Comunicação a ser apresentada ao Fórum Social Mundial 2003 no painel "Militarização, terrorismo e media" do seminário internacional "O novo Brasil no contexto mundial"

Miguel Urbano Rodrigues

25 de janeiro de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Não eram claras há um ano, quando nos reunimos aqui, em Porto Alegre, no II Foro Social Mundial, as perspectivas de evolução da crise internacional.

Desde então ela agravou-se muito. Mas precisamente porque se aprofunda a consciência de que a política de dominação planetária do sistema de poder imperial e as consequências da globalização neoliberal são inseparáveis de uma crise de civilização, cresceu também torrencialmente a resistência dos povos a uma estratégia que assume os contornos de ameaça ao conjunto da humanidade, pondo em causa a sua sobrevivência.

Para que a minha presença neste painel tenha um mínimo de utilidade tentarei limitar a reflexão a dois pontos fundamentais:

  1. A natureza e a estratégia do Novo Imperialismo;
  2. Os grandes desafios que se colocam aos movimentos sociais e aos partidos revolucionários que lutam para transformar em realidade concreta o lema do nosso Foro: «outro mundo é possível».

O NOVO IMPERIALISMO

Ao festejarem o novo ano, semanas atrás, as dezenas de milhares de participantes deste Foro interrogavam-se sobre a iminência de uma nova e monstruosa guerra. É muito provável que a data já tenha sido fixada. Não podemos excluir a hipótese de que mísseis devastadores comecem nos próximos dias a transformar o Iraque num gigantesco amontoado de ruínas.

Para se avaliar a dimensão da tragédia prestes a iniciar-se, devemos compreender o mecanismo da sua preparação e os objectivos imediatos e a médio prazo e simultaneamente tomar consciência de que o sistema de poder que concebeu essa guerra e vai impô-la apresenta características inéditas.

Nenhuma definição tradicional se lhe adapta. Não se trata de uma questão semântica. O Novo Imperialismo que tem o seu polo nos EUA difere muitíssimo do imperialismo do final do seculo XIX definido por Lenine. Dispõe de outros meios, tem uma ambição ilimitada e acredita na possibilidade de se perpetuar, congelando a Historia.

Não ha precedentes, nem em Roma, nem na Inglaterra vitoriana, nem no Reich hitleriano para um projecto comparável. Mas não obstante lhe podermos seguir a marcha e traçar-lhe os contornos continua a ser muito mal conhecido. Está mascarado e o controle praticamente hegemónico dos meios de comunicação permite-lhe esconder os fins e exibir mesmo uma imagem que confunde grande parte da humanidade.

Uma das melhores sínteses da estratégia do Novo Imperialismo foi elaborada há mais de duas décadas por Noam Chomsky. A revista estadunidense Monthly Review publicou esse trabalho em Novembro de 1981. Nele aparecem com clareza as grandes linhas da estrutura de pensamento que visava a organizar o mundo sob a égide exclusiva dos EUA.

Documentos elaborados ainda durante a II Guerra no âmbito do War and Peaces Studies Program previam a criação futura da chamada Grand Area Planing. As fronteiras dessa Grande Área apresentavam-se ainda esbatidas. Mas esses estudos sublinhavam que ela era «estrategicamente necessária para o controle do mundo».

Os editores da Monthly Review num ensaio recente recordaram que, segundo o War and Peace Studies Program «a área mínima estrategicamente necessária para o controle do mundo incluía todo o Hemisfério Ocidental, o antigo império britânico, em processo de desmantelamento, e o Extremo Oriente. Aquilo «era o mínimo, e o máximo o universo». O Médio Oriente, tratado como parcela do Imperio Britanico, merecia uma atenção especial dos cérebros do Departamento de Estado e do Pentágono que criaram o conceito da Grande Área.

