Uma derrota sem data espera os EUA no Iraque

Miguel Urbano Rodrigues

2 de maio de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Mais de 7 anos durou a guerra da Argélia.

Politicamente a França começou a perdê-la quando no Aurès principiou a insurreição, em Novembro de 1954. Mas em Paris não se pressentiu o desenvolvimento da história. A Argélia fora conquistada em 1830 e dos seus nove milhões de habitantes quase um milhão eram de origem europeia.

Apenas três semanas durou a guerra no Iraque. Os EUA começaram a perdê-la politicamente no dia em que os seus primeiros mísseis e bombas explodiram em Bagdad.

Em Washington os estrategos do sistema de poder não tomaram ainda consciência dessa realidade. Os generais que comandaram a agressão ao povo iraquiano e o procônsul nomeado para administrar o país também não perceberam o desfecho que espera o projecto imperial: a derrota.

Os políticos e generais estadunidenses da actualidade são menos instruídos e inteligentes do que os seus colegas franceses do final dos anos 50. George Bush filho, comparado com De Gaulle, tem a capacidade mental de um orangotango de Bornéu. O gigantesco poder militar dos EUA não anula essa evidência.

Talvez fosse útil à equipa da Casa Branca, de Rumsfeld a Colin Powell, ler um livro hoje esquecido: «A Guerra da Argélia», a monumental trilogia de 1800 paginas elaborada por quatro prestigiosos intelectuais franceses sob a direcção do grande escritor Henri Alleg, autor do fascinante ensaio introdutório.(1)

Do estudo dessa obra poderiam retirar ensinamentos para a compreensão da historia. A leitura também seria proveitosa para os generais que comandam as tropas de ocupação nas cidades da velha Mesopotamia.

Todos sabemos que o mundo deu muitas voltas no ultimo meio século e que o Iraque não é a Argélia.(2) O jogo das analogias é perigoso. Mas determinadas lições da historia apresentam uma validez permanente. Os anos não as desactualizam.

O Iraque como a Argélia é uma sociedade multinacional cujos povos e etnias conservaram a sua especificidade cultural ao longo de dezenas de séculos. Da presença romana — menos ampla e mais breve no Iraque — somente sobreviveram em ambos vestígios materiais. Na memória das respectivas populações e nas suas formas de comportamento ela não deixou praticamente marcas.

O denominador comum no Iraque como na Argélia é a herança do Islão, contemplado como fenómeno cultural diferenciado de qualquer outro. Não obstante formas dialectais muito variadas, o árabe é, no convívio com outros idiomas, a língua oficial de iraquianos e argelinos.

No Iraque essa língua (e o acervo cultural dela inseparável) sobreviveu, resistindo à dominação de impérios tão poderosos como o mongol, o persa e o otomano. Na Argélia, a presença turca passou como ondas sobre a areia de uma praia. E o sonho assimilador da França teve um desfecho de pesadelo.

A comovente trilogia da equipa de Henri Alleg encaminha o leitor para uma reflexão simultaneamente dolorosa e estimulante. Confrontando-o com a história profunda, ilumina com luz forte a epopeia de um povo, o argelino, que tornou possível aquilo que parecia impossível: a conquista da independência.

Quase um milhão de argelinos morreu na luta desigual contra um exército de ocupação que chegou a contar com meio milhão de homens.

A devastação de bens materiais que acompanhou o genocídio foi colossal. Mas as bombas foram impotentes contra as superestruturas culturais. Estas sobreviveram, fortalecendo um indomável espirito de resistência, a fome colectiva de liberdade que garantiu a vitoria, conduzindo a nação argelina à independência. Se o povo argelino teve de esperar 125 anos para tomar consciência da sua força e sacudir a dominação francesa isso resultou das circunstancias da conquista. O capitalismo atravessava uma fase de expansão e a Argélia, tal como outros países agredidos, carecia ainda de uma consciência clara da sua identidade e de capacidade organizativa para a luta a travar pela independência. Hoje, apesar do seu enorme poder, o imperialismo está minado por crises devastadoras que tendem a aprofundar-se e essa realidade não escapa às vítimas das suas guerras de conquista.

A devastação de bens materiais que acompanhou o genocídio foi colossal. Mas as bombas foram impotentes contra as superestruturas culturais. Estas sobreviveram, fortalecendo um indomável espirito de resistência, a fome colectiva de liberdade que garantiu a vitoria, conduzindo a nação argelina à independência.

