Os intelectuais de esquerda na batalha da comunicação

Miguel Urbano Rodrigues

5 de maio de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Escritores, pensadores, cientistas sociais, historiadores, jornalistas gastamos pelo mundo afora milhares de horas na crítica e na análise do sistema de perversão mediática hegemonizado pelo imperialismo. Sabemos que essa engrenagem é muito mais do que um instrumento. Transformou-se hoje numa componente decisiva do próprio poder. Sem ela a globalização neoliberal não poderia funcionar e o desenvolvimento da estratégia de dominação mundial dos EUA seria inviável.

Não encontramos o mesmo interesse absorvente quando avaliamos o que faz e não faz a esquerda no mesmo campo. Temos reflectido muito pouco sobre o desempenho das forças progressistas nesse terreno de confrontação.

A sua posição é de ostensiva inferioridade. Mas como aproveita ela o seu reduzido espaço de intervenção num sistema mediático rigidamente controlado pelo inimigo?

Mal. O que se passa na Imprensa escrita, na Televisão e na Radio é conhecido.

Mas porventura utiliza plenamente a esquerda as imensas possibilidades que lhe são abertas pela Internet, um terreno onde a sua intervenção não pode ser impedida como nos outros, controlados pelos gigantes transnacionais?

A resposta é negativa. Um balanço dessa intervenção insuficiente está por fazer. Quando nos reunimos em eventos com a dimensão do Foro Social Mundial e em Conferencias menos ambiciosas como o Foro de São Paulo procedemos a inventários de grandes problemas, elaboramos diagnósticos sobre situações criadas pelo funcionamento da maquina da globalização neoliberal (crises asiática, russa e brasileira, Argentina, etc) e crimes praticados pelo sistema de poder imperial (Bósnia, Kosovo, Afeganistão, Palestina, etc). Debatemos formas de luta contra ameaças tão perigosas como a ALCA. Trocamos ideias sobre a alternativa ao sistema responsável pela desigualdade crescente entre os povos e os homens.

Entretanto, no que se refere à Comunicação ficamos na denuncia. Chomsky e Ignacio Ramonet, por exemplo, têm realizado um trabalho notável na iluminação do cenário e no desmascaramento dos métodos utilizados por aqueles que controlam os jornais e o audiovisual.

Mas quase não olhamos para nós. Não submetemos a uma apreciação critica o positivo e o negativo da presença da esquerda na Rede.

DOIS EXEMPLOS

Neste artigo não me ocuparei daquilo que de positivo (e muito é) tem sido empreendido com fracos recursos e quase sempre a partir de iniciativas modestas de partidos, movimentos sociais e organizações culturais e sindicais e também de esforços individuais.

Limito-me hoje aqui a chamar a atenção para um fenómeno, se assim lhe posso chamar, que tem passado senão despercebido pelo menos sem o comentário que merece. Refiro-me à tendência de alguns intelectuais académicos para aquilo que traduz uma postura arrogante e personalista. Eles acabam por aparecer como mais importantes do que aquilo que comentam ou analisam.

Em primeiro lugar surgem como enciclopédicos. Sentem a necessidade de se pronunciar sobre qualquer acontecimento importante ocorrido no mundo. Actuam em todos os azimutes, como dizia o falecido general de Gaulle. Nas áreas da ideologia, da economia, da sociologia, das ciências exactas. Ao escreverem sobre aspectos da crise de civilização que vivemos não conhecem limites. Onde quer que irrompa uma crise que pelo seu significado ocupa as manchetes da televisão e da imprensa logo aparecem a comentá-la. Na Rede, na TV, nos jornais. Seja ela na América Latina, na África, na Europa, num remoto pais asiático. Os efeitos negativos desse enciclopedismo são agravados com frequência pela estrutura do texto produzido. Porque ele é simultaneamente analítico, informativo e prospectivo. Os académicos que assim procedem fundem o trabalho do cientista social com o do jornalista. É um facto que a informação hoje é instantânea. Mas, por óptimas que sejam as condições de trabalho dos que assim procedem torna-se obvio que a pressa em escrever sobre acontecimentos muito complexos e recentíssimos impede que a mensagem transmitida tenha uma elevada qualidade e credibilidade. A profundidade e a lucidez da reflexão, como síntese criadora, é decisivamente prejudicada pela insuficiência da informação e pela tendência do autor a misturar ambas a cada momento num labirinto onde o leitor se perde.

