Os Sovietes em Acção

John Reed

Outubro de 1918


Primeira Edição: The Liberator, Outubro de 1918. Título original: Soviets in Action.
Fonte: Los Soviets en acción, na Secção em Espanhol do MIA
Tradução para o português da Galiza: José André Lôpez Gonçâlez. Janeiro de 2008.
HTML:
Fernando A. S. Araújo, Junho 2008.
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Entre o coro de insultos e falsidades dirigidos contra os Sovietes Russos pola imprensa capitalista, pode-se escuitar uma voz estridente de um grito de pánico:

"Não há governo na Rússia! Não há organização entre os trabalhadores da Rússia! Aquilo não vai correr bem! Aquilo não irá bem!".

É o recurso à calúnia.

Como todo verdadeiro socialista sabe, e como quem já o vimos na Revolução Russa podemos testemunhar, há hoje em Moscovo e um pouco por todas as cidades e terras da Rússia uma estrutura política altamente complexa, sustentada pola grande maioria do povo e que funciona melhor do que qualquer outro governo recém nascido tem funcionado. Os trabalhadores da Rússia construiram, partindo das suas necessidades vitais, uma organização económica que está a evoluir para uma verdadeira democracia industrial.

O Estado Soviético é baseado nos Sovietes — ou Conselhos — de trabalhadores e nos Sovietes de camponeses. Estes Conselhos — instituições características da Revolução Russa — originaram-se em 1905, quando durante a primeira greve geral dos trabalhadores, as fábricas de Petrogrado e as organizações obreiras enviaram delegados ao Comitê Central. Este Comitê de Greve foi chamado Conselho de Deputados Obreiros. Convocou a segunda greve geral no Outono de 1905, mandou organizações a toda a Rússia e, por um breve lapso de tempo, foi reconhecido polo Governo Imperial como o interlocutor autorizado da classe trabalhadora revolucionária russa.

Com a derrota da Revolução de 1905, os membros do Conselho fugiram ou foram deportados para a Sibéria. Mas este tipo de união foi tão surpreendentemente efectiva como órgão político que todos os partidos revolucionários incluiram um Conselho de Deputados Operários nos seus planos para um futuro levantamento.

Em Março de 1917, quando perante uma Rússia que bramava como um oceano o czar abdicou, o Grande Duque Miguel rejeitou o trono e a relutante Duma (o pseudoparlamento czarista) foi forçada a tomar as rédeas do Governo, o Conselho de Deputados Operários renasceu mais uma vez. Em poucos dias foi alargado para incluir delegados do Exército, passando a se denominar Conselho de Deputados de Obrerios e Soldados. A não ser Kerensky, a Duma era composta por burgueses e não tinha qualquer ligação com as massas revolucionárias. A luita tinha de continuar, devia ser restabelecida a ordem, a frente devia se manter… Os membros do Comitê da Duma não estavam em condições de levarem a cabo tais tarefas; viram-se obrigados a chamar os representantes dos trabalhadores e soldados, por outras palavras, o Conselho. O Conselho fez-se cargo do trabalho da revolução, da coordenação das actividades do povo, da preservação da ordem. Além disso, assumiu a tarefa de assegurar a revolução contra a traição da burguesia.

Desde o momento em que a Duma se viu forçada a apela ao Conselho, na Rússia existiram dous governos, e dous governos luitaram polo poder até Novembro de 1917, quando os Sovietes, sob controlo bolchevique, derrubaram a coligação de governo.

Havia, como disse, Sovietes de deputados, tanto operários quanto soldados. Algo mais tarde, surgiram os Sovietes de Deputados Camponeses. Na maioria das cidades, os Sovietes Operários e Soldados reuniam-se conjuntamente; também convocavam os seus Congressos Pan-russos juntos. Os Sovietes de Camponeses, no entanto, eram dominados por elementos reaccionários e não aderiram aos operários e soldados até a revolução de Novembro e o estabelecimento do Governo Soviético.

Quem eram os membros dos Sovietes?