As intervenções directas e indirectas dos EUA na região no ultimo meio seculo acompanharam a penetração das transnacionais norte-americanas, cuja presença antes da guerra era ali inexpressiva. Somente no período compreendido entre 1940 e 1967 as reservas petrolíferas sob controle dos EUA passaram de 10 para 60% do total enquanto as sob controle britânico caíram de 72% para 30%. A fatia estadunidense agigantou-se, aliás, nas últimas três décadas.

Seria supérfluo num Seminário como este gastar tempo a iluminar a perversidade da argumentação utilizada pela Administração Bush ao longo da campanha que pretende apresentar o Iraque como ameaça para a segurança dos EUA e da Humanidade.

Vocês, companheiros e amigos, sabem que tais argumentos são absurdos, ridículos, pouco inteligentes e foram forjados sobretudo para neutralizar a oposição interna à guerra, isto é à agressão contra um remoto e arruinado país asiático, cujo subsolo encerra fabulosas reservas de petróleo.

Como salienta a Monthly Review a história oficial sobre o Iraque nunca fez sentido. Mas a passagem do espaço iraquiano para o controle absoluto dos EUA tornou-se uma prioridade na escalada de dominação planetária do Novo Imperialismo. Digo espaço porque essa terra, onde floresceram algumas das maiores civilizações da Antiguidade, será pelos invasores tratada após a guerra — se esta não for impedida, o que parece improbabilíssimo — como uma gigantesca reserva de jazidas de petróleo e gás natural.

A destruição do Iraque esboça-se no horizonte imediato como segunda etapa de uma estratégia que, iniciada com a agressão ao povo do Afeganistão permitiu aos EUA, em tempo brevíssimo, implantar-se solidamente na vastidão da Ásia Central, onde uma rede de bases militares, do Cáspio ao Kirguizistão, nas fronteiras da China, garante o controle norte-americano dos recursos naturais de antigas repúblicas soviéticas.

O Iraque, numa região que contem quase 70% das reservas provadas de petróleo do planeta, escapou ate agora à gula norte-americana. A eliminação ali, como concorrentes incomodas, das transnacionais Total, francesa, e Eni, italiana, é tema frequente dos editoriais da grande imprensa norte-americana.

Segundo o US Energy Department o controle do petróleo iraquiano é indispensável para garantir a longo prazo o abastecimento dos EUA.

Mas que não haja ilusões. A destruição do estado iraquiano é encarada pelos estrategos do Novo Imperialismo como uma simples etapa do projecto que visa a dominação planetária perpetua.

O New York Times informou recentemente que Robert Allison, presidente da Anadarko Petroleum Corporation em defesa de negócios nos Emirados abriu o jogo sem rodeios: «Precisamos — disse então — tomar posições no Médio Oriente para quando o Iraque e o Irão se tornarem outra vez parte da família das Nações» (22/Out/2002)

O desabafo anuncia o futuro próximo: O Irão está na linha de mira do Novo Imperialismo. Destruído o Iraque, a pátria de Dario o Grande e de Omar Khayan será acusada de possuir armas que ameaçam a segurança dos EUA.

As suas reservas de petróleo somadas às dos outros países da Região seriam suficientes para assegurar durante 98 anos as importações de petróleo dos EUA nos níveis actuais. Quem o afirma é o US Energy Department.

Companheiros

Recordei neste Seminário, faz um ano, o amoralismo de Hitler na defesa da política que teve como etapas a caminho da guerra a anexação da Áustria, a questão dos sudetos, Munique, a ocupação da Checoslováquia, e o corredor de Dantzig. Alguns amigos admitiram que eu fora longe de mais ao evocar essas situações a propósito de ameaças implícitas na escalada agressiva do sistema de poder imperial dos EUA.

Não creio que tenha exagerado. A hipocrisia e o cinismo do sistema de poder dos EUA na tentativa de encontrar pretextos para a agressão iminente contra o Iraque, planeada em função de objectivos estratégicos e económicos, pedem meças aos do Reich nazi. Personalizar o crime seria, alias, um erro. O presidente Bush é apenas uma peça na engrenagem monstruosa em que os porta vozes da Administração Republicana, de Colin Powell a Rumsfeld, cumprem o papel, repugnante é certo, de instrumentos da maquina do Novo Imperialismo que os transcende.

