todo este episódio foi esclarecido no livro do Hélio Silva.

Ziraldo – Qual sua versão da noite da Intentona? Gregório Bezerra contou para o PASQUIM sua versão do que ocorreu em Natal, agora conte-nos o que ocorreu no Rio.

Prestes – Eu era um simples membro do Partido, representando-o na Aliança Nacional Libertadora. O Maior responsável pelo levante foi o Secretário-Geral do Partido, Antonio Maciel Bonfim, o Miranda – que depois capitulou diante da polícia – e que nos dava informações efetivamente falsas sobre a realidade, dizendo que os postes da Light já estavam minados, que toda a classe operária do Rio se levantaria. Quando recebi o primeiro telegrama do levante em Natal, mandamos procurá-lo. Na noite mesmo de 24 para 25 de novembro, tive contato com alguns militares das guarnições do Rio, mas não queria tomar nenhuma iniciativa sem consultar o Secretário-Geral. Isto retardou o levante aqui, que só pôde se realizar na noite de 26 para 27 de novembro, quando a tropa já estava toda de prontidão. Se o levante tivesse sido imediato, na noite de 25, teria sido mais fácil. Tínhamos compromissos em todos os quartéis da Vila Militar, no Terceiro Regimento, e no Batalhão Naval. Enviei ordem de que o Terceiro Regimento saísse daquela garganta onde se situava, mandasse uma flanco-guarda cobrir o Palácio Guanabara, e avançasse até o Arsenal da Marinha, para junto com o Batalhão Naval apoderar-se do Quartel-General do Exército; mas, na madrugada do dia 27, o Terceiro Regimento não conseguiu sair da garganta, ficando completamente barrado. Os oficiais estavam de prontidão e houve uma luta interna séria. Na Vila Militar, ninguém se levantou. A Escola de Aviação saiu do Campo dos Afonsos mas também foi derrotada.

Ziraldo – Nesse momento, o senhor estava aonde?

Prestes – Sai de Ipanema, onde vivia, e fui para o Quartel-General em Vila Isabel.

Ziraldo – O senhor acha que Getúlio teve culpa pessoal na decisão de entregar Olga, sua companheira para os nazistas? Ou foi só do Filinto?

Prestes – Não tenho nenhuma dúvida. Filinto era apenas um funcionário de Getúlio, que estava perfeitamente a par do que se fazia. Considero este seu maior crime, entre outros. A família Vargas é muito conhecida em São Borja. Quando houve o Movimento de 24, o povo de São Borja fez fogueira de tudo quanto era retrato de Vargas.

Ziraldo – Não vou perguntar por que o senhor voltou a fazer comícios junto com ele, mesmo depois de ele ter entregue sua mulher, porque o senhor deu sua explicação naquela entrevista para a TV Bandeirantes e ela me bastou.

Prestes – Coloco os interesses da Nação e da Pátria acima de quaisquer ressentimentos pessoais. Se fosse considerar o que aconteceu com a Olga como problema pessoal, eu teria que sair da prisão para matar Getúlio Vargas, mas não seria esta a solução.

Argemiro – está sendo atribuída ao Sales a admissão de que o PC poderia apoiar a tese da “Constituinte com Figueiredo”. Esta é uma decisão partidária?

Prestes – É uma opinião pessoal. Não há nenhuma decisão do Comitê Central nesse sentido. Minha opinião pessoal é contrária. Penso que enquanto existir Lei de Segurança Nacional, Lei Falcão, Lei Anti-Greve, etc., a ditadura não permitirá uma eleição para uma Constituinte Livre. É necessário, para isso, que o povo possa discutir livremente seus problemas, que haja livre organização para todas as correntes políticas de opiniões. Para haver uma Constituinte representativa, vamos mais adiante: é necessário haver o voto para os soldados e os analfabetos. Pediremos este voto, para que a Assembléia Constituinte, sendo soberana, possa decidir livremente sobre os destinos da Nação.

Argemiro – Qual seria a diferença da situação de 45, quando o senhor apoiou uma Constituinte com Getúlio?

Prestes – É uma afirmação errônea. Quem apoiava a Constituinte com Getúlio era o Partido Trabalhista, os queremistas. Absolutamente. Os queremistas eram nossos aliados, mas essa palavra de ordem era deles. Éramos pela convocação de uma Assembléia Constituinte, com ou sem Getúlio.

Argemiro – Então é um equívoco histórico que permanece até hoje.

César Mota – Qual foi a avaliação de forças em 64, para que não se fizesse nada contra este golpe?

