Intervenção em Florença, no Fórum Social Europeu

Miguel Urbano Rodrigues

10 de novembro de 2002


Fonte: https://www.resistir.info/mur/firenze.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Amigos e Companheiros

Falar da América Latina é sempre um desafio. Na Europa a expressão engana. A América Latina constitui uma diversidade. Diferenças abissais, económicas e culturais, separam países vizinhos como a Argentina e a Bolívia, tal com o Brasil e o Paraguai.

Dois denominadores comuns aproximam os povos no espaço latino-americano: as línguas da colonização — sobretudo o espanhol e o português o francês e o inglês somente são falados nas Caraíbas ) — a dominação imperialista.

Tal como acontece em grandes áreas do mundo muçulmano onde o árabe funciona como instrumento de aproximação dos povos, os idiomas ibéricos contribuem poderosamente para uma fraternidade de sentimentos, atitudes e aspirações que, fecundada nos Andes e na Mezoamerica pela herança das antigas culturas precolombianas, faz da América Latina um universo cultural inconfundível, simultaneamente heterogéneo e solidário.

Neste inicio do século XXI o peso crescente e dramático da dominação dos EUA — económica, política e militar — constitui o outro elemento fundamental que contribui para a formação de uma consciência social latino-americana antimperialista.

Nunca como na actual crise global de civilização a América Latina sofreu tão duramente as consequências da imposição de um modelo predatório que, sugando a riqueza produzida, condena os seus povos ao subdesenvolvimento permanente, atribuindo-lhes o papel de trabalharem para o agigantamento da potência hegemónica como escravos de novo tipo.

Os efeitos dessa política são devastadores. Mas, embora a pobreza alastre, a saúde e a educação se degradem, o desemprego aumente, a violência e a corrupção atinjam níveis alarmantes, os EUA insistem na aplicação do modelo neoliberal para a América Latina concebido pelo seu sistema de poder, mas definido como desfecho do mal chamado Consenso de Washington.

Não vou aqui apresentar números que confirmam a gravidade da catástrofe económica e social da América Latina no limiar do novo milénio. Divulgadas por organismos internacionais, essas estatísticas são amplamente conhecidas.

Afigura-se-me mais útil chamar a atenção para alguns aspectos fulcrais da crise e proceder a uma reflexão breve sobre o significado de importantes acontecimentos em curso no Hemisfério. Muito diferentes pela sua natureza, esses acontecimentos são inseparáveis do funcionamento do modelo imposto e inserem-se num confronto global.

Desta janela do Foro Europeu de Florença aberta para a América Latina o meu olhar vai deter-se especialmente no Brasil, na Venezuela, na Argentina e na Colômbia. Digo especialmente porque a interligação dos factos é tão densa e complexa que o convite à reflexão obriga, para aprofundamento do debate, a transpor paralelos e meridianos e a viagens pelo tempo.

No cerne de cada uma das situações de crise e do desejo de viragem encontramos a questão básica do Poder. Não se pode tentar a transformação de uma sociedade, qualquer que ela seja, sem definir uma atitude perante o poder existente. Como encarar hoje o papel do Estado?

Essa é uma questão polemica que na América Latina — mais ainda do que na Europa — suscita intenso debate. Da natural ausência de consenso nas respostas resultam perspectivas e conclusões muito diferentes.

Independentemente da maior ou menor autonomia do estado nacional (ou da sua caricatura) perante a potência imperial, no caso os EUA, as forças que na América Latina se mobilizam em torno do lema consensual do Fórum de Porto Alegre, «Outro mundo é possível», são, pela própria dinâmica da luta contra o neoliberalismo, tentadas a definir estratégias que possam aproximá-las do objectivo, ou seja uma sociedade menos cruel e desumanizada do que a actual.

Mesmo no quadrante das forças que não colocam a questão da necessidade da destruição do Estado burguês, isto é, do estado imperializado, duas tendências principais se manifestam na América Latina. Uma delas, de que é paradigma a teorização zapatista, secundariza a questão do poder. A problemática da participação é tratada numa perspectiva que autonomiza o combate político. A ideia de que seria possível construir-se um mundo novo, debaixo para cima, sem tomar o poder, contida no discurso e nos apelos do subcomandante Marcos, encontrou grande receptividade em meios incompatíveis com a luta política organizada. A tentação de um espaço de anti-poder fascina sobretudo intelectuais académicos e jovens atraídos pelo neo-anarquismo.