O Soviete baseia-se directamente nos trabalhadores nas fábricas e nos lavradores nos campos. Na origem, os delegados dos Sovietes de Operários, Soldados e Camponeses, eram eleitos consoante regras que variavam segundo as necessidades e a população dos diferentes lugares. Nalgumas aldeias, os lavradores elegiam um delegado por cada cinqüenta eleitores. Os soldados nos quartéis tinham direito a um certo número de delegados por regimento, sem apreciar a sua força; as tropas na frente, porém, elegiam os seus Sovietes de maneira diferente. Quanto aos trabalhadores nas grandes cidades, logo descobriram que os Sovietes eram difíceis de gerir se não for limitados os delegados a um por cada 500 votantes. De igual forma, os primeiros Congressos Pan-russos dos Sovietes assentaram-se aproximadamente num delegado por cada vinte e cinco mil votantes, embora de facto os delegados representavam circunscrições de vários tamanhos.

Até Fevereiro de 1918, qualquer pessoa podia votar nos delegados para os Sovietes. Mesmo se os burgueses tivessem organizado e solicitado representação nos Sovietes, iria ser-lhes concedido. Por exemplo, durante os mandatos do Governo Provisório, houve uma representação burguesa no Soviete de Petrogrado — um delegado da União de Profissionais, que abrangia doutores, juristas, professores, etc. —.

Porém, no passado Março, a Constituição dos Sovietes foi desenvolvida com pormenor e aplicada universalmente. Restringia o direito de voto a:

Ficavam excluídos do direito a voto:

Quanto aos camponeses, cada cem deles nas aldeias elegem um representante para o Soviete do Volost; o Município. Os Sovietes dos Volost enviam delgados junto dos Sovietes do Uyezd, o condado, o qual por sua vez envia delegados junto do Soviete do Oblast, ou província, para o qual também se elegem delegados dos Sovietes de Trabalhadores das cidades.

O Soviete de Petrogrado de Deputados Operários e Soldados, que operava quando estive na Rússia, pode servir como exemplo de como funcionam as unidades urbanas de governo num Estado Socialista.

Constava de uns 1.200 deputados, e em circustáncias normais realizava uma sessão plenária cada duas semanas. Entretanto, elegia um Comitê Executivo Central de 110 membros, proporcionalmente aos partidos, e este Comitê Central acrescentava por convite delegados dos comitês centrais dos sindicatos, dos comitês das fábricas e de outras organizações democráticas.

Além do Soviete da Grande Cidade, existiam ainda os Rayon, ou Sovietes de distrito. Eram compostos de deputados eleitos para o Soviete da cidade por cada distrito e administravam a sua zona da cidade. Naturalmente, nalguns distritos não havia fábricas e, portanto, também não havia representação desses distritos, nem no Soviete da cidade nem no Soviete de distrito. Mas o sistema soviético é extraordinariamente flexível e, se os cozinheiros e os empregados de mesa, ou os lixeiros, ou os porteiros, ou os motoristas desse distrito se organizavam e solicitavam representação, eram-lhes outorgados delegados.

As eleições dos delegados baseiam-se na representação proporcional, o que significa que os partidos políticos estão representados em proporção exacta ao número total de votantes da cidade. E são os partidos políticos e os programas que se votam, não os candidatos. Os candidatos são eleitos polos comitês centrais dos partidos políticos, que podem substituí-los por outros membros do partido. Do mesmo modo, os delegados não são eleitos por um prazo de tempo determinado e podem ser revogados a qualquer momento.

Nunca antes fora criado um corpo político mais sensível e perceptivo à vontade popular. Isto era necessário, pois nos períodos revolucionários a vontade popular muda com grande rapidez. Por exemplo, durante a primeira semana de Dezembro de 1917, houve desfiles e manifestações em favor da Assembleia Constituinte — quer dizer, contra o poder soviético — . Um desses desfiles foi tiroteado por algum Guarda Vermelho irresponsável e várias pessoas morreram. A reacção a essa estúpida violência foi imediata. Mais de uma dúzia de deputados bolcheviques foram cessados e substituídos por mencheviques. Passaram três semanas antes de que o sentimento popular se tranquilizasse e os mencheviques fossem substituídos um por um, novamente, polos bolcheviques.

