Do renascimento do movimento comunista à revolução na Europa

Miguel Urbano Rodrigues

5 de agosto de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


As grandes rupturas revolucionárias produziram-se no desenvolvimento de crises globais muito profundas que punham em causa a continuidade do sistema de exploração existente. Isso aconteceu com a Revolução Francesa de 1789 e com as Revoluções Russas de 1917. Lenine definiu essas situações limites numa máxima que ficou famosa: «quando os de baixo não querem mais ser governados como antes, quando os de cima não podem mais governar como antes, então abre-se uma época de Revolução social».

Neste limiar do século XXI assistimos precisamente ao agravamento da contradição entre a apropriação privada por uma insignificante minoria das riquezas produzidas e a socialização crescente da produção. Nunca a desigualdade entre os homens foi tão ampla e chocante como hoje. As trágicas consequências do funcionamento dos mecanismos da globalização neoliberal estão a gerar um movimento de repudio mundial do sistema que encontrou expressão no lema do Foro Social Mundial: outro mundo é possível.

Entretanto, os responsáveis pela mundialização do capital financeiro e do sistema de exploração por ele gerado proclamam que a era das revoluções findou. Um obscuro funcionário do Departamento de Estado dos EUA condensou essa convicção num livro – O Fim da Historia – segundo o qual a vitoria do capitalismo dito liberal seria definitiva, impossibilitando futuras revoluções.

Não obstante a cada ano, quase a cada dia, a crise do capitalismo se agravar numa demonstração da sua inviabilidade, uma campanha de âmbito mundial sustenta que, tendo «o socialismo real» fracassado e sendo doravante a revolução social uma impossibilidade absoluta, não restaria à esquerda outra opção que não fosse a de lutar por reformas do «capitalismo real».

Essa campanha desenvolve-se em múltiplas frentes através de discursos diferenciados. Persuadir os que rejeitam a globalização neoliberal de que o socialismo não passa de uma utopia, sendo prova disso a desagregação da URSS, é um objectivo permanente identificável na estratégia dos teólogos do neoliberalismo que colocam o mercado acima do Estado, sacralizando-o.

Outro denominador comum na ofensiva que visa a confundir e desmobilizar as forças progressistas encontramo-lo no esforço da direita para destruir por dentro os partidos revolucionários.

é um esforço que vem de longe. As suas raízes mergulham no trabalho realizado no inicio do século passado para recuperar a social democracia alemã quando ela tinha um programa marxista e um rumo revolucionário, e para dividir e neutralizar o POSDR russo. Nas teses de Bernstein, na guinada à direita de Kautsky e dos austro-marxistas, na condenação do espirito internacionalista de Zimmerwald, no apoio aos mencheviques e aos socialistas revolucionários russos durante a Revolução de Fevereiro encontramos precedentes de fenómenos e comportamentos que ajudam a compreender as viragens que levaram ao browderismo nos EUA, à metamorfose do Partido Comunista Italiano, transformando-o num elo importante do sistema capitalista, e fizeram do Partido Comunista Francês um dócil instrumento da engrenagem de poder da burguesia francesa.

Num lúcido ensaio que resistir.info publicará em breve, o filósofo comunista francês George Gastaud(1) ilumina bem as campanhas anticomunistas que criminalizam as experiências nascidas da Revolução de Outubro com o objectivo prioritário de incutir nos espíritos a ideia de que a dominação planetária do capitalismo se tornou irreversível. «As coisas — escreve — chegaram a tal ponto que aqueles que continuam a identificar-se com a Revolução, a classe operaria, Outubro de 17 ou a Comuna de Paris são acusados de arcaísmo e conservadorismo, quando não os colocam no índex pelo seu apego ao 'ao regime mais reaccionário da historia' (sic), segundo Stephane Courtois: o regime soviético».

Quando os comunistas são caluniados pelos dirigentes do seu próprio partido por serem comunistas, como acontece em França, é preciso reconhecer que esse partido como organização política rompeu com os princípios e valores do marxismo e foi transformado num instrumento da burguesia, independentemente do sentir da maioria dos seus militantes.

A critica profunda das causas da implosão da URSS e do apodrecimento progressivo do PCUS está por fazer. Mas o reconhecimento e a condenação dos erros, desvios e crimes cometidos em nome no comunismo não implica de modo algum a aceitação do revisionismo histórico que faz do antisovietismo e do antileninismo o principal cimento ideológico dos defensores de uma «renovação» dos partidos comunistas concebida para os transformar em social democratas (a serviço do neoliberalismo).

