Sobre o editorial

Miguel Urbano Rodrigues

12 de dezembro de 1982


Primeira Edição: Intervenção apresentada na Conferência preparatória do I Congresso de Jornalistas Portugueses. Publicada em "O Diário" de 12/Dez/1982.

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Estamos aqui para falar do jornalismo de opinião.

O tema aparece-me intimamente ligado a uma questão fundamental: a que diz respeito aos fins do jornalismo.

Por ser a mais jovem das ciências sociais, o jornalismo conhece-se mal a si mesmo. As leis resultantes de uma Teoria Geral do Jornalismo estão ainda por formular.

Tornou-se já um lugar comum a afirmação de que o jornalismo não pode ser isolado do meio social em que se desenvolve. Assim, obviamente, ele terá de ser diferente em Portugal do que é no Chile ou na Tailândia. Mas não é apenas a realidade envolvente que marca os vários tipos de jornalismo existentes. O jornalismo, nas suas muitas formas concretas, apresenta-se estreitamente vinculado a concepções políticas e sociais. Seja ele informativo ou opinativo, o jornalismo não pode ser uma actividade abstracta. Numa sociedade de classes está sempre, de maneira mais ou menos perceptível, ligado a uma determinada classe social, cujos interesses procura exprimir e defender. Parece-me útil, portanto, recordar que Portugal é hoje na Europa, a sociedade onde a luta de classes assume maior intensidade.

A objectividade absoluta, tão enaltecida como virtude em determinados manuais de jornalismo, é um mito. Sendo o jornalismo um espelho da vida, não há neutralidade possível perante os factos da vida, o seu fluir, a sua essência.

A resposta às questões inerentes aos objectivos e técnicas do jornalismo de opinião implica, pois, para mim, uma definição prévia clara. Não há jornalismo neutro. A própria opção profissional gera o comprometimento perante a sociedade. Sem compromisso – o que não significa escolha partidária – o objectivo e a essência do jornalismo não existiriam.

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Um colóquio como o que nos reúne aqui coloca uma tal multiplicidade de questões que a simples escolha dos sub-temas traduz critérios valorativos complexos.

Que aspectos privilegiar num debate breve sobre o assunto Editorial?

Costuma-se dizer que o editorial deve exprimir a opinião do jornal. A definição parece-me frouxa e imprecisa.

Um jornal deve ser um corpo vivo. Não funciona como computador. Se cumpre a sua função social, os leitores identificam-se com ele como se fora um ser humano. Tal como o concebo, o jornal sente, pensa, actua, analisa, sorri e sofre como ser colectivo.

Uma das coisas belas no trabalho dos profissionais da imprensa é a consciência permanente de que, num jornal comprometido com o povo, aqueles que o produzem têm da ponte invisível que os liga à massa dos leitores.

Daí uma opção primeira quanto ao editorial. Esse texto deve ser a palavra, o pensamento, o sentir do jornal e não a opinião pessoal de fulano ou beltrano. é mau que um homem ou uma mulher pretendam confundir-se com um jornal e possam fazer da sua opinião a opinião do órgão de informação em causa. O ideal, a meu ver, é um estilo editorial com tais características que o leitor ligue o texto à personalidade do jornal, que sinta nele o pulsar do sangue e das ideias do seu jornal.

Sendo de execução individual, o editorial aparece-me como resultante de uma ideia colectiva, de uma atmosfera, de uma síntese harmoniosa de estilos e pessoas diferenciadas sem os quais não existiria aquele corpo vivo autónomo, vocacionado para falar com o leitor e inspirar-lhe confiança.

O óptimo, numa redacção, é que haja pelo menos meia dúzia de jornalistas que escrevam, quando necessário, o editorial, assumindo a sua personalidade própria de tal maneira que o leitor não se aperceba de que muitas mãos diferentes o podem redigir na mesma semana.

Do que acabo de dizer conclui-se que rejeito como aberração jornalística o editorial assinado pelo director do jornal. Tal prática ofende a ética profissional e as redacções que do abuso são vítimas. é natural, e até útil, que o director, se não for um burocrata, escreva, que assine os seus artigos. Mas tais textos são dele, comprometem-no pessoalmente, não devem confundir-se com a opinião do jornal que dirige, não devem substitui-la.

