Os sem terra do Brasil: A epopeia, a tragédia e a farsa

Miguel Urbano Rodrigues

18 de junho de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


No tribunal do Estado do Pará, no Brasil, terminou o julgamento dos oficiais e soldados que, numa chacina inesquecível, abateram como gado, em Abril de 1996, 21 trabalhadores do Movimento dos Sem Terra, feriram 64 e espancaram os demais.

Ao longo de uma audiência de 120 horas aquela Corte de Justiça foi palco de um espectáculo com cenas que lembravam autos de Gil Vicente. Os matadores foram todos absolvidos, com excepção de dois oficiais que passeiam, aliás, pelas ruas, em liberdade condicional.

Há seis anos o massacre levantou uma vaga de indignação tão alta que o Presidente Fernando Henrique Cardoso sentiu a necessidade de condenar o crime com veemência. Recordo que na época exigiu punição exemplar para os responsáveis, sublinhando que, se tal ano acontecesse, o povo teria motivos para não confiar nas instituições.

Que se passou no tribunal?

Embora a matança de Eldorado dos Carajás tenha sido uma tragédia, o juiz, o Ministério Publico e as testemunhas de defesa montaram na audiência uma farsa aplaudida pelos latifundiários da região, que conceberam e organizaram a chacina e pagaram aos oficiais e soldados da Policia Militar do Pará que a executaram.

Os trabalhadores assassinados morreram crivados de balas, algumas disparadas à queima roupa, na nuca. Mas os réus sustentaram que tinham atirado apenas para o ar. Perplexo juiz concluiu que não havia provas, e mandou-os para casa.

Que diz o Presidente agora? Lava as mãos como o procônsul romano na velha Palestina. Nem outra atitude seria de esperar de um estadista da sua têmpera. FHC não esquece que o Brasil é uma republica federativa, onde funciona muito bem a separação de poderes estabelecida na Constituição. FHC pode, como cidadão, lamentar a sentença, por insatisfatória, mas não lhe passou sequer pela cabeça, credo, ingerir-se em áreas da competência do Judiciário.

Entretanto, pelo mundo afora alastra o protesto contra a absolvição dos criminosos e cresce a solidariedade aos Sem Terra brasileiros. Eles merecem. O MST ( http://www.mst.org.br/ ) não é somente um dos movimentos sociais mais importantes da América Latina. A luta de muitos anos, travada em condições dificílimas, desenvolveu nos seus membros uma combatividade e uma consciência social que o transformaram numa força potencialmente revolucionária. Nas estradas do imenso país, nos acampamentos, nos assentamentos, nas longas marchas, enfrentando a feroz repressão de muitas policias e do Exército – os homens e as mulheres do MST acabaram descobrindo que o sistema responsável pelo seu martírio, o sistema capitalista, somente serve para empobrecer o povo em beneficio de uma minoria pelo que, cedo ou tarde, terá de ser substituído por outro.

Sem abandonarem o conceito pacifista da luta, sem pegarem em armas de fogo, sequer para se defenderem, os Sem Terra tendem, paradoxalmente, a transformar-se pela própria lógica dos seus objectivos humanistas, num movimento, repito, com vocação revolucionária.

O «NOVO MUNDO RURAL» - O MITO PERVERSO DE FHC

Nunca como hoje foi tão necessária a solidariedade com o MST. A expansão do Movimento, a justiça da causa pela qual se bate, a recusa da violência pelos militantes, a firmeza com que defendem os assentamentos, as marchas fraternas através do país, a criatividade das soluções que em acampamentos e agro-vilas anunciam um novo tipo de sociedade contribuíram para gerar em torno dos Sem Terra, mesmo entre as classes médias urbanas, uma aura de simpatia. O governo sentiu o perigo e mudou de táctica. O presidente fechou as portas ao diálogo. O objectivo é o mesmo — aniquilar o MST — mas o método, agora, é outro.

O combate ao Movimento foi no fundamental transferido da área política para a económica. Para Fernando Henrique e o seu entourage a Reforma Agrária não passa de uma utopia perigosa. O discurso oficial passou a apresentá-la como inutilidade perseguida por uma organização de fanáticos, perturbadora da ordem social.

Ao projecto do MST, é contraposto por FHC outro, inspirado no modelo agrícola norte-americano.

O «Novo Mundo Rural», assim se chama o mostrengo ideado e enaltecido pela propaganda do governo, seria segundo os epígonos uma sociedade quase perfeita, de camponeses prósperos e felizes. Domesticada e comandada, claro, pelas transnacionais que desnacionalizaram a agro-industria e estimularam a criação de gigantescas fazendas (a maior do país tem o tamanho da Bélgica).

Nesse «Novo Mundo Rural» — escreve com ironia o prof. Mançano Fernandes — não existem conflitos, não há ocupações de terras, não existem acampamentos dos Sem Terra, os assentamentos são iniciados pelo governo e, em três anos, em média, estão consolidados. Nesse processo extraordinário os trabalhadores entram como sem terra e saem como agricultores familiares, prontos para o mercado, prontos para se tornarem prósperos capitalistas».(1)

Atrás da máscara oculta-se o jogo real de um projecto desumano: «no novo mundo rural — adverte Mançano — vale tudo para se inventar este novo momento, desde criminalizar as ocupações a considerar famílias não assentadas como se já estivessem de facto na terra». O que interessa é mentir ao país, tentar convencer o povo de que a questão agrária está a caminho de ser resolvida. Através, obviamente, de uma fórmula capitalista. O governo inventa os sem terra bonzinhos, uns seres robotizados aos quais é dada terra e dinheiro, e sataniza os verdadeiros Sem Terra, perseguindo-os como espécie maléfica em vias de extinção.