A confusa mas frenética teorização sobre a morte das ideologias que a pretexto de diabolizar a União Soviética criminaliza globalmente todas as revoluções e a própria ideia de Revolução tornou-se uma componente da ofensiva anticomunista desenvolvida pela burguesia no seu apoio àqueles que, afirmando estar empenhados na «renovação» dos partidos comunistas, preconizam na pratica «mudanças» que levariam à sua destruição. O entusiasmo com que a comunicação social saúda – em Portugal, por exemplo – as campanhas dos «renovadores comunistas», estabelecendo uma fronteira entre os bons e os maus comunistas, é por si só esclarecedor do que os partidos da direita esperam da «modernidade comunista».

A satanização do comunismo e da sua historia — como sublinha Georges Gastaud — «permite hoje criminalizar progressivamente toda a resistência a essa nova ordem mundial estadunidense que é precisamente o fruto venenoso da contra-revolução. Não chegou então a hora para aqueles que querem seguir o caminho revolucionário de denunciar em conjunto essa revisão da história que suja as revoluções de ontem para melhor «vacinar» a jovem geração contra as revoluções de amanhã?»

Os marxistas europeus que não reagem à criminalização da Revolução de Outubro, e aceitam passivamente «o escandaloso amalgama mediático universitário entre fascismo hitleriano e socialismo real » estão, sem o perceber, a abrir caminho ao avanço dos partidos da extrema direita.

A cavalgada neofascista na Itália, na Holanda, na áustria confere actualidade ao ensinamento de Politzer: «o espirito critico, a independência intelectual não consistem em ceder á reacção, mas sim em não ceder».

Gastaud recorda uma evidencia esquecida: «todas as capelas do anticomunismo somente censuraram, a bem dizer, uma única tara a Lenine: a sua vitoria ; um só erro à ditadura do proletariado: a expropriação durante varias décadas das classes possuidoras, despossuídas pela populaça ».

Reagan vulgarizou a expressão «o império do mal» para anatemizar a URSS. Com os olhos postos no império, esquecemos que André Glucksmann, um dos «novos filósofos franceses», então adulado por esquerdistas, soltou um brado necrófilo quando os EUA instalaram na RFA os mísseis Pershing: «antes mortos do que vermelhos», e Mitterrand, um presidente que dizia ser socialista, apoiou aqueles para os quais pela «defesa dos valores ocidentais» valia a pena arriscar o desaparecimento da humanidade numa guerra nuclear contra a URSS.

RENASCIMENTO DO MOVIMENTO COMUNISTA INTERNACIONAL

O ensaio de Georges Gastaud é simultaneamente um trabalho didáctico e uma reflexão sobre a história que desemboca no esboço de um projecto estratégico.

Parte do seu estudo é dedicado à temática da luta de classes no mundo contemporâneo e à necessidade do renascimento do Movimento Comunista Internacional .

Pela densidade do seu pensamento qualquer resumo empobrece os conceitos expostos. Afigura-se-me, entretanto, útil recorrer a algumas transcrições de parágrafos em que aborda a questão da luta de classes depois de sustentar que os conceitos fundamentais do marxismo e do leninismo não foram superados pela contra Revolução e surgem, pelo contrario, como indispensáveis para procedermos à sua analise.

«Na aparência — escreve — a luta de classes ficou atrás . Na aparência, a classe operária minguou e não está mais em condições de dirigir a resistência ao capitalismo. Na aparência o enfrentamento capital-trabalho perde o seu papel central em beneficio dos problemas «societais». Na aparência a «forma-partido» perde a sua justificação em beneficio do «movimento associativo», da acção humanitária e da «sociedade civil». Mas, precisamente, o papel do marxismo consiste em ajudar a superar as aparências enxergando os processos históricos que não são visíveis .

«Assim a respeito da classe operária. Claro que se a definirmos como o conjunto dos trabalhadores manuais assalariados e activos, isto é, a partir de características mais empíricas do que cientificas, ela parece derreter-se ao escuro sol das deslocalizações e da informatização da produção. Mas se incluirmos na classe dos trabalhadores assalariados todos aqueles que contribuem directamente à produção da mais valia capitalista, quer em acto quer potencialmente, se reconhecermos o caracter simultaneamente nacional e internacional dessa classe, se levarmos em conta a diversificação do trabalho produtivo moderno (que penetra os serviços e abrange uma parcela crescente do trabalho intelectual), se não esquecermos nem os operários reformados, nem os jovens das escolas técnicas, nem os operários imigrados, legais e clandestinos, nem a massa dos que procuram emprego e dos «temporários», candidatos a tarefas de circunstancia, se não esquecermos também o numero cada vez mais importante dos operários da industria e dos estaleiros, dos transportes, da energia e das telecomunicações, então a classe proletária na acepção marxista da palavra continua a ser politicamente decisiva na população dos países industrializados, o que é ainda mais evidente em escala planetária.