Prestes – O partido não tinha condições para isso. Havia uma frente democrática e nacionalista, cuja hegemonia estava nas mãos da burguesia, e cujo chefe principal era o Sr. João Goulart. A burguesia brasileira diante da inflação, e da luta que os trabalhadores vinham fazendo por aumento de salário – conseguindo um aumento de 100% - ficou alarmada. A mesma burguesia que participava com os comunistas nessa frente nacionalista e democrática, mudou de posição, arrastando consigo a pequena burguesia. Não nos preocupávamos com aluta armada por achar que não era oportuna. Na noite de 31 de março para 1º de abril, compreendi que a classe operária estava isolada, e que a única solução era recuar. Qualquer tentativa de resistência naquele momento... Os generais estavam apenas esperando que nós resistíssemos para fazerem o que foi feito na Indonésia. Isso não conseguiram: o PC continuou funcionando, mesmo depois de dissolvidos todos os outros partidos.

Ryff – Na minha entrevista ao PASQUIM, citei aquele fato quando, pouco antes do dia 31 de março de 64, você advertiu o Governo de que aquela reunião de sargentos e cabos no Sindicato dos Metalúrgicos não poderia dar certo e que uma solução deveria ser encontrada, pois o ambiente estava envenenado.

Prestes – Para a oficialidade, aquilo soava como um movimento ameaçador, que perturbava a disciplina e a hierarquia, e na situação em que estávamos, o essencial era evitar maiores tensões que prejudicassem a luta em defesa das liberdades democráticas.

Argemiro – Na sua opinião, Cabo Anselmo era mesmo um agente da CIA?

Prestes – Não tenho meios para avaliar isto, mas sei que posteriormente ele denunciou muitos brasileiros que saíram de Cuba pro Brasil, pessoas que eram procuradas pela polícia não para serem presas, mas para serem assassinadas. Os companheiros cubanos conhecem seu papel como agente policial, mas não sei quando isto começou.

Félix – Parece que o senhor andou discordando da maioria dos membros do Comitê do PC, que estavam no exílio. O que prevalece para o PC: a posição deles ou a sua?

Prestes – Nosso partido é profundamente democrático, por mais que o neguem. Onde há democracia, há divergências e idéias diferentes em debate. Não se pode dizer que todos estejam numa posição e que estou sozinho noutra, contra o Comitê Central, pois seria falso. Há problemas em discussão, e isto se explica porque há quinze anos estamos afastados do contato com as massas, e há doze anos que realizamos o último congresso do partido, tempo durante o qual houve grandes modificações na sociedade brasileira, apresentando questões novas, difíceis de avaliar através da imprensa e de intermediários. Precisamos agora de nos inserir na própria luta do povo, tendo contato com diversas camadas sociais, a fim de compreendermos essa realidade. Penso que essas divergências serão discutidas no próximo congresso do partido. A maioria decidirá, e a minoria se submeterá à maioria. Esta é que é a verdadeira democracia.

Félix – O senhor concorda que haverá um congresso?

Prestes – Sim, lutaremos pela realização do nosso congresso. Por isso estamos lutando pela legalização do partido. Primeiro, precisamos estar na legalidade, senão seremos atingidos pela Lei de Segurança Nacional, que proíbe qualquer tentativa de reorganização de um partido posto fora de lei. Através da imprensa, exagera-se muito essas divergências, que são perfeitamente naturais numa organização democrática. Muitas vezes, companheiros dizem coisas que não estão de todo acertadas, mas isso são erros normais. Muitas vezes a pessoa se entusiasma. Eu também cometo erros dessa natureza. Discordo do companheiro Hércules, pois não há até agora, nenhuma decisão do Comitê Central.

Félix – A decisão do Comitê Central é a sua decisão?

Prestes – Sou membro do Partido, subordinado ao Comitê Central.

Félix – E a sua decisão é a do Comitê Central?

Prestes – Não é isso que estou dizendo. Estou subordinado às decisões do Comitê Central, que ainda não discutiu a questão do companheiro Hércules. A direção do nosso partido é coletiva.

Jaguar – Quando o senhor diz que não pode realizar um congresso do PC, senão estaria infringindo a lei, fala igualzinho ao nosso Ministro da Justiça.

Prestes – Sou realista, não é! Hoje, temos que respeitar a Lei de Segurança Nacional. Pode ser que amanhã passemos por cima disto, como os operários passaram por cima da Lei de Greve, como os estudantes passaram por cima do 477, mas, nas condições atuais, temos primeiro que consolidar a grande vitória que obtivemos com a Anistia, e não querer dar armas para os generais reacionários. Isso é uma coisa lógica, né.

Jaguar – A UNE, por exemplo, também foi proibida, mas foram lá e fizeram.

Prestes – O que acontece com os estudantes é que, desde 77, passaram a não tomar conhecimento da Lei 477, que proibia qualquer atividade política nas universidades. Os estudantes passaram a fazer política nas universidades, e o Governo não teve forças para reprimir. Temos muitas dúvidas, porém, de que os generais mais reacionários, que ainda fazem declarações anticomunistas violentas- como fez recentemente o Ministro do Exército -, deixem de aplicar a Lei de Segurança Nacional contra nós.

