Girardi, um teólogo italiano reflecte sobre a Revolução Cubana

Miguel Urbano Rodrigues

30 de junho de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Não recordo quando o vi pela primeira vez. Sei que durante anos me cruzei muitas vezes com aquele italiano de cabeleira branca e boné de revolucionário russo do começo do seculo XX. Tinha estampa de gente de outro tempo.

Exprimia-se num castelhano lento, com sotaque musical.

Um dia soube que se chamava Giulio Girardi(1) e tinha aura de grande teólogo. Mas somente meses atrás, por casualidade, um livro seu me caiu nas mãos: «Cuba despues del derrumbe del comunismo».(2)

Não gostei do titulo. Mas o livro fascinou-me.

Ele estava no momento no meu hotel numa das suas frequentes visitas a Havana. Transcorrida uma semana, éramos amigos.

Girardi, nascido em 26, foi ordenado sacerdote em 55 e doutorou-se em Filosofia. Depois foi professor de Antropologia e de Introdução ao Marxismo, em Paris. João XXIII tinha-o em alta estima e chamou-o para assessor durante o famoso Concilio Vaticano II que assinalou a breve viragem à esquerda da Igreja Católica. Fidel Castro admira-o muito.

Nos últimos 15 anos os temas latino americanos absorveram-no.

O filosofo cubano Martinez Heredia afirma no prólogo da obra citada que Girardi com o seu livro «rompe o bloqueio cultural contra Cuba». Girardi — sublinha — «reuniu os trabalhos do militante, do intelectual, do irmão. Fez uma obra de amor eficaz, um livro sem concessões».

No seu género é o livro mais profundo de um cristão que li sobre Cuba. Girardi não foge às dificuldades. Vai ao seu encontro para reflectir exaustivamente sobre questões incomodas que raramente são abordadas pelos amigos da Ilha. Tem consciência de que a verdade possível sobre Cuba exige a descida às raízes das contradições da Revolução. Coloca logo de inicio a grande questão: Cuba será um reduto do passado ou o germe de um futuro novo?

A resposta é difícil. Em primeiro lugar porque a tentação é para optar por uma escolha determinada por pressupostos ideológicos. Em segundo lugar porque a realidade cubana não é monolítica. Incompatível com os esquematismos dos apologistas e dos detractores incondicionais, é uma realidade extremamente complexa e contraditória. Cuba é paradoxalmente, ao mesmo tempo, um caso mais de «socialismo real» e uma experiência socialista profundamente original.

O grande desafio da revolução, hoje, é «enfrentar os problemas de sobrevivência sem sacrificar nenhuma das grandes conquistas em termos de solidariedade e justiça social; mais ainda sem renunciar à procura de caminhos» que o processo da «rectificação» tinha desencadeado muito antes da catástrofe (soviética).

Parece fácil, mas foi dificílimo.

Girardi escreveu este livro em 1993 na fase mais aguda do período especial.

Como ele sublinhou, o extraordinário interesse político e teórico do «caso cubano» residia precisamente nesse entrosamento entre resistência e elaboração de alternativas.

Não se tratava apenas de salvar uma experiência revolucionária única. O povo cubano, para sair do túnel, teria de avaliar com rigor o positivo e o negativo da mesma. A questão do «novo futuro» transcendia o quadro caribenho, adquirindo importância decisiva para quantos se interrogam sobre a possibilidade de «uma alternativa à civilização da violência e da morte», envolvendo o sentido do combate político e da própria vida.

Na procura da resposta é impossível iludir o problema das contradições da sociedade cubana.

Girardi aborda o tema com uma coragem e uma lucidez pouco comuns: «Coexistem (...) no pais um debate vivo, critico, participativo e uma estrutura burocrática, vertical, que gera em muitos uma atitude de medo, uma dupla linguagem. E até uma dupla moral (publica e privada)».

O SUJEITO DA REVOLUÇÃO

O teólogo sabe que penetra num terreno delicado ao reflectir sobre a forma como o Partido procura assumir a função social que consta do seu programa. Pretende ser a expressão autentica da vontade popular. Mas «muitos vêem-no mais como órgão de direcção leninista e de controlo do povo». O principio «com a revolução tudo, fora da revolução nada» presta-se na pratica a interpretações diferenciadas.

Segundo Girardi a pergunta «quem é finalmente o sujeito da revolução cubana? enfrenta na pratica duas respostas que não é fácil conciliar: o partido e o povo».