(...)« O verdadeiro problema consiste então menos em «relançar a luta de classes» do que permitir que ela se expresse de maneira justa e adequada, unindo todos os explorados (de um pais, de um continente, do mundo inteiro) contra a minoria cada vez mais reduzida dos multimilionários exploradores. Aliás, acontece por vezes, sobretudo quando a classe capitalista e o seu Estado são obrigados pela pressão internacional a fazer frente à classe trabalhadora no seu conjunto, que todos os trabalhadores, ou pelo menos um numero significativo deles, entrem «em conjunto» na luta: foi o que ocorreu em França em Maio de 68, ou, em menor grau, em Dezembro de 95, quando Juppé, forçado a intervir contra os défices da Segurança Social por Helmut Kohl e os ayatollahs da moeda única, golpeou simultaneamente as conquistas dos ferroviários e a Segurança. é isso que poderá acontecer com o governo Raffarin, intimado já por Bruxelas a «tomar medidas» contra o serviço publico de energia e certas reformas. Tudo isso somente reforça a necessidade de uma autentica vanguarda capaz de federar as lutas «visando» o inimigo principal, o grande capital. é esse défice de vanguarda que hoje vivemos onde os partidos da esquerda plural e os seus micro-satélites erráticos do trotsquismo demonstram ser incapazes de abrir uma perspectiva aos trabalhadores do sector privado e do publico, sejam eles activos, reformados ou desempregados, franceses ou imigrados».

Da sua análise do desastre soviético e dos processos usados por Gorbatchev para destruir na URSS o Estado e o Partido, o pensador comunista francês conclui que o desenvolvimento da história, longe de demonstrar a superação do marxismo, confirma, tal como o rumo da Europa de Maastricht, a modernidade do instrumento materialista e dialéctico forjado pela filosofia marxista.

«A mundialização capitalista -- afirma -- gera objectivamente para a humanidade uma solidariedade de destino. O exterminismo que constitui uma tendência dominante do imperialismo contemporâneo com as suas múltiplas dimensões que ultrapassam de longe a componente militar, faz do capital financeiro, que actualmente parasita o conjunto das actividades humanas, o inimigo comum de toda a humanidade. Longe de diminuir o papel do combate de classe confere-lhe, pelo contrario, um alcance universal sem precedentes. O comunismo não é somente necessário para emancipar a classe trabalhadora; se a irresponsabilidade do capital conduz às piores loucuras militares, sanitárias, alimentares, ecológicas, o combate anticapitalista está no cerne de todo compromisso consequente contra a morte e a desumanização da humanidade».

A UNIãO EUROPEIA E O RENASCER DO PROJECTO REVOLUCIONáRIO

Um olhar sobre o mundo hegemonizado pela globalização imperialista revela-nos um panorama que traz à memória o principio dialéctico da unidade dos contrários. As forças em presença, incompatíveis pelos seus objectivos, estão separadas por uma barricada de classe. De um lado temos -- como sublinha Gastaud -- «o mundialismo imperialista e os seus subprodutos reaccionários, os nacionalismos, racismos e outros integrismos; do outro o patriotismo dos povos que defendem a sua soberania e um internacionalismo proletário de nova geração solidário contra o adversário comum dos assalariados da Europa e do mundo».

A rejeição cada vez mais ampla e generalizada do monstruoso modelo de sociedade que os de cima, os exploradores, pretendem impor aos de baixo, os explorados, perpetuando-o, empurra a humanidade para uma confrontação inevitável. De Seattle ao Foro Social Mundial de Porto Alegre o clamor do protesto assumiu proporções mundiais, tal como o da esperança, condensada no lema «Outro mundo é possível».

Perante a pujança dessa autentica rebelião dos povos, Georges Gastaud lembra-nos que o renascimento do Movimento Comunista Internacional se apresenta quase como uma exigência da historia. Não se trata apenas de suprir a falta de organicidade que marca a resistência universal à globalização imperial. Na sua opinião somente ele «poderia imprimir ao magnifico movimento anti-globalização da juventude uma orientação anticapitalista e antimperialista (...) Esse renascimento comunista internacional deveria articular-se com as resistências nacionais dos povos ao imperialismo (da Palestina às FARC da Colômbia)».

