Galeano: A coerência e a incoerência

Miguel Urbano Rodrigues

28 de abril de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


De todos os depoimentos críticos que li sobre os julgamentos de Cuba o que mais me surpreendeu foi o de Eduardo Galeano.

O seu «Cuba duele», publicado em "Brecha" e logo reproduzido em todo o mundo, doeu-me muito. Por vir de um dos escritores da América Latina mais respeitados pelo seu eticismo, e porque a sua atitude confundiu muitos intelectuais de esquerda e foi festejada pelo super poder universal — uso uma expressão sua — "que está com uma vontade louca de tirar da garganta esta teimosa espinha", isto é Cuba.

Uma chuva de críticas desaba hoje sobre o autor de «As veias abertas da América Latina». Esse foi outro efeito colateral da sua tomada de posição. Com a peculiaridade de muitas dessas criticas, marcadas pela paixão, serem injustas, algumas insultuosas. Os epígonos — e toda a Revolução gera sempre esse tipo de gente — quando não adulam difamam.

Li um artigo, por exemplo, em que o autor lançava sobre Galeano o anátema de burguês oportunista, acusando-o de se hospedar em hotéis de luxo, quando visitava Havana.

Textos como esse definem quem os subscreve.

Galeano tem um passado de lutas pela causa da libertação da América Latina que não pode ser apagado por um artigo que não deveria ter escrito.

Admiro há mais de quatro décadas o escritor e o intelectual revolucionário. Nem sempre me identifiquei com posições por ele assumidas, mas esse distanciamento nunca afectou o meu respeito pela sua permanente busca de coerência nos combates em que, sempre corajoso, se empenhava. Não duvido do seu amor por Cuba e pela Revolução.

Apertei-lhe a mão uma noite, sem trocar uma palavra, em Santiago, no ano 88, quando ele num teatro daquela cidade abriu o programa de «Chile Crea», uma iniciativa em que quase no final do consulado de Pinochet, 200 intelectuais de muitos países levaram solidariedade ao povo de Neruda. Galeano falou por todos, desafiando a ditadura. E exprimiu bem o que sentíamos.

O que me distancia hoje do escritor uruguaio não me leva a procurar subitamente no seu passado, supostas falhas de caracter, cumplicidades imaginárias com a burguesia, ambições ou vaidades. Galeano não caminhou pela vida contemplando o seu umbigo.

Aquilo que me dói no escritor e no combatente humanista é ele ter agido sob o impulso do que julgou ser um dever ético. Por outras palavras: o tremendo erro que cometeu. A motivação alegada não justifica a conclusão. Onde enxergou uma ponte ela não existia.

Os julgamentos e os fuzilamentos funcionaram como espoleta de uma opção de consciência. Mas a argumentação invocada não convence.

Não cabe aqui analisar a visão que Galeano transmite da Cuba actual. É um facto que a Ilha "sobreviveu como pôde e não como quis". Mas o autor de «Las fuentes de la violencia» não tem com a sociedade cubana, extraordinariamente contraditória, a intimidade suficiente para descer às raízes de situações que o chocam. Reconhece que, apesar do cerco imperial, Cuba permanece "de pé num mundo de agachados". Portanto, Resiste!

O grave não é o apontar de realidades que inviabilizaram o projecto da revolução idealizada, mas o discurso que acompanha a crítica suscitada pelos actos do Poder que condena.

Galeano deixa então entrever uma concepção da história da qual, como muitos dos seus admiradores, me distancio. Aí, o que escreve destapa também uma desinformação chocante num escritor com a sua dimensão.

Recordar a Checoslováquia do ano 68 e o Afeganistão do ano 79 a propósito do funcionamento da Justiça cubana no ano 2003 para reflectir sobre "o sagrado direito à autodeterminação dos povos" foi uma péssima lembrança. Ficou desarmado. A direita aplaudiu, mas a história foi desrespeitada.

Seria absurdo abrir aqui o "dossier" da intervenção soviética na Checoslováquia. Mas julgo oportuno recordar uma confissão indesmentível de Alexandre Dubcek, feita ao semanário soviético "Novedades de Moscu" em pleno período da perestroika. Dubcek, numa entrevista que foi então amplamente divulgada em muitos países, declarou que nunca havia sido marxista. Acontece que esse dirigente era secretário geral do Partido Comunista da Checoslováquia durante os acontecimentos do ano 68 quando, como governante, anunciava que a Primavera de Praga iria conduzir o pais a um socialismo humanizado, de rosto humano. Apenas pergunto: por que mentiu Dubcek ao seu povo? Como podia defender "o sagrado direito à autodeterminação dos povos" alguém que, não sendo marxista, proclamava diariamente a sua fidelidade ao socialismo como secretário-geral de um Partido comunista?

Dubcek, afinal, comportou-se no governo como um farsante, tal como Gorbatchev, que tendo subido ao poder proclamando a necessidade de um regresso às origens do lenininismo, viria, anos depois, a confessar em Grenoble, na França, que há muitos anos tinha consciência da superioridade do capitalismo sobre o socialismo.