O teólogo italiano conhece bem a Ilha e a sua gente. Chegou à conclusão de que os quadros e militantes do partido têm uma imagem de «integridade moral e autenticidade revolucionaria». Essa realidade não resolve a contradição nascida de um desafio ideológico: o Partido Comunista Cubano apresenta-se como martiano e marxista-leninista, tentando fundir uma concepção do mundo idealista e uma pratica inspirada no materialismo histórico.

Não cabe aqui comentar esse desafio.(3) Mas não é possível compreender Cuba e a sobrevivência da sua Revolução sem uma descida às raízes da contradição.

É «legitimo supor — indaga Girardi — que entre essas inspirações se gera unicamente convergência e complementaridade e não contradição? Por exemplo no que se refere à relação entre pessoa e comunidade, entre revolução e religião, entre partido e Estado, etc».

Do eticismo martiano e do pragmatismo humanista do leninismo o ex-padre salesiano parte para uma reflexão fascinante sobre os efeitos no período especial da teoria e da praxis de ideologias que se interpenetram sem se fundirem totalmente.

É possível que sem a tenaz fidelidade ao eticismo martiano Cuba não tivesse podido sobreviver às consequências da introdução gradual na economia e na vida do pais da lógica do lucro e dos efeitos do funcionamento de certos mecanismos do mercado capitalista. Num discurso pronunciado na União dos Escritores e Artistas, o próprio Fidel aludiu aos estragos provocados no tecido social pela entrada no pais após a derrocada da URSS de uma praga de «bactérias e outros bicharocos» de procedência capitalista.

Significativamente, Fidel – sublinha Girardi – «aparece ao mesmo tempo como o defensor intransigente da unidade e da continuidade da revolução e como o inspirador da autocrítica e da renovação».

Compatibilizar esses objectivos é, na pratica da vida, muito difícil. O debate interno que findou com a supressão do artigo dos Estatutos do Partido que impedia a admissão de militantes não ateus confirmou que determinadas contradições não eram somente teóricas, porque se enraizavam também na consciência de muitos militantes.

Girardi na sua analise da «rectificação» — um importantíssimo e mal conhecido esforço de reflexão critica sobre a Revolução e as suas insuficiências e erros, esforço que precedeu a perestroika soviética e sem afinidades com ela — chama repetidamente a atenção para o facto de no cerne das contradições cubanas se encontrar aquilo que define como «uma contraposição entre modelos de socialismo», um «humanista e popular e outro economicista e autoritário». O primeiro vem da tradição autóctone cubana e especialmente do pensamento de José Marti, de Fidel e do Che. O segundo está vinculado ao modelo europeu de «socialismo real» e foi difundido em Cuba sobretudo a partir dos manuais de marxismo leninismo da Academia das Ciências da URSS.

É nesse capitulo que o trabalho do ex-assessor de João XXIII assume maior interesse. Isso porque o choque dos dois« modelos» marcou e continua a marcar toda a experiência cubana e ajuda a perceber muitas das actuais contradições.

«Esta dialéctica — escreve Girardi — representa em si mesma um profundo pluralismo político e cultural intrínseco à realidade cubana, embora não se expresse em partidos e noutras organizações diferenciadas. Desperta em todas os sectores da vida cubana um debate vivo e uma busca intensa de soluções novas. Em virtude deste debate, a revolução cubana na fase actual pode considerar-se um laboratório para a alternativa, no qual a palavra alternativa não se refere apenas ao sistema capitalista, mas também ao socialista economicista e autoritário».

O teólogo reconhece que os dois modelos influenciaram o processo com os seus valores e erros.

Logo no seu inicio, a Revolução Cubana, quando o cerco imperial começou a tomar forma, foi forçada a opções que implicaram um determinado grau de dependência, nomeadamente da URSS. A sua intima vinculação ao campo socialista, não prevista, não resultou de uma opção ideológica e sim da agressividade imperialista.

A dependência do modelo soviético, que durou uns 15 anos, nunca afogou, contudo, no dizer de Girardi, «a originalidade e a vitalidade da inspiração autóctone. Dependência em primeiro lugar económica e tecnológica, mas também, por conseguinte, política, cultural e ideológica».

Girardi não é neutro. Não esconde, como cristão progressista, a sua preferencia pelo idealismo e eticismo martianos que marcaram os primeiros anos da Revolução.

Os manuais soviéticos — sublinha — favoreceram «a prevalência de um marxismo dogmático, economicista, objectivista, rigidamente ateu e autoritário, que nunca chegou a sufocar o modelo cubano, mas travou seriamente o seu desenvolvimento e influencia».

Cuba foi um pais dependente, mas nunca se transformou num pais satélite, contrariamente ao slogan da propaganda imperialista.