Nesta angustiante crise não devemos confundir o povo dos EUA com essa engrenagem trituradora cujo funcionamento se apresenta indissociavelmente ligado à dinâmica da globalização capitalista contra a qual se levantam os povos.

É estimulante verificar que a intelligentsia progressista dos EUA se situa hoje na vanguarda do combate ao Novo Imperialismo e na denúncia das políticas da globalização, seu complemento. Não são somente já as vozes de esquerda como as de Ramsey Clark, Noam Chomsky e tantos outros intelectuais que se elevam contra o projecto de dominação planetária em curso. Até o senador Edward Kennedy, um político liberal, acaba de pronunciar-se em termos contundentes contra a mal chamada Estratégia de Segurança Nacional. «A doutrina da administração — assim se expressou — é um apelo ao imperialismo americano do século XXI que nenhuma outra nação poderia ou deveria aceitar» (7/Out/2002).

A advertência-apêlo tem plena justificação. Uma mentalidade de matizes fascistas impregna já a nova Estratégia de Segurança nacional dos EUA. Cito três pontos:

  1. O domínio militar global dos EUA deve ser perpétuo para que jamais alguma potência possa vir a rivalizar com eles;
  2. A recomendação de ataques militares «preventivos» a Estados que sejam considerados ameaça potencial à segurança dos EUA;
  3. A imunidade perante o Tribunal Penal Internacional da ONU de cidadãos norte-americanos autores de crimes comprovados.

Em Washington a afirmação de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios é considerada um axioma sagrado. A Administração e os teólogos do mercado estão convictos de que o impulso que ela vai dar ao complexo militar-industrial será o melhor remédio para uma crise económica profunda, negada mas bem real.

O secretario da Defesa Rumsfeld, em ameaça indirecta dirigida á Coreia do Norte, proclama que os EUA estão em condições de desencadear duas guerras simultâneas. O tamanho da ambição é tal que Washington simula esquecer o obvio: a agressão a um pais vizinho da China e da Rússia colocaria o mundo á beira da terceira guerra mundial.

GRANDES DESAFIOS

Companheiras e companheiros

Aprofunda-se, como acentuei, o repúdio pela guerra iminente e pelas políticas ditas neoliberais que alargaram o fosso entre as nações industrializadas e os povos do terceiro Mundo.

O desejo de paz universaliza-se bem como a repulsa pela globalização capitalista.

Mas continuam a ser pobres a respostas à pergunta: Que fazer?

Os Foros Sociais convocados pelos movimentos sociais multiplicam-se. Participei nos dois primeiros aqui em Porto Alegre. Estive no Foro Europeu de Florença quando um milhão de pessoas desfilaram pelas ruas da maravilhosa cidade dos Medici. Registei a comovente disponibilidade para a luta de camadas cada vez mais amplas da juventude europeia.

Desde a antiguidade sabemos que sem espírito combativo não se transforma a vida.

Mas a combatividade e o desejo de mudança não bastam. As grandes rupturas que alteram duradouramente as estruturas sociais e o rumo da historia somente se produzem quando os povos ou as classes sociais se mobilizam em defesa de objectivos concretos, conscientes do que pretendem e para vão.

Essa confere actualidade à pergunta: Porventura avançamos muito, nos dois anos transcorridos desde o I Foro de Porto Alegre relativamente a questões praticas? A resposta é negativa. Os debates diversificaram-se, ganharam qualidade. Mas não realizamos progressos sensíveis no tocante à busca de estratégias e meios de combater eficazmente aquilo que rejeitamos, o projecto imperial que ameaça a humanidade.

É fácil enaltecer as facetas positivas dos nossos Foros. Todos nos emocionamos com o sentimento de fraternidade que quase transforma Porto Alegre nestes dias na cidade do futuro com que sonhamos. É reconfortante sentir as potencialidades daquilo que nos une.