Jaguar – Enquanto essa lei não for revogada, sua posição é de acatamento?

Prestes – Por enquanto é. Desde o primeiro momento que cheguei aqui, eu disse: “Me apresento como cidadão brasileiro, que é comunista e que continuará lutando como cidadão, individualmente”.

Félix – O senhor talvez tenha sido o único comunista que chegou sem dizer que era membro do Comitê Central.

Prestes – Deve ser uma questão de grau de audácia. Uns são mais audaciosos que os outros.

Félix – Segundo informações de imprensa, Anita Leocádia – sua filha – divergiu do Comitê Central e preferiu sair. Na semana passada, o senhor foi a uma entrevista na ABI, acompanhado dela. Neste caso, ela era sua filha ou uma comunista divergente do Comitê Central?

Prestes – Eu não estava acompanhado dela, pois cheguei muito antes. E quem sentou à mesa não foi ela, mas minha companheira. Além disso, ela é minha filha, e, naturalmente, posso andar junto com ela. Nossas relações são de seres humanos, que têm opiniões próprias, concordando numas coisas e divergindo noutras. É uma filha da qual só posso me orgulhar, uma herdeira das grandes qualidades de sua mãe, Olga, uma grande revolucionária, mártir da revolução brasileira e alemã. A Olga é conceituada na Alemanha como uma das companheiras de melhor comportamento no campo de concentração de mulheres de Hadensbruck, pos era animadora e estimuladora das demais prisioneiras. No pouco tempo em que vivemos juntos – 400 dias – ela ajudou muito.

Ziraldo – Entre Sales, Hércules e Anita, com quem o senhor fica?

Prestes – Com os três. (risos) Os três são comunistas, não é!?

Ziraldo – É o primeiro comunista do PSD!

César – Não sei se o senhor já sentiu como a esquerda brasileira está ultrafracionada. Ontem mesmo, ouvi uma pessoa de esquerda acusar o PC de, em alguns períodos da história, ser mais hostil à esquerda do partido do que à direita. Outra acusação frequente é de o PC exercer, nas assembleias e campanhas populares, uma função de controle, desmobilizando estes movimentos.

Prestes – Não há razão para isso. Combatemos, realmente – e do ponto de vista ideológico – a luta armada, e a perspectiva de elaborar táticas partindo de uma determinada forma de luta obrigatória. Muitos companheiros, homens honestos, patriotas, como Marighella, Lamarca, e outros, deram sua vida por suas ideias, e nós os respeitamos, mas na verdade estavam equivocados. Naquele momento, quando a classe operária sentia-se derrotada, sem forças para fazer nem uma greve, exigir que empunhasse uma arma era querer afastar-se dela. Os operários fugiam de quem lhes dissesse isso, pois sabiam que não poderiam formar uma organização de massas. Algumas semanas depois do golpe de 64, lançamos um manifesto, assinado por mim, dizendo que só um poderoso movimento de massas poderia derrotar a ditadura, e pensamos que os acontecimentos destes quinze anos comprovaram isto, só um poderoso movimento de massa, partindo da luta pelas reivindicações mais elementares será vitorioso, e isto é um processo longo, doloroso, e difícil de acumulação de forças. Foi este processo que se deu nestes quinze anos começando a produzir frutos a partir, particularmente, das eleições de 74, a primeira grande derrota política da ditadura, quando nos grandes centros urbanos e industriais, a classe operária derrotou os candidatos da ditadura. A partir de 74, verificou-se que a ditadura tornava-se cada vez mais isolada. Julgamos que o processo de acumulação de forças é indispensável. Isto não significa que não tenhamos cometido erros de diretoria, ou que alguns companheiros, ou mesmo a direção do partido, não tenha exagerado na formulação de um caminho pacífico, levando à passividade ou a posições de diretoria. Temos que corrigir isto, já procuramos corrigí-lo no Sexto Congresso, e no próximo congresso essa autocrítica será aprofundada. Quanto à divisão, isto é natural num movimento que está sempre em diferenciação, com opiniões divergentes dentro de um mesmo coletivo. O fracionamento é inevitável, uma fatalidade histórica Além disto, há tendência de todos quererem comandar, o que também é natural.

Félix – Na sua entrevista coletiva, na ABI parece que o senhor considera que a luta armada um dia será inevitável.

Prestes – Eu não disse “inevitável”, que aí é uma palavra excessiva. Disse que pode-se dar o caso de que seja indispensável. A classe operária deseja e prefere que se possa chegar ao socialismo sem guerras civis ou luta armada, violência haverá sempre. A própria greve é uma violência. Eu disse que não se pode assegurar, não se pode garantir, que o processo será pacífico, sem luta armada nem guerra civil, pois seria prematuro.