Refere também Galeano a invasão do Afeganistão. Visitei quatro vezes aquele pais durante a Revolução afegã (uma realidade hoje esquecida) e conheço com alguma intimidade a história antiga e contemporânea dos seus povos. Porventura Eduardo Galeano ignora o famoso depoimento de Brzezinski em que ele se orgulha de ter persuadido Carter (em documento assinado) a criar, através da CIA, uma situação de caos no Afeganistão que forçaria inevitavelmente a URSS a intervir em defesa da Revolução?

Galeano está consciente de que o sr James Cason, o chefe do Escritório de Interesses dos EUA, se comporta em Havana não como diplomata mas como representante dos serviços de inteligência do seu pais. No âmbito do seu trabalho conspirativo —escreve — "ele próprio fundou o braço juvenil do Partido Liberal Cubano, com a delicadeza e o pudor que caracterizam o seu chefe".

Não entendo, portanto, a contradição do escritor. Se está ciente de que Cason montava grupos contra-revolucionários para os apresentar como partidos, se reconhece que essa falsa "oposição democrática nada tem a ver com as genuínas expectativas dos cubanos honestos", por que invoca então a posição de Rosa Luxemburgo contra o partido único?

Certamente que Galeano não esqueceu a tentativa de Carlos Alberto Montaner, um notório homem da CIA, de criar em Cuba três taxi-partidos fantasmas: o socialista, o social-democrata e o democrata cristão. Em carta dirigida então a Gustavo Arcos convidava-o a aceitar a presidência de um deles. O seu interlocutor sabia como ele que tais partidos seriam ficcionais, siglas sem militantes, mas isso carecia de importância. Oficialmente lançados, o Governo Cubano — explicava Montaner — tornaria publica a sua ilegalidade. Então seria lançada uma campanha internacional e o mundo tomaria conhecimento de que Fidel fechara o Partido Socialista, o Partido Social Democrata e o partido Democrata Cristão. E choveriam protestos contra a repressão em Cuba.

Para azar de Montaner a carta nem chegou ao seu destino. Foi apreendida pelos serviços de segurança cubanos e divulgada pelo "Granma".

Marti não era marxista. A sua concepção idealista da história — na acepção filosófica da palavra — não o impediu, contudo, como revolucionário, de defender um partido único, o Partido Revolucionário Cubano.

Ele tinha a certeza antecipada do que significaria numa Cuba libertada, mas com um forte movimento anexionista, o funcionamento de uma multiplicidade de partidos controlados e financiados pelo imperialismo estadunidense. A história não tardou a confirmar as suas previsões.

Já o tenho dito e escrito: Cuba, bloqueada, foi forçada a desviar-se do seu belo projecto revolucionário e a adoptar medidas que lhe contrariam o espírito e as metas. A necessidade de sobrevivência da Revolução impediu-a de construir o seu próprio modelo de socialismo. Mas a decisão de Resistir, e defender conquistas fundamentais, torna por si só a Ilha credora da gratidão e da solidariedade de todas as forças progressistas. E em primeiro lugar dos intelectuais revolucionários.

Mas o que Galeano critica não é a desigualdade social resultante dos mecanismos do Período Especial, não são os efeitos nocivos daquilo a que Fidel chamou "as bactérias e bicharocos" do capitalismo. O grande escritor uruguaio tem má consciência, como amigo de Cuba, por outros motivos. O que me dói é que alguém como ele venha levantar a temática da abertura democrática, da liberdade de reunião e da liberdade de imprensa usando uma linguagem que não é a sua e colocando-se numa perspectiva que também não é a sua quando contempla Nuestra América.

E isso acontece no auge da mais feroz campanha anti-cubana das últimas décadas, orquestrada por um sistema de poder monstruoso que ameaça já a Ilha com o destino do Iraque.

Pelo vasto mundo, todas as semanas homens e mulheres são executados após julgamentos sumários. É no Paquistão, em países da Ásia Oriental, em África. Nos presídios dos EUA dezenas de presos condenados à morte aguardam a execução da sentença. No Iraque, ocupada Bagdad, as forças dos EUA, após uma guerra de genocídio, abatem diariamente patriotas que protestam contra ocupação. Aos soldados foi distribuído um baralho de cartas com os retratos de personalidades que Washington pretende capturar. Tariq Azis era o oito de espadas.

E contudo, os fuzilamentos de Cuba ocupam mais espaço nas primeiras páginas dos jornais dos EUA da Europa do que crimes e abjecções como os citados, nestes dias em que o neofascismo do sistema de poder estadunidense ameaça a humanidade.

Pessoalmente também discordo da pena de morte. Sou pela sua abolição universal. Mas não escreveria uma só linha a criticar os fuzilamentos de Havana.

Eduardo, não deverias ter citado Rosa Luxemburgo. A águia de Varsóvia, como lhe chamava Lenin, que muito a admirava apesar das discordâncias, estaria hoje, se fosse nossa contemporânea, na primeira trincheira da defesa de Cuba.


Inclusão: 01/08/2021