A outra tendência reformadora da sociedade encontra na América Latina expressão em forças, partidos e movimentos para os quais o caminho para a mudança, para a humanização da vida, terá de passar inevitavelmente pela conquista, através de eleições democráticas, do poder político. Por outras palavras, as instituições existentes seriam o instrumento que permitiria substituir gradualmente o sistema de opressão e exploração vigente por outro, antagónico, em beneficio das grandes maiorias.

Na Venezuela, com Hugo Chavez, e no Brasil, com Lula, temos hoje na Presidência dois lideres carismáticos que, eleitos no quadro das instituições existentes, com o apoio das massas populares e a sua participação decisiva no processo transformador, afirmam ser possível atingir esse objectivo.

O desfecho sangrento da via pacifica para o socialismo no Chile permanece vivo na memória dos povos da América Latina. Hoje noutro contexto histórico, os presidentes do Brasil e da Venezuela, usando discursos diferentes, traduzindo formações, bases sociais de apoio também muito diferentes, não colocam sequer o socialismo como meta.

O DESAFIO DE CHAVEZ

Hugo Chavez assumiu a Presidência numa situação muito favorável. Em sucessivas eleições obteve maiorias esmagadoras que tornaram possível a aprovação da Constituição mais progressista do Continente. Numa fase inicial as Forças Armadas desempenharam um papel protagónico na nova Administração, participando em sectores-chave do Estado do processo de transformações estruturais. Chavez acreditava que essa disponibilidade seria permanente, envolvendo o conjunto da instituição militar. Tal não aconteceu. O golpe de 11 de Abril, organizado com a cumplicidade de um grupo de generais que gozava da confiança do Presidente, veio confirmar a velha tese segundo a qual uma parcela importante do corpo de oficiais de um exercito tradicional num estado capitalista se mantém permeável às pressões e apelos da burguesia quando a situação económica se degrada, passando rapidamente da defesa de um projecto de contornos revolucionários a uma atitude de desencantamento, deixando-se envolver em manobras golpistas.

O golpe foi derrotado em circunstancias que são bem conhecidas. Mas transcorridos sete meses, as forças da oligarquia venezuelana com o apoio ostensivo do imperialismo não renunciaram ao projecto golpista. Mudaram de táctica, mas exigem a renuncia do presidente e eleições antecipadas, tripudiando sobre as instituições que proclamam defender.

A atitude assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça, negando-se a julgar como golpistas os generais que dirigiram o putsch do 11 de Abril coloca-nos perante as altíssimas barreiras que a chamada «revolução bolivariana» encontra na rota da transformação da sociedade no quadro institucional. É, alias significativo que 35 partidos social democratas da América Latina, do Caribe e da Europa, reunidos em Caracas em Julho pp. tenham expressado o seu apoio aos partidos e grupos da frente golpista Coordinadora Democratica. O secretário-geral da Internacional Socialista levou durante a visita a hipocrisia ao ponto de qualificar o golpe de «simples manifestação pública de massas de dissidência democrática».

As grandes manifestações de Outubro em Caracas, contra o governo de Chavez e em defesa do projecto por ele simbolizado, vieram chamar a atenção do mundo para a tensão que a luta de classes atinge no pais. O povo da periferia inundou a capital solidário com o seu Presidente. A esquerda mobilizou três ou quatro vezes mais gente do que a direita. Mas esses confrontos não foram decisivos. Nem o fracasso do lock out de 21 de Outubro.

Ao modelo da democracia classista da democracia representativa tradicional, o chavismo opõe o de uma democracia participativa na qual o povo seja, pela sua intervenção protagónica, o sujeito da história.

Mas Chavez não conseguiu ate agora definir com clareza que tipo de sociedade poderia resultar do seu projecto bolivariano e qual a estratégia a adoptar para a sua concretização.

O Foro Social de Caracas, apresentado como capitulo do Foro Social Mundial de Porto Alegre, deixou sem resposta essas questões fundamentais. Duas tendências emergem: uma delas parte do principio de que a «democratização e humanização do capitalismo» é possível. O filipino Waldo Bello, do Conselho Internacional do Foro Social Mundial, admite que a luta dos povos pode conduzir a um «capitalismo respeitador do direito de autodeterminação solidária dos homens e dos povos».

Essa tese continua a perder adeptos entre as forças progressistas da América Latina. No caso venezuelano, a revolução dita bolivariana seria virtualmente anti-capitalista, mas, como diz o sociólogo e teólogo italiano Giulio Girardi, a busca de uma sociedade alternativa não passaria por uma ruptura, exigindo uma longa caminhada transformadora.