Félix – O senhor foi o único político a voltar dizendo que não teme o retrocesso. Por quê?

Prestes – Não, digo que a qualquer momento pode haver um retrocesso. Está aí a Lei de Segurança, o aparato de repressão não foi desmontado, e a tudo fala-se em retrocesso. No momento atual, a tendência é para o avanço das conquistas democráticas, mas essa tendência pode se modificar.

Félix – É verdade que no Estatuto do Partido Comunista Brasileiro não consta nenhuma referência à “ditadura do proletariado”.

Prestes – Confesso que não me lembro. É possível que não conste. O programa que é mais conhecido, chegando a ser difundido, foi o que formulamos para solicitar o registro eleitoral do Partido quando mudamos de nome. Na argumentação dos juízes do STF, ao cassarem o nosso registro, diziam que este chamava-se Partido Comunista do Brasil por ser filial de um partido internacional, com sede na União Soviética. Como na União Soviética existia um partido único, e como éramos filial daquele partido, contrariávamos o Parágrafo 13, do artigo 141, da Constituição de 1946. Esta argumentação não tinha razão de ser, pois sempre argumentávamos que éramos – como somos hoje – favoráveis ao pluripartidarismo. Hoje estamos lutando pela organização de todas as correntes de opinião em partidos políticos.

Félix – Não havendo referência à ditadura do proletariado, cai por terra diversos argumentos como a do Jarbas Passarinho, quando diz que o Partido Comunista não pode ser legalizado porque prega a ditadura.

Luis Antônio Mello – Figueiredo também andou dizendo isso.

Prestes – O problema aí é de outra natureza. O Partido Comunista Português, no seu penúltimo congresso, eliminou esta expressão de seu programa, porque o povo português tinha tanto ódio à ditadura fascista de Salazar, que a expressão “ditadura” tinha um sentido pejorativo, mas para nós, marxistas, dentro da concepção de Estado que temos, todo estado é a ditadura de uma classe sobre outras. O Estado Burguês é a ditadura da burguesia num estado onde a classe operária tenha hegemonia, inevitavelmente haverá uma ditadura dessa classe, não se confunde o conceito teórico de ditadura da burguesia, e como uma ditadura militar, ou seja, uma forma de governo ilegítima, reacionária.

Jaguar – Qual é a posição do PC com relação ao humor e à sátira?

Prestes – É favorável.

Jaguar – Desde que seja a favor né? Acredito que para os comunistas, nós, humoristas, devemos ser decadentes e reacionários, porque o humor e a sátira são sempre contra.

Prestes – Na União Soviética há um grande número de humoristas, e há críticas bastante sérias ao próprio regime ou ao governo.

Jaguar – Mas só assim sobre a plantação das batatas.

Prestes – Não, há muitas outras. Talvez não haja um jornal com tantas críticas como o Pravda. Muitas das acusações da burguesia contra a União Soviética são tiradas do Pravda.

Jaguar – O Gabeira disse o seguinte numa entrevista “Eu gostaria de um governo comunista onde não se mandassem os dissidentes para os hospitais psiquiátricos”.

Prestes – Há uma desinformação muito grande sobre o que se passa na União Soviética os que vão para os hospitais psiquiátricos são os que necessitam realmente de tratamento psiquiátrico, tanto que muitos deles são libertados, vão para o estrangeiros, e acabam internados em hospitais psiquiátricos. Onde é que está o Soljenitzin? Desapareceu. Eles vêm pro estrangeiro, são explorados bastante, e depois desaparecem.

Claudius – O que o senhor pensa do eurocomunismo?

Prestes – Na aplicação do marxismo-leninismo a realidade concreta de cada país, surgem vários caminhos para o socialismo. Cada partido comunista estuda a experiência dos que já chegaram ao socialismo, especialmente a do partido pioneiro que é o PC da União Soviética. As próprias leis gerais da luta pelo socialismo não podem ser transportadas mecanicamente de um país para outro, pois o caminho a seguir depende da realidade concreta de cada país. O que se chama hoje de eurocomunismo é o caminho para o socialismo adotado por alguns países da Europa Ocidental, ou melhor, o terreno comum que entre eles existe, já que entre a França, a Itália e a Espanha também existem diferenças grandes entre os caminhos ao socialismo que cada um adota. Nós, comunistas brasileiros, também procuramos estudar a experiência de todos os partidos comunistas, mas não com a intenção de transpor mecanicamente tais experiências para o nosso país, pois buscamos nosso próprio caminho, o caminho brasileiro para o socialismo. É evidente que o mundo capitalista de hoje é muito diferente daquele em que se realizou a revolução de 1917 na Rússia. A experiência revolucionária dos últimos 60 anos já mostrou que cada país é um caso particular e que os caminhos que levam ao socialismo são os mais diversos.