O Estado Soviético

Ao menos duas vezes por ano são eleitos delegados de toda a Rússia para o Congresso de Sovietes Pan-russo. Teoricamente, estes delegados são eleitos por designação popular directa; nas províncias, um por cada 125.000 votantes; nas cidades, um por cada 25.000; no entanto, na prática, são normalmente eleitos polos Sovietes provinciais e urbanos. Pode-se convocar uma sessão extraordinária do congresso a qualquer momento, por iniciativa do Comitê Central Executivo Pan-russo, ou a pedido de Sovietes que representarem um terço da população trabalhadora da Rússia.

Este órgão, formado por uns 2.000 delegados, reúne-se na capital em forma de grande Soviete e decide sobre os assuntos essenciais da política nacional. Elege um Comitê Central Executivo, como o Comitê Central do Soviete de Petrogrado, que convida os delegados dos comitês centrais de todas as organizações democráticas.

Este Comitê Central Executivo dos Sovietes Pan-russo ampliado, é o parlamento da República Russa. É formado por umas 350 pessoas. Entre os Congressos Pan-russos é a autoridade suprema, mas não deve agir à margem das linhas ditadas polo último Congresso e é absolutamente responsável por todos os seus actos perante o seguinte Congresso.

Por exemplo, o Comitê Central Executivo pode, e já o fez, ordenar a assinatura do tratado de paz com a Alemanha. Mas não pudo fazer com que esse tratado vinculasse a Rússia. Apenas o Congresso Pan-russo tem poder para ratificar o tratado.

O Comitê Executivo Central elege entre os seus membros onze delegados como presidentes de comitês a cargo dos diferentes departamentos do governo, no lugar dos ministros. Estes delegados podem ser destituídos a todo momento. São absolutamente responsáveis perante o Comitê Central Executivo. Os delegados elegem um presidente. Desde que se constituiu o Governo Soviético, este presidente — ou primeiro ministro — é Nicolai Lenine. Se a sua direcção fosse insatisfatória, Lenine poderia ser destituído a todo momento pola delegação das massas do povo russo ou no prazo de umas poucas semanas polo próprio povo russo directamente.

A principal função dos Sovietes é a defesa e consolidação da revolução. Exprimem a vontade política das massas não apenas nos Congressos Pan-russos, onde a sua autoridade é quase suprema. Esta centralização existe porque os Sovietes locais criam o governo central e não o Governo central os Sovietes locais. Apesar da autonomia local, porém, os decretos do Comitê Central Executivo e as ordens dos delegados são válidos para todo o país, porque na República soviética não há interesses sectoriais privados que servir, e a causa da Revolução é em toda a parte a mesma.

Observadores mal informados, a maior parte deles da intelligentsia de classe média, costumam dizer que são a favor dos Sovietes, mas contra os bolcheviques. Isto é um absurdo. Os Sovietes são os órgãos de representação mais perfeita da classe trabalhadora, isso é verdade, mas são também as armas da ditadura do proletariado, a que todos os partidos anti-bolcheviques se opõem encarniçadamente. Assim, a disposição da gente a aderir à política da ditadura do proletariado não só se mede polos membros do partido bolchevique — partido comunista, como agora se chama —, mas também polo crescimento e actividade dos Sovietes locais da Rússia.

O exemplo mais notável disto achamo-lo entre os campesinos, que não tomaram a direcção da Revolução, e cujo primeiro e quase exclusivo interesse nela foi a confiscação das grandes quintas. Os Sovietes de Deputados Camponeses não tinham ao início praticamente outra função que a solução do problema da terra. Foi o fracasso na solução deste problema que levou a atenção da grande massa de camponeses para as razões sociais que havia por trás deste fracassso — isto, unido à propaganda contínua da ala esquerda dos partidos revolucionários Socialistas e Bolcheviques, e à volta aos povoados dos soldados revolucionários.

