Aquilo que eles não perdoam a Cuba

Miguel Urbano Rodrigues

24 de abril de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Os factos são conhecidos. A Comissão dos Direitos Humanos da ONU aprovou em Genebra por 24 votos contra 20 (9 abstenções) uma resolução que apoia a decisão do Alto Comissário para os Direitos Humanos de enviar um representante seu a Cuba.

O tom e o conteúdo do documento não diferem sensivelmente daquele que foi aprovado no ano passado. Havana, considerando que se trata de uma iniciativa concebida com transparentes objectivos políticos, para tentar justificar o bloqueio e a estratégia de agressões desenvolvida pelos EUA contra a Ilha, havia informado antecipadamente que não aceitaria em hipótese alguma a visita do funcionário das Nações Unidas. A defesa da dignidade nacional implicava a recusa de colaborar numa farsa.

O texto sobre Cuba foi inicialmente patrocinado por quatro países latino americanos, actualmente governados pela direita: o Uruguai, o Peru, a Nicarágua e a Costa Rica. O que imprimiu ao debate um rumo inesperado foi a decisão da Costa Rica de, à ultima hora, apresentar uma emenda insultuosa para Cuba. Redigida em inglês (pelo representante dos EUA) visava a obter a condenação do governo de Havana a pretexto dos recentes julgamentos de 75 mercenários e do fuzilamento de três sequestradores de uma lancha.

O dedo de Washington era tão visível que o plenário recusou por 31 votos contra 15 (sete abstenções) que a proposta fosse apreciada pela Comissão.

Tal como em anos anteriores, os EUA desenvolveram nos bastidores enormes pressões sobre delegações de países do Terceiro Mundo. Alguns governos foram informados de que programas de desenvolvimento financiados por instituições internacionais, seriam suspensos se não votassem a resolução anti-cubana.

É compreensível que o New York Times tivesse expressado num editorial a sua frustração. Num momento em que faz estrondo a campanha mundial desencadeada contra Cuba, Washington apenas conseguiu fazer aprovar em Genebra, e por escassa maioria, uma resolução que não inclui qualquer referencia aos julgamentos.

A Comissão está desprestigiada. O tema da violação dos direitos humanos no Iraque não foi sequer debatido. Não houve consenso. Alegou-se que o tema seria da exclusiva competência do Conselho de Segurança. O pretexto invocado, processual, é revelador da desmoralização dessa comissão hoje fantasmática.

DOIS CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE

A coincidência desta sessão em Genebra com a agressão genocida contra o povo do Iraque pesou na atmosfera.(1)

Cada vez que o chefe da delegação norte-americana pedia a palavra era impossível esquecer que as forças armadas dos EUA estavam cometendo diariamente nas margens do Tigre crimes em cadeia, tripudiando sobre o direito à independência e à própria vida de um povo.

Mesmo as delegações da União Europeia cujos chefes haviam recebido instruções para votar o documento que foi finalmente aprovado sentiam o absurdo de se colocar ali a questão dos direitos humanos em Cuba no auge de uma crise dramática em que os EUA aparecem perante a humanidade como o campeão da violação dos direitos humanos.

Não se deve desconhecer, porem, que desta vez a campanha de âmbito mundial desencadeada contra Cuba na sequência dos julgamentos obteve «adesões» inesperadas. Intelectuais prestigiados, alguns com um passado de lutas em defesa da Revolução Cubana, assumiram agora atitude de distanciamento e critica perante os acontecimentos de Havana. Não cabe aqui aflorar sequer as motivações de cada um, que divergem muito. Nuns casos nasceram da desinformação; noutros de mundividências inseparáveis de opções ideológicas; por vezes de personalismos, de um individualismo exacerbado, do temor de que o seu silencio os fizesse aparecer como personagens da época de Staline; com frequência, de subestimação do significado profundo da feroz campanha anti cubana em marcha.

Sítios web de esquerda abriram secções especiais para divulgar artigos assinados por alguns intelectuais progressistas cuja solidariedade com a Revolução cubana tem sido permanente e firme. Entretanto, os julgamentos abriram agora clivagens na frente da solidariedade. E a polémica prossegue.