Ricardo Bueno – Não é possível que estes que vão para hospitais psiquiátricos no Ocidente o façam por terem passado por hospitais psiquiátricos russos saindo bastante desestruturados?

Prestes – Essa é uma posição já definida por você, não é!? Não há isso. Existe a liberdade de pensamento na União Soviética. Agora, aquele que fere a lei deve ser punido, não há nenhum estado que não defenda a realização e a prática da lei. Aquele que fere a lei deve ser submetido a tribunal. Na União Soviética pode-se ter a ideia que quiser, podem-se discutir as ideias, mas não se pode começar a fazer subversão contra o estado socialista. O mesmo ocorre dentro do estado capitalista, os comunistas são perseguidos, em escala maior do que a das perseguições na União Soviética.

Miguel – Na Itália e na França o PC age livremente

Prestes – Mas não faz subversão, nem prepara uma insurreição. Nós, comunistas, não somos maníacos da subversão, nem da insurreição. Queremos é esclarecer a classe operária e organizá-la para que lute e conquiste suas reivindicações. É claro que num momento que se dá um choque violento de classes, quando a burguesia emprega a violência, a classe operária, se tiver fora suficiente, empregará também a violência a fim de derrotar o inimigo; mas, permanentemente, o PC luta é pela educação dos trabalhadores, pela elevação de sua consciência política e de seu nível ideológico, para que possa reivindicar uma melhor situação. O operário do ocidente europeu já alcançou grandes reivindicações. Um operário francês, quando fica doente, chama um médico, recebe a conta, põe no correio e recebe metade de volta. Na farmácia, a mesma coisa. Isto se deve a quê? Às grandes possibilidades do trabalhador num regime socialista, onde o médico é gratuito, a farmácia é gratuita, o hospital é gratuito e o ensino é todo gratuito. Por isso, a burguesia nos países capitalistas mais adiantados, para poder sobreviver, para poder continuar dominando, teve de fazer várias concessões.

Jaguar – Nessa redemocratização lentíssima e gradual, a Igreja tem tido uma atuação muito importante, mas agora que existe a possibilidade de legalização do PC, pessoas como Dom Avelar começam a dizer que também não é assim. Qual a posição do PC diante da Igreja?

Prestes – Em 64 a Igreja Católica era um de nossos piores inimigos. Em Caxias do Sul, por exemplo, a Igreja mobilizou massas contra nós. Uma vez, em São Paulo, preparou meu enterro, com caixão e tudo. A igreja também mobilizou massas para o golpe de 64, com marchas pela família e pela religião. Depois do golpe de 64, com a resistência do nosso povo – desde a classe operária até a intelectualidade, que prestou grande assistência nos primeiros meses, quando havia liberdade de imprensa – a Igreja compreendeu que se não acompanhasse a opinião pública, se separaria do povo e perderia qualquer apoio popular. Além disso, realizou-se o Concílio Vaticano II, quando o Papa João XXIII estava à frente da Igreja. Depois veio o Papa Paulo VI, que lançava pastorais avançadas. A nova posição da Igreja prende-se à mudança do próprio Vaticano, particularmente às críticas do Papa João XXIII, e à resistência do povo brasileiro à ditadura. Não há dúvidas nenhuma de que a Igreja tem tido um papel positivo nestes anos de luta, contra as arbitrariedades contra as prisões arbitrárias, contra as torturas. Mesmo lá em Roma, onde estive este ano, considera-se a Igreja Brasileira uma das mais progressistas do mundo. Agora, isto não significa que a Igreja seja comunista, ou que esteja de acordo com os comunistas, e sim que tem posição contra a ditadura, participando de maneira ativa na luta pelas liberdades democráticas. Nisto tem tido papel destacado o cardeal de São Paulo, além de numerosos sacerdotes, como o bispo de Nova Iguaçu, que foi torturado, pintado de vermelho, e largado nu na rua. Alguns frades também foram presos, torturados, e mortos. Cito também a atuação de Dom Ivo Lorscheider, Dom Arns sofreu uma crítica insultuosa de um artigo de O Globo, por ter recebido Gregório Bezerra, mas isto não nos alarma, pois tanto nós quanto eles sabemos que a posição democrática da Igreja não significa que esteja obrigatoriamente pela legalidade de nosso partido, que será conquistada é pelo povo pela massa, pelos trabalhadores.

Jaguar – A posição de Hércules Corrêa pela desateização do PC seria uma aproximação com a Igreja devido à sua atuação política?