O velho debate em torno da vanguarda volta a assumir, assim, na Venezuela uma grande actualidade. O Movimento V Republica não demonstrou ainda capacidade para cumprir as tarefas para as quais foi criado. Ao relançar os Círculos Bolivarianos como germe de um futuro partido, Chavez demonstrou ter consciência de que sem uma organização revolucionaria com estrutura partidária não existe resposta eficaz à ofensiva permanente das forças da direita e do imperialismo. Mas essa organização tarda em aparecer. A dependencia do líder carismático é, alias, uma das fragilidade do processo.

Prever o que vai acontecer na Venezuela nos próximos meses é um exercício de futurologia que recuso. A conspiração golpista vai prosseguir e recorrerá a todos os meios para atingir o seu objectivo: derrubar Chavez e restabelecer em Caracas um governo títere.

A solidariedade com o governo de Hugo Chavez é assim um dever militante para todos quantos no mundo e sobretudo em Foros como este se batem contra o neoliberalismo e o imperialismo.

LULA

A vitoria de Lula foi recebida em todo o todo o mundo com entusiasmo pelas forças progressistas. A alegria justifica-se. Numa época em que o imperialismo estadunidense se encontra em plena escalada, impondo governos e políticas neoliberais a dezenas de países do Terceiro Mundo e ameaçando a humanidade com uma nova guerra, o povo brasileiro elegeu um presidente que se propõe a lutar contra a desigualdade social, a fome, o desemprego, a promover a reforma agraria e, rompendo os mecanismos da globalização neoliberal, fazer do Brasil uma nação plenamente independente.

Pela primeira vez na historia do pais, chega à Presidência um cidadão que não pertence às elites. Lula da Silva é um operário metalúrgico com um passado de lutador pela causa do seu povo que inspira um enorme e merecido respeito.

A sua vitória sobre o candidato do sistema expressa numa diferença de vinte milhões de votos traduziu a profundidade do descontentamento popular e a esperança de mudança.

Mas seria uma ingenuidade admitir que o novo Presidente entra no Palácio da Alvorada em condições de atender desde o inicio do mandato às aspirações daqueles que o elegeram, sintetizadas no seu programa de governo.

Lula tem pela frente uma tarefa ciclópica. As forças da direita e Washington já começaram alias a armadilhar o caminho que ele vai pisar no trimestre que o separa da tomada de posse como Presidente.

Numa democracia latino-americana de estrutura presidencialista não é indiferente que o presidente seja um procônsul dos EUA ou um político patriota e progressista. Mas a historia recente da América Latina apresenta-nos exemplos preocupantes das dificuldades que Lula enfrentará. As instituições criadas pela burguesia foram concebidas para servir aos seus interesses e objectivos. A democracia representativa de fachada democrática, ideada na Europa, exclui a participação popular. Não serve para introduzir na sociedade transformações profundas do sistema incompatíveis com a lógica do seu funcionamento. É um instrumento do capitalismo e não uma alavanca para a sua destruição. As lições do Chile e o rumo dos acontecimentos na Venezuela convidam à reflexão sobre os limites da via institucional quando um governo progressista se propõe introduzir na sociedade reformas de conteúdo revolucionário, ou seja desenvolver uma política de justiça social que passaria inevitavelmente pela destruição dos privilégios da oligarquia levando à formação de uma nova estrutura de classes.

A esmagadora superioridade que Hugo Chavez conquistou em sucessivas eleições não lhe garantiu no quadro institucional as condições para a transformação da sociedade. Mediante uma ofensiva permanente e hábil, a oposição conseguiu minar-lhe a base de apoio parlamentar, introduziu cisões em partidos e movimentos que o apoiavam, conquistou nos Estados a adesão de governantes e quadros que ocupavam cargos importantes, utilizou o sindicalismo amarelo para confundir sectores da pequena burguesia, mobilizando-os contra o governo. Mais grave ainda pelas suas consequências foi a acção divisionista desenvolvida nas Forças Armadas. Oficiais generais que gozavam da total confiança de Chavez tiveram papel destacado na organização do golpe de Abril. Em Outubro, após o fracasso do lock out , voltaram a desafiar. Os oficiais no activo que se apresentam de uniforme na Praça Altamira e dali lançam apelos insurreccionais comportam-se como golpistas.