Escrevi a alguns escritores latino-americanas que muito estimo e admiro. Respeitando as opiniões criticas que assumiram sobre os fuzilamentos e relativamente a problemas existentes na sociedade cubana, mesmo quando a minha perspectiva não coincide com a deles, pus ênfase sobretudo naquilo que me surge como uma subestimação da ameaça que o projecto neofascista do sistema de poder dos EUA representa para a humanidade. Vir a publico criticar Cuba no momento em que o próprio irmão do Presidente Bush convida os governantes e o povo da Ilha a meditar no destino do Iraque afigura-se-me inaceitável da parte de intelectuais revolucionários.

Nestes dias em que a barbárie militar dos invasores estadunidenses abate ainda como gado, nas ruas de Bagdad e Mossul, civis que protestam contra a ocupação da sua terra e os «marines» assistiram indiferentes ao saque de museus e bibliotecas que guardavam a memória de cinco milénios de historia — escrever sobre a insuficiência de liberdades em Cuba e sobre o funcionamento da sua justiça foi, no mínimo, uma demonstração de insensibilidade. Invocando a fidelidade a princípios éticos, a valores pelos quais todo o revolucionário marxista deve bater-se, os companheiros que assumiram essa posição desserviram na pratica a ética e a moral revolucionaria.

Não desconheço que em Cuba determinadas opções, sobretudo na área da economia, introduziram mecanismos de mercado inerentes à lógica do capitalismo. Como era inevitável, produziram efeitos negativos, alguns muito complexos, sobretudo os que aprofundam desigualdades socais em vez de as reduzirem. O avanço rumo a uma sociedade socialista foi prejudicado, e a nível do Estado e do Partido existe consciência dessa realidade. Mas sem as drásticas medidas tomadas no Período Especial, após o ruir da URSS, a sobrevivência da Revolução teria sido impossível.

Mas não foram esses aspectos dolorosos e preocupantes da vida cubana que suscitaram as críticas dos intelectuais amigos de Cuba que dela agora se distanciaram.

Foi a temática dos direitos humanos que motivou as suas tomadas de posição. E quase todos deixaram transparecer nos seus artigos uma concepção do que sejam os direitos humanos influenciada pelo discurso farisaico da burguesia.

Resido há anos na Ilha. Contemplo o espectáculo da vida como se cubano fora. Repugna-me a adulação, o elogio aos que exercem o poder, o culto da personalidade, defendo e defenderei a liberdade de criação e a participação do povo como indispensável ao desenvolvimento democrático e sadio de qualquer Revolução.

Que posso dizer de Cuba no tocante aos direitos humanos, na perspectiva de quem —o meu caso— andou por dezenas de países da América Latina e da Europa e viveu em alguns?

Muito brevemente direi apenas que não conheço outro pais onde exista um culto e um respeito pela criança tão comovente como o de Cuba. Que Havana é a única grande cidade que conheço no mundo onde não há praticamente crimes de sangue, onde à noite um turista pode caminhar quilómetros por ruas pessimamente iluminadas sem correr o risco de receber um tiro ou uma facada, uma cidade (e um país) onde o ensino e a saúde são gratuitos.

Em Genebra, o embaixador Juan António Fernandez pronunciou na Comissão estas palavras: «Cuba sabe que defende para o seu povo e para todos os povos do mundo o direito ao respeito pela sua soberania e autodeterminação».

Há mais de quatro décadas que o seu povo RESISTE a todas as tentativas do imperialismo estadunidense para o submeter. Washington não lhe perdoa esse exemplo oferecido á humanidade, a demonstração que é sempre possível RESISTIR!

Por aqui fico. Lembrando que talvez nunca como nestes dias Cuba precisou tanto da solidariedade dos seus amigos.


Notas de rodapé:

(1) A televisão cubana transmitiu as intervenções mais importantes das sessões em que foi debatido o projecto de resolução sobre Cuba. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021