O partido tradicional dos lavradores é o Partido Socialista Revolucionário. A grande massa inerte de camponeses cujo único interesse era a sua terra e que nunca tivera força luitadora nem iniciativa política, ao início rejeitou ter qualquer cousa a ver com os Sovietes. Contudo, aqueles camponeses que participaram nos Sovietes, logo acordaram para a idéia da ditadura do proletariado. E quase invariavelmente entraram e converteram-se em aderentes do Governo soviético.

No Comissariado da Agricultura de Petrogrado há um mapa da Rússia, borrifado de alfinetes vermelhos. Cada um desses alfinetes representa um Soviete de Deputados Camponeses. A primeira vez que vim o mapa, fixado no velho quartel geral dos Sovietes de Camponeses em Fontanka, os pontos vermelhos alastravam disseminados polo vasto país, e o seu número não aumentava. Nos primeiros oito meses da revolução, havia volosts, uyezds, províncias inteiras, de facto, onde apenas uma ou duas grandes cidades e talvez umas quantas vilas dispersas tinham um Soviete de camponeses. No entanto, depois da revolução de Novembro, podias ver a Rússia toda avermelhar perante os teus olhos, à medida que lugar após lugar, condado após condado, província após província, se erguia e formava o seu Conselho de Camponeses.

Na altura da insurreição bolchevique, poderia ter sido eleita uma Assembleia Constituinte com uma maioria anti-soviética. Um mês depois, isto teria sido impossível. Eu vim três Convençons Pan-russas de Camponeses em Petrogrado. Os delegados chegavam — a grande maioria deles revolucionários socialistas da ala direita. Começava a sessão — e sempre eram sessões violentas — sob a presença de Avksentiev ou Peshekhanov. Em poucos dias, iriam inclinar-se para a esquerda até serem dominados por pseudo-radicais como Tchernov. Poridonova seria eleita presidenta. Então, a minoria conservadora viria a cindir-se e montar uma convenção alternativa que, em poucos dias, acabaria no nada. E a maioria enviaria delegados para aderirem aos Sovietes em Smolny. Isto aconteceu em cada ocasião.

Nunca hei esquecer a Conferência de Camponeses que teve lugar no fim de Novembro e como Tchernov luitou polo controlo e o perdeu, e essa maravilhosa coluna de proletários grisalhos por causa do pó, que caminhava para Smolny através das ruas nevadas, a cantar, com as suas bandeiras vermelho-sangue a ondearem ao vento gelado. Era noite fecha. Nas escadarias de Smolny, centenas de homens trabalhadores estavam aguardando receber os seus irmãos camponeses e, sob a ténue luz, as duas massas, uma a descer e a outra a ascender, fundiram-se rapidamente e abraçaram-se, e choravam, e batiam palmas.

Os Sovietes podem aprovar decretos que suponham mudanças económicas fundamentais, mas devem ser levadas a cabo polas próprias organizações populares locais.

A confiscação e a distribuição da terra, por exemplo, foi deixada em mãos dos Comitês da Terra dos camponeses. Estes Comitês da Terra foram eleitos polos camponeses a proposta do Príncipe Lvov, o primeiro chefe do Governo provisório. No que diz respeito à questão da terra, foi intevitável chegar a um acordo, segundo o qual, as grandes quintas deviam ser fraccionadas e distribuídas entre os camponeses. O Príncipe Lvov pediu aos campesinos para elegerem Comitês de Terra, que não só deviam determinar as suas próprias necessidades agrícolas, como também medir e apreçar as grandes quintas. Mas quando estes Comitês da Terra tentaram funcionar, os proprietários tinham-nos detido.

