Novo desafio cubano: O aperfeiçoamento empresarial — a Revolução está dentro de nós

Miguel Urbano Rodrigues

Maio de 2001


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Compreender a Revolução Cubana na sua marcha desafiadora é cada vez mais difícil. A sua simples sobrevivência na guerra que lhe move o Império Americano contraria a lógica aparente da historia.

«Romper o Cerco»,(1) um livro importante lançado durante o recente Congresso da Central de Trabalhadores de Cuba (CTC), ajuda a entender facetas pouco conhecidas de uma experiência em curso na Ilha que confirma o papel por ela desempenhado como laboratório de ideologia.

A autora, Isabel Rauber, é uma ex-guerrilheira argentina, hoje radicada em Havana, cujos livros nas áreas da filosofia e da sociologia representam uma contribuição relevante para o estudo da participação dos trabalhadores e dos mecanismos que levam ao aprofundamento da consciência social.

Isabel Rauber tem como intelectual uma virtude pouco comum: consegue imprimir transparência a questões que no discurso dos dirigentes políticos nem sempre são de fácil apreensão.

Neste livro aborda a temática complexa do chamado Aperfeiçoamento Empresarial nas suas vertentes teórica e pratica, através de 47 entrevistas que iluminam um vasto painel em que os trabalhadores cubanos emergem como sujeito de um desafio revolucionário.

Um capitulo da historia, actualíssimo, é contado por aqueles que estão a escrevê-lo como protagonistas. Gente com formação e tarefas muito diferenciadas, desde o ministro da Industria Básica, Marcos Portal, ao secretario geral da CTC, Pedro Ross, a mineiros e operários do níquel, a agricultores, a sindicalistas das plantações de cana.

Isabel é uma entrevistadora excepcional. Sabe situar os factos, os problemas, as lutas, os erros e os acertos, nos cenários humanos e económicos em que se produzem.

A exigência do Aperfeiçoamento Empresarial foi uma resultante necessária das dificuldades do Período Especial. Após o desaparecimento da URSS e dos Estados socialistas do Leste Europeu, o PIB cubano caiu 35% em quatro anos.

Para se compreender o que é, afinal, o Aperfeiçoamento é útil relembrar que a queda brutal da economia cubana coincidiu com as exigências da inserção de Cuba no mercado capitalista, hegemonizado pelos EUA, a superpotência empenhada em destruir a Revolução.

São dirigentes históricos desta que recordam nas suas entrevistas que a aliança com a URSS se, por um lado, havia garantido a continuidade da Revolução e mercados seguros e a preços justos para as exportações da Ilha, tinha a médio prazo criado situações negativas para um desenvolvimento harmonioso e não dependente da sua economia. Porquê? São conhecidas as consequências nefastas da ênfase posta na monocultura do açúcar. Mais graves foram a longo prazo as resultantes do recurso a tecnologias soviéticas que já então eram obsoletas. Um exemplo: nas grandes empresas do níquel — um ramo em que a experiência russa era escassa — as tecnologias utilizadas nas novas unidades foram com frequência as dos anos 40, aliás de inspiração norte-americana, totalmente superadas.

O preço que se pagou por esses erros foi altíssimo.

O EXEMPLO DAS FORÇAS ARMADAS

Os entrevistados de IR recordam que o Aperfeiçoamento se desenvolveu em duas frentes: a da introdução de novas técnicas, tecnologias e métodos de organização e a da transformação da mentalidade e dos comportamentos dos trabalhadores.

Tudo começou nas Forças Armadas, por iniciativa de Raul Castro, o pioneiro do Aperfeiçoamento Empresarial.

As empresas industriais das Forças Armadas eram deficitárias. Hoje todas são rentáveis. Era preciso demonstrar que a empresa socialista pode ser tanto ou mais produtiva do que a capitalista. Para se atingir o objectivo foi preciso, em primeiro lugar, vencer preconceitos.

Conforme afirma Armando Perez — um dos principais assessores de Raul — as tecnologias não são capitalistas nem socialistas. São boas ou más, convenientes ou inadequadas. Não têm ideologia.

Uma das heranças dos métodos introduzidos pelos soviéticos e das tecnologias instaladas foi um sobredimensionamento dos colectivos de trabalhadores que inviabilizava o funcionamento rentável das empresas. Na mineração e na metalurgia do níquel como noutras industrias. O combinado Comandante Ernesto Che Guevara, por exemplo, tinha 5 mil trabalhadores. Hoje, com 3 mil, a produção e a produtividade elevaram-se e a empresa tornou-se muito rentável.

Alguns leitores brasileiros serão levados a pensar que, afinal, os métodos de aperfeiçoamento introduzidos, bem como as tecnologias, lembram os das grandes empresas capitalistas, da Europa, dos EUA ou da América Latina, que justificam os despedimentos maciços em nome das exigências da revolução tecno-científica, da racionalidade da nova economia, da flexibilização do trabalho, etc, etc.

Seria uma conclusão falsa.

Não houve reformas económicas em Cuba impostas de cima para baixo, não há um só exemplo de aplicação do Aperfeiçoamento Empresarial em que esta não tenha sido precedida de um debate profundo em que a participação do colectivo de trabalhadores cumpriu papel decisivo. As transferencias de trabalhadores —porque o Aperfeiçoamento não seria um avanço se funcionasse como engrenagem geradora de desemprego — foram sempre discutidas e aprovadas por eles numa atmosfera de participação revolucionaria dos colectivos. Com a peculiaridade de que a intervenção dos sindicatos no processo assumiu uma intensidade e um significado que aumentaram à medida que as empresas se iam transformando.

