Reforço da combatividade num fórum diferente

Miguel Urbano Rodrigues

4 de fevereiro de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Naquela tarde, em Porto Alegre, de repente, um coro imenso cantou a Internacional. O Pavilhão do Gigantinho (15 mil lugares) estava repleto de gente. Foi após a leitura da Declaração pela Paz assinada por palestinos e israelenses progressistas. Quando eles se abraçaram, a multidão ergueu-se, e as estrofes do velho hino revolucionário, subindo das bancadas, fundiram as solidariedades individuais numa intensa emoção colectiva.

Mulheres e homens vindos de mais de 150 países, de mãos unidas, transmutavam em esperança o lema do Fórum, mobilizados por um sentimento de fraternidade que, por momentos, sobrepondo-se à diferenciação cultural e ideológica, fazia da massa um corpo único com os olhos postos num mundo humanizado.

Esse espírito internacionalista foi uma constante no grande evento, em conferências e seminários, na grande concentração que escutou Lula, no desfile anti-Alca. E, contudo, se interrogados, muitos dos participantes não se definiriam como revolucionários.

Não é fácil dimensionar sentimentos colectivos. Mas aquilo que mais diferenciou este III Fórum Social Mundial dos anteriores foi a unanimidade na condenação da guerra. Essa atitude não se expressou somente na veemência da repulsa pelo discurso imperial dos EUA, pela sua ambição de domínio planetário através da violência. A rejeição da globalização de figurino neoliberal como complemento intrínseco do Novo Imperialismo acompanhou permanentemente o Não às guerras anunciadas e aos genocídios e agressões promovidos ou encorajados pelo monstruoso sistema de poder estadunidense.

Não se avançou muito – nem seria possível – no terreno das alternativas ao sistema que se recusa. A convergência no protesto era espontânea porque todos sabem aquilo que não aceitam. Mas como os projectos de futuro são múltiplos e com frequência não compatíveis, os consensos num Fórum tão marcado pela heterogeneidade teriam de ser modestos pela impossibilidade de definir uma estratégia comum.

Daí uma contradição. Nunca antes a disponibilidade para a luta se manifestou com tamanha clareza.

Em Porto Alegre, tal como acontecera em Florença, no Fórum Social Europeu, em novembro pp, foi transparente na atitude dos participantes um aumento de combatividade. Em ambos, como sínteses das grandes maiorias que mundo afora repudiam a nova ordem imperial que hierarquiza os Estado e os povos, manifestou-se um novo espírito de luta. A maré do descontentamento subiu muito de um ano para outro.

Por todo lado, nos painéis do Gigantinho e da PUC, nos principais Seminários, nas Conferencias da Assembleia Legislativa, no Acampamento da Juventude, nas aclamações a Hugo Chavez, nas palavras e emoções que expressavam a grande esperança simbolizada na eleição de Lula identifiquei uma mudança qualitativa no protesto. A compreensão de que a humanidade se encontra globalmente ameaçada pelo projecto imperial em desenvolvimento, a consciência de que a própria continuidade da vida é posta em causa pela sua irracionalidade agressiva contribuíram para uma alteração de comportamentos individuais que se expressa de muitas formas. A consciência do perigo ,em vésperas de grandes transformações históricas, contribuiu sempre para que em qualquer sociedade aqueles que nela encarnam valores e princípios eternos assumam a sua defesa. Dai uma maior disponibilidade para lutas em que a desambição pessoal permite o desenvolvimento das melhores potencialidades da condição humana.

Essa tendência imprimiu ao Fórum uma atmosfera peculiar, algo que fazia pensar numa corrente invisível que aprofundava a fraternidade.

Senti-lhe a força em momentos tão diferentes como a lúcida intervenção de Noam Chomsky sobre a oposição da maioria do seu povo à escalada de loucura de uma política de contornos já fascizantes, como o brado humanista de Eduardo Galeano, como o encontro em que participei no Acampamento da Juventude.

A solidariedade com a Palestina, com os combatentes da insurreição armada colombiana, com a Venezuela bolivariana foi espontânea, permanente, comovedora. A Casa de Cuba, um enorme pavilhão fronteiro ao Gigantinho, tornou-se um pólo de atracção. Na noite do encerramento do Fórum milhares de pessoas participaram ali numa festa que entrou pela madrugada. Comemorava-se o nascimento de José Martí. A solidariedade com a Revolução fundiu-se com o canto e a dança porque na Ilha a alegria de viver é inseparável da luta pela transformação do mundo.

A participação dos comunistas portugueses atingiu este ano um patamar mais elevado, com destaque para a comunicação apresentada por Albano Nunes no Seminário «O Novo Brasil no Contexto Universal», em que intervieram entre outros o filosofo cubano Fernando Heredia, o pensador belga François Houtart, o dirigente comunista argentino Júlio Gambina, a escritora argentina Isabel Rauber, a activista da paz norte-americana Gloria de la Riva , e o autor deste artigo.