Os académicos que não resistem ao apelo para intervirem de maneira fulminante no debate mediático sobre qualquer acontecimento polarizador da atenção mundial actuam, talvez sem disso tomarem consciência, movidos por um sentimento de vaidade, por uma insopitável fome de presença mediática.

Pierre Bourdieu afirmou ha tempos que o cientista social de esquerda tem o dever de comunicar a um publico tão amplo quanto possível o conhecimento adquirido no seu esforço laboratorial de muitos anos para compreender e interpretar a realidade que o cerca. Fica implícito que eticamente lhe está vedado transmitir como opinião aparentemente sedimentada aquilo que só conhece superficialmente. Mais graves ainda podem ser as consequências da tendência para a especulação dos autores que a ela se entregam a partir de conclusões assentes em informações duvidosas. O prestigio dos seus nomes, inspirando confiança aos leitores, empresta então credibilidade a exercícios de futurologia que a não merecem.

Citarei hoje apenas dois casos que, a meu ver, tipificam bem essas atitudes. O do norte-americano James Petras e o do germano-mexicano Heinz Dieterich, aliás diferentes.

Petras, professor de sociologia na Universidade do Estado de Nova York, é autor de duas dezenas de livros alguns dos quais representam uma contribuição válida para o debate de grandes problemas do nosso tempo. Conquistou como escritor marxista o respeito da juventude do seu pais e também o de amplos sectores da esquerda na Europa, e no Terceiro Mundo, nomeadamente na América Latina.

Identifico nele um intelectual a quem a audiência crescente, sobretudo após a revolução informática, prejudicou em vez de funcionar como estímulo positivo.

Escreve e fala num ritmo incompatível com a qualidade. Traz à memória aqueles intelectuais que Arthur Koestler retractou numa sátira famosa, scholars que peregrinam de Congresso em Congresso, de Conferencia em Conferencia para, afinal, escutarem o seu próprio e iluminado discurso sobre o presente e o futuro da humanidade. Nos últimos anos caíram as suas defesas contra a futurologia e entrou progressivamente no terreno movediço da especulação, aventura que, ele sabe, se desenvolve à margem de uma concepção marxista da historia. Resiste mal à tentação de responder com exercícios prospectivos à eterna pergunta «Que fazer?» que nos quadrantes da esquerda nasce, torrencial, da busca da alternativa ao capitalismo globalizado. Petras parece esquecer que o papel do intelectual no combate ao imperialismo não pode alastrar ao terreno das previsões guindadas a complemento rotineiro das analises.

Simultaneamente, ampliou o leque de temas e o compromisso com a actualidade factual leva-o com frequência a subalternizar a analise, privilegiando uma visão jornalística das situações históricas.

Esse estilo de intervenção é acompanhado de uma agressividade antes não identificável nos seus textos. Dela é exemplo a diatribe que visou Perry Anderson, inspirada por um ensaio do professor britânico propondo uma nova linha para a «New Left Review».

Petras não somente deturpou trechos do trabalho de Perry Anderson como emitiu na sua critica opiniões ofensivas, negando-lhe inclusive capacidade para aplicar o marxismo à realidade histórica.

A Revista Herramienta reproduziu então os dois textos.(1)

Não conheço pessoalmente Petras, mas a própria projecção que os seus trabalhos alcançaram explica que chame neste artigo a atenção para as consequências do seu afastamento da anterior linha de intervenção política, descomprometida com o vedetismo mediático.

Diferente, como referi acima, é o caso de Heinz Dieterich. De comum a ambos existe apenas a tendência para uma intervenção constante sobre temas extremamente diversificados. Mas Dieterich, actualmente professor da Universidade Metropolitana do México, é mais omnisciente do que Petras e fala e escreve mais.

Sem ter uma obra académica com aceitação comparável à do norte-americano, Dieterich tornou-se nos últimos anos uma presença desejada na América Latina pelos organizadores de Encontros Internacionais sobre a problemática das ideias e temas económicos e sociais de actualidade. Múltiplos sítios da Internet divulgam artigos seus sobre uma enorme quantidade de temas.

