Estamos todos nas trincheiras de Bagdad

Miguel Urbano Rodrigues

28 de março de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Ao ler ontem uma crónica de Robert Fisk, enviada de Bagdad, senti uma grande emoção. O heroísmo dos povos desencadeia em mim desde a juventude a solidariedade.

Subiu-me na memória a recordação de Kabul bombardeada nos anos 80 pelos fundamentalistas da Hesbe-i-Islami e da Jamiat-i-Islami, então armados pelos EUA. Encontrava-me naquela cidade e sentia que a luta dos revolucionários afegãos era também minha.

O quadro da Bagdad atingida pela metralha norte-americana vinda dos céus fez-me imaginar o cenário medonho da grande cidade em chamas.

Senti inveja de Fisk e de outros intelectuais progressistas. Desejaria muito estar ali, ombro a ombro com os iraquianos que defendem a sua terra da barbárie neonazi.

Bagdad, como símbolo da resistência de um povo, é hoje a Madrid do ano 36, a Leninegrado do ano 41, a Hanói dos anos 70.

Não sendo possível lutar pelo povo de Iraque em Kirkut, em Um Qsar, Bassorá, ou algures na Mesopotamia, contemplando as ruínas milenárias de Nínive, Babilónia ou Ctesifon — integro-me no grande exército civil que pelo mundo afora, em defesa da humanidade, faz seu o combate dos que resistem nas trincheiras do Eufrates e do Tigre.

A PERVERSIDADE DESINFORMATIVA

A primeira tarefa dos escritores e jornalistas que mantêm a lucidez é o desmascaramento da campanha desinformativa desenvolvida pelos responsáveis do genocídio iraquiano.

É uma luta desigual. Eles têm tudo, nós quase nada.

Os agressores apresentam-se mascarados de libertadores e controlam uma gigantesca maquina mediática, através da qual tentam impor a mentira como verdade, apresentando a sua guerra como serviço prestado à humanidade, calando a voz dos adversários e omitindo tudo o que os incomoda.

Romper a muralha da inverdade e do silencio torna-se, neste contexto, uma necessidade básica e urgente. É preciso arrancar-lhes a máscara.

O escritor cubano Lisandro Otero,(1) num artigo em que analisa a cumplicidade da chamada "imprensa livre" com as forças políticas e económicas responsáveis pela guerra, alerta para o facto de a quase totalidade dos mass media estadunidenses repetirem monotonamente que as forças armadas norte-americanas se encontram no Iraque para "restabelecer a democracia e a liberdade do povo iraquiano e esmagar para sempre o terrorismo". Entretanto, as emissoras de televisão e radio — sublinha — não fazem a mais leve referência ao papel dos grandes consórcios petrolíferos na montagem da guerra e às ligações financeiras de Bush, Cheney e Condoleeza com a Chevron, a Texaco, a Mobil Oil e a Shell.

Mentir passou a ser uma rotina para os homens da Casa Branca e do Pentágono. Há dias um alto funcionário do Departamento de Estado teve o descaramento de afirmar num programa de televisão que, de hora para hora, cresce no mundo o apoio à cruzada libertadora do Iraque. No mesmo dia milhões de pessoas protestavam nas ruas de centenas de cidades contra a agressão àquele país.

O funcionário do State Department estava consciente de que a sua mentira chegaria a muitíssimo mais gente nos EUA do que as imagens dos protestos, não difundidas no país pela grande maioria das cadeias de televisão.

A guerra psicológica atinge um refinamento sem precedentes. Na Casa Branca, no Pentágono, no Departamento de Estado, equipas de especialistas em contra-informação fabricam "noticias" falsas que têm por objectivo promover o apoio à política de guerra e estabelecer a confusão no campo dos defensores da paz. As artimanhas da propaganda de Goebbels parecem jogos infantis comparadas com as imaginadas por esses técnicos da manipulação desinformativa. Foram eles os inventores das estorias sobre os sósias de Sadam, dos boatos sobre a sua morte, das conversações secretas com os generais iraquianos, da rendição de uma divisão inteira no Sul, da revolta chiita em Bassorá, do recebimento festivo das tropas dos EUA em aldeias "libertadas", dos vídeos de combates imaginários produzidos em estúdios dos EUA.

O mínimo que se poderia exigir a jornais como o New York Times e o Washington Post e a revistas como a Time, a cadeias de televisão como a CNN, a CBS e a ABC seria uma reserva grande perante tais rumores e "noticias", mas outra foi a sua atitude. Apressaram-se a difundi-los, por vezes com honras de manchete.

Simultaneamente esses influentes órgãos de comunicação, símbolos da "imprensa livre", desvalorizam ou ignoram notícias autenticas que chegam da frente de batalha. Os revezes das tropas invasoras são minimizados ou ocultados. Não tenho conhecimento de um só editorial do NYK analisando o significado de acontecimentos como o bombardeamento de forças norte-americanas e britânicas por aviões da US Air Force, o derrube de um caça inglês por míssil estadunidense, e a troca de tiros entre companhias de marines, por alegada falta de visibilidade, mas na realidade pelos efeitos do medo e do caos que se instalam no campo dos invasores.

