O Movimento da ANL 1935

Dinarco Reis

Outubro de 1985


Primeira Edição: jornal Voz da Unidade de outubro de 1985

Fonte: Fundação Dinarco Reis - https://fdinarcoreis.org.br/fdr/

Transcrição HTML: Fernando Araújo.


Este artigo pretende fazer parte de uma série em que serão relembrados importantes acontecimentos ocorridos há meio centenário, no Brasil, dos quais se destacam episódios da luta de nosso povo, em particular de comunistas e democratas, contra regimes ditatoriais e para-facistas, como sejam o estado Novo e a ditadura implantada com o golpe de abril de 1964.

Nestas linhas procuramos relatar os fatos que anulam totalmente e as sórdidas calúnias de que o movimento nacional libertador da ANL, em novembro de 1935, teve seu início marcado “por assassinato de indefesos oficiais, que se encontravam dormindo, pôr desumanos bandidos comunistas”.

Os responsáveis pelo estabelecimento de regimes autoritários em nosso País têm seguido à risca a recomendação do nazismo alemão: de que uma mentira insistentemente repetida acaba se transformando em verdade.

Assim aconteceu com a infamante balela de “militares mortos quando dormiam”.

Após a derrota do levante aliancista de novembro de 1935, no 3° R. I. e na Escola de Aviação, ambos no Rio de Janeiro, todos os que participaram do levante, oficiais e praças, foram submetidos a rigoroso inquérito policial, sob a direção do delegado e jurista Dr. Belens Porto. Desse inquérito foi publicado volumoso relatório (livro) no qual estão informados, nos mínimos detalhes, os fatos ocorridos nas duas unidades rebeladas.

Em nenhuma de suas páginas há a mais leve referência à questão de mortos quando dormiam.

No entanto, há 50 anos vem se repetindo uma comemoração oficial que se centra na repetição ad nauseam dessa falsidade. Ato que nada mais é que manifestação do mais torpe revanchismo e que, infelizmente, ainda ameaça se repetir nestes dias esperançosos da Nova República. Assinale-se que “mortos” foram os militares que participaram do levante, até hoje, não anistiados, com suas esposas recebendo montepio, na mais esdrúxula figura do direito autoritário.

A década dos anos 30 foi uma das mais convulsionadas da história da humanidade e também do Brasil. O fascismo já se havia instalado em várias nações da Europa (Itália, Portugal, Polônia e outras). Na Alemanha implantou-se o nazismo hitlerista.

Esse período (os anos 30) iniciou-se com a violenta crise do sistema capitalista mundial, que teve seu epicentro nos Estados Unidos, crise eclodida em 1929 mas que se alastrou universalmente e cujos reflexos no Brasil foram catastróficos, mesmo porque nosso País se debatia internamente numa crônica crise de natureza sócio-política cujas mais nítidas manifestações foram os sucessivos levantes armados de 1922, 1923, de 1924 a 1927 (coluna Prestes), e, posteriormente, os movi¬mentos de 1930, 1932, 1935 (da ANL), de 1937 (Estado Novo) e de 1938 (integralista).

No plano internacional, entre outros acontecimentos relevantes o Japão ocupava a Mandchuria chinesa, os Estados Unidos começavam a superar a crise em 1932 sob o plano New Deal, aliviando por sua vez a situação internacional, idem a do Brasil. Neste realizava-se a Constituinte de 1934 (relativamente democrática) elegendo Vargas presidente e aprovando a Constituição. A Itália invadiria a Etiópia em 1935.

Surgia no Brasil (em março de 1935) ampla organização política de massas, Aliança Nacional Libertadora – ANL, cujo programa centrava-se, como seu nome indica, na libertação do Brasil da dependência do país ao imperialismo, mas que incluía: cance¬lamento das dívidas externas, naciona-lização das empresas estrangeiras, liberdades democráticas para o povo, entrega dos latifúndios improdutivos aos trabalhadores do campo (reforma agrária), anulação das dívidas do setor agrícola aos bancos, diminuição dos impostos às classes laboriosas, aumen¬to de salários, assistência aos trabalha-dores, e instrução para o povo. Ainda, luta contra as tendências à fascistização do regime.