Dieterich é um incansável divulgador de uma teoria-sistema cuja apologia faz nas conferencias internacionais em que participa: o socialismo do século XXI. O Novo Projecto Histórico, concebido e formulado pelo sueco Arno Peters, que teria sido o Marx do Século XX, abre à humanidade, segundo ele, a porta da democracia participativa. Esta é uma ambição compartilhada por todas as forças progressistas do mundo, mas Dieterich exprime-se como se ela estivesse ao alcance da mão. Ignora a questão crucial do Poder. Não perde tempo a explicar como, na busca da alternativa, será atingido o objectivo prévio à construção do futuro: a derrota do inimigo, a destruição futura do capitalismo.

Em duas ou três conferencias que lhe ouvi, Dieterich, para alem da apologia de Arno Peters, cultivou um estilo de intervenção polemico-futurista incompatível com os princípios mais elementares do marxismo.

Recordarei apenas um episódio. Em Março pp. no México, a abrir a Conferencia Internacional de Solidariedade com a Colômbia e pela Paz na América Latina, HD expressou um pessimismo total sobre o futuro da luta das FARC-EP, pouco faltando para convida-las a depor as armas. Quanto à Venezuela bolivariana sugeriu a renuncia de Hugo Chavez e o recomeço da luta a partir da base. Não cabe desenrolar aqui o novelo kafkiano exibido na tentativa de justificar as abstrusas sugestões, mas é útil registar que a intervenção de Dieterich provocou protestos muito generalizados, quase um sentimento de indignação entre os participantes, presentes para aprofundar a solidariedade a luta dos povos da Colômbia e da Venezuela.

Essa atitude de Dietrich não pode ser negada. As suas palavras foram gravadas como as dos demais oradores.

Entretanto, semanas depois, HD dizia já e escrevia o contrario, voltando, após o golpe, à apologia de Chavez e à defesa do combate travado pela heróica guerrilha de Marulanda.

A IMPORTÂNCIA DA COERÊNCIA

Dieterich emerge, com o seu vedetismo mediático, como um exemplo da incoerência em política e do confusionismo que ela pode gerar entre os sectores da esquerda que são influenciados por discursos como o seu e similares.

Seria uma conclusão falsa inferir do que escrevi que a minha posição é pessimista quanto ao comportamento global dos intelectuais de esquerda na batalha da comunicação.

Admito pelo contrario que ela tem melhorado à medida que se aprofunda a consciência de que a estratégia do sistema de poder imperial dos EUA — na qual a globalização neoliberal cumpre um papel instrumental importantíssimo — configura uma ameaça à própria sobrevivência da humanidade .

Mas precisamente porque a batalha das ideias me aparece como fundamental no âmbito da batalha global contra o capitalismo imperial, creio que aqueles que nela intervêm directa ou indirectamente têm o dever de imprimir o máximo de autenticidade à sua reflexão sobre a intervenção dos intelectuais progressistas, sobretudo quando se assumem como revolucionários.

O charlatanismo e o exibicionismo dificultam muito a nossa luta. Já a vaidade é mais fácil de corrigir nos formadores de opinião demasiado sensíveis à sua própria popularidade.

São felizmente muito numerosos os exemplos de académicos e pensadores que na esquerda, antes da Era Internet, deixaram memória não apenas pela criatividade no campo das ideias mas pela sua capacidade de transmitir o conhecimento acumulado com modéstia permanente. Recordo entre outros como inesquecíveis produtores-transmissores de saber os franceses Fernand Braudel, Charles Betelheim e André Gorz, o inglês Eric Hobsbawm e os norte-americanos Paul Sweezy e Leo Huberman e quase todo o grupo dirigente da Monthly Review .

Hoje, quando a Rede começa a pesar decisivamente na formação de opinião e, portanto, no rumo da Historia, sinto a tentação de apontar como exemplar o que nela aparece de criadores-comunicadores com o nível do português José Saramago, do uruguaio Eduardo Galeano, do canadiano Michel Chossudovsky e do norte-americano Noam Chomsky. São diferentíssimos. Os que os lêem ou escutam podem não perfilhar muitas vezes opiniões suas. Mas na esquerda inspiram todos um respeito e uma admiração irrestritos. Nas suas mensagens o talento e o saber são fecundados pelo eticismo e pelo humanismo.

Tentemos senão imita-los, porque não são imitáveis, pelo menos extrair lições da forma como intervêm na grande batalha em que os intelectuais de esquerda se acham envolvidos.


Notas de rodapé:

(1) Revista Herramienta, Buenos Aires, Argentina, Fevereiro de 2001. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021