Gabriela e os Coronéis do Cacau

Maurício Vinhas de Queiroz

Setembro/Dezembro de 1958


Fonte: Revista Estudos Sociais, nº 3-4, set-dez/1958, pág: 259-265.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Mais ainda que nos suplementos literários, Gabriela, Cravo e Canela(1), o novo romance de Jorge Amado, está sendo discutido por leitores de vária espécie e tendência. Não há unanimidade nos julgamentos, mas todos o debatem, às vezes acaloradamente, o que — se não estamos enganados — comprova não só que a história interessou ao público, mas que ao escrevê-la não buscou o autor impingir uma receita adrede conhecida.

Decerto ao ler Gabriela, divertem-nos o forte colorido e o pitoresco de Ilhéus, as intrigas amorosas, os folguedos populares, os futricas da politicagem. Alguns se dão por satisfeitos com essa garrida vestimenta, e destes se poderia dizer, sem pecado de exagero, que revelam ingenuidade, pois não enxergam por detrás dos casos engraçados, das pobres paixões humanas e dos vagos ideais, aos poucos desenrolar- se um processo histórico e social que na época tomava corpo não apenas na vila portuária e na zona do cacau, mas em todo o país.

Na obra de Jorge Amado insere-se o novo romance entre Terras do Sem fim e São Jorge dos Ilhéus. Escrito a modo de um interlúdio necessário e justificado, parece-nos que na forma e até na substância ultrapassou a ambos. Muitos casos e personagens que no primeiro aparecem, vemo-los ano depois em Gabriela sob outro aspecto, penetramos ainda melhor em seu significado, e deles só vamos ter notícia — talvez sob o prisma de um certo exagero radical — no último dos livros citados. Entretanto, mais importante para a compreensão dos episódios que se sucedem em ritmo apaixonante no volume recém-publicado, é verificar que se situam às vésperas da revolução de 30. Gabriela faz, a seu modo, o processo do coronelismo no Brasil.

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Seguramente aqui, como em tantas outras vezes, o poeta se antecede ao cientista. Embora haja estudos, ensaios e anotações esparsas, ainda está por elaborar-se a história da gradual transformação, em nossa terra, de um regime onde dominavam os grandes proprietários rurais para o sistema sob o qual vivemos, em que a burguesia já dispõe da maior parte do poder político. Tudo indica ser indispensável, para melhor compreendermos a nossa própria vida presente como povo, reinterpretar o movimento armado que, após a crise de 29, juntamente com Getúlio Vargas levou à ponte de comando do Estado os estancieiros e outras classes e camadas gaúchas, os usineiros de cana do Nordeste, os banqueiros e latifundiários aburguesados de Minas Gerais e, mais cedo ou mais tarde, os donos das fábricas e das grandes firmas comerciais de todo o país.

É certo que a burguesia que ascendeu em 1930 não havia rompido, como de todo rompeu até hoje, os seus laços e relações com o latifúndio. De qualquer modo, porém, os germes do nacionalismo, que muito antes já se manifestavam na obra de um Alberto Torres, só então encontraram ambiente para desenvolver-se com avanços e recuos, até se tornarem agora, como de fato mais ou menos se tornaram, uma espécie de ideologia preponderante, quase uma doutrina de Estado. Seja como for, não podemos continuar a reduzir o movimento de 30, contra a mais flagrante evidência histórica, a um simples conflito que não interessava ao povo e no qual se digladiavam tão somente o imperialismo inglês e o norte-americano.

Que provas temos de que os agentes e os testas-de-ferro da City se colocaram de um dos lados das trincheiras de Itararé, enquanto os elementos de Wall Street se perfilhavam do outro? O reexame dos documentos disponíveis parece mostrar, ao contrário, que tanto um quanto o outro imperialismo estavam presentes na luta, mas atuavam de ambos os lados procurando manter ou expandir as suas posições. Arrastando massas populares do norte e do sul, fez a revolução com que a luta interimperialista passasse a segundo plano, e não resta dúvida de que em 1930 findou o domínio absoluto dos coronéis na vida política brasileira. E que tal não se deu inesperadamente, por um golpe de varinha mágica, sem nenhuma preparação anterior, comprovam-no inúmeras acontecimentos que há muito se vinham processando no Brasil, e o comprova também, na medida em que reflete uma parte muito característica e típica de nosso desenvolvimento social, a leitura de Gabriela,