No caso do Brasil, Lula não disporá no futuro Congresso de uma maioria que lhe permita fazer aprovar as reformas estruturais que anuncia. Terá de negociar apoios sobretudo para a obtenção de maiorias qualificadas exigidas, por exemplo, para a desmontagem do latifúndio. Não serão fáceis as relações do novo governo com o Movimento dos Sem Terra, não obstante os seus membros serem tradicionais apoiantes do PT e terem votado maciçamente em Lula. Num pais onde existe um latifúndio maior do que a Bélgica e onde são numerosas as propriedades fundiárias com milhares de quilómetros quadrados, o esforço para cumprir a promessa eleitoral de concretizar a Reforma Agraria obrigará o presidente a uma batalha permanente e duríssima. Para se avaliar a dimensão do desafio é útil recordar que os oficiais que há sete anos comandaram no Pará a matança de camponeses Sem Terra de Eldorado de Carajás foram absolvidos ou continuam em liberdade.

Lula chegou à Presidência sustentado por uma coligação muito heterogénea. Ao lado do Partido Comunista do Brasil, força revolucionaria com uma trajectória de lutas épica, contou com apoios de sectores empresariais com mundividências muito diferentes da sua. No próprio PT o desejo de mudança não implica uma convergência de objectivos.

O desenvolvimento da campanha, marcado por um discurso cauteloso e por vezes contraditório, explica perspectivas diferentes, no campo imperialista sobre a política do próximo governo. O Financial Times , de Londres, num editorial elogioso, falou por aqueles que na City acreditam que a Administração de Lula não representará um perigo para o sistema. Prevê que as suas reformas não envolverão um desafio frontal, não ultrapassando os limites de um projecto social-democrata moderado, facilmente adaptável ao funcionamento da globalização neoliberal. Na Casa Branca não se compartilha o optimismo do órgão da City.

Não obstante Lula ter afirmado que respeitará os compromissos internacionais assumidos pelo governo de Fernando Henrique, Washington teme choques a curto prazo na área económica e financeira. A relação com o FMI vai clarificar muita coisa. Para receber os 30 mil milhões de dólares previstos pelo acordo assinado pelo anterior Governo, Lula — se não conseguir uma revisão do mesmo — terá de tomar medidas que o tornariam prisioneiro de uma autentica engrenagem. Em Janeiro deverá ser liberada a segunda tranche do acordo. O texto é claro. Não haverá dinheiro se os compromissos forem rompidos.

A posição brasileira nas negociações sobre a ALCA suscita também preocupações. A ALCA é um projecto de recolonização política, económica e cultural da América Latina. A integração do Brasil nela faria do pais um protectorado de novo tipo. Lula tem formulado criticas ao projecto dos EUA, afirmando que «outra Alca é possível». Mas qual? A integração na Alca seria ruinosa para um país que apostou no Mercosul e cujo primeiro parceiro comercial é a União Europeia.

O governo de Lula, nas suas relações com a Administração Bush, será forçado também a tomar posição no tocante ao acordo sobre a Base de Alcântara, um acordo de figurino colonial que entrega praticamente o controlo do espaço aéreo brasileiro aos EUA, permitindo a criação de um enclave estrangeiro no seu território.

Lula não desconhece o funcionamento da engrenagem da dominação. Denunciou-a desde a juventude, como líder sindical. Sabe que o povo brasileiro trabalha para pagar um endividamento que não pára de crescer. O diabolismo do sistema tem regras rígidas. A falsa ajuda vinda sob a forma de empréstimos e mecanismos financeiros que geram juros escorchantes suga os excedentes e condiciona as opções estratégicas.

O Brasil é potencialmente um dos países mais ricos do mundo. Com excepção da Rússia não existe outro que o iguale em recursos naturais. Mas a engrenagem da dependência a que se submeteram sucessivos governos mantém na miséria dezenas de milhões de brasileiros e levou o pais à beira da falência.

A vitoria de Lula, repito, suscitou uma imensa esperança entre as forças progressistas. Mas a euforia nascida da sua grande vitoria eleitoral não deve levar à subestimação das tremendas dificuldades que vai enfrentar antes mesmo de tomar posse da Presidência.

CONTESTAÇÃO DO EQUADOR À AMÉRICA CENTRAL

As políticas neoliberais impostas com mão de ferro pelo imperialismo estadunidense estão a provocar uma repulsa cada vez mais generalizada em toda a América Latina. A presença de governos que actuam como executantes dessas políticas não consegue impedir a vaga de contestação que traduz o descontentamento popular.

Na Bolívia, no Equador, no Peru, os movimentos indigenistas assumem uma amplitude que se expressa de múltiplas formas, pondo em causa o poder de oligarquias tradicionalmente apoiadas por Washington.