Os parágrafos mais importantes do ensaio de Gastaud são aqueles em que estabelece a ponte entre a necessidade desse renascimento comunista e o papel que ele desempenharia no combate à tirania de um modelo imperial que ameaça a humanidade, e a formulação de uma estratégia capaz de mobilizar para a luta as vitimas do sistema, a massa imensa de proletários de novo tipo, hoje majoritária no planeta.

Gastaud é um pensador austero, incompatível com o discurso sensacionalista. Entre muitos outros méritos tem o de ser um criador no plano das ideias. Não procura a originalidade, mas inova na busca daquelas opções que, por múltiplos motivos, se apresentam como aparentemente impossíveis, mas que, com frequência, -- como dizia o nicaraguense Carlos Fonseca -- contribuem para o avanço da história.

O debate suscitado pela procura de alternativas para o capitalismo tende para a estagnação. Existe consenso no tocante à condenação da globalização imperial. Mas quando se entra na discussão das saídas para a crise global as respostas são insatisfatórias. Divergem nos matizes da fórmula. Mas quase todas admitem tacitamente que o inimigo, pelo seu enorme poder, não pode, ser derrotado. As alternativas propostas oscilam, por isso, entre a tímida reforma do sistema e iniciativas orientadas para o reformismo revolucionário.

Gastaud não teme ser criticado como cavaleiro da utopia: defende a ruptura. O sistema é insusceptível de ser reformado em beneficio das suas vitimas; terá de ser destruído.

Como?

O filósofo não generaliza. A ruptura, tal com a concebe, seria a resultante de múltiplas acções diversificadas no espaço e no tempo cujo efeito cumulativo desembocaria numa crise geral à qual o sistema não poderia sobreviver.

Como francês, o seu primeiro campo de luta é a Europa dos 15 e nela o seu pais. Para ele o grande desafio da classe operaria francesa é assumir a direcção do «movimento de convergência popular majoritário contra a Europa de Maastricht não para «reorientar a Europa num sentido progressista» como aspiram os adeptos da «mudança» (de Robert Hue) e muitos ideólogos do trotskismo, mas sim para romper com os Tratados de Maastrich, Nice, Amsterdão, com a moeda única gerida pelo Banco de Frankfurt e com o exército profissional europeu comandado pela NATO».

é gigantesco o desafio. Gastaud sugere nada mais nada menos do que um combate orientado para a ruptura da França com a União Europeia. Não o afirma expressamente, mas ele tem consciência de que a Europa Comunitária sem a França seria inviável. Quando propõe a revogação das leis racistas francesas e europeias, o direito de voto aos trabalhadores estrangeiros, «a defesa das culturas nacionais dos povos da Europa contra a americanização das línguas, dos estômagos, dos corações e dos cérebros, está consciente de que a luta pelo desmoronamento das altas muralhas erguidas pela UE, autentica Santa Aliança do capital, seria, afinal, uma luta de contornos insurreccionais rumo à revolução social.

O combate que antevê passa, obviamente, pelo renascimento do Partido Comunista Francês.

O desmoronamento da União Europeia implicaria uma derrota esmagadora do capitalismo. Os EUA não poderiam tirar benefícios desse terremoto social, político e económico. Gastaud esboça uma estratégia de choque, de transparente conteúdo revolucionário.

Os grandes media franceses ignoraram o polémico trabalho de Georges Gastaud. Mas esse silencio não lhe apaga o significado. Estamos perante um ensaio lúcido que convida à reflexão sobre a historia, sobretudo aqueles para quem -- é o meu caso -- a era das revoluções não findou.

O capitalismo não desaparecerá através de reformas.

A própria escalada da estratégia de dominação planetária do imperialismo norte-americano, ao deixar entrever já o rosto medonho de um fascismo colonial de novo tipo, tende pela sua irracionalidade e agressividade a abrir fissuras nas paredes da fortaleza capitalista .

A Revolução é sempre a luta pelo impossível aparente. Foi a sua transformação em possível real que, em momentos decisivos, fez avançar a Humanidade.


Notas de rodapé:

(1) Georges Gastaud, Refondation Reformiste ou Renaissance Communiste? - trabalho escrito para a Editorial Le Temps des Cerises, Paris, Verão de 2002. O sítio web http://www.chez.com/initiativecommuniste/ contem outros textos do autor. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2021