Não é possível num texto com as limitações deste transmitir a riqueza dos debates, sempre difíceis e por vezes dolorosos, travados em plenários por homens e mulheres que votavam por mudanças inadiáveis que iriam por vezes atingi-los materialmente.

Às insuficiências técnicas acumuladas somavam-se com frequência os efeitos nefastos do imobilismo de uma burocracia que ignorava os problemas, impedindo que das maquinas fosse extraído tudo aquilo que elas podiam dar mas não forneciam por culpa da gestão, da rotina e também dos trabalhadores.

Por duas vezes visitei as empresas do níquel em Moa, que me apareceu apesar das suas carências, como uma cidade revolucionaria, na qual começava a emergir uma geração diferente. Por isso mesmo sei que Isabel Rauber não exagera ao esboçar o quadro que marcou as mudanças introduzidas na Che Guevara, com os mineiros e os metalúrgicos enterrados na lama e no pó ate à cintura, exaustos pelas noites não dormidas, trabalhando duramente sem um queixume.

As entrevistas de «Romper o Cerco» confirmam a actualidade do velho e polemico debate sobre os estímulos materiais e os espirituais. O Aperfeiçoamento Empresarial tem mostrado as vantagens de combinar ambos harmoniosamente. O realismo e o idealismo revolucionários não são incompatíveis, mas complementares.

A implantação do salário móvel suscitou, naturalmente, resistências iniciais ate que se foi tornando claro que o salário móvel de Cuba não era o do mundo capitalista. Implicou um regresso aos ensinamentos de Marx e Lenine esquecidos na URSS. A velha máxima marxista (De cada um segundo as suas capacidades; a cada um de acordo com o seu trabalho) é agora uma realidade nas empresas onde se implantou o Aperfeiçoamento, pondo fim ao igualitarismo que gerava irresponsabilidade e passividade. O salário aparece hoje ligado à produção, mas numa perspectiva socialista que faz do homem o centro da Revolução.

«Se o socialismo não se ocupa do homem — adverte Pedro Ross — e trata de criar apenas bens materiais não é socialismo, porque o capitalismo criou muitos bens materiais, mas para proveito de uns e desgraça da grande maioria».

Com os métodos e os mecanismos antigos não era possível levar a Revolução adiante. «Antes — é ainda Pedro Ross quem o diz — todas as decisões eram tomadas em cima, portanto discutidas em cima e depois baixavam para serem aplicadas na base. E agora todas as decisões são tomadas na base».

O movimento sindical cubano não teme a discussão sobre as mazelas das empresas e sobre os erros dos homens. Provoca o debate sobre as questões não resolvidas.

«Revolução — lembra Pedro Ross citando Fidel — é o sentido do momento histórico, é mudar tudo o que deve ser mudado (...) é desafiar poderosas forças dominantes, dentro e fora do âmbito social e nacional»(...)

O HUMANISMO CUBANO

Das aproximadamente 3 mil empresas existentes em Cuba apenas uma centena foram reformadas e estão a aplicar o sistema do Aperfeiçoamento Empresarial, que implica uma grande autonomia e uma descentralização impensáveis há poucos anos.

Aparentemente é uma experiência limitada. Mas a aparência é enganadora. As empresas em questão são quase todas muito importantes; o seu peso na economia do país é decisivo. Quase 80% da industria básica, por exemplo, funciona já nesse sistema.

Fora da Ilha tem sido escrito muito disparate, com intenção perversa, sobre o Aperfeiçoamento Empresarial.

As criticas que o modelo envolve a erros cometidos são com frequência exploradas numa perspectiva anti-comunista, sobretudo anti-soviética.

Na realidade o povo cubano — e Fidel não se cansa de o repetir — sente uma profunda gratidão pela ajuda e solidariedade recebidas da URSS ao longo de quase três décadas. Mas esse sentimento não impede o debate criador sobre as consequências negativas da aplicação em Cuba de métodos e soluções, mecanicamente por vezes, transplantados da URSS — enfim de tendências e comportamentos que não se adaptavam ao espirito da revolução Cubana e ao seu povo. No dizer de Fidel, copiou-se «bem o mau e mal o bom»...

Antes do inicio da Perestroika, esses fenómenos estavam alias a ser combatidos no âmbito da chamada Rectificação.

Para o povo cubano é hoje evidente que os efeitos do Aperfeiçoamento empresarial não se restringem ao campo económico. Manifestam-se na totalidade da vida, através de uma mudança das mentalidades. Em Cuba a Revolução criou um Estado que oferecia muito ao povo no terreno dos direitos. Tanto que, como sublinha Pedro Ross, se tinha quase perdido o sentido de certos deveres.

Isabel Rauber, no seu belo e lúcido livro lembra-nos que a revolução não está fora de nos, mas dentro; nasce e reproduz-se em cada um de nós.

Numa conferencia que lhe ouvi em Porto Alegre, em Janeiro, durante o Fórum Social Mundial, esta argentina internacionalista chamou a atenção para o facto de que mesmo nós, os comunistas, que ambicionamos reformar e humanizar o mundo, quase não nos apercebemos por vezes que cada um tem de se defender permanentemente da contaminação universal que resulta do funcionamento da engrenagem da globalização neoliberal. Creio que Isabel tem razão.

Os cubanos, precisamente por viverem numa sociedade diferente, mais humanizada, compreendem que mudar de mentalidade é um desafio colectivo e não individual. Esforçam-se assim, sem pressas, por interiorizar a Revolução e incorporá-la em todos os seus actos.

Isabel Rauber enuncia uma verdade: a Revolução não está fora de nós, mas dentro. Nasce e reproduz-se em cada um de nós.

Havana, Maio/2001


Notas de rodapé:

(1) «Romper el Cerco», Isabel Rauber, Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2001 (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021