Quando os Sovietes tomaram o poder, a primeira acção deles foi promulgar o Decreto da Terra. Este Decreto não era nem um projecto bolchevique, mas o programa da ala direita (ou moderada) do Partido Socialista Revolucionário, desenvolvido a partir de várias centenas de pedidos de camponeses. O decreto aboliu de vez os diplomas privados da terra ou recursos naturais da Rússia e deixou aos Comitês da Terra a tarefa de distribuir a terra entre os camponeses, até a Assembleia Constituinte resolver finalmente a questão.

Após a dissolução da Assembléia Constituinte, o decreto tornou-se definitivo.

Além destas poucas proposições gerais e de uma secção estabelecida para a emigração da população excedente em núcleos vicinais superpovoados, os pormenores da confiscação e a distribuição ficaram por completo de conta dos Comitês Locais da Terra. Kalagayev, o primeiro Comissário da Agricultura, elaborou um pormenorizado conjunto de regras para guiar os camponeses na acção deles. Mas Lenine, num discurso perante o Comitê Central Executivo, persuadiu o governo para que deixasse os camponeses levar o assunto de uma maneira revolucionária, aconselhando unicamente aos camponeses pobres que se organizassem contra os camponeses ricos ("Deixai que dez camponeses pobres façam frente a cada camponês rico", disse Lenine).

É claro que nenhum camponês podia possuir a terra dele; No entanto, podia tomar conta do que a terra lhe oferecia e tratá-lo como propriedade privada. Mas a política do Governo, através do Comitê Local da Terra, é desencorajar esta tendência. Os camponeses que quiserem converter-se em proprietários podem fazê-lo, mas não são ajudados polo Governo. Ao invés, aos camponeses que cultivarem cooperativamente são-lhes entregados créditos, sementes, ferramentas e formação em técnicas modernas.

Adscritos aos Comitês da Terra, há peritos em agricultura e silvicultura. Para dispor com ordem e método as práticas dos Comitês Locais, são eleitos dentre eles um órgão central, conhecido como o Comitê Principal da Terra, que se encontra na capital, em estreito contacto com o Comissariado da Agricultura.

Quando estourou a Revolução de Março, os proprietários e administradores de muitas centrais industriais, ou as deixaram ou foram expulsos polos trabalhadores. Nas fábricas do Governo, onde o trabalho tinha estado muito tempo a mercê de burocratas irresponsáveis designados polo czar, deu-se esta situação de maneira especial.

Sem directores, encarregados e em muitos casos engenheiros e contabilistas, os trabalhadores encontravam-se confrontados à alternativa de continuarem a trabalhar ou morrer à fame. Foi eleito um comitê, com um delegado de cada "secção" ou departamento, este comitê tentou dirigir a fábrica… Decerto, no início, este pareceu um plano sem qualquer futuro. As funções dos diferentes departamentos podiam ser coordenados desta maneira, mas a falta de formação técnica por parte dos trabalhadores produziu alguns resultados grotescos.

Afinal, realizou-se a reunião do comitê numa das fábricas, onde um trabalhador se levantou e disse:

"Camaradas, porque é que nos preocupamos? A questão dos técnicos peritos não é difícil. Lembrai que o chefe não era um técnico perito; o chefe não sabia engenharia, química ou contabilidade. O único que fazia era possuir. Quando queria ajuda técnica, contratava homens que lha proporcionavam. Bem, agora é nós que somos os chefes. Contratemos engenheiros, contabilistas, etc., que trabalhem para nós!".

Nas fábricas estatais, o problema era comparativamente simples, porque a Revolução destituiu automaticamente o "chefe" e realmente nunca o substituiu por um outro. Mas quando os Comitês de Delegados de Fábrica se estenderam às fábricas de propriedade privada, foram duramente combatidos polos proprietários das fábricas, a maioria dos quais estavam estabelecendo contactos com os sindicatos.