A vitoria no primeiro turno das eleições equatorianas do coronel Lúcio Gutierrez — o militar que apoiou e liderou a insurreição da CONAIE há três anos — foi interpretada na Casa Branca como uma confirmação da profundidade do descontentamento que alastra entre os povos da região andina. A rede de bases militares norte-americanas que cerca hoje a Colômbia não impede que as populações da fronteira do Equador encarem com simpatia a luta das FARC e condenem com veemência as fumigações que envenenam as terras e os rios da Amazónia.

Mais ao Norte, o descrédito dos governos títeres da América Central, do Panamá à Guatemala, é hoje transparente.

O que se passa em El Salvador merece uma atenção especial. Um político fantoche, Flores, ocupa a Presidência e o dólar foi imposto como moeda nacional. Mas o Partido da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional, herdeiro de uma das mais heróicas guerrilhas do Continente, é hoje a maior força política do país. Não somente conseguiu manter a sua unidade, derrotando os esforços daqueles que, apoiados por Washington, pretendiam dividi-lo, como governa hoje a capital e as principais cidades do país. Uma intensa luta de classes, também em El Salvador, desmente a teorização dos que a consideravam superada.

O Partido da FMLN demonstra entretanto no seu combate consciência das limitações que lhe são impostas pela luta travada no quadro institucional. Aproveita todas as oportunidades que o sistema lhe abre, mas dos êxitos eleitorais alcançados — alguns retumbantes — não tira a conclusão de que lhe abrem o caminho para tomada do poder. A estratégia de dominação dos EUA na América Central, hoje autentico quintal do imperialismo, não permitiria no actual contexto histórico que um partido como a FMLN pudesse exercer o Poder real, mesmo que, através de eleições viesse a conquistar a Presidência. Essa lucidez na analise da conjuntura regional não impede a FMLN, antes pelo contrario, de manter-se fiel ao seu ideário revolucionário.

O LABORATÓRIO ARGENTINO

Os acontecimentos ocorridos na Argentina transformaram aquele país num laboratório de ciências sociais e políticas.

A aplicação das políticas neoliberais levou a Argentina à falência. O presidente de turno foi derrubado pela força do protesto popular. Em poucas semanas dois outros o substituíram na Casa Rosada.

Onze meses transcorreram desde o «estallido social» de Dezembro do ano passado. E continuam a acontecer na Argentina coisas nunca vistas, nem imaginadas.

As movimentações populares nas províncias, mas sobretudo em Buenos Aires, derrotaram todas as previsões. O povo tomou as ruas e praças para condenar sem apelo a política neoliberal que levara o pais à bancarrota e milhões de argentinos à miséria e à fome.

Desta vez a repressão não funcionou. Longe de atingir o objectivo de amedrontar as massas, contribuiu para a radicalização do protesto. As concentrações gigantescas, os «cacerolazos», os cortes de estradas, as grandes marchas, as assembleias de bairro foram expressão de um espontaneismo gerado pela revolta, mas traduziram simultaneamente o aflorar de uma consciência colectiva em gestação, marcada por contradições, mas assinalando o início de uma fase de acumulação político social de grande riqueza.

Essa comovedora disponibilidade das massas para a luta, mantida ao longo de quase um ano em circunstancias sem precedentes, é um fenómeno que exige uma reflexão profunda. Estavam, na aparência, reunidas condições objectivas e subjectivas para a passagem a uma situação revolucionária. Entretanto, não se produziu uma ruptura. O povo rejeitou a caricatura de democracia existente, exigindo uma democracia real na qual seja ele o sujeito, o protagonista. Mas o desejo de uma nova sociedade implica a necessidade de transformar desde a raiz a existente. E na Argentina ficou claro que a criação de um novo tipo de Estado e de Poder, na acepção gramsciana desses conceitos, não é possível pela acção do espontaneismo das massas. O Estado oligárquico burguês, dependente, tutelado por Washington, sobreviveu ao processo de contestação inorgânico. As assembleias populares foram uma resposta criadora forjada pela combatividade e imaginação das massas. Mas não constituem uma alternativa de poder. Os protestos conduziram a uma proliferação de assembleias e estas dedicam-se a promover novos protestos, num movimento circular que não ameaça as bases do poder. A inexistência de um partido revolucionário com prestigio e condições para transformar a disponibilidade do povo para a luta em alavanca para a ruptura do sistema explica que o governo Duhalde mantenha, com alterações cosméticas, a política neoliberal que levou o pais a falência.

País algum na América Latina aplicou com tamanha rigidez e subserviência as receitas do FMI. Entretanto, como se fosse palco de um teatro de absurdo, o actual governo argentino, de mão estendida, implora a tutela do FMI, disposto a submeter-se às suas novas exigências.