Um Programa Quase se Repete

Com a divulgação desse programa a ANL cresceu rapidamente, chegando a organizar em pouco tempo de existência legal, cerca de três meses, 1.600 núcleos no País. Em 11 de julho desse mesmo ano a ANL foi ilegalizada pelo Governo Federal, sob a alegação de “atividade subversiva da ordem política e social” segundo a Lei de Segurança Nacional de março de 1935. A ANL passou, então a atuar na clandestinidade a partir de então, entrosando-se nessa luta com o PCB. Este, na época, não apoiou a ANL como passou a realizar intensa atividade no sentido mobilizar as massas trabalhadoras para tomar em suas mãos a luta pela concretização desse programa.

É simplesmente impressionante como esse programa, em suas linhas gerais, se assemelha ao que, defendido próceres da Nova República, permitiu derrotar a ditadura militar e estabelecer o atual governo.

No início do mês de novembro de 1935 as bases do PCB foram informadas que estava em gestação um golpe de estado visando a formação de um governo ditatorial, filo-fascista, cópia dos modelos salazarista e polonês, sob o conluio do governo de Vargas com o integralismo, este último sob o comando de Plínio Salgado, Gustavo Barroso, Miguel Reale e outros. Francisco Campos, o “Chico Ciência”, organizador da legião das “camisas Kakis” em Minas Gerais após o movimento de 1930, seria o supremo ideólogo do golpe. Ele foi o autor da legislação o corporativísta do trabalho (que ainda permanece vigente) e da Constituição “polaca”, de 1937.

Os boatos de golpe se intensificavam e a realidade política os confirmavam. Getúlio estava em núpcias com o fascismo mussoliniano, o milagre alemão do Dr. Schacht empolgava os componentes desse governo brasileiro na época.

Para as pessoas medianamente politizadas, não havia dúvida, o golpe era iminente. A orientação da direção do PCB era a de que os comunistas deveria¬m mobilizar as massas trabalhadoras e populares para resistirem ao golpe tramado pelas forças reacionárias e filo-fascista mancomunadas.

Dia 24 de novembro de 1935. Os jornais do Rio de Janeiro informavam que num quartel do Exército, em Natal, Rio Grande do Norte, soldados e cabos se haviam sublevado, ocupando a capital do Estado e assumido o governo. Predominavam boatos, entre outros de que o levante era comunista. Os noticiários eram confusos e imprecisos.

Dia 25, a luta em Natal prosseguia, a direção do PCB no Rio descia informação às bases de que o confronto havia se iniciado, que o levante das praças em Natal fora contra a decisão dar baixa às mesmas antes do prazo estabelecido, mas que os aliancistas e comunistas haviam aderido à luta pela derru¬bada do governo local. O mais importante, porém, é que juntamente com a informação vinha a diretiva de que as guarnições militares do Rio deveriam levantar-se na madrugada do dia 26, apoiando um simultâneo movimento grevista e insurrecional dos trabalhadores a partir desse momento.

Nesse mesmo dia, no entanto, veio a decisão de que o levante no Rio estava adiado para a madrugada do dia 27, posteriormente confirmado. No dia 26 de novembro ficou-se sabendo que no dia anterior a guarnição de Recife, também havia se rebelado o batalhão de infantaria (29º BC).

Os acontecimentos se precipitaram. Reunimo-nos os cinco oficiais. comunistas da Aviação Militar do Campo dos Afonsos, Ivan, Agliberto, Bené, Sócrates e Dinarco (autor destas linhas). Observação: os participantes deste levante já foram “anistiados”. A reunião era para decidirmos da situação e das tarefas que deveríamos realizar. Combinamos iniciar o movimento na E.Av.M. às 3 horas da madrugada de 27, contando com o apoio de mais três oficiais aliancistas e a base de alunos cabos (aliancista e comunistas, cerca de 20 alunos).

Dia 27, às 2 horas e trinta eu e mais quatro oficiais dirigimo-nos de carro para o local do levante. Os outros três oficiais (tenentes Ivan Ribeiro, C. Franca e J. Cunha) já estariam na Escola. O objetivo imediato era tomar a Escola de Aviação que sabíamos estar de prontidão e mobilizada contra possível levante.