Prestes – Desde 45, dizíamos que qualquer pessoa religiosa pode ser membro de nosso partido. Para ser do PC não precisa ser ateu. Aquele que adota a filosofia marxista, naturalmente, não crê em Deus, é um materialista, mas isso não impede que uma pessoa, sendo religiosa, possa ser membro do partido aceitando seu programa e participando de suas atividades. Numerosos católicos, espíritas, protestantes, etc são membros de nosso partido. Para ser membro do PC basta aceitar seus estatutos, onde nada se diz sobre religião, pois é um programa político, que não aborda problemas de fé íntima, pessoais. É como dizia Lênin, se há contradição entre ser religioso e ser comunista, é uma questão de foro íntimo de cada um.

Ricky – Quer dizer que quem é comunista não vai pro inferno?

Prestes – Isto não é conosco (ri). Isto é lá com São Pedro.

Renato Guimarães – Na juventude o senhor foi católico né, sendo inclusive afilhado de Nossa Senhora.

Prestes – Durante um período muito curto.

Argemiro – E chegou a ser positivista?

Prestes – Não. Meu pai aproximou-se do positivismo, mas não chegou a entrar nele, porque minha mãe era católica.

Ziraldo – A missão francesa tornou o exército brasileiro positivista e a missão americana tornou o exército brasileiro anticomunista, certo?

Prestes – O positivismo no exército vem de muito antes, desde Benjamin Constant. A missão francesa foi um acordo que Epitácio Pessoa fez com o exército vencedor, pois a França havia vencido o Kaiser Alemão. Esta missão trouxe para o Exército Brasileiro a tática de abrir trincheiras, da guerra defensiva, o que facilitou muito a ação da Coluna.

Jaguar – Como você vê o PT do Lula?

Prestes – Tentar organizar um partido político é um direito de qualquer brasileiro. Desejamos que este partido seja progressista, e que possa marchar junto conosco, no caso de uma plataforma comum.

Jaguar – Qual sua opinião sobre o Lula?

Prestes – Eu, pessoalmente, não o conheço.

Jaguar – E quanto às suas declarações?

Prestes – Vejo que é um jovem com grande prestígio na classe operária, e que tem tido atuações sensatas. Veja bem como as coisas são graduais, e como é necessário primeiro consolidar certas vitórias, para poder depois dar um passo adiante. Isto é um princípio militar, né. Em maio de 77, os operários do ABC foram ao sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo alertar os dirigentes de que operários estavam sendo dispensados por fazerem greve dentro das empresas. Eu soube disto através dos jornais. Qual foi a linguagem usada pelo Lula? “Não posso fazer nada. Se eu tomar qualquer atitude, intervêm no sindicato e destituem os dirigentes. Volte lá pra fábrica, se organizem e façam o que é possível.” Quase me disse “Façam greve”. O máximo que ele poderia fazer era servir de intermediário entre eles e os patrões. Já em 78 a situação era diferente, o Lula teve uma posição diferente: foi o sindicato que assumiu a direção da greve, pois isto já era possível. Acho que Lula tem bastante equilíbrio, apesar da juventude e da falta de experiência, podendo prever qual o momento oportuno para dar passos adiante.

Luís – O PC estaria mais ligado ao PT do Lula ou ao PTB do Brizola?

Prestes – Não posso prever. Dependerá de seus programas. Estes partidos ainda vão lutar com muitas dificuldades para poderem se organizar, porque às restrições são proibitivas.

Jaguar – O PCB sempre se apropriou de todos os movimentos populares. O PASQUIM por exemplo, é considerado comunista porque fazemos coisas e aí a Voz Operária vem e diz: “Bom trabalho, meninos”.

Prestes – Mas quem utiliza isso é a reação!

Jaguar – A legalização do PCB, então, pode ser uma faca de dois gumes. Primeiro, pode acabar com a indústria do anticomunismo. Por outro lado, será revelada a verdadeira proporção do partido, que aparecerá mais diminuta do que se pensa.

Prestes – Qualquer previsão que se queira fazer tem que ser baseada na experiência do passado, pois a História sempre é útil para analisar o presente. Vejamos 45, quando conquistamos a legalidade depois de dez anos de uma perseguição atroz, com quase todos os dirigentes na prisão: estávamos reduzidos a uns dois mil membros. Em dois anos, quando o Partido foi posto novamente na clandestinidade, estávamos com 150 mil.

Ziraldo – E com quantos votos?

Prestes – Em abril houve a anistia. Seis meses depois, houve a eleição, na qual obtivemos 600 mil votos, de um eleitorado de seis milhões, para um candidato bastante impopular. Porque agora, quando há uma juventude curiosa e esclarecida, não se repetirá isso? Não viram a juventude que estava lá no Galeão?

Jaguar – Eu estava lá e vi.

Prestes – Pois é, você era um dos jovens (risos). Há uma juventude ansiosa por direção política.

Ziraldo – O PASQUIM chegava às suas mãos, durante o exílio?