"Deus está tão descontente com o uso abusivo do seu nome pelo presidente Bush — ouvi em desabafo de uma freira italiana, em Havana — que para o castigar, as tropas dos EUA já não conseguem distinguir os companheiros dos inimigos. Matam-se uns aos outros, coitados..."

O DISCURSO DOS GENERAIS

Os gigantes da TV preferem "esterilizar o campo de batalha" — a expressão é de Stephen Hess, do conspícuo Brookings Institute — para não ferir a sensibilidade dos telespectadores. Se Rumsfeld garante que a guerra moderna mata pouca gente e as armas limpas estão actuando com precisão cirúrgica, seria grosseira descortesia exibir no pequeno ecrã montes de ruínas em Bagdad e Bassorá e sobretudo cadáveres de mulheres e crianças destroçados pela metralha quando circulavam num mercado da capital...

Mark Tremayne, professor da Universidade do Texas, em Austin, sintetizou bem esse espírito da velha América puritana, admiradora de Bush. "As televisões — sentenciou — não devem mostrar coisas que desagradem aos telespectadores".

A mentalidade oficial é assumida tão disciplinadamente pelo alto comando das forças armadas que me traz à memória o comportamento dos marechais prussianos.

No próprio dia em que das frentes de combate chegava a notícia de que nem uma só cidade importante do Iraque havia sido ocupada pelas forças anglo-americanas após a primeira semana de guerra, o general Colin Powell declarava em Washington, segundo a Agencia France Presse: "de momento controlamos quase todo o pais, com excepção dos subúrbios de Bagdad, controlamos o Sul e, pouco a pouco, rodeamos Bagdad". Mentia conscientemente.

No mesmo dia o general Richard Myers, chefe do Estado Maior Conjunto, comentava a situação com uma tirada digna de Bush ou do falecido almirante português Américo Tomás: "pensamos que a batalha mais difícil está para vir, o que alias sabíamos desde o principio e estamos preparados para isso".

Não lhe ficou atrás em sagacidade o general Tommy Franks, o comandante operacional das forças de invasão anglo-americanas. Garante esse cabo de guerra que "tem tropas situadas em lugares desconhecidos" e informou em tom de revelação: "combateremos sob as nossas próprias condições".

Um repórter estadunidense que acompanha uma divisão de fuzileiros confessou, melancólico, que as populações iraquianas "não manifestam entusiasmo pela presença das tropas dos EUA", mas isso resultaria de "estarem aterrorizadas por Sadam".

Esse é o estilo dos chefes guerreiros da cruzada empreendida pelos EUA e dos jornalistas que acompanham o exército invasor.

Não é de surpreender que as emissões da Al Jazira, a cadeia árabe de televisão, do Qatar, tenham sido proibidas nos EUA. A verdade sobre a guerra genocída tornou-se insuportável para as forças e grupos que controlam ali o sistema de poder.

Na ofensiva da contra-informação, o ridículo é, por vezes, o tempero da estupidez e da agressividade. Uma emissora admitiu a possibilidade do envenenamento do Sena, em Paris, como castigo a ser imposto à França. Outra manifestação do rancor contra a pátria de Victor Hugo foi a iniciativa de um grupo de ultras. Redigiram um abaixo-assinado propondo a devolução à França da Estátua da Liberdade.

Das gigantescas proporções do movimento mundial de protesto não se fala nas pequenas cidades do interior dos EUA. É natural, porque ali mal chegam os ecos e as imagens das manifestações contra a guerra no seu próprio país.

Essa alienação das maiorias que ainda apoiam a cruzada de Bush não tem o poder de parar o movimento da história.

A RESISTÊNCIA CRESCE

Pela primeira vez em milénios assistimos a uma luta global pela Paz. A humanidade toma, finalmente, consciência de que está colectivamente ameaçada por um projecto assustador, de dominação planetária de contornos fascistas. A guerra genocida contra o Iraque é apenas uma etapa, rumo a um objectivo cuja irracionalidade ameaça — não me canso de repetir — a continuidade da vida humana na Terra.

Nestes dias trágicos o povo do Iraque defendendo-se corajosamente aparece como sujeito histórico na batalha desigual em curso, investido paradoxalmente, por um acaso, na tarefa de defender valores civilizacionais que começaram a surgir nas margens dos dois grandes rios do seu país.

A solidariedade militante com os homens e mulheres que ali resistem e se batem contra a barbárie neofascista estadunidense é por isso — insisto — um dever para os intelectuais que fazem da escrita e da palavra uma arma na luta pela liberdade.

De longe, podemos afirmar que é também nosso o combate em que a humanidade tem os olhos postos. Estamos todos, de algum modo, nas trincheiras do Eufrates e do Tigre.

Havana, 28 de Março de 2003


Notas de rodapé:

(1) Lisandro Otero é um dos mais talentosos romancistas cubanos. Recentemente distinguido, em Havana, com o Prémio Nacional de Literatura, reside no México onde colabora em alguns dos grandes diários daquele país. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021