O povo da Argentina tem motivos de sobra para se sentir frustrado. O espirito de luta de que tem dado provas abalou o sistema de exploração existente, mas não o fez ruir. A construção de uma vontade colectiva não pode nascer somente de uma soma de protestos e reivindicações. Faltou uma organização revolucionaria.

O OUTRO CAMINHO

A linha reformadora, segundo a qual o capitalismo pode ser recuperado e, usando as instituições existentes, será possível transformar e humanizar as sociedades por ele oprimidas é, como se sabe, contestada por forças e partidos que negam essa possibilidade.

Para os que assim pensam a humanização do capitalismo é inviável pela sua essência e pela lógica do seu funcionamento. A alternativa ao sistema de dominação vigente passaria assim inevitavelmente pela sua destruição.

A nova relação de forças resultante do desaparecimento da URSS e da hegemonia planetária de uma única potência, os EUA, tornou, porem, no actual contexto histórico, aparentemente impossível o desenvolvimento vitorioso de qualquer processo revolucionário que se proponha como meta a tomada do poder através da luta armada.

A nova doutrina sobre «as guerras preventivas» formulada por Bush confirma que o sistema de poder imperial dos EUA está decidido a esmagar pelas armas qualquer país no qual identifique uma ameaça potencial à sua estratégia de dominação.

Entretanto, as generalizações são sempre simplificadoras e não ajudam a compreender a complexidade do movimento da historia.

O poderio americano tem limites, como o demonstram a crise económico financeira que afecta o sistema, a procura permanente de alianças e a sua dificuldade em enfrentar determinados desafios.

Os EUA, por exemplo, são forçados a conviver com a China, não obstante o crescimento económico do gigante asiático configurar a médio prazo a maior ameaça à supremacia norte-americana. Simultaneamente Washington exclui a hipótese de guerras de agressão imediatas contra alguns dos países que Bush incluiu no seu «Eixo do Mal».

No próprio continente americano dois casos, aliás muito diferentes, são encarados pelo imperialismo americano como desafios intoleráveis: o de Cuba e o da Colómbia.

Sucessivas Administrações fracassaram na busca de "solução" para um e outro.

O denominador comum a ambos está na demonstração de que é possível resistir .

Há quatro décadas que a Revolução Cubana e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) resistem a todos os esforços dos EUA para as destruir. A guerrilha do Exercito de Libertação Nacional (ELN) também resiste.

No caso da pátria de Martí e Fidel, uma pequena ilha, bloqueada, desenvolveu uma experiência socialista que, pelos êxitos alcançados no plano social, é considerada um exemplo perigoso para o conjunto da América Latina. Mas a cidadela cubana, definida como ameaça à segurança dos EUA e cúmplice do terrorismo, resiste com firmeza e heroísmo, confirmando que é possível sobreviver dizendo não ao imperialismo e à globalização neoliberal.

O caso da Colômbia não é menos complexo. Uma campanha mundial de calunias apresenta as FARC como "a guerrilha do narcotráfico", slogan inventado por um colaborador do Pentágono, o embaixador Louis Stamb, para lançar o anátema sobre uma organização revolucionaria que optou pela luta armada e tem por objectivo a longo prazo a destruição do capitalismo no seu pais.

Os comandantes das FARC têm a cabeça a prémio, a Justiça norte-americana pediu a sua extradição, os seus nomes figuram nas listas de terroristas perseguidos pelas policias da América e da Europa.

Porquê tanta desinformação, tanta agressividade contra essa organização revolucionaria colombiana, cujo comandante, Manuel Marulanda, é hoje um herói legendário para milhões de latino-americanos?

Porque as FARC continuam a desafiar vitoriosamente o sistema que pretende destruí-las. Uma guerrilha de 47 homens transformou-se ao longo de 40 anos num exército popular de 18 mil homens e mulheres que combate em 60 frentes num pais com 44 milhões de habitantes, duas vezes maior do que a França, vizinho da Venezuela bolivariana.

O que faz das FARC um problema prioritário para Washington é também o exemplo, a demonstração de que em determinadas circunstancias é possível resistir, mesmo pelas armas, a um estado oligárquico sustentado militar e financeiramente pelos EUA.

O desafio das FARC e do ELN soa nas Américas como um apelo à luta, ajuda a manter acesa a esperança.

A QUESTÃO CHAVE DO PODER

Declarações do subcomandante Marcos contidas numa entrevista ao jornalista mexicano Julio Scherer vieram reactualizar o debate sobre a antiquíssima questão em torno da antinomia «reforma ou revolução» que antes da Revolução Russa foi tema de grandes polémicas.