Em prolongadas conversas com Giulio Girardi tive a oportunidade de lhe manifestar por um lado um grande apreço pelo seu livro, como contribuição valiosíssima à compreensão de complexas contradições que assinalam o caminhar tempestuoso da Revolução Cubana, e, por outro, discordâncias importantes sobretudo no que relaciona à temática do relacionamento entre cristãos e marxistas e à sobrevalorização do papel do Che nas grandes opções que determinaram a estratégia da Revolução.

No cerne dos «dois projectos de sociedade — salienta — encontram-se duas concepções do “homem novo” e portanto da educação orientada para o formar. A opção educativa em que desemboca a concepção soviética da revolução, do partido e do Estado é decididamente autoritária: do que se trata é de formar cidadãos e particularmente militantes, submissos, no pensamento e na acção, às orientações do Partido e do Estado. Relativamente à teoria revolucionaria ela pede uma adesão passiva, uma forma de fé. Os métodos da educação libertadora estão proscritos».

Em contraposição, « na perspectiva humanista assume importância decisiva uma educação orientada para promover a afirmação de cada cidadão e de todo o povo como sujeitos, como homens novos, capazes de pensar autonomamente, de decidir livremente e solidariamente, de participar criadoramente na realização do projecto revolucionário».

Desenvolvendo o tema, Girardi coloca o leitor perante as múltiplas contradições entre aquilo a que chama «o marxismo soviético» e o «marxismo cubano». Na sua opinião enquanto o primeiro erige em fundamento do sistema o materialismo dialéctico, isto é uma metafísica materialista e ateia, o segundo insere-se no desenvolvimento criador do pensamento de Marx, valorizando «na visão da historia o papel da subjectividade popular e defende a autonomia relativa da cultura e particularmente da ética com respeito à base económica».

Girardi reconhece que ao tentar iluminar os dois«modelos» não conseguiu evitar um certo esquematismo. Os cristãos revolucionários, sobretudo os adeptos da teologia da libertação, sempre se sentiram atraídos, é um facto, pelo «marxismo martiano», o que nunca aconteceu com o «modelo soviético».

Os reparos que me merece a posição de Girardi são indissociáveis da infinita complexidade da problemática por ele abordada.

Incluo-me entre os marxistas que consideram muito insuficiente a analise histórica da tragédia social que levou à implosão da URSS e à reimplantação na Rússia do capitalismo. Mas desde já se pode afirmar que é um simplismo atribuir ao imperialismo a responsabilidade principal pelo que aconteceu. Aquilo que existia –independentemente de ser uma caricatura do socialismo ideado por Marx e Lénin – era a herança de uma grande revolução que alterou o rumo da humanidade, com consequências, a nível mundial, globalmente muito positivas. Girardi, como outros intelectuais, cai na tentação fácil de subestimar essa herança. E não aflora sequer a questão chave: por que não saiu o povo à rua para defender o «socialismo real?». Na realidade era uma contrafacção do socialismo, mas isso não simplifica as angustiantes questões subjacentes à pergunta.

Uma delas é indissociável da temática do homem novo que tanto apaixona Girardi e que o leva a invocar repetidamente ideias do Che. É hoje obvio que em mais de sete décadas não foi possível construir na URSS um tipo de sociedade em que predominasse o homem novo. A passividade do povo ante o desmantelamento por Gorbatchev do Estado e do Partido e o posterior assalto ao poder de Ieltsin e a emergência da sua mafia vieram confirmar que a sociedade soviética da época era fundamentalmente uma sociedade onde, na aparência invisível, predominava já esmagadoramente o homem velho.

Durante breves períodos, na fase iniciada com a Revolução de Outubro, durante a Guerra Civil e ainda na épica resistência à invasão das hordas fascistas, uma sociedade diferente, mas de contornos ainda indefinidos, permitiu o aparecimento de milhões de cidadãos que respondiam ao perfil do anunciado homem novo. Mas foram sempre uma pequena minoria. A propaganda, tomando a promessa de futuro por presente, proclamou que eles eram a própria imagem da sociedade soviética. Essa ilusão desfez-se em estilhaços quando, no rescaldo do terramoto russo, o homem velho com todos os seus egoísmos, traumas e ambições, irrompeu dos subterrâneos da sociedade, enquanto no Ocidente capitalista se proclamava com jubilo a morte do comunismo.

Era uma euforia prematura que arrancava de uma inverdade. O comunismo não morreu pela simples razão de que ainda não nasceu.

Realistas, os dirigentes da Revolução Cubana demonstram uma lúcida consciência de que ela, na sua luta para sobreviver ao cerco imperialista, não pôde sequer concretizar um projecto socialista de contornos claramente definidos. Sabem que o comunismo é uma aspiração distante, sem data no calendário.