No Iraque, após as destruições provocadas pelas armas inteligentes e pelas convencionais, a luta pela libertação nacional apenas principiou. Mas o próprio e brutal primarismo dos ocupantes funciona como um estimulo. O crime de cultoricídio consumado com o saque do Museu de Arqueologia e os disparos quase diários das tropas de ocupação contra multidões desarmadas actuam sobre a consciência do povo como exemplos do que ele pode esperar da pax americana.

O gigantesco protesto dos peregrinos de Kerbala e as ininterruptas manifestações contra a presença militar antecipam a subida da maré da resistência popular.

Há meses que a propaganda estadunidense sustentava que os seus soldados seriam recebidos pela maioria xiita como libertadores. A ilusão logo foi desmentida pelos factos. A comunidade xiita tem demonstrado uma combatividade crescente, exigindo a saída do exército de ocupação.

Os discursos do general Garner, o procônsul investido de poderes discricionários, assumem contornos de farsa quando entoa o cântico da democracia de modelo USA a ser imposta pelos fuzis.

Contra o que Washington esperava, os iraquianos que vieram na bagagem das suas forças armadas inspiram desprezo ao povo. Ahmad Chalabi fala como os colaboracionistas que na Europa ocupada pelos nazis lhes mendigavam os favores; faz lembrar os caids e bachagas que na Argélia em luta actuavam como aliados dos franceses.

As duas primeiras reuniões com «notáveis», convocadas para debater a formação de um governo iraquiano (sob tutela dos EUA), fracassaram. Ninguém ali se entendeu, apesar de quase todos serem gente submissa. Uma terceira reunião está prevista para o final de Maio. O representante pessoal do presidente Bush, um aventureiro de nome Zalmay Khalilzad, não conseguiu esconder o seu pessimismo. Utilizou a expressão «autoridade interina» para qualificar o executivo fantoche em preparação, a que dias antes chamava «governo».

No Iraque os acontecimentos do Afeganistão são acompanhados com muita atenção. Transcorridos 18 meses, as tropas norte-americanas (e as dos seus aliados) somente controlam ali as principais cidades e os principais eixos rodoviários. Inclusive na estrada que liga Kabul a Kandahar e na grande via que, seguindo para o Norte, rumo a Hairaton, no Amudaria, atravessa a Cordilheira do Hindu Kuch, somente se pode viajar sob a protecção de escoltas bem armadas, e os comboios de abastecimento são ali atacados todas as semanas. Em algumas províncias as bases americanas são com frequência atingidas por mísseis vindos das montanhas.

No Iraque, não é improvável que à fase dos protestos maciços se siga a da luta armada organizada. Massacres com os de Fallujah, nos dias 28 e 30 de Abril — 18 mortos e mais de 70 feridos — contribuem para amadurecer as espigas da seara de ódio contra o invasor. A soldadesca estadunidense comporta-se perante as populações como uma horda de bárbaros. O temor dos homens-bomba descontrola a tropa; um simples protesto pode desencadear uma chacina.

O povo está oferecendo nas ruas provas de uma grande coragem, de um espírito combativo que os estrategos do Pentágono não haviam previsto. É significativo que em Washington se admita já que 125 mil homens permanecerão no pais pelo espaço mínimo de um ano. Nunca se viu libertação tão mortífera para o povo libertado...

O fantástico poder destruidor das novas armas é impotente contra a vontade do povo. O que se esboça já no horizonte é uma prolongada guerra colonial de novo tipo.

OBJECTIVO DOS EUA: DESMOBILIZAR OS POVOS

Em Washington os especialistas da guerra mediática contam com a desmobilização dos povos.

A esmagadora maioria da humanidade condenou a guerra. Essa atitude encontrou expressão de massas nas grandiosas manifestações que, em Fevereiro, Março e Abril, em dezenas de grandes cidades condenaram a agressão ao Iraque.

A repulsa pela guerra imperial americana, desencadeada com objectivos económicos e políticos transparentes, mantém-se. Mas, sejamos realistas, ocupado o Iraque, a corrente da solidariedade não tem a mesma força. Era quase inevitável que isso ocorresse. São múltiplos os factores que contribuem para o refluxo. Em primeiro lugar a campanha mediática. Os grandes media apresentam a ocupação do Iraque como um fato consumado, irreversível, que não deve mais suscitar emoções. Os temas mais tratados no momento são o destino do petróleo, a eventual «punição» da França, os negócios da «reconstrução», as prisões dos dirigentes cujos nomes figuram na famosa lista dos 55 constante do baralho de cartas com fotos (distribuído à tropa), e a vida privada de Sadam Hussein. Tudo muito ao gosto do cidadão comum.