Mas sejamos também realistas. As convergências diminuem, tornam-se mais difíceis à medida que começamos a discutir não já os contornos do futuro mas problemas relacionados com metas imediatas, a natureza do poder inimigo e as formas de o combater.

Em Guadalajara, no Congresso da Organização Continental dos Estudantes da América Latina, confirmei que o debate sobre a questão fundamental da atitude perante o Estado burguês e de modo geral o Poder é cada vez mais necessário, embora a polemica que suscita entre personalidades progressistas mesmo na América Latina possa ferir susceptibilidades.

Permitam-me que, apesar de incomodo, aborde aqui o tema.

Presentemente uma parte considerável da esquerda que converge nos movimentos sociais recusa o marxismo ou ignora-o e tende a assumir uma atitude perante a historia que lembra a dos anarquistas do final do seculo XIX.

Hoje como ontem, as circunstancias favoreceram o aparecimento na esquerda de personalidades que o italiano Lelio Basso definiu como «pensadores individuais», intelectuais que propõem soluções pessoais utópicas e quase sempre fantásticas para resolver problemas do mundo contemporâneo.

O prof. mexicano Octavio Rodriguez Araujo, num livro importante, didáctico e muito polemico, sobre «Esquerdas e Esquerdismos»,(1) esboça com nitidez o retracto desses elementos e de outros que, no terreno da teoria e no campo da acção, fazem a apologia do espontaneísmo.

As posições de contestação à necessidade da luta pela tomada do Poder mesmo como objectivo a longo prazo atraem muitos jovens. O subcomandante Marcos, do EZLN, e o professor escocês John Holloway, actualmente na Universidade de Puebla — apenas dois exemplos expressivos — coincidem, com discursos diferentes, na valorização de acções políticas na base que, na prática, ignoram o Estado burguês opressor. Esboçam panoramas magníficos para um futuro indeterminado e remoto, mas não hesitam em afirmar que a tomada do Poder deixou de ser um objectivo. Holloway, no seu livro «Mudar o mundo sem tomar o Poder»(2) recorre a Marx para lhe deturpar o pensamento e concluir pela inutilidade da luta contra o Estado.

Concebe a luta como cadeia de acontecimentos espontâneos, de manifestações — cito — «contra o fetichismo, festivais dos subordinados, carnavais dos oprimidos, explosoes do principio do prazer».

Não valia a pena fazer aqui referencia ao seu livro se ele não fosse a expressão de um pensamento negativista que desmobiliza.

Organizar para a batalha a «comunidade de acção» de que nos falavam os criadores do marxismo, é tarefa muito mais árdua do que criar «comunidades de teoria» cujos membros estão ligados por convergências ocasionais muito frágeis.

Sem disso tomarem consciência muitos adeptos do moderno «movimentismo» repetem hoje um discurso que reactualiza aquele que na Inglaterra, na França e sobretudo na Áustria e na Alemanha era pronunciado, antes da I Guerra Mundial, pelos adeptos do gradualismo, ou seja das reformas que, segundo eles, acabariam por destruir os alicerces do Estado burguês.

As coisas não correram, entretanto, como eles previam. O «movimento» da Historia real tomou nos Estados burgueses uma direcção oposta à prevista pelos austro-marxistas, a cujas posições Kautsky, no final da vida, aderiu parcialmente.

Edward Bernstein concebia o socialismo (a democracia social) como «legitimo herdeiro » do liberalismo e das suas consequências. Por que recordo isso? Porque muitos «movimentistas» contemporâneos, contrapõem ao socialismo o conceito de «democracia pura» — a democracia sem adjectivos na definição do nicaraguense Sérgio Ramirez. O resto chegaria depois. Ora, o resto é quase tudo...

Companheiras e Companheiros

Uma precisão semântica. As minhas referencias ao «movimentismo» não envolvem desapreço pela intervenção dos Movimentos sociais na luta em todos estamos empenhados. Eles foram pioneiros nas grandes mobilizações de protesto contra a globalização neoliberal. O seu papel na luta pela Paz, na batalha contra o projecto de dominação universal do Novo Imperialismo é fundamental, absolutamente indispensável, altamente positivo.