Para Girardi a Revolução, na perspectiva dos marxistas cubanos, seria antes de mais «uma transformação antropológica, cujo eixo é a emergência do povo como sujeito histórico, a instauração do poder popular, a formação de «um homem novo» e de «um povo novo».

O Partido desenvolve – reconhece- uma «severa autocrítica das tendências para a burocratização e prevê mecanismos de democracia interna para a eleição e a renovação dos quadros».

O teólogo constata que o Partido se propõe como objectivo prioritário «promover o povo como sujeito, especialmente favorecendo as diferentes expressões do poder popular». A exigência da não intervenção na administração do Estado aparece como consequência lógica e indispensável dessa opção.

O sistema do «perfecionamiento empresarial», aplicado com extraordinário êxito em mais de 120 grandes empresas, veio demonstrar que a descentralização não é incompatível com a planificação e que a participação dos trabalhadores produz resultados que excedem todas as previsões quando eles sentem como comunistas que assumem na produção o papel de sujeitos e não o de objectos. O partido está alias a desempenhar um papel importantíssimo nessas experiências.(4)

Mas o «perfeccionamiento» apenas atingiu ainda uma minoria de empresas. A passagem dos velhos métodos a outros, que exigem uma mudança de mentalidade, é lenta. O homem velho ainda não desapareceu da sociedade cubana. Escondido, espreita uma oportunidade.

DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO

A rectificação cubana nasceu da consciência de que o modelo económico e político inspirado no «socialismo real» soviético produzira distorções e efeitos negativos que exigiam uma intervenção correctiva. O Estado e o Partido aperceberam-se de que a desejada renovação somente seria possível se o povo a assumisse. Como diz Girardi, os caminhos da renovação teriam de ser abertos «a partir de um amplo e livre debate popular, autocrítico e criador». Desde o inicio ficou transparente que a meta da rectificação não poderia ser o abandono do socialismo, mas, pelo contrario, «o resgate e o aprofundamento da sua inspiração democrática e popular».

Enquanto a perestroika significou a abertura ao capitalismo, a rectificação cubana não surgiu de um balanço globalmente negativo do passado, mas sim da consciência de que era necessário «corrigir, consolidar, aperfeiçoar (...) um processo que de modo algum se quer repudiar». Não se renega a historia recente. A viragem, suave, implica um resgate parcial do projecto original.

De certa maneira assiste-se a uma «refundação» que, na pratica, se apresenta como um compromisso entre dois modelos, tarefa que foi facilitada pelo desmoronamento da URSS.

Paradoxalmente, as condições anormais que tornaram necessárias as medidas drásticas e dolorosas do período especial não constituíram um obstáculo ao aprofundamento da democracia. Contribuíram para o estimular.

Frente ao dogma do liberalismo «fora do capitalismo não há democracia», a revolução cubana — escreve Girardi — assume a responsabilidade histórica de mostrar que somente no socialismo (humanista) é possível o pleno exercício da democracia. Ela está empenhada em realizar a síntese difícil «entre o papel dirigente do partido único e o exercício do poder popular; e também entre a centralização e planificação da economia por um lado e a valorização da iniciativa e do controlo popular por outro».

Os esforços cubanos para que a sua verdade seja se não aceite pelo menos compreendida na Europa e nos EUA continuam a esbarrar com uma dificuldade quase insuperável. Sei por experiência própria que mesmo muitos amigos de Cuba, modelados por um universo cultural para o qual os aspectos institucionais da democracia prevalecem sobre os que resultam do funcionamento do sistema, ou seja sobre os económicos e sociais, identificam na existência do partido único um mal que, por si só, impediria o povo de Marti de ser autenticamente livre. Essa atitude foi sintetizada pelo escritor nicaraguense Sergio Ramirez na afirmação de que o fundamental seria a conquista da democracia sem adjectivos, isto é da superestrutura institucional da democracia representativa. O resto viria depois. Acontece que a «representatividade» nas democracias capitalistas é ficcional e o resto é quase tudo...

A «dialéctica interna ao socialismo e ao próprio partido comunista da qual iluminamos antes o conteúdo e a importância — lembra oportunamente Giulio Girardi — representa sem duvida uma forma de pluralismo muito mais efectiva que os pluripartidarismos das democracias liberais, por exemplo a norte-americana».

Cinco anos de residência em Cuba permitiram-me conhecer em profundidade as insuficiências, as muitas mazelas, os grandes problemas que a Revolução Cubana enfrenta hoje na sua luta épica para sobreviver ao cerco imperialista, mais exactamente à guerra não declarada que lhe move o sistema de poder dos EUA.

