Recordai o incêndio do Reichstag!

Miguel Urbano Rodrigues

9 de abril de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O primeiro rei que proibiu a guerra foi um indiano, Achoka, senhor de um império que no século II Antes da Nossa Era ia da cordilheira afegã ao médio Ganges. Num edicto histórico baniu-a por a considerar incompatível com a condição humana.

Achoka foi a excepção num mundo violento. Pelo tempo adiante os homens continuaram a matar-se uns aos outros numa cadeia ininterrupta de guerras. Mas, porque a componente de irracionalidade de cada uma era indissociável de mortes, miséria e ruínas, raramente se empreendia uma guerra sem consulta aos deuses.

Ficou memória de respostas dos sacerdotes dos oráculos de Delfos, na Grécia, e de Amon, no deserto Líbico. Se os presságios eram desfavoráveis os exércitos não entravam em campanha.

As coisas mudaram muito.

O presidente George W. Bush invoca Deus a cada passo nos seus discursos, diz agir em nome dele, mas não consulta oráculos nem sequer os gurus e pitonisas que pululam no seu pais. Faz a guerra a outros povos por decisão pessoal, alegando que os EUA emergem como nação predestinada, a única em condições de assumir a defesa de valores eternos. A guerra é apresentada assim como uma exigência moral. Os mísseis norte-americanos destroem cidades e as bombas lançadas dos B-52 esfacelam corpos humanos em nome de Deus para preservar a cultura, em beneficio da civilização e da humanidade.

A repulsa universal e também o sentimento de insegurança desencadeados pelos atentados terroristas de 11 de Setembro pp abriram o caminho ao discurso da retaliação e à apologia da guerra como o instrumento indispensável para a erradicação da violência e a conquista da paz e da concórdia entre os homens.

A retórica messiânica desse discurso belicista cultiva as analogias, respeitando tradição norte-americana que não dispensa nas arengas presidenciais as citações bíblicas e as referencias à Roma dos Césares.

Não surpreendeu assim que os atentados do 11 de Setembro fossem comparados ao ataque japonês a Pearl Harbor, em Dezembro de 1941. O paralelo funcionou como estimulo aos sentimentos patrióticos, neutralizou à partida eventuais duvidas sobre a justeza da guerra que iria atingir o remoto povo do Afeganistão, totalmente alheio à destruição das Torres de Manhattan e de uma ala do Pentágono, e simultaneamente amorteceu o choque provocado por diplomas e medidas anticonstitucionais que iriam ferir liberdades e direitos do próprio povo dos EUA.

Todo o alarido patrioteiro levantado em torno do «Pearl Harbor do Terrorismo » não tem o poder de ocultar os factos reais. Se os acontecimentos do 11 de Setembro trazem à memória algum paralelo seria não a agressão nipónica, mas o incêndio do Reichstag da Alemanha nazi .

Em ambos os casos o governo do país onde ocorreu o atentado terrorista tirou benefícios do crime. A vaga de indignação provocada permitiu-lhe implantar uma política que noutras circunstancias esbarraria com enormes dificuldades.

É útil recordar que na Alemanha o incêndio do Reichstag em 1933 criou condições para o desencadeamento da feroz campanha anti-semita e para as perseguições que levaram milhares de comunistas aos primeiros campos de concentração. Simultaneamente, a radicalização ideológica do Partido Nacional Socialista foi acompanhada de uma escalada armamentista e de uma agressividade crescente na política externa. Os míticos «perigos judeu e comunista» tornaram-se justificativa para a repressão e funcionaram como alavanca da política externa que levaria à anexação da áustria, a Munique e à ocupação da Checoslováquia e, finalmente, à invasão da Polónia e à guerra mundial.

O desenvolvimento da historia nos últimos meses ilumina analogias transparentes.

A estratégia do sistema de poder dos EUA que venho definindo como esboço de uma ditadura militar planetária foi muito facilitada pelas consequências políticas, económicas e militares dos atentados do 11 de Setembro.

Da uma situação difícil, de isolamento relativo, o governo Bush e a extrema-direita norte-americana passaram a uma postura ofensiva, caracterizada por uma agressividade enorme nas frentes interna e externa. O discurso do Presidente adquiriu uma agressividade patética. O tom messiânico ganhou a agressividade de um pregador escocês do século XVII. As semanas que precederam o lançamento dos primeiros mísseis contra cidades afegãs funcionaram como tempo de ensaio geral. A caça aos terroristas no próprio território dos EUA desenvolveu-se inicialmente num quadro em que a comunicação social --com poucas excepções-- colaborou no esforço para anestesiar as consciências. O racismo foi estimulado a nível local, estadual e federal enquanto direitos e garantias constitucionais eram espezinhados .

A desinformação sobre os monstruosos crimes e chacinas cometidos no Afeganistão (incluindo o regime tipo Gestapo a que foram submetidos os prisioneiros concentrados em Guantanamo); a domesticação do Conselho de Segurança das Nações Unidas; e a falta de resposta adequada da opinião publica mundial, confundida por campanhas mediáticas de âmbito planetário -- contribuíram para reforçar a arrogância e a ambição da extrema direita norte-americana. O sistema de poder que governa os EUA compreendeu que podia ir mais longe. Se era possível, ante a passividade internacional, praticar uma política de genocídio contra um povo inteiro, invocando o fantasma de Ben Laden e o fanatismo islamita dos Taliban – o projecto de dominação imperial sobre a totalidade do planeta poderia ir por diante.

Bush está a cumprir, com alegria e orgulho, o papel que lhe foi distribuído. No México vetou a presença simultânea de Fidel na Conferencia de Monterrey promovida pelas Nações Unidas. Em Lima vetou também a presença de Hugo Chavez na reunião com os presidentes dos países Andinos. Incluiu os movimentos de libertação na lista das organizações terroristas e ampliou a intervenção norte-americana na guerra que o governo colombiano trava há quatro décadas, sem êxito, contra as FARC-EP.

Foi nesse contexto que o aliado israelense, sentindo-se com as mãos livres, concebeu e começou a executar um plano monstruoso cuja meta inconfessada seria o desaparecimento da nação palestiniana, ou pelo menos a expulsão dos seus filhos do território onde se formou há milénios.

A apologia publica do novo holocausto, feita por oficiais e políticos de Israel, coincide com o bombardeamento diário das cidades e aldeias da Cisjordania e de Gaza e com o cerco ao que resta do Quartel General de Yasser Arafat, em Ramallah.

Bush assiste, impede qualquer iniciativa eficaz de Conselho de Segurança, afirma ter duvidas sobre a eficácia do método utilizado por Ariel Sharon, mas dá-lhe tempo para ampliar o genocídio.

Surge, entretanto, um luar de esperança. O despertar da consciência dos povos ameaça abrir pequenas fissuras na coligação dos países ricos sem a qual a estratégia de dominação planetária dos EUA não tem pernas para andar. Aquilo que a tragédia do povo afegão não conseguiu promover -- um movimento de protesto e solidariedade de âmbito mundial — está a nascer da tragédia do povo palestiniano.

Lentamente, pela Terra afora, desde as grandes megalópolis da Europa, dos EUA e do Japão, às cidades milenárias da índia e da China, às capitais da América Latina imperializada e às aldeias das selvas e desertos africanos, os povos principiam a tomar consciência de que a «cruzada antiterrorista» de Bush mais não é do que a fachada de um projecto de militarização do planeta. No ventre desse projecto são já identificáveis as sementes de um fascismo de novo tipo.


Inclusão: 04/11/2021