Aliás, nas fábricas privadas os comitês de delegados eram produto da necessidade. Logo a seguir aos três primeiros meses da Revolução, durante os quais a classe média e as organizações proletárias trabalharam juntas numa harmonia utópica, os capitalistas industriais começaram a temer o poder crescente e a ambição das organizações trabalhadoras — tal como os proprietários no campo temiam o Comitê da Terra e os oficiais os Comitês de Soldados e os Sovietes —. Durante aproximadamente a primeira parte de Junho, começou a campanha mais ou menos consciente de toda a burguesia para deter a Revolução e descompor as organizações democráticas. A começar polos Comitês de Delegados de Fábrica, os proprietários industriais projectavam varrer tudo, até os Sovietes. O Exército estava desorganizado, eram desviadas subministrações, munições e comida, e entregadas posições reais aos alemães, como Riga; no campo, persuadiu-se os lavradores para que guardassem o grão e provocassem confusões que deram aos cossacos pé para "restaurarem a paz"; e a indústria. Mais importante do que todo o restante, a maquinaria e o próprio funcionamento das fábricas foram sabotadas, o transporte ainda mais destroçado e as minas de carvão e metal e as fontes de matérias primas danificadas ao máximo. Não foram poupados esforços para fechar as fábricas e render os trabalhadores, para que voltassem a se submeter ao velho regime industrial.

Os trabalhadores foram forçados a resistir a isto. O Comitê de Delegados de Fábrica reagiu e tomou o comando. Por certo, ao princípio, os trabalhadores russos cometeram absurdos erros, como se tem dito a todo o mundo uma e outra vez. Pediam salários impossíveis, tentaram levar a cabo processos de manufactura tecnicamente complicados sem experiência suficiente, nalguns casos até pediram ao chefe para voltar sob as próprias condições que impugesse. Mas tais cassos são uma ínfima minoira; na maioria das factorias eram o bastantes engenhosos para serem capazes de levarem a indústria sem os chefes.

Os proprietários tentaram falsificar os livros, ocultar pedidos; o Comitê de Delegados de Fábrica foi obrigado a encontrar formas de controlo dos livros. Os proprietários tentaram roubar peças das máquinas; assim, o comitê teve que regulamentar que nada podia entrar nem sair da fábrica sem permissão. Quando a fábrica ia fechar por falta de combustível, matérias primas ou pedidos, o Comitê de Delegados de Fábrica tinha que enviar homens através de meia Rússia às minas, ou ao Cáucaso por óleo, ou à Crimeia por algodão; e os trabalhadores tinham de enviar delegados para venderem o produto. Durante a paralisação das ferrovias, os agentes do comitê tiveram de chegar a um acordo com o Sindicato dos Ferroviários para o transporte de cargas. Para o defender contra o grevistas, o Comitê teve de assumir a função de contratar e relevar trabalhadores.

Assim, o Comitê de Delegados de Fábrica foi uma criação da anarquia russa, forçada pola necessidade de aprender como aprender a dirigir a indústria, para que, quando chegasse o momento, os trabalhadores russos pudessem assumir o controlo real com poucas fricções.

Como exemplo da forma em que as massas trabalhadoras iam juntas, está o assunto das 200.000 cargas de carvão, que foram levadas das carvoeiras da frota de combate báltica em Dezembro e trasladadas polos Comitês de Marinos para manter em andamento as fábricas de Petrogrado durante a carestia do carvão.

A Factoria Obukbov era uma central de aceiro que fabrivaca subministrações para a Armada. O presidente do Comitê de Obukhov era um russo-americano, de nome Petrovsky, bem conhecido aqui como anarquista. Um dia, o encarregado do departamento de torpedos disse Petrovsky que o Departamento tinha de fechar por causa da impossibilidade de serem obtidos certos pequenos tubos usados por uma fábrica da outra margem do rio, cuja produção se tinha contratado para dali a três meses. O fechamento do Departamento de torpedos significava que 400 homens haveriam ficar sem emprego.

—"Conseguirei os tubos" — disse Petrovsky.

Foi direito para a fábrica, onde em vez de procurar o director, dirigiu-se ao presidente do Comitê de Delegados de Fábrica local.

"Camarada", disse, "se não tivermos tubos em dous dias, o nosso departamento de torpedos terá de fechar e 400 dos rapazes hão ficar sem emprego".