Prestes – Sim. Isso se deve as minhas irmãs, que me mandavam. Em minha casa, em Moscou, tenho uma coleção do PASQUIM, embora não esteja completa porque alguns se apoderavam dos meus exemplares. Meus filhos jovens interessavam-se muito pelo PASQUIM.

Ziraldo – Quantos filhos o senhor tem?

Prestes – Eu? Se eu disser todos irão se escandalizar. (Os entrevistadores insistem). Do primeiro matrimônio, tenho a Anita. Do segundo, mais nove. O mais novo tem quinze anos: nasceu em julho de 64.

Jaguar – Todos comunistas.

Prestes – Todos marcham nessa direção. São entusiastas, participam dos movimentos de pioneiros e da juventude da União Soviética. Alguns são atuantes no partido. Tenho uma filha que está em Moçambique, outro que está em Cuba, e dois no Brasil.

Ricardo – Como os comunistas vêem a crise da economia brasileira? O governo, premido por esta crise, estaria disposto a fazer algumas reformulações profundas no modelo brasileiro ou deverá reformular só a fachada, tentando dar maior fôlego possível ao mesmo modelo?

Prestes – Penso que se abusa muito da palavra crise. “Crise econômica” deveria ser diminuição do ritmo de produção, estagnação da produção, considerável desemprego na indústria, etc. e insto ainda não há no Brasil. Há dificuldades, uma situação econômica bastante grave, devido particularmente, à inflação, à concentração do capital, e á divida externa. Estas dificuldades decorrem do próprio desenvolvimento do capitalismo. O chamado “milagre brasileiro”, os seis anos em que o Produto Interno Bruto cresceu numa média de 10% em que a produção industrial cresceu num ritmo de cerca de 15% ao ano, confirmou a lei de Marx da concentração do capital, da polarização da riqueza nas mãos de uma minoria e da miséria para a maioria da Nação. Como sair disso? Confesso que dentro do regime capitalista não tenho nenhuma solução para apresentar-vos. Os partidos comunistas de toda a América Latina, reunidos em Havana, em 75, afirmaram que o capitalismo não resolve nenhum problema na América Latina.

Ricardo – As lutas econômicas dos trabalhadores por melhores salários e melhores condições de trabalho devem ser apoiadas, ou são vistas como paliativos?

Prestes – Apoiamos estas lutas e procuramos participar delas, pois representam avanços. A classe operária está passando por uma redução catastrófica do salário real. Não é reduzindo os salários e esfomeando a classe operária que se vai encontrar soluções para os problemas brasileiros. A classe operária precisa ter um determinado nível de vida assegurado, para poder discutir, e participar da discussão dos problemas nacionais.

Ricardo – Se o Brasil se transformasse num país socialista, como seria resolvido o problema da inflação e da dívida externa?

Prestes – Estes problemas não estão na ordem do dia. Seria tolice apresentar soluções para problemas que ainda estejam tão distantes.

Félix – O governo está com um projeto de aumentar o salário mínimo duas vezes por ano, a fim de acompanhar a inflação, que, segundo consta, está em 70%. No entanto, as empresas estão em pânico, dizendo ser necessário demitir muita gente pra poder preservar seu capital de giro. Creio que em novembro haverá demissões em massa entre as empresas brasileiras.

Prestes – E particularmente com as empresas não monopolistas. Esta é a que vai sofrer. O projeto apresentado pelo governo determina um aumento de 10% acima do índice para os que recebem até três salários-mínimos, de 5% para os que receberem até cinco salários-mínimos, à custa de diminuir os salários dos mais altos, evitando que esse aumento seja feito à custa dos lucros dos monopólios. Deveriam ser aumentados todos os salários e reduzidos os lucros dos monopólios. A classe operária não está exigindo apenas esses seis meses. Ouvi trabalhadores pedindo uma escala para que, chegando-se a determinado grau de inflação, qualquer que seja o prazo, venha imediatamente um aumento salarial. Quanto ao sofrimento das pequenas e médias empresas, isto é consequência do próprio desenvolvimento capitalista. Como disse Ermírio de Moraes, as camadas médias estão sendo massacradas e liquidadas, e isto é, fruto do capitalismo. Não tem remédio. O máximo que pode haver é o governo procurar ajuda-las, fornecendo subsídios, mas o governo prefere dar subsídios aos grandes monopólios multinacionais.

Ricardo – Na medida em que o PC não ache que haja saída viável para esta crise dentro do sistema capitalista, não possui o um programa econômico para enfrentar as dificuldades econômicas a curto prazo. Isto não seria um obstáculo na aproximação com a classe trabalhadora, que quer ver programas com soluções a curto prazo?