Significativamente não são esses problemas — alguns ideológicos, muito complexos e inseparáveis da desigualdade social gerada pela polarização e a inserção no mercado mundial — que encontramos analisados com um mínimo de seriedade no discurso anti-cubano difundido pelos media internacionais.

O primarismo intelectual, o fanatismo, e o ódio irracional continuam a ser o combustível de campanhas que insistem em apresentar o povo cubano como vitima de uma ditadura anacrónica, dirigida com pulso de ferro por Fidel Castro.

Daí a utilidade de livros como o de Giulio Girardi, um teólogo humanista e sábio cuja lúcida e polemica reflexão sobre a Revolução Cubana confirma em primeiro lugar uma evidencia muito esquecida: Cuba continua a ser um efervescente laboratório social e ideológico.

E Fidel?

Contrariamente ao que imagina a maioria dos jornalistas europeus e norte-americanos, o tema da sucessão de Fidel que constitui quase uma obsessão para eles não é assunto do debate político entre os cubanos. Não por desinteresse pelo futuro da Revolução.

O próprio Fidel abordou em diferentes ocasiões a questão. Os cubanos, no quotidiano, não trazem o tema à conversa sobretudo por um motivo que escapa à argúcia dos analistas de Washington, Paris ou Lisboa.

Sabem que a recuperação quase miraculosa da economia cubana – nos últimos cinco anos Cuba foi o pais que em media mais cresceu na América Latina – resultou do esforço conjugado de dirigentes e quadros forjados pela Revolução e da participação do povo como sujeito, do consenso, da sua vontade de resistir e da certeza de que era possível. Alguns desses homens, como Carlos Lage, eram crianças quando se lutava na Sierra Maestra, ou não haviam nascido, como Felipe Perez Roque, o actual ministro dos Negócios Estrangeiros. A existência dessas gerações é em si mesma a melhor garantia de continuidade revolucionaria.

Mas, paralelamente, qualquer cubano, está consciente da lei da vida. Fidel tem 75 anos, é um ser mortal como qualquer outro. O povo de Cuba terá de prosseguir um dia a sua maravilhosa aventura colectiva sem a presença à frente do Estado e do Partido do dirigente que, desafiando a lógica aparente da historia, lhe mudou o rumo na Ilha, e não só.

Aí intervém a consciência do factor subjectivo na Historia. Apareceram ao longo dos séculos, para o bem da humanidade, ou para o mal, personagens irrepetíveis. Fidel foi uma delas.

Os cubanos sabem que não haverá outro Fidel. E é isso que lhes dói e torna incomodo e doloroso o tema da chamada sucessão. Porque o amam profundamente.

Havana, Agosto de 2001


Notas de rodapé:

(1) Giulio Girardi (Cairo, Egipto, 1926). Filósofo e teólogo da libertação. Pensador e militante comprometido com os processos de transformação e as lutas dos povos na América Latina. Concretamente com os processos da Nicarágua, Cuba, Chiapas e com as lutas do movimento indígena. Membro do Tribunal Permanente dos Povos. Dentre os seus escritos destacam-se:
-Sandinismo, marxismo, cristianismo: la confluencia (1987);
-Revolución popular y toma del templo. El pueblo cristiano de Nicaragua en las barricadas (1989);
-La túnica rasgada (1991);
-La conquista ¿con qué derecho? (1992);
-Los excluidos ¿construirán la nueva historia?
-El movimiento indígena, negro y popular (1994);
-El templo condena el Evangelio (1994);
-El derecho indígena a la autodeterminación política y religiosa (1997);
-Globalización neoliberal, deuda externa, jubileo 2000 (1998);
-Desde su propia palabra. Los indígenas, sujetos de un pensamiento emergente (Quito, 1998);
-El ahora de Cuba, tras el derrumbe del comunismo, tras la vista del Papa (1998).
-Máscaras de poder, rostros para la liberación. (Montevideo, 1999) (retornar ao texto)

(2) Giulio Girardi, Cuba después del derrumbe del comunismo, Ed Nueva Utopia, Madrid, 1994. Existe uma edição cubana, ampliada, do Centro Martin Luther King, de Havana. (retornar ao texto)

(3) Em 1997, na revista «Princípios», do Partido Comunista do Brasil, publiquei um ensaio dedicado ao tema do Marxismo-Martiano. (retornar ao texto)

(4) Isabel Rauber, Romper el Cerco, Ediciones Sociales, La Habana, 2001 (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021