Assim que fosse dominada a Escola de Aviação deveríamos tomar o 1° Regimento de Aviação que ficava no mesmo Campo dos Afonsos, a 500 metros de distância da Escola de Aviação.

Às 3 horas chegamos na parte dos fundos do terreno dos alojamentos da Escola, aberto para a estrada, e por aí ingressamos com o carro.

Ao passarmos por essa estrada defrontamos com um grupo sob o comando do sargento Belda guarnecendo uma metralhadora pesada, que nos intimou a parar o carro ameaçando atirar. No entanto, sendo conhecido do sargento, (fora seu colega durante quatro anos) gritei que fôramos convocados pelo comando da Escola. Assim ele permitiu-nos passar, ingressando na área dos edifícios, e atingimos com o carro o alojamento mais próximo, o dos cabos alunos dos cursos técnicos.

Um Tiroteio e Luta Corpo a Corpo

À frente desse edifício encontrava-se estacionada, em ordem de combate, a Companhia de Guarda da Escola sob o comando de dois oficiais e próximo a essa tropa permanecia um grupo de oficiais (5 ou 6) do comando da Escola.

Descemos do carro junto à tropa e, empunhando revólveres, rendemos os dois tenentes e assumimos o comando da Companhia. Nesse exato momento, do alojamento dos cabos-alunos partiu um brado dando vivas à revolução. Estabeleceu-se a confusão, as luzes se apagaram. A tropa da Guarda, perplexa, ficou sem ação.

Seguiu-se acirrado tiroteio entre o grupo de oficiais do comando que se encontrava a uns vinte metros de distância e o nosso grupo saído do carro.

Nesse tiroteio alguns, de ambos os lados, foram atingidos, mas os do grupo do comando recuaram e desapareceram rapidamente, embrenhando-se do em matagal próximo. Simultaneamente, três tenentes que se encontravam no interior da Escola ocuparam-se em tomar o edifício do comando, no qual um capitão à frente de soldados pretendia, com metralhadoras assestadas, resistir ao levante. Houve luta corpo a corpo com perdas dos dois lados. Morreram dois cabos-alunos e os do grupo da metralhadora. Às 3 horas e 30 minutos dominávamos a Escola de Aviação. Alguns oficiais e sargentos que se renderam foram presos. Um tenente farmacêutico e dois oficiais foram autorizados a se ocupar dos mortos e feridos, removendo-os para a enfermaria.

Momentos após terminado o combate para a ocupação da Escola, cabos-alunos trouxeram à nossa presença um grupo de 4 civis que alegavam ter vindo aderir ao movimento. Suspeitamos que fossem tiras e os prendemos. Eram de fato policiais.

Preparávamos para ocupar o 1° R. de Av. quando se desencadeou, partindo das unidades de artilharia da Vila Militar e de Campinho, intenso bombardeio contra a Escola de Aviação, pôr nós ocupada. A Vila Militar situa-se na extremidade do Campo dos Afonsos, oposta à da Escola de Aviação, distando desta 2 a uns 3 quilômetros em linha reta e em terreno plano. A Vila Militar abrigava um efetivo de cerca de 10 mil homens, em várias unidades de infantaria, artilharia e cavalaria.

Todo esse efetivo foi mobilizado para esmagar o levante da Escola de Aviação.

Preparamos, com o pequeno grupo de cabos-alunos, a resistência da Escola. O tenente Ivan seguiu com 3 ou 4 cabos para o 1° Regimento, no intento de ocupá-lo. Sabíamos que o mesmo não estava de prontidão. Seu comandante, na época, major Eduardo Gomes, não acreditava no levante. No entanto, pôr precaução, fora dormir em seu alojamento pessoal no quartel.

O tenente Ivan, ao chegar próximo do Regimento foi recebido por um grupo comandado pelo referido major, composto do oficial de dia e de alguns soldados decididos a resistir ao assalto. Trocaram tiros, o major foi ferido numa das mãos, a ocupação não se consumou.