Ao estabelecer uma separação clara entre o rebelde e o revolucionário, Marcos foi corajoso. O dirigente zapatista condena o capitalismo que considera incompatível com as aspirações do homem. Mas a teoria e a pratica do seu movimento, ao defender a lenta transformação da sociedade a partir quase da base zero, não configuram uma ameaça para o capitalismo. Este não se sente em perigo quando os adversários afirmam pretender derrota-lo através de reformas graduais. O projecto afigura-se-lhe utópico. É esclarecedor que dezenas de canais de televisão tenham transmitido para o mundo a marcha sobre a capital mexicana dos comandantes zapatistas e o discurso que Marcos pronunciou na Praça do Zócalo.

Recordo que Raul Reyes, um destacado comandante das FARC, comentou então: Se um simples destacamento das guerrilhas colombianas caminhasse cinco quilómetros por uma estrada, na selva ou na montanha, não haveria televisões a filmá-lo, mas choveriam bombas do céu.

É, alias, significativo que após uma década de combate político, o zapatismo tenha perdido prestigio e força. O novo código indígena mexicano é pior do que anterior.

A polémica em torno da questão do poder intensificou-se nos últimos meses. Intelectuais que se definem como neo-marxistas, defendem na realidade concepções anarquistas sobre o Estado.

Os anarquistas clássicos negaram sempre a importância da luta política dos trabalhadores desde que esta fosse orientada para a conquista do Poder.

Hoje, sobretudo nas universidades, ganha adeptos uma escola que recorre a Marx, deturpando-lhe o pensamento, para concluir pela inutilidade da luta contra o Estado.

Um dos mais destacados porta-vozes dessa corrente de pensamento é o escocês John Holloway, doutorado em ciências políticas pela Universidade de Edimburgo. Autor de um livro de êxito «Change the world without taking the power» Holloway fala-nos do "significado da revolução hoje" para negar a sua possibilidade.

A sua tese central aparece esboçada nas linhas que vou citar «O apelo zapatista a construir um mundo novo obteve uma repercussão extraordinária e essa repercussão está relacionada com o crescimento nos últimos anos daquilo a que poderia chamar-se um espaço do anti-poder. O referido espaço corresponde a um debilitamento do processo que polariza o descontentamento no Estado».

Da análise de fracassos revolucionários, elaborada numa perspectiva de psicologia social, o professor de Edimburgo tira a conclusão de que é impossível, fora do quadro institucional, lutar com êxito contra o capitalismo e o seu Estado.

Não valeria a pena sequer falar aqui do livro de Holloway se ele não fosse a expressão de um pensamento negativista que desmobiliza. A ideia de que não se deve lutar frontalmente contra o Estado porque a tomada do poder é uma impossibilidade tem encontrado ampla receptividade nos Foros Sociais entre adversários da globalização neoliberal.

É significativo que o livro de Holloway tenha sido imediatamente editado na Argentina e que o autor tenha participado já de mesas redondas em Buenos Aires e no México, onde defendeu as suas posições. O professor escocês considera os partidos inúteis e mesmo prejudiciais. Concebe a luta política como uma cadeia de acontecimentos, espontânea, de manifestações contra — cito — «o fetichismo, festivais dos não subordinados, carnavais dos oprimidos, explosões do principio do prazer».

Entretanto, à pergunta «como mudar o mundo sem tomar o poder?», por ele próprio formulada, responde que não sabe o que significa hoje a palavra Revolução. E acrescenta: «este é um livro que não tem um final feliz».

Amigos

Regresso ao tema. Volto á América Latina. A uma região na qual milhões de homens continuam a acreditar na possibilidade da Revolução, na necessidade de lutar contra o estado opressor tendo como meta a conquista do Poder.

Não sou pessimista. A complexidade das situações existentes e as ameaças vindas da agressividade imperialista não apagam o papel decisivo que os povos daquele Hemisfério estão a desempenhar na Venezuela, no Brasil, na Argentina, nos países andinos. Não podemos esquecer a resistência e o exemplo de Cuba, o desafio dos combatentes das guerrilhas colombianas das FARC e do ELN.

Para lutar contra o inimigo comum temos de somar e não de dividir.