O presidente pediu os seus livros e descobriu que três factorias privadas próximas tinham encarregado vários milhares de tubos. Ele e Petrovsky visitaram imediatamente estas três factorias e chamaram os presidentes dos seus Comitês de Delegados de Fábrica. Em duas das fábrias não precisavam dos tubos imediatamente; e ao dia seguinte, entregaram-se os tubos à Fábrica Obukhov, e o Departamento de torpedos não fechou.

Em Novgorod, havia uma fábrica têxtil. Ao explodir a Revolução, o proprietário disse a si próprio:

"temos problemas. Não vamos obter lucros enquanto esta revolução continuar. Vamos fechar o negócio até a cousa acabar".

Assim, fechou a fábrica e ele, os empregados dos escritórios, os químicos, engenheiros e o director, apanharam o trem para Petrogrado. No dia seguinte, os trabalhadores abriram a fábrica. Mas esses trabalhadores eram talvez um bocado mais ignorantes do que a maioria dos trabalhadores. Nada sabiam de processos técnicos de manufactura, nem sobre contabilidade, direcção ou venda. Escolheram um Comitê de Delegados de fábrica e acharam uma certa quantidade de combustível e matérias primas armazenada, prontas para a manufactura de tecidos de algodão.

Não sabendo que tinha de ser feito com o tecido de algodão uma vez fabricado, primeiro apanharam uma quantidade suficiente para as suas próprias famílias. Depois, como alguns teares estavam estragados, enviaram a um atelier de maquinaria próximo um delegado, para propor a entrega de tecido em troca de assistência técnica. Feito isto, chegaram a um acordo com a cooperativa local, para proporcionar roupa em troca de comida. Levaram inclusive o princípio do troco ao extremo de trocarem peças de tecido por combustível com os mineiros de carvão de Jarkov, e por transporte com o Sindicato de Ferroviários.

Mas afinal saturaram o mercado local de tecidos de algodão e então depararam com uma procura que o tecido não conseguia atender — o aluguer. Isto acontecia nos dias do Governo Provisório, quando ainda existiam proprietários. O aluguer tinha de ser pago em dinheiro. Então resolveram carregar um trem de tecido e enviaram-no, a cargo de um delgado, a Moscovo. O delegado deixou o trem na estação e percorreu a rua. Entrou numa alfaiataria e perguntou se o alfaiate necessitava tecido.

— "Quanta?"- perguntou o alfaiate.

—"Um trem"- respondeu o delegado.

—"A que preço?"

—"Não sei"- Quanto é que pagas normalmente polo tecido?".

O alfaiate conseguiu o tecido quase de graça e o delegado, que nunca vira tanto dinheiro junto, voltou a Novgorod enormemente contente.

Assim era como na Rússia toda os trabalhadores estavam a obter a formação necessária nos fundamentos da produção industrial e mesmo a distribuição, para que quando chegasse a Revolução de Novembro pudessem ocupar os seus postos na organização do controlo obreiro.

Em Junho de 1917, decorreu a primeira reunião de Comitês de Delegados. Neste momento, os comitês quase não se estenderam fora de Petrogrado. Foi uma reunião notável, formada polos delegados da actual base, a maioria deles bolcheviques, alguns anarco-sindicalistas; e a sua razão de ser era o protesto contra as tácticas dos sindicatos. No mundo político dos bolcheviques, repetiam que nenhum socialista tinha direito a participar num governo de coligação com a burguesia. A própria reunião de delegados de comitês adoptou a posição de ter a mesma atitude com a indústria.

Por outras palavras, os empresários e os trabalhadores não têm nenhum interesse em comum; nenhum trabalhador com consciência de classe pode ser membro de uma mesa de arbitragem ou conciliação, a não ser para fazer saber aos empresários as reivindicações dos trabalhadores. A produção industrial tem de ser absolutamente controlada polos trabalhadores.