Prestes – Nosso programa é aumentar os salários dos trabalhadores. Acho que não pode haver posição mais clara. No momento atual, é o aumento do salário real, e à custa das multinacionais. Quando for o momento de um programa estratégico mais elevado, chegaremos lá, com uma reforma agrária efetiva, com a desapropriação e o controle das empresas imperialistas, com o controle dos lucros... No governo João Goulart chegou a ser votada uma lei controlando a saída dos lucros das empresas multinacionais para fora do país. O próprio estatuto dos trabalhadores, aprovado pelo sr. Castelo Branco, não foi posto em prática. Este estatuto, apesar de seus pontos negativos, pelo menos resolveria alguns problemas.

Ziraldo – O senhor tem acompanhado a criação da nova CLT?

Prestes – Sim. Será pior do que o próprio código atual. Combatemos este projeto. Temos que travar uma luta, mobilizando as massas contra isso. A classe operária precisa apresentar propostas modificando esse código, o que vem fazendo desde a reunião da CNTI.

Ryff – O senhor não pretende escrever um livro sobre sua enorme experiência política?

Prestes – Sim. Creio que tive algumas experiências que são úteis à juventude brasileira. Necessito de tempo para isto, e as tarefas que tenho agora são de tal maneira absorventes que disponho de pouco tempo. Tenho publicado vários artigos em revistas internacionais.

Félix – Como o senhor explica sua memória fenomenal?

Prestes – Não é tão impressionante assim. Tenho bastante falta de memória com os acontecimentos mais recentes. Minha memória continua bastante viva para números, porque trabalhei muito com Matemática, e numa época em que não havia calculadores, nem computadores. Lidei tão bem com números que no Colégio Militar entregava minhas provas duas horas antes dos colegas.

Jaguar – Antes da entrevista terminar eu queria registrar o fracasso do SECOM. Estamos aqui discutindo o Brasil há três horas e meia, e ninguém se lembrou de perguntar o que Prestes acha do presidente Figueiredo. O Figueiredo não teve vez nessa entrevista!

Prestes – Fui colega na escola militar do capitão Euclides de Figueiredo, quando eu era instrutor de Engenharia e ele de cavalaria. Foi um dos poucos instrutores da escola militar que não participou do levante de 22, pois era contra.

Ziraldo – Ele era realmente um democrata?

Prestes – Digamos que era um prussiano!

Félix – Como o senhor vê a situação brasileira neste momento? Que passos devem ser dados?

Prestes – O fundamental é obter maiores liberdades democráticas. Conquistou-se agora a Anistia. Não é ainda a Anistia que desejávamos, pela qual lutaram os comitês de Anistia, os comunistas, e todos os patriotas, ou seja, uma anistia ampla, geral e irrestrita: portanto, nós anistiados, temos o dever de continuar lutando por esta anistia, para que os que estão presos ou exilados possam gozar dela. É necessário lutar contra as leis de exceção, em particular a Lei de Segurança Nacional, cuja revogação é indispensável para se conquistar pelo menos um mínimo de democracia. O governo, sem dúvida, tem feito algumas concessões diante da pressão de massas e pouco a pouco o Sr. Figueiredo se apodera das bandeiras levantadas pelas massas, de modo que agora é necessário acabar com a essência do fascismo que perdura, que é a LSN, é necessário revogar as salvaguardas constitucionais, que permitem ao governo decretar o estado de sítio, suspendendo os direitos constitucionais, sem consulta ao parlamento, através de um ato arbitrário do poder executivo. Outras medidas também devem ser adotadas, como a revogação da lei de greve, assegurando a autonomia e independência dos sindicatos. Há inúmeras reivindicações de ordem democrática.

Ziraldo – Sim, mas como fazer?

Prestes – Organizando o povo, convencendo-o de que é necessário lutar para que encontre a melhor forma de luta neste momento. As duas grandes armas são organização e unidade. Nesta unidade, está a unidade das oposições. Que os oposicionistas procurem se unir, que todos aqueles que estão contra a ditadura e o regime fascista mantenham-se unidos. Esta unidade pode ser em torno do MDB, de outro partido, de um movimento, como seja. O MDB tem uma base de massas considerável, que as eleições de 74, 76 e 78 mostraram não ser eventual.

Ziraldo – E tá com os diretórios todos montados aí.

Prestes – Em Paris, Miguel Arraes estava preocupado com isso: como organizar diretórios lá no sertão? É preciso enfrentar os problemas concretos de cada município, como a falta de água, da irrigação, o crédito para o pequeno camponês, afim de unir e organizar as massas. [brande o punho] Organização e Unidade, para a massa poder ter força e influir nos destinos da Nação. Além disso, é preciso haver liberdade de discussão. O que os trabalhadores podem discutir na fábrica é futebol e carnaval. O debate, até hoje, tem sido apenas entre a elite.


Inclusão: 20/09/2022