Desfilei na marcha anti-Alca ao lado dos comunistas portugueses com os camaradas do PC do B e voltei a sentir uma grande disponibilidade para o combate na sua serena confiança, num contexto em que grandes apreensões sobre o desenvolvimento imediato da historia no Brasil são companheiras da esperança nascida da vitória do povo materializada na eleição de Lula.

Seria uma ingenuidade, entretanto, extrair da estimulante atmosfera de luta que diferenciou este evento dos anteriores, traduzindo o avanço da esquerda na América Latina e a condenação da política de guerra bushiana, a conclusão de que as dezenas de milhares de participantes do Fórum constituem o embrião de um bloco de forças políticas mobilizável para uma confrontação organizada com o sistema de dominação imperial, tendo em vista a sua destruição, por remota que ela se apresente como possibilidade.

O espírito combativo não garante por si só a passagem à acção. O III Fórum foi como os anteriores o espelho de correntes de pensamento representadas por movimentos sociais, organizações e personalidades com perspectivas muito diferenciadas sobre o desenvolvimento da historia, ou, mais exactamente sobre a estratégia a adoptar na luta contra a globalização neoliberal e o novo imperialismo. Seria utópico, portanto, crer na possibilidade de uma resposta única à pergunta «Que fazer?» implícita no lema consensual «Outro mundo é possível».

A lista de conferencistas e de organizações do Fórum é bem expressiva das inevitáveis contradições que afloraram nas posições por eles assumidas nos cinco eixos definidos para orientação dos debates pelo Conselho Internacional. A Carta de Princípios é tão ampla que permite a defesa de posições não raro antagónicas. Não critico; uma rigidez maior poderia inviabilizar a continuidade de uma iniciativa que, surpreendentemente, se transformou em menos de três anos no mais importante polo mundial de debates políticos, sociais e culturais.

Mas seria desconhecer a evidencia negar que no Fórum, perante a questão crucial da busca das alternativas, emergem duas correntes de pensamento que reflectem concepções divergentes sobre a historia e o caminhar da humanidade. Os matizes tácticos podem, em ambas, tornar mais ou menos transparente o distanciamento ideológico. Entretanto, o III Fórum veio iluminar com mais clareza a clivagem existente entre as duas tendências:

  1. A defendida por aqueles que, ante o gigantesco poder do sistema imperial que hegemoniza o planeta e utiliza a globalização neoliberal como instrumento de reforço da desigualdade crescente entre os povos, admitem que a única atitude sensata na resposta ao desafio é a que aponta para uma transformação do capitalismo, o qual, através de reformas graduais seria humanizado, eliminando-se a sua agressividade.
  2. A sustentada pelos que identificam na actual crise de civilização a prova de que o capitalismo não é recuperável e de que, tendo entrado numa crise estrutural, tenta sobreviver através de uma estratégia de agressividade irracional. A guerra contra o Iraque seria mais uma numa série ilimitada de guerras «preventivas» imprescindíveis à perpetuação do imperialismo global como « tentativa – a expressão é de Istvan Meszaros – de se impor a todos os Estados recalcitrantes como o Estado 'internacional' do sistema do capital». O capitalismo atravessa uma crise estrutural que tenta superar recorrendo á violência, entrou numa fase de «senilidade», como diz Samir Amin, mas é um inimigo formidável tornado mais perigoso pelo desespero.

O desfile de estrelas e de actores menos renomados pelos múltiplos cenários do Fórum permitiu, em debates por vezes fascinantes, imprimir força de evidencia a uma realidade que tende a condicionar o rumo da difícil luta que as forças progressistas travam hoje em defesa da humanidade.

De um lado, por ora amplamente majoritárias, tomam posição os que atribuem aos movimentos sociais o papel de, através do movimento dos movimentos, conter e derrotar a globalização neoliberal e imperialista, reformando o mundo.

Do outro encontramos as forças, minoritárias que – repito – consideram o capitalismo irrecuperável e acreditam que as organizações e partidos revolucionários tendem a fortalecer-se, e a desempenhar, lutando ombro a ombro com os movimentos sociais, um papel insubstituível na longa luta pela destruição do sistema que ameaça a continuação da humanidade. Sem data no calendário para a sua derrota final, o capitalismo terá de ser erradicado da terra. Porque a alternativa concreta é a contida na antinomia «socialismo ou barbárie», embora desconheçamos os contornos que virá a assumir a futura sociedade socialista esboçada por Marx, num mundo pelo qual se bateram sucessivas gerações de revolucionários humanistas.


Inclusão: 04/11/2021