Num primeiro momento, os sindicatos luitaram encarniçadamente contra os Comitês de Fábrica. Mas os Comitês, que estavam em posição de assumirem o controlo da indústria, consolidaram e estenderam o seu poder facilmente. Muitos trabalhadores podiam não ver a necessidade de se sindicarem, mas todos viam a necessidade de participarem nas eleições do comitê que controlava os seus trabalhos de forma imediata. Por outro lado, os comitês de Delegados reconheciam o valor dos sindicatos; nenhum trabalhador novo era emrpegado se não pudesse mostrar um cartão de sindicato; eram os Comitês de Delegados que aplicavam localmente os regulamentos dos diferentes sindicatos. Neste momento, os sindicatos e os Comitês de Fábrica trabalhavam em perfeita harmonia cada um no ámbito que lhe era próprio.

A propriedade privada da indústria não está ainda abolida na Rússia. Em muitas fábricas, o proprietário ainda mantém o título, e é-lhe permitido certo lucro limitado no seu investimento, com a condição de que trabalhe polo êxito e o aumento da extensão da empresa; mas foi-lhe retirado o controlo. Aquelas indústrias cujos proprietários tentam fechar a porta aos seus trabalhadores, ou pola fraude ou a força tentam obstaculizar as operações da fábrica, são imediatamente confiscadas polos trabalhadores. As condições, as horas e salários de todas as indústriass, de propriedade privada ou estatal, são uniformes.

A razão para esta sobrevivência de um semi-capitalismo num Estado proletário residem no passado da vida económica da Rússia, o Estado capitalista altamente organizado à volta e a necessidade de produção industrial imediata na Rússia, para combater a pressão da indústria estrangeira.

O agente por que o Estado controla a indústria, tanto trabalho como a produção chama-se Conselho de Controlo de Trabalhadores. Este órgão central, localizado na capital, é composto por delegados eleitos dos Conselhos do Controlo dos Operários Locais, os quais são formados por membros de Comitês de Delegados de Fábricas, delegados sindicais profissionais e engenheiros técnicos e peritos. Um Comitê Executivo Central dirige os assuntos de cada localidade, composto por trabalhadores comuns, mas a maioria trabalhadores de outros distritos, para as suas decisões ficarem livres de qualquer interesse sectorial. Os conselhos locais recomendam ao Conselho Pan-russo a confiscação das fábricas, informam sobre as necessidades de combustível, matérias primas, transporte e trabalhos nos seus distritos, e ajudam os trabalhadores na aprendizagem para dirigirem as diferentes indústrias. O Conselho Pan-russo tem autoridade para confiscar factorias e igualar recursos económicos das diferentes localidades…

Se não tivesse sido polas organizaçons democráticas que existiam já antes da Revolução, não há dúvida que a Revolução Russa teria estagnado há muito tempo.

A organização comercial ordinária de distribuição tinha sido totalmente destroçada. Apenas as sociedades cooperativas de consumidores conseguiam alimentar o povo, e o seu sistema foi adoptado há tempo polos municípios, e polo Governo até.

Antes da Revolução havia mais de vinte milhões de membros em sociedades cooperativas na Rússia. Esta é uma forma muito natural para os russos, pola sua semelhança com a primitiva cooperação da vida rural da Rússia durante séculos.

Na fábrica Putilov, onde estão empregados mais de 40.000 trabalhadores, a sociedade cooperativa alimentou, albergou e mesmo arroupou mais de 100.000 pessoas, proveendo-se do vestido em Inglaterra.

É este o carácter dos russos, que esquece a gente que imagina que a Rússia não pode ter nenhum governo porque não há força central; e cuja imagem mental da Rússia é um comitê servil em Moscovo, dominado por Lenine, Trotski, e mantido por mercenários da Guarda Vermelha.

Antes o certo é contrário. As organizações que descrevi reproduzem-se em quase todas as comunidades da Rússia. E se uma parte considerável da Rússia se opugesse seriamente ao Governo soviético, os Sovietes não durariam nem uma hora.


Inclusão 17/06/2008