Evidentemente, o coronelismo não morreu sem deixar traços. Ainda hoje entrevemos por vezes atuar o seu fantasma. Isto, porém, não é nenhum caso extraordinário nem qualquer espécie de esdrúxula peculiaridade nacional. Sabe-se que no século passado, por medo ao proletariado, chegou a burguesia da Alemanha a acordo com os nobres feudais, e, muito antes e por outras razoes, haviam os capitalistas britânicos estabelecido um sistema de compromisso de classes que aliás funciona até aos nossos dias e levou ao completo aburguesamento da nobreza e das instituições medievais. No Brasil também está por estudar-se a formação e a importância de semelhantes ligações de interesses entre classes diversas. Acreditamos que o processo tenha sido aqui facilitado pelo caráter da grande propriedade agrária, que desde o seu início quando ainda era indiscutivelmente escravista, já lançava seus produtos ao mercado capitalista mundial e produzia para exportar. O dono de plantações no Brasil nunca foi um verdadeiro landlord; mas, em certa medida, também era negociante. Uma das fontes, talvez a mais importante, da acumulação primitiva em nossa terra, foi justamente o latifúndio predatório.

Tudo isto se viu como que facilitado pelo modo como se formou a grande propriedade rural entre nós. Já que nos referimos acima a tantos aspectos mal estudados ou interpretados na história social do Brasil, aqui observamos este, pois nos parece que os historiadores, cegos aos fatos só vêem a origem da latifúndio nas antigas sesmarias. Desde o início porém, ao lado das datas de terras, aparece e se destaca a posse e a conquista. Ainda durante a Colônia, para que fossem concedidas doações, era frequentemente mister que o beneficiário provasse estar plantado na terra requerida a El Rei. A partir da Independência, longo período houve em que o simples apossamento era a única e legai maneira de formar novas fazendas. Nos planaltos do Sul, por exemplo, criou-se o costume segundo o qual quem chegasse em campo virgem e tocasse fogo, dele se tornava o dono. Sem dúvida, por temer inclusive que tal sistema acabasse facilitando não só a expansão dos latifúndios como a legalização das pequenas propriedades dos posseiros, procuram pôr-lhe fim os. autores da lei agrária de 1850. Mas tal nunca vingou inteiramente, em parte alguma do país. Um exemplo disto, na zona do cacau, havíamos conhecido através de Terras do Sem Fim, e ainda o vemos em Gabriela, Cravo e Canela, sempre que se refere o novo livro à luta pela conquista da terra e o início das plantações.

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Na época em que principia o romance, o domínio dos antigos coronéis de Ilhéus parece repousar, como as casas-grandes do Nordeste, em alicerce de pedra e cal e óleo de baleia. Entretanto, estávamos em 1925:

“Progresso era a palavra que mais se ouvia em Ilhéus e Itabuna naquele tempo”, diz o livro. “Estava em todas as bocas, insistentemente repetida. Aparecia nas colunas dos jornais, no quotidiano e nos semanários, surgia nas discussões na Papelaria Modelo, nos bares, nos cabarés.” (...) “Havia um ar de prosperidade em toda parte, um vertiginoso crescimento.” (...) “A cidade ia perdendo, a cada dia, aquele ar de acampamento guerreiro que a caracterizava no tempo da conquista da terra: fazendeiros montados a cavalo, de revólver à cinta, amedrontadores jagunços de repetição em punho atravessando mas sem calçamento, ora de lama permanente, ora de permanente poeira, tiros enchendo de susto as noites intranquilas, mascates exibindo suas malas nas calçadas. Tudo isso acabava, a cidade esplendia em vitrines coloridas e variadas, multiplicavam-se as lojas e os armazéns.”

Tudo isso acabava... No decorrer de todo o romance desenvolve-se a luta, a princípio surda, entre o coronel Ramiro Bastos, o antigo mandachuva, dono de terras e grandes plantações, homem peitudo, que fazia e desfazia prefeitos e deputados, e Mundinho Falcão, que viera do Sul, entregue ao comércio de exportação e a negócios vários e diferentes empreendimentos, culto e viajado. Houve um tempo em que a violência quase voltou a dominar Ilhéus; chegou a ser empastelado o jornal do capitalista. Mas, finalmente, o coronel começou a sentir-se abandonado pelos seus, faltavam-lhe forças para defender-se até às últimas, morreu antes de assistir à vitória inevitável de Mundinho Falcão. Gabriela não é uma tragédia, como não o foram as transformações que se verificaram pouco antes e depois em toda parte. Faz lembrar, de certo modo, aqueles versos de Murilo Mendes:

"Itararé, Itararé,
a maior batalha da América da Sul...
Não houve "

Mas desse jeito é que se passaram as coisas no Brasil. Sem grandes mudanças radicais, mas com razoável bom humor. Deve existir alguma relação entre isto e o fato de que a leitura do romance seja coisa divertida. Jorge Amado acabou fazendo, com um determinado gosto ao mesmo tempo clássico e moderno, uma história também picaresca. Entretanto, sem forçar a nota, deixa claro que nem tudo, com a vitória de Mundinho Falcão, estava assim de forma tão risonha resolvido:

“Agora (pensava Mundinhôo) era o novo chefe da terna do cacau. No entanto não se sentiu alegre ou orgulhoso. Já não tinha com quem lutar. Pelo menos até que lhe aparecesse alguém para lhe fazer frente quando os tempos outra vez mudassem, ele não mais servisse para governar. Como sucedera ao coronel Ramiro Bastos.”

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Pensamos que precisamente esta consciência histórica, esse entrelaçamento nada esquemático, mas efetivo, dos destinos individuais dentro do largo processo do desenvolvimento social, levou Jorge Amado a superar antigos defeitos e limitações. Entre os leitores de Gabriela, há quem se queixe de que Ramiro Bastos e outros coronéis apresentem aspectos simpáticos, sejam afinal seres humanos. Queriam, com toda certeza, que os ferozes representantes da classe dominante fossem pintados como verdadeiros monstros, enquanto os expoentes das novas camadas sempre se assemelhassem a anjos e heróis.

Mas, em todos os tempos e países, mesmo entre os indivíduos das classes moribundas, nunca deixaram de existir alguns sujeitos pessoalmente muito agradáveis, por vezes inteligentes, honestos na medida dos seus padrões, e sem dúvida bons pais de família. O problema não é apenas moral. Por melhores que pareçam tais indivíduos, desde que tenha passado a sua época, exercem na sociedade uma ação nefasta. Isto é o que nos mostra Gabriela. Vemos o coronel Ramiro Bastos, devido aos compromissos que mantinha com o governador, de quem o genro possuía interesses nas docas da capital baiana, opôr-se ao alargamento da barra de Ilhéus, impedindo assim que atracassem os grandes navios e o cacau fosse diretamente exportado. Vemos como ele e os demais coronéis mandavam na justiça, faziam eleições a bico de pena e mobilizavam jagunços para tocaiar adversários políticos. Vemos como exploravam e iludiam, da maneira mais impiedosa, os trabalhadores rurais. Eram os inimigos do progresso, e por isso é que as massas terminaram por derrubá-los.

Assim aparece descrito o coronel Ramiro Bastos:

“Era um velho seco, resistente à idade. Seus olhos pequenos conservavam um brilho de comando, de homem acostumada a dar ordens. Sendo um dos grandes fazendeiros da região, fizera-se chefe político respeitado e temido”.

Noutra passagem ficamos sabendo que o coronel, na época do apossamento das terras “tocara fogo em fazendas, invadira povoados, liquidara gente, sem piedade”.

Mas agora percebia oscilar o seu poder:

“Ilhéus mudara muito nesses anos, é bem verdade. O coronel Ramiro buscava compreender essa nova vida, esse Ilhéus nascendo daquele outro que fora o seu. Pensara tê-lo compreendido, sentido seus problemas, suas necessidades. Não embelezara a cidade, não construíra praças e jardins, não calçara ruas, não abrira até Estrada de rodagem apesar de seus compromissos com os ingleses da Estrada de ferro? Por quê então, assim de repente, a cidade parecia fugir-lhe de suas mãos? Por que começavam todos a fazer o que queriam, por conta própria, sem o ouvir, sem esperar que ele desse ordens? Que estava acontecendo em Ilhéus que ele já não compreendia e já não comandava?”