A aberração, todos dela temos conhecimento, existe em Portugal. Tornou-se mesmo rotina em jornais estatizados. Num deles, o director, que foi deputado e dirigente de um partido do Governo, exerce o monopólio da opinião. O editorial é a sua pessoa, com ela se fundindo.

Situações como essa prostituem o jornalismo de opinião.

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À partida, uma escolha marca logo a imagem editorial. Há jornais — refiro-me evidentemente à imprensa diária — que publicam matéria editorial em todas as edições e outros que somente o fazem excepcionalmente. Há jornais que publicam vários editoriais numa página consagrada à opinião e outros que publicam apenas um editorial, mas inserem noutras páginas textos de opinião que são também pequenos editoriais.

A opção que determina as diferentes fisionomias editoriais está ligada ao espírito do jornal ou, mais exactamente, àquilo que ele pretende ser e ao tipo de relação que ambiciona manter com os leitores.

Há jornais que se querem distanciados editorialmente do seu próprio público; outros que desejam que público assuma uma postura de participação, mais profunda do que a de simples identificação.

Pessoalmente, penso que a personalidade editorial resulta de uma soma de componentes unidas por fios de interdependência: as opções temáticas, a unidade de estilo e linguagem, a coerência ideológica, a mundividência da história e da aventura cultural, a firmeza na sustentação das posições defendidas, a capacidade autocrítica, o rigor informativo, a sensibilidade para a captação do essencial, e sobretudo a solidez da ponte que liga o editorial ao jornal de que é parte.

O editorial deve, creio, exprimir, na medida do possível, o sentido mais profundos das tensões e fenómenos que assinalam no quotidiano ou no fluir não transparente da História, aquilo que é determinante para a transformação da vida.

Tal escolha não obriga a que o editorial seja um texto pesado. O jornalismo de opinião, particularmente quando é o jornal quem opina, somente cumpre a sua função quando consegue revelar ao leitor o lado menos visível dos factos sociais, quando lhe oferece, sem arrogância, a chave para o entendimento de situações, de atitudes, de palavras, de mudanças, de perigos, de crises, de rupturas, enfim de tudo o que é ou pode ser fundamental na montanha de notícias que diariamente nasce da marcha de cada País e do Mundo.

Dois aspectos devem, creio, merecer atenção especial na selecção dos temas: em primeiro lugar, uma correcta avaliação da importância do assunto. Nunca entendi a política editorial de jornais que durante o mês percorrem, saltitantes trinta temas editoriais.

Se o acontecimento tratado é socialmente significante raramente se esgota num só comentário jornalístico. A insistência editorial, quando forçada e sensacionalista, fatiga o leitor e desprestigia o jornal. Mas sempre que os factos a justificam, prende o leitor, confere ao jornal aquela imagem de ser vivo e coerente de que falei há pouco. Abre-se, então, a ponte que liga o editorial ao corpo do seu jornal. Penso que é indispensável uma interacção, a enfeixar num todo a manchete, o editorial, a reportagem, a notícia, o artigo assinado, a pequena nota.

Um facto que irrompe numa notícia pode percorrer em poucos dias todo o sistema circulatório do jornal. Os órgãos de informação que esquecem ou subestimam as suas manchetes e os temas que comentam, desvalorizam perante o leitor a sua própria, reduzem-lhe a credibilidade.

Concebido como totalidade, um jornal diário é um complexo sistema de vasos comunicantes no qual o editorial desempenha uma função insubstituível.

Outro aspecto que me parece útil aflorar é o que se refere à diversidade na unidade. Mesmo num jornal muito voltado para as questões consideradas no domínio da política, o editorial tornar-se-ia enfadonho se incidisse exclusivamente sobre os temas da actualidade política. é verdade que em Portugal, hoje quase tudo, no movimento da vida, apresenta um significado político, uma marca ideológica. Mas, apesar disso, julgo ser vantajosa a abertura do leque editorial. Tudo aquilo que preocupa o corpo social e se torna para ele assunto de reflexão e debate, constitui, em princípio, tema para tratamento editorial. Um filme, um livro, uma aldeia como personagem, um acontecimento local, uma efeméride pouco lembrada, uma palavra pronunciada nas antípodas podem ser bons temas editoriais.