A certeza de que Foros como este não seriam possíveis sem a irrupção torrencial dos Movimentos Sociais nas grandes lutas da nossa época não me impede, porem, de discordar das analises de historiadores e cientistas políticos e sociais que identificam na presença e ascensão dos referidos movimentos uma prova convincente da decadência irreversível dos partidos.

A fragilidade dessas analises reside no seu caracter abrangente. É um facto que a contribuição dos partidos de esquerda para a mobilização das gigantescas manifestações de massas dos últimos anos foi inexpressiva. O mérito dos grandes protestos contra a globalização neoliberal cabe aos movimentos sociais.

Os enormes erros cometidos por partidos tão diferentes como o PCUS, o falecido Partido Comunista Italiano e o Partido Comunista Francês não permitem a conclusão voluntarista de que os partidos passaram a ser um instrumento político obsoleto nas lutas contemporâneas pela transformação do mundo, cabendo aos movimentos sociais assumir o papel que eles desempenharam no passado.

Persuadir os que rejeitam a globalização neoliberal de que o fim da União Soviética comprovou que o socialismo não passa de uma utopia é um objectivo permanente dos sacerdotes do neoliberalismo que colocam o mercado acima do Estado, sacralizando-o.

Todos aqui fazemos a apologia da unidade. Mas a consciência de que temos de somar forças para atingirmos objectivos comuns não abala em mim a convicção de que nos próximos anos assistiremos ao fortalecimento de organizações e partidos revolucionários como instrumento indispensável de grandes transformações históricas.

Pela primeira vez na história a contestação de uma política com consequências devastadoras para a quase totalidade da humanidade começa a encontrar uma resposta também global. Milhões de pessoas, em todos os continentes, mobilizam-se contra ela. Nunca antes ocorreu algo parecido.

Mas convém recordar que a revolta popular, por mais ampla que seja, quando não consegue ultrapassar o marco espontaneísta perde ímpeto, dilui-se, não alcança a fase que culmina com a derrota do poder e a implantação de uma nova ordem social sua meta natural.

Os dramáticos acontecimentos da Argentina confirmam essa lição da historia.

Insisto na extraordinária importância da intervenção dos movimentos sociais nas lutas do nosso tempo. Mas devemos também não esquecer que os movimentos são uma diversidade, tal como os partidos, perseguindo objectivos raramente coincidentes.

Alguns com o MST brasileiro, a CONAIE do Equador e o dos camponeses bolivianos que quase levaram Evo Morales à Presidência apresentam de comum uma disciplina organizativa, uma fidelidade aos princípios, um espirito colectivo e uma disponibilidade para a luta que fazem deles organizações revolucionárias em potência.

Outros movimentos são diferentes, não contestam o capitalismo, acreditam na possibilidade da sua reforma. É significativo que neste Foro como no anterior encontremos inclusive personalidades que, afirmando trazer solidariedade contra os excessos da globalização neoliberal defendem, afinal, o impossível: a humanização do capitalismo. Não posso esquecer que Mário Soares foi a alavanca da contra-revolução em Portugal e que o governo de Leonel Jospin em França privatizou mais empresas do que o governo de direita de Balladur.

Resumindo:

Por si só a extrema diversidade dos Movimentos Sociais que se traduz nas posições, por vezes antagónicas, que adoptam no tocante à maneira de combater o imperialismo e a globalização capitalista chama à realidade aqueles que sonham com uma estratégia de luta elaborada pelos Movimentos. Constituem uma força maravilhosa, poderosíssima, em ascensão, mas não se pode esperar deles tarefas para que não estão vocacionados.