O idílico «Novo Mundo Rural» de FHC não poderia, é transparente, ser ensaiado sem a intervenção protectora do braço musculado do Poder. O governo intensificou fortemente a repressão contra o MST para abrir espaços ao seu projecto mítico.

Desde o inicio do seu segundo mandato, FHC, na sua ofensiva permanente contra o Movimento, travou o combate em múltiplas frentes: o governo utilizou a comunicaçao social, o Poder Judicial, a Policia Federal, cortou recursos e créditos, falsificou estatísticas, acumpliciou-se com fazendeiros criminosos.

A poucos meses das eleições as açcões intimidatórias desencadeadas pelo Executivo assumem uma amplitude e gravidade crescentes. João Pedro Stedile, membro da Coordenação Nacional do MST, acaba de denunciar numa entrevista(2) ao jornal Correio da Cidadania,( http://www.correiocidadania.com.br ) de São Paulo, a onda de repressão que atinge os Sem Terra na zona do Pontal do Parapanema, um dos baluartes das lutas do Movimento. O MST é ali tratado como se fora uma quadrilha. Primeiro a Policia pedia a prisão preventiva dos lideres de um acampamento; depois, um Procurador da Republica ampliou o pedido, solicitando a prisão de toda a direcção regional do MST. Um juiz local, solícito, deferiu o pedido. Tudo em menos de 24 horas.

BASTA!

Há poucos meses, em Belo Horizonte, tive a oportunidade de conviver com quadros do MST durante um seminário em que debati com eles questões de política internacional. Para mim foi uma jornada gratificante em que aprendi mais do que tentei ensinar.

é sempre difícil proceder ao ajustamento da realidade imaginada à realidade concreta. Naquele dia impressionou-me sobretudo a facilidade e a rapidez com que quadros do Movimento, vindos de todo o Brasil, a maioria alguns com nível de instrução modesto, apreendiam o significado de complexos acontecimentos mundiais. Falando eu da «cruzada antiterrorista» de Bush, da agressão ao povo do Afeganistão, das explosões sociais na Argentina, da unipolaridade posterior ao fim da URSS, dos mecanismos da globalização neoliberal, do bloqueio a Cuba, da Alca — aquela gente ia directa ao cerne dos problemas e, usando um mínimo de palavras, demonstrava, através de perguntas e comentários, uma comovedora compreensão da política criminosa do imperialismo, da sua estratégia de dominação mundial e da necessidade de os povos da América Latina se unirem no combate ao inimigo comum.

Eu ouvira falar da «mística» dos Sem Terra. E a palavra, pela sua conotação religiosa, chocava-me.

Desde entao, noutros encontros com companheiros do MST, estive presente em diferentes «místicas». Porque elas abrem e encerram quase sempre iniciativas promovidas pelo Movimento. E a minha perspectiva hoje é outra. No caso o que importa não é a palavra que designa uma atitude, mas esta em si mesma.

Acho belíssimas as «místicas» do MST; estão voltadas para o combate e não para o transcendente.

Nas que acompanhei em Belo Horizonte havia dança, música, canto, teatro, mímica poesia, imaginação plástica, enquadrando um discurso político muito simples com uma enorme carga de combatividade.

Deixei Minas Gerais com a convicção reforçada de que a grande saga do MST não será detida pela violência desencadeada contra o Movimento. A vitória, sem data no calendário, espera gente maravilhosa.

O que esses combatentes precisam desesperadamente, num momento crucial da sua luta, é de mais solidariedade, brasileira e internacional.

A grotesca farsa da absolvição dos assassinos de Eldorado dos Carajás abre uma oportunidade excelente para a ampliação dessa solidariedade.

Dos progressistas da Igreja brasileira ela sobe calorosa. De uma nota sobre o julgamento farsa emitida pelo Sector Pastoral Social da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, transcrevo, sem comentários, um parágrafo:

«Apelamos aos poderes constituídos, executivo, legislativo e judiciário, bem como a todas as entidades e movimentos da sociedade civil organizada, no sentido de se empenharem por um BASTA! a esta espiral de violência cujas vítimas são quase sempre os mais pobres e indefensos».(3)

Faço votos para que os muitos amigos do MST no vasto mundo tornem seu este apelo vindo da Igreja católica do Brasil.


Notas de rodapé:

(1) Bernardo Mançano Fernandes é professor da Universidade do Estado de São Paulo, campus de Presidente Prudente. O trabalho encontra-se em http://resistir.info/brasil/conflitos_2001.html (retornar ao texto)

(2) João Pedro Stedile, in «Correio da Cidadania», 8 de Junho de 2002, e reproduzido em http://resistir.info/brasil/perseguicao_mst.html (retornar ao texto)

(3) Divulgado pela Pastoral Social da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Brasília, 13 de junho de 2002 (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2021