Sobre a ascensão do fascismo nos Estados Unidos

Miguel Urbano Rodrigues

30 de maio de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Em Setembro de 2001, durante a agressão norte-americana contra o povo do Afeganistão, publiquei, em Portugal e no Brasil, uma série de artigos em que, reflectindo sobre a chacina de Mazar-i-Charif e o saque de Kandahar, alertava para uma ameaça à humanidade que principiava a esboçar-se: a possibilidade da emergência nos EUA de um fascismo de novo tipo.

Os seus contornos, ainda mal definidos, eram identificáveis na componente militar do sistema de poder da grande República e na dinâmica da sua estratégia de dominação planetária.

Em comunicações apresentadas no II e no III Fóruns Sociais Mundiais, em Porto Alegre, retomei o tema, chamando a atenção para uma crise inocultável de civilização, política, económica, militar, ambiental e cultural.

O perigo do neofascismo nos EUA crescia. No corpo de oficiais das suas Forças Armadas tomava forma um fascismo castrense, que se expressava através da participação de estruturas de comando em crimes contra a humanidade (em Seberghan chegou-se ao corte de línguas a prisioneiros, na presença de oficiais superiores da US Army), em missões genocidas da Força Aérea, no discurso messiânico e racista de generais e almirantes do Pentágono.

A velha tese da nação predestinada, a única capaz de salvar a humanidade, foi assumida pelo presidente Bush que fez dela coluna mestra da Nova Ordem Mundial, cujos cimentos teóricos foram reformulados após o 11 de Setembro. Uma concepção maniqueista da vida foi posta a serviço da estratégia imperial de retaliação. A luta contra o terrorismo passou a servir de suporte a uma política de terrorismo de Estado, sem precedente pelo estilo. Na cruzada universal proclamada pela Casa Branca, Deus foi mobilizado. O presidente informou o mundo de que o Senhor não era neutral, apoiava a sua política. E advertiu: quem não estivesse com ela seria considerado inimigo e como tal tratado.

A agressividade e a irracionalidade dessa estratégia configuravam um assalto à razão.

Terei sido um dos primeiros escritores a utilizar a expressão IV Reich para denunciar a ameaça ao conjunto da humanidade e à própria continuidade da vida, ameaça cujos contornos se estavam tornando cada vez mais nítidos nos EUA.

Alguns historiadores e cientistas sociais, tomando como referência exclusiva a Alemanha e a Itália, afirmam não haver condições mínimas para a introdução do fascismo nos EUA.

Permito-me transcrever alguns trechos do que afirmei no II Fórum de Porto Alegre:

"As sementes do fascismo já contaminaram, é inegável, muitos pilotos e oficiais do exército presentes no cenário de horrores do Afeganistão (...). O perigo de um fascismo de novo tipo torna-se mais difícil de identificar porque apresenta características inéditas:

1. Não se enquadra nas definições clássicas do fascismo.

2. Surge como inseparável da dinâmica agressiva de um poder imperial e como efeito da própria lógica da violência desencadeada pelas forças armadas que funcionam como instrumento desse sistema de dominação mundial.

3. Sendo um fenómeno que se enraíza no corpo de oficiais, apresenta a peculiaridade de, ao estruturar-se e fortalecer-se no país, no âmbito das suas guerras de agressão, alastrar de fora para dentro, ou seja da periferia para os EUA, coração do sistema.

"A dificuldade em admitir que a actual política de terrorismo de Estado dos EUA ameaça desembocar no neofascismo reside precisamente no carácter e tradição das instituições norte-americanas e na atipicidade da ideologia subjacente às acções de genocídio praticadas com frequência cada vez maior por um poder militar hegemónico. O hábito de associar o fascismo, quase mecanicamente, como modelo de Estado e de organização da sociedade à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini, leva a esquecer que a sua implantação assumiu formas muito diferenciadas e que tanto o assalto ao poder como o funcionamento do sistema não cabem em definições rígidas.

"O fascismo, tanto na Europa como fora dela, não obedeceu a um modelo único. Se no III Reich e na Itália (aí só no inicio) contou com um forte apoio de massas e teve como instrumento partidos que seguiam cegamente os líderes carismáticos, isso não ocorreu nem na Espanha de Franco, nem no Portugal de Salazar. Nem na Hungria de Horthy, nem na Roménia de Antonescu, nem na Croácia de Ante Pavelich, onde foram sobretudo aspectos básicos da organização do Estado que tomaram como fonte de inspiração os modelos alemão e italiano. O denominador comum a todos os fascismos identificamo-lo no nacionalismo irracional e agressivo, com uma componente racista, na tentativa de impor uma contracultura e na criação de aparelhos repressivos do tipo Gestapo. Na ordem económica as diferenças foram transparentes (...).