Por isso mesmo não posso identificar-me com o discurso político daqueles que defendem já a diluição de partidos comunistas num Movimento dos movimentos ao qual caberia hoje como força de ruptura o papel desempenhado no passado por organizações partidárias. Distancio-me, portanto, da perspectiva histórica esboçada por Fausto Bertinotti, secretário-geral da Rifondazione Comunista no Fórum de Florença, posteriormente reafirmada na Conferencia Anti-ALCA de Havana.

Companheiras e Companheiros:

Por que chamo a atenção para estas questões que nos preocupam a todos? A história não se repete da mesma maneira. Mas como as causas que desencadearam as grandes revoluções não desapareceram, e persistem, agravadas — a maré da revolta dos oprimidos e excluídos contra o Novo Imperialismo e a globalização capitalista está subindo de ano para ano. E é nessa revolta que a participação do partido revolucionário surge como uma necessidade.

Na grande batalha ideológica em curso, a burguesia, utilizando a sua poderosa máquina de desinformação e de modelagem das consciências, tenta dividir e destruir os partidos marxistas revolucionários. Não porque sejam instrumentos políticos superados, mas porque teme que eles se mantenham fieis ao ideário e ao compromisso que lhes justifica a existência.

Permitam que recorde uma realidade. Os partidos comunistas que para se «modernizarem», como lhes sugeriu a burguesia, optaram por reformas supostamente renovadoras do marxismo desapareceram, entraram em processo de decadência ou aparecem hoje transformados em partidos do sistema, como o francês. Entretanto, hostilizados e caluniados, partidos revolucionários que assumem o marxismo leninismo como ideologia criadora e não estática, como o português, o grego, o cipriota, na Europa — menciono alguns exemplos expressivos — o Partido Comunista do Brasil, o Partido Comunista Colombiano e o FMLN de El Salvador, na América — partidos que se mantiveram fieis aos princípios e valores do marxismo, não somente resistiram bem a todos os ataques e campanhas como conservam intacta a confiança das bases e dos trabalhadores.

Companheiros e companheiras:

Como já sublinhei, quando na América Latina se debate a procura de alternativas para o capitalismo o consenso que se estabelece sobre a condenação da globalização neoliberal desaparece. Em Florença no magnifico Foro Social Europeu aconteceu o mesmo.

Quando começamos a discutir o tema as respostas são insatisfatórias.

A ideia de que o inimigo pelo seu enorme poder não pode ser derrotado tem um efeito paralizante.

Pessoalmente, identifico-me com a posição assumida por Georges Gastaud, Henri Alleg e outros eminentes revolucionários franceses para os quais o sistema de poder que ameaça a humanidade não é susceptível de ser reformado em benefício das suas vítimas.

Nas conclusões da Conferencia Internacional promovida em Paris em Novembro para comemorar o 85º aniversario da Revolução de Outubro, o filósofo Georges Gastaud sintetizou a opinião de milhões de comunistas ao afirmar que o capitalismo não desaparecerá através de reformas. Terá de ser destruído. Mas como? A tarefa é tão ciclópica, dada a desproporção de forças, que parece utópica. Mas quase todas as grandes revoluções venceram contra a lógica aparente da historia.

A própria escalada do Novo Imperialismo em busca da hegemonia planetária deixa já entrever o rosto de um fascismo colonialista de novo tipo. Pela sua irracionalidade, ambição e agressividade ela tende a abrir fissuras nas muralhas da fortaleza capitalista.

Henry Kissinger, em conferência pronunciada no Trinity College de Dublin, na Irlanda, fez uma confissão interessante: «O desafio básico — declarou — é que a chamada globalização é realmente outro nome para o mesmo papel hegemónico dos EUA no mundo.

As calamidades desencadeadas pelo sistema de poder estadunidense nos últimos anos não têm precedente desde a II Guerra Mundial. Somente o Reich de Hitler concebeu uma política de relações com pequenos países tão marcada por um pensamento fascizante. São também os EUA os grandes responsáveis pela tragédia que faz da terra árabe da heróica Palestina milenária uma vitrina da barbárie fascista assumida pelo sionismo.