Na verdade, nem o coronel Ramiro Bastos era um tipo sem entranhas, nem Mundinho Falcão um poço de virtudes. Mas este representava as ideias e aspirações das novas camadas, e sábia agir em benefício do progresso. Decide-se a luta a seu favor. Objetivamente falando, Mundinho Falcão era muitíssimas vezes melhor que o velho coronel, e com ele a maior parte das gentes acabou simpatizando. Entretanto, se bem compreendemos o romance, há outros personagens além de Mundinho Falcão que expressavam ainda mais as qualidades e também os defeitos do povo brasileiro. é fato que esse povo propriamente dito, os trabalhadores e a arraia-miúda, àquele tempo não tinha sido chamado a governar o município e o país. Mas sentimos que tais pessoas é que recebem a maior e mais cálida simpatia do autor. Gabriela, a retirante que o notável “turco” do botequim encontrou no “mercado de escravos”” não só empresta o seu nome sonoro ao título do livro, como é de todos os personagens o mais vigorosamente desenhado. Atinge claramente as proporções de um símbolo: “Talvez uma criança, ou o povo, quem sabe?”

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Se, juntamente com os clássicos do marxismo, aceitamos por válido o aforisma de Fourier segundo o qual o desenvolvimento de uma sociedade pode ser aferido pelo grau em que nela se encontra emancipada a mulher, temos disto uma viva e brilhante ilustração no livro de Jorge Amado.

Outras podiam vender-se nos cabarés, ou deixar que as sustentassem os velhos fazendeiros de quem não gostavam. Gabriela, a melhor de todas, não troca o amor do seu Nacib pelo conforto que os donos do cacau lhe ofereciam. E, quando desejou dormir com Tonico, não o fez por dinheiro, mas sem nenhuma consciência de pecado, certa de que não estava errada.

No romance há o caso da Glória, rapariga de casa, posta, que infeliz vivia enclausurada, apesar de vestir-se bem e de possuir conta aberta nos armazéns de Ilhéus. Glória abandona a proteção de um coronel por uma vida modesta ao lado de um poeta.

Há Malvina, filha do coronel Melk Tavares, “nascida para um grande destino, presa em seu jardim”, mas que termina fugindo aos maus tratos e à carranquice do pai, abandona o colégio na Bahia, vai trabalhar como datilografa ou coisa parecida em qualquer cidade do Sul.

Principia a ação do romance ao mesmo tempo em que um caso de adultério abalava a cidade. Durante o livro todo ouvimos nele falarem. Naquele tempo era lei não escrita, mas por todos reconhecida, que o marido que surpreendesse a mulher, podia impunemente matá-la e ao amante. Com as mudanças que a região foi conhecendo e a vitória de Mundinho Falcão, também se modificou esse costume bárbaro:

“Algum tempo depois, o coronel Jesuíno Mendonça foi levado a júri acusado de haver morto a tiros sua esposa, dona Sinhazinha Guedes Mendonça e o cirurgião-dentista Osmundo Pimentel, por questões de ciúmes.

Vinte e oito horas duraram os debates agitados, por vezes sarcásticos e violentos”. (...) “Pela primeira vez, na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante”.

Pois os tempos eram outros. E uma coisa é manter-se a mulher fiel ao homem que livremente escolheu, e outra, muito diversa, é viver subjugada a um casamento que lhe foi imposto por tristes contingências de uma época já caduca.

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Entre os críticos mais ou menos oficiais, desses que escrevem nos suplementos das gazetas, falou-se muito em que o êxito de Gabriela se deve a que teria Jorge, o nosso Jorge, saltado do bonde andando e abandonado certo método de criação artística. Parece-nos que, ao contrário, seguiu a trilha de seus mais característicos romances, e nela foi apenas mais longe, chegou a novas paragens deste caminho Jorge só se afastou, levado pelo mesmo esquematismo e o errôneo emprego de um método em que incorreram todos os escritores de sua época e tendência (pelo menos, os que não deixaram momentaneamente de escrever), — em parte no caso de Seara Vermelha e sobretudo em Os Subterrâneos da Liberdade. Agora, dando-nos esta coisa tão simples mas que tanto nos leva a pensar, esse livro tão colorido e brasileiro que é Gabriela; Cravo e Canela, Jorge Amado retoma vigorosa e corretamente a sua peculiar espécie de realismo revolucionário e, segundo julgamos, supera-se mesmo em qualidade literária e densidade humana. Não se trata de abandono de método nenhum.


Notas de rodapé:

(1) Jorge Amado, Gabriela, Cravo o Canela, Livraria Martins Editora, S. Paulo, s/d. (retornar ao texto)

Inclusão: 28/11/2019