Fato importante a constatar: assim dominamos a situação na Escola de Aviação procuramos nos utilizar dos aviões estacionados nos hangares mas ao fazê-lo comprovamos que todos os aviões, ao contrario da rotina, não estavam abastecidos. O combustível havia sido retirado dos aviões, impossibilitando os para o vôo, como medida de prevenção contra possível levante. Assim, não foi possível utilizar esse eficiente meio de combate e propaganda. Nós aviadores, tivemos que combater como infantes nesse desigual confronto com esmagadores efetivos da Vila Militar. A situação, para nós, tornava-se insuportável; os poucos cabos-alunos defendendo-se com fuzis e metralhadoras, retardavam o avanço das tropas de Infantaria que nos assediavam. O bombardeio de artilharia começava a incendiar os edifícios. A nossa resistência chegava ao fim. Libertamos os presos, pois estes poderiam ser vítimas de incêndios ou mesmo dos bombardeios. O tenente França e eu decidimos ir ao Regimento tentar nos apoderar de um avião que sabíamos estar abastecido pois o referido tenente estava escalado para nessa manhã realizar um vôo do Correio Aéreo. Mas ao lá chegarmos conseguimos nos apoderar do avião e estávamos preparando para acioná-lo quando um grupo armado aproximou se e nos deteve. Os companheiros que permaneceram lutando na Escola de Aviação não tardaram a serem presos. O combate, estava terminado.

Aparece o Presidente Getúlio

Detidos, eu e o tenente França permanecemos sentados no salão do Regimento. O dia amanhecera, começaram a chegar oficiais, a perplexidade e a confusão era grande. Houve um tiroteio, pouco depois passaram soldados carregando um cabo agonizante e um oficial explicou: era um dos comunistas, o cabo “Mineiro” que, preso, tentara escapar e fora baleado. Morreu à nossa frente logo depois. Permanecemos naquele local cerca de duas horas. Em dado momento chegou o presidente Getúlio: não nos levantamos. Oficiais explicaram ao presidente: “são presos, participaram do levante”. Logo a seguir nos conduziram para uma prisão e minutos depois nos retiraram, enviando-nos para o quartel de Cavalaria em São Cristóvão.

No quartel do Regimento de Cava¬laria, onde permanecemos presos uma noite, encontramos três tenentes também detidos. Eram de outras unidades. Dia seguinte, num tintureiro, fomos remetidos para a Casa de Correção, célebre presídio da rua Frei Caneca. Lá chegando, fomos encaminhados para o departamento chamado “Capelinha”. No alojamento contíguo encontrava-se numeroso grupo de oficiais e sargentos presos por participarem do levante. A maioria provinha do 3° R .I. da Praia Vermelha que, como a Escola de Aviação, se havia rebelado. Também já estavam lá os oficiais que e participaram do levante na Aviação Militar.

O alojamento de uns 30 metros quadrados de área encontrava-se superlotado, pois o número de presos excedia de 50. Felizmente havia um pequeno pátio para onde nos permitiam sair durante o dia.

O ambiente era de confraternização e de moral bem elevada. Isso apesar de os jornais (que nos eram passados pelos presos comuns) desencadearam terrível campanha de ameaças, fazendo prognósticos sombrios sobre nossos destinos. O noticiário sobre o levante era o mais tendencioso possível. Foi aí então que surgiu a sórdida baleia de que os comunistas haviam eliminado traiçoeiramente colegas seus que se encontravam dormindo. Era tal o exagero que restava a impressão de que se travara uma guerra entre, assassinos militares adormecidos. Na base desta argumentação, pediam a pena de morte para os “bandidos comunistas”. Estas ameaças não nos atingiam pois não ignorávamos as dificuldades em que se metia o governo Vargas para assumir uma decisão dessa natureza. Pôr outro lado, não desconhecíamos o impacto que o levante havia causado a esse mesmo governo, e a perplexidade que ainda o dominava.

A evolução dessa situação para o cortejo de numerosas prisões e marcha para a instituição do estado Novo formam outro capítulo desse tão perpetuado acontecimento da história brasileira.


Inclusão: 24/11/2019