O inventário dos crimes de que é responsável o Novo Imperialismo pela mão dos EUA está feito. Dele constam minuciosas descrições e análises — da autoria de eminentes intelectuais norte-americanos — das agressões, ignominias, golpes concebidos e executados pela CIA, de intervenções directas e indirectas que, em desafio frontal ao Direito internacional e à Carta da ONU transformaram os EUA num Estado terrorista.

Os crimes cometidos no Afeganistão, como o massacre de Mazar-i-Charif, o saque de Kandahar, o corte das línguas dos prisioneiros em Sebergham não ficam aquém das mais repugnantes chacinas das SS nazis.

Essa acumulação record de crimes contra a humanidade — os colectivos e públicos e os encobertos- somente é, porem conhecida por uma pequena minoria de habitantes da Terra. O controle da informação e a cumplicidade cobarde dos estados da União Europeia, do Canadá, do Japão e da Austrália (sócios na partilha e saque das riquezas mundiais) e também da Rússia (terceiromundizada e ela própria ameaçada) encobre o rosto e muito da agressividade do sistema de poder do Novo Imperialismo.

É assim que desde a guerra do Golfo, numa escalada medonha, a política da irracionalidade, do anti-humanismo, da opressão dos povos e da sobreexploraçao dos trabalhadores é apresentada ao mundo como mensageira do bem, expressão máxima da democracia, síntese das conquistas da milénios de civilização e baluarte da sua defesa.

Companheiras e companheiros:

A revolução é sempre a luta pelo impossível aparente. Foi a sua transformação em possível real que, em momentos decisivos, fez avançar a humanidade.

Na América Latina permanece vivo o espírito revolucionário de Bolívar. Do Rio Bravo à Patagónia os povos rejeitam as políticas da globalização capitalista impostas pelo Novo Imperialismo. Na Venezuela o povo oferece ao mundo um exemplo belíssimo ao fechar o caminho às forças golpistas que se opõem ao projecto bolivariano de Hugo Chavez. No Equador a eleição de Lúcio Gutierrez, e no Brasil a esmagadora vitoria de Lula expressaram com clareza a profundidade do descontentamento popular e a esperança numa mudança social que humanize a vida.

A cidadela cubana Resiste, com inquebrantável coragem. Na Colômbia, uma guerrilha heróica, a mais antiga da América Latina, as FARC, resiste também, demonstrando que em determinadas circunstancias e lugares é possível, mesmo pelas armas, resistir ao poder de oligarquias tradicionais apoiadas pelo imperialismo.

No planeta Terra, nossa pátria, atravessamos uma gigantesca crise de civilização. Não é possível prever-lhe o desfecho.

É um tempo simultaneamente terrível e belo.

Como comunista mantenho acesa a esperança. Nas grandes lutas em desenvolvimento cabe às esquerdas do Terceiro Mundo, sobretudo aos jovens, um papel decisivo no combate para transformar em realidade a aspiração expressa no lema dos nossos Foros. «Outro mundo é possível».

Objectivos capazes de mobilizar milhões de pessoas não faltam neste Continente. A luta contra a ALCA, por exemplo. Não há remendos cosméticos que possam tornar aceitável esse mostrengo, cujo objectivo é a recolonização total. A ALCA — etapa do projecto do Novo Imperialismo — seria uma tragédia para a América Latina.

Companheiras e Companheiros:

A vitória não tem data no calendário. Mas o Novo Imperialismo estadunidense, hoje o grande inimigo da humanidade — como afirmava o Che — será finalmente derrotado, como o foram Roma e o velho imperialismo britânico. Os impérios morrem, desaparecem no pó da História; os povos sobrevivem-lhes e continuam na sua caminhada para um futuro imprevisível.


Notas de rodapé:

(1) Octavio Rodriguez Araujo, «Izquierdas e Izquierdismo», Siglo XXI Editores, Mexico-Argentina, 2002 (retornar ao texto)

(2) John Holloway, «Cambiar el mundo sin tomar el Poder», Editorial Herramienta, Buenos Aires, tradução argentina do original inglês. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021