"O caso do Chile, por exemplo, é um tema de reflexão inesgotável tanto pelo que nele houve de específico no terreno político, económico e militar, como pelas suas contradições. Aqueles que definem a ditadura terrorista de Pinochet, na teoria e na prática, como fascista, sustentam — na minha opinião com fundamento — que as forças armadas desempenharam ali o papel que no Reich alemão foi assumido pelo partido nazi e pelos aparelhos policiais por ele criados.

"O fenómeno chileno ajuda a compreender num contexto diferente e noutra dimensão a ameaça neofascista que o terrorismo de Estado estadunidense carrega no ventre. O perigo agora é planetário e, repito, nasce em certa medida longe da sociedade cujo sistema de poder o gerou. As expedições punitivas não tomam como alvos minorias, nem partidos de esquerda ou organizações sindicais. O inimigo, imaginário, fabricado, é agora outro: indivíduos transformados em gigantes demoníacos e sobretudo povos paupérrimos, distantes e desarmados."

A transcrição foi longa, mas, assim creio, útil.

Quase dois anos transcorreram desde que escrevi esses parágrafos. Admito que não perderam actualidade.

A crise de civilização agravou-se extraordinariamente e a estratégia de dominação universal do sistema de poder dos EUA adquiriu uma agressividade maior. O Afeganistão foi transformado num protectorado, mas os dois homens — Osama Ben Laden e o mollah Muhamad Omar — então apontados como objectivo prioritário da guerra, não foram capturados e encontram-se algures, em paradeiro desconhecido. Quase se não fala mais deles, nem dos Talibã. No espaço afegão implantou-se uma situação caótica. Fora de Kabul e das principais cidades, grupos armados hostis à ocupação norte-americana controlam a maior parte do território. Entretanto, uma nova guerra, mais brutal, ainda mais trágica pelas suas consequências foi empreendida pelos EUA (levando a reboque a Inglaterra). O objectivo proclamado era "desarmar" o Iraque, acusado de possuir armas de destruição maciça, e capturar (ou matar ) Sadam Hussein.

Para a humanidade foi sempre claro que a motivação dessa guerra era a posse do petróleo iraquiano. A maioria opôs-se ao projecto. Dezenas de milhões de cidadãos, nas maiores cidades do mundo, manifestaram-se nas ruas contra o genocídio em preparação. A falsidade e hipocrisia da argumentação de Washington eram tão transparentes que, sob a pressão dos povos, o Conselho de Segurança — por iniciativa da França, com o apoio da Alemanha, da Rússia e da China — resistiu às pressões e chantagens sobre ele então exercidas, e os EUA colocaram-se fora da lei internacional. A sua cruzada "libertadora", condenada pelo tribunal da consciência dos povos, apareceu à humanidade como uma suja e criminosa guerra pirata.

O Iraque foi bombardeado, destruídas as suas cidades, saqueados os seus maravilhosos museus que guardavam a memória das antigas civilizações da Mesopotâmia. Sadam Hussein não foi capturado e desconhece-se o seu paradeiro. Não foram encontradas armas de destruição maciça; mas a Casa Branca e o Pentágono arquivaram esses temas.

O Iraque foi transformado num protectorado, sob a presidência de um gauleiter norte-americano nomeado pelo presidente Bush e os EUA já obtiveram do Conselho de Segurança, agora submisso, o aval para o (des)governarem como bem entenderem, dispondo das suas riquezas.

A submissão dos governos que em Fevereiro e Março se haviam oposto à guerra ficará nos anais da história como exemplo de covardia e desprezo pela vontade dos povos. Considerando a ocupação do Iraque um fato consumado, tratam de obter uma fatia na distribuição do botim. O discurso da capitulação e da cumplicidade substituiu o discurso do protesto contra o crime, que traduzia o clamor dos povos. As comadres entenderam-se. Mas têm consciência da vassalagem imposta pelos EUA. Ivanov, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, condensou numa síntese expressiva a situação criada ao declarar que "a tendência é para a construção de um sistema unipolar de relações internacionais baseadas na lógica do domínio militar e das acções unilaterais".

Dentro de anos — quando outras calamidades futuras hoje imprevisíveis forem apenas recordação — os historiadores certamente chamarão a atenção para uma evidência: as guerras de agressão empreendidas no início do século pelo sistema de poder dos EUA surgiram como consequência da crise estrutural do capitalismo, incapaz de encontrar solução para ela, como sublinha István Meszaros.