Outro factor que desmobiliza é a rapidez do recuo dos governos da União Europeia que se opuseram à Guerra. A posição da França e da Alemanha na Cimeira de Atenas — como já salientei em artigo anterior — reflectiu a decisão de se submeterem no fundamental às exigências de Washington. De repente Chirac e Schroeder passaram a encarar como natural aquilo que semanas atrás denunciavam como absolutamente inaceitável. Kofi Annan, comportou-se na capital grega como um defensor da capitulação total.

A reunião a quatro — França, Alemanha, Bélgica e Luxemburgo, na última semana de Abril — gerou algumas ilusões na medida em que a troca de impressões sobre a estruturação de forças armadas europeias autónomas foi muito comentada pela imprensa. Mas hoje Chirac, não contesta sequer a pretensão de Washington de decidir qual o futuro do Iraque e já não fala de «tropas de ocupação». A linguagem suavizou-se: agora alude às «forças da coligação» — uma coligação que ele sabe ser invenção da propaganda.

Os chorudos negócios em perspectiva num pais martirizado e humilhado ocupam aliás muito mais espaço nas colunas dedicadas aos temas iraquianos do que os crimes que continuam a ser cometidos pelos invasores.

A campanha contra Cuba ajuda muito a desviar a atenção do que se passa em Bagdad. De repente os julgamentos de 75 mercenários e o fuzilamento dos três sequestrados da lancha Baraguá suscitam mais atenção e protestos do que declarações oficiais norte-americanas (incluindo a do irmão de Bush) ameaçando a Ilha com o destino do Iraque. Até jornais como L'Humanité, com um passado revolucionário, participam dessa vergonhosa farsa.

Na Casa Branca, Bush, incapaz de entender o movimento da vida num planeta que gostaria de governar como se fora o seu rancho do Texas, conclui que tudo corre bem. Entrou num estado de quase levitação. Sente-se tão eufórico que cometeu a imprudência de fazer confidências sobre decisões que, segundo ele, tomou quando os mísseis explodiam já no Iraque, decisões sábias que teriam mudado o rumo da guerra. Contempla-se transmutado em Napoleão na véspera da batalha de Austerlitz, ou Júlio Cesar antes de atacar Alésia.

Não será, porem, o optimismo dos ignaros que terá o poder de impedir que a maré da resistência suba na terra iraquiana, hoje pisada pelas botas estadunidenses. As notícias que dali chegam, apesar do dramático da situação, são animadoras para quantos se esforçam para manter viva a solidariedade com um povo agredido e recolonizado por um sistema de poder imperial no âmbito de um projecto de dominação planetária neonazi. Elas justificam a esperança porque as mulheres e homens do Iraque multinacional recusam que a sua terra milenária seja tratada como mercadoria. A sua resposta ao invasor é a resistência, em exemplo de dignidade e coragem que voltará a levantar a vaga de solidariedade que correu pelo mundo, espontânea, antes e durante a guerra.

A resistência dos povos em situações similares insere-se num processo molecular. Não se ajusta a qualquer calendário.

Volto ao começo. Sete durou a guerra da Argélia.

Bush & Cia Lda estão enganados. No Iraque a guerra não acabou; apenas começou. Doravante será uma guerra diferente das que figuram nos manuais dos generais do Pentágono. Tal como aconteceu na Argélia, a força maior do povo que nela entra e que dela sairá vencedor não é a vinda de armas que não possui. É a força que sobe da memória da história, das raízes de uma grande cultura, a força que leva os povos às grandes epopeias na luta pela liberdade — uma força que os torna invencíveis na larga duração do tempo.

Os EUA já principiaram a perder esta guerra. E o Iraque sairá dela independente, livre.

Havana, 2 de Maio de 2003


Notas de rodapé:

(1) La Guerre d'Algérie, Henri Alleg, Jacques de Bonis, Henri Douzon, Jean Freire, Pierre Haudiquet, et colaboration de Gilberte Alleg. Ed. Les Temps Actuels, Paris 1981. (retornar ao texto)

(2) Na Argélia, a presença de um milhão de franceses como donos do país estimulava a luta pela independência, mas simultaneamente dificultava-a. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021