O importantíssimo papel desempenhado pelos movimentos sociais no repudio à globalização neoliberal e à crescente agressividade do imperialismo foi interpretado por prestigiados cientistas políticos e sociais como prova convincente da decadência dos partidos políticos. A fragilidade dessas analises reside no seu caracter abrangente. Poderiam ter assinalado a insignificância da contribuição dos partidos de esquerda para o êxito das gigantescas mobilizações de massas de que Seattle aparece como pioneiro. Mas em vez de reflectir sobre as causas dessa ausência optaram por uma conclusão genérica que coincide no fundamental com a infundida pelos epígonos do neoliberalismo: a decadência dos partidos revolucionários seria um fenómeno irreversível. Os erros, enormes, cometidos por partidos tão diferentes com o PCUS, o PCI, o PCF e outros e a incapacidade transparente por eles demonstrada na resposta aos grandes desafios da história não permite a conclusão voluntarista de que os partidos se tornaram inadequados como instrumentos políticos nas grandes lutas contemporâneas, cabendo exclusivamente aos movimentos sociais assumir o papel que eles desempenharam no passado.

O aprofundamento da crise de civilização que a humanidade atravessa reforçaram em mim, pelo contrario, a convicção de que os próximos anos ficarão a assinalar o fortalecimento dos partidos revolucionários como instrumento indispensável de grandes transformações históricas.

A era das revoluções, contrariamente ao que proclamam os teólogos do neoliberalismo, não acabou. Como as causas que as determinaram persistem, agravadas, os povos tendem a insurgir-se contra o monstruoso sistema de dominação económica e social que lhes é imposto. Seattle, Melbourne, Praga, Gotemburgo, Quebec, Davos, Barcelona, Génova serão, entre outros protestos colectivos, recordados como marcos da resistência crescente da humanidade a ameaças que colocam em causa a sua própria continuidade.

Entretanto, uma percentagem considerável dessas massas que repudiam a globalização capitalista e recusam a ordem social que ela pretende impor na Terra não tomou ainda consciência plena de que esse projecto é complementar de outro ainda mais inquietante. Refiro-me à estratégia imperial que aponta para a militarização do planeta, para o perigo de uma ditadura mundial de contornos fascistizantes, exercida pelo sistema de poder dos EUA.

Mas, pela primeira vez na história a contestação de uma política que afecta a totalidade da humanidade começa a encontrar uma resposta que é também global. A rejeição mobiliza milhões de pessoas em todos os Continentes. Nunca antes se assistira a algo similar. Neste Foro, em Florença, temos a prova disso.

Na actual etapa histórica os movimentos sociais tem desenvolvido um esforço que ultrapassou as expectativas mais optimistas. Mas o seu papel a sua capacidade de intervenção tem limites inultrapassáveis. Eles têm consciência dessa realidade. A revolta popular, por mais ampla que seja, quando não ultrapassa o quadro da resposta espontaneista perde ímpeto, dilui-se, não atinge a fase que culmina com a derrota do poder e a implantação de uma nova ordem social, sua meta natural. Os acontecimentos da Argentina confirmam essa lição da historia.

Seria uma ingenuidade alimentar, por outro lado, a ilusão de que por si só a dinâmica dos grandes foros onde denunciamos os males da globalização neoliberal e debatemos a procura de alternativas permitiria o aproveitamento integral da imensa força dos povos que rejeitam o modelo imperial.

Os movimentos sociais continuarão a cumprir a função que tão bem têm desempenhado. Foi deles que partiu a arrancada para a contestação mundial à globalização neoliberal. Mas na próxima fase caberá aos partidos políticos revolucionarias um papel também insubstituível.

Dir-se-á que são ainda difusos os contornos desses partidos. Será, acredito, a própria luta a defini-los.

A historia não se repete nunca da mesma maneira. Mas — repito — como as causas que levaram às grandes revoluções não desapareceram, a revolta dos explorados e dos excluídos contra o sistema de poder que desenvolve uma estratégia ameaçadora para a humanidade é uma defesa e uma exigência que reactualiza os ideais da Revolução humanista. E nessa revolta em andamento o partido revolucionário surge como necessidade.

O sistema de poder imperial e a globalização neoliberal por ele concebida e sustentada são os inimigos concretos das forças democráticas e progressistas que contra eles se batem pelo mundo fora, de Seattle a Florença, das solidões andinas às pampas argentinas, das selvas da Colômbia às minas africanas, das misérrimas megalópolis do Brasil, da Venezuela e da Índia às cadeias de montagem da União Europeia, dos campos petrolíferos do Médio Oriente às cidades martirizadas da Palestina heróica e às praias da Cuba revolucionária.

O antídoto contra a neobarbarie do império norte-americano não será uma insurreição no estilo antigo. A humanidade como sempre encontrará a saída para esta crise de civilização, a maior a mais angustiante de todas.


Inclusão: 01/08/2021