A diversificação e o salto das fronteiras facilitam a passagem do particular ao geral, a compreensão do que é nosso e do que é universal. Integram mais o leitor no seu jornal.

Acredito também que é positivo alternar os textos editoriais mais densos e menos atractivos com os textos em que a crítica social nasce do humor.

é de todo esse caldeirão que deve resultar a personalidade humanizada de um jornal e a clareza da sua linha.

Uma questão muito discutida é a da personalização da crítica. Como os homens são sujeito da História, tornam-se também objecto da crítica. Mas o que interessa a um jornalismo responsável são os actos, tudo o que envolva a participação social e não a pessoa, a sua vida privada. Quando o indivíduo, como tal, e o seu quotidiano mais íntimo aparecem transformados em pólo de matérias editoriais, o jornalismo degrada-se, desce ao nível do colunismo mundano que se alimenta de fofocas.

A fome de actualidade, de coisas sempre novas que suscitem tensões e debates, leva alguns editorialistas a erigir o que na política é acessório em motor da política. Aquilo que é determinante - o comportamento das forças e classes sociais e a sua relação dialéctica com a estratégia do Poder e a evolução da conjuntura económica - é então relegado a plano secundário. As intrigas da pequena política e as declarações dos pequenos políticos são impostos ao público nas matérias de opinião como se dessa buliçosa e leviana movimentação e desse palavreado espumejante viesse a depender o rumo da situação geral.

O chamado jornalismo especulativo é inseparável dessas tendências. O editorial (e não só) com base em hipóteses e cenários fantasistas passou a ser coisa rotineira em Portugal.

Pessoalmente, sempre recusei esse tipo de jornalismo. Nele, a especulação futurológica toma o lugar da notícia alicerçada em factos. Todo o processo de análise é conscientemente viciado. A fixação do interesse é muitas vezes obtida. O público reage, discute o assunto. Mas a análise especulativa tem vida curta. E faz perder a credibilidade.

Editoriais que, pelo seu conteúdo sensacionalista, provocaram tempestades políticas e foram transformados em temas nacionais pela televisão e pela rádio, perdem todo o fascínio lidos um mês depois, quando se percebe que tudo neles carecia de pontes com a realidade social, configurando um processo de intervenção artificial e não ético na conjuntura e na modelagem da opinião pública.

Sempre fui profissionalmente um defensor do editorial com base em situações, atitudes e factos comprovados. Rejeito a moda dos cenários.

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Julgo apropriada uma referência ao peso, esmagador, que a opinião importada tem hoje em Portugal nas colunas editoriais. Seria um bom tema para outro colóquio.

A rapidez da transmissão produz efeitos imediatos. Muitos editoriais são o desdobramento, relativamente aos mais diferentes temas, e por vezes em péssimos cozinhados, de artigos publicados nos grandes órgãos da imprensa americana, britânica, francesa ou alemã ocidental.

Alguns assuntos ganham uma presença obsidiante e o tratamento que lhes é dado deixa transparecer uma notória falta de originalidade e mesmo de técnica.

E já que falo de técnica, uma referência final para a linguagem. A clareza é condição indispensável para que o editorial atinja o seu objectivo. Cada editorialista tem, evidentemente, um estilo próprio, no tocante à forma.

A minha experiência pessoal como jornalista, em Portugal, no Brasil e em países de idioma castelhano, leva-me, contudo, a concluir que existe uma relação directa entre a eficácia do editorial e a utilização do período curto, que confere mais força ao conteúdo e reduz distâncias, facilitando a comunicação entre o jornal, ser vivo (quando o é) e o leitor.

Uma última palavra. O jornalismo de opinião, como o de reportagem, implica, pela sua função social, uma exigência de autenticidade, um sentido permanente de responsabilidade.

Sempre acreditei e continuo a acreditar que jornalistas de formação ideológica muito diferente podem e devem dialogar, com muito proveito, estabelecer laços de boa camaradagem e arte de amizade. Mas existe um tipo de jornalismo subterrâneo, ancorado no escândalo, na calúnia, na mentira, consciente, que constitui insulto à profissão. Em Portugal está muito na moda. Floresce. Penso que em colóquios como este podemos e devemos chegar a um consenso para repudiar essa perigosa caricatura do jornalismo.


Inclusão: 04/11/2021