Entretanto, o funcionamento de mecanismos accionados pela lógica do "capitalismo senil" — a expressão é de Samir Amin —, interpretada por um sistema de poder monstruoso, ameaça o conjunto da humanidade. E as sementes do fascismo, como era previsível, começaram a germinar.

As guerras "preventivas" dos EUA lembram certas epidemias. Quando começam, os efeitos da contaminação não podem ser avaliados.

Nos EUA, a necessidade da defesa de uma estratégia planetária perigosamente agressiva e irracional, exigiu no plano interno mudanças drásticas na acção governativa que abalaram fortemente a estrutura institucional do país, abrindo nela fissuras pelas quais avança o fascismo.

Imediatamente após o 11 de Setembro, milhões de cidadãos não se aperceberam nos EUA de que o discurso bushiano contra o terrorismo funcionava como anestesia para golpes cirúrgicos que feriam garantias e liberdades constitucionais. A destruição das Torres Gémeas de Manhattan foi invocada, a despropósito, para justificar uma feroz vaga de xenofobia que levou, por exemplo, à criação de tribunais militares para julgamento de estrangeiros suspeitos, a perseguições e humilhações infligidas a imigrantes muçulmanos, à caça às bruxas nas universidades, ao desaparecimento de clássicos da literatura em bibliotecas públicas, a gestos tão simbólicos de uma mentalidade ultra-reaccionária como a proibição da canção de John Lennon em defesa da paz.

Gente íntima do Presidente, como Cheney, Rumsfeld, Condoleeza Rice, Perle deram uma contribuição significativa para a radicalização de um discurso ideológico de matizes cada vez mais fascizantes, não obstante alguns dos seus autores, por indigência cultural, não se aperceberem disso. Colin Powell, na ONU, e generais como Tommy Franks ajudaram também a projectar uma imagem do sistema, da sua ética e dinâmica, que suscita crescente repulsa dos povos.

A engrenagem que abre caminho ao neofascismo não poderia, no entanto, servir com eficácia a estratégia de dominação se não tivesse como formidável e decisivo instrumento um sistema mediático que exerce hoje um controlo hegemónico dos meios de comunicação.

O tema tem sido exaustivamente tratado por autores como Chomsky e Ramonet. Mas a complexidade e a gravidade dos estragos resultantes do funcionamento dessa máquina diabólica tornam indispensável a retomada permanente do assunto.

O discurso clássico sobre os EUA como pátria da liberdade de expressão foi sempre construído a partir de inverdades; hoje é ridículo.

As três grandes cadeias de televisão que emitem notícias durante 24 horas — a NBC, a FOX e a CNN — mantêm laços íntimos com o Poder. A grande maioria das notícias que difundem são de fontes governamentais ou corporativas. A manutenção dos índices de audiência exige não só um bom relacionamento com essas fontes como a inclusão maciça de notícias sobre assuntos divertidos, histórias sobre as guerras que façam a apologia do heroísmo norte-americano, a eliminação de temas considerados incómodos, um grande volume de informações ligadas a negócios, desporto, sexo, situação das grandes empresas transnacionais, comentários sobre ciência e arte superficiais, etc.

A campanha supostamente anti-terrorista montada pelo Governo respondeu, pelo estilo, ao interesse da grande maioria dos telespectadores. Para alimentá-la, as notícias pré-fabricadas, recebidas de fontes ligadas à contra-informação, tornaram-se imprescindíveis. "Exemplos perfeitos dessa relação — escreve em Counter Punch Peter Phillips, professor de Sociologia na Universidade de Sonoma — são os pools jornalísticos promovidos pelo Pentágono no Médio Oriente e em Washington para transmitir informações pré-programadas sobre a guerra no Iraque a grupos escolhidos de recebedores de notícias (jornalistas) que as distribuem depois a diferentes órgãos de comunicação."

Os jornalistas que não se submetem e recusam colaborar servilmente com o Poder são punidos, directa ou indirectamente, ou despedidos pelos grandes media, mesmo quando são celebridades, como aconteceu com Geraldo Rivera e o neo-zelandês Peter Arnett, da NBC.

As montagens criadas para impressionar o público e glorificar as Forças Armadas são frequentes. Os resultados, contudo, nem sempre respondem a longo prazo ao objectivo, como aconteceu com o famoso resgate da soldado Jessica Lynch. A BBC, numa reportagem que enfureceu o Pentágono, demonstrou através de depoimentos irrefutáveis que tudo foi forjado na "epopeia" que fez chorar milhões de estadunidenses. Os iraquianos, quando tentaram entregar por iniciativa própria a prisioneira Jessica a uma unidade norte-americana, foram recebidos a tiro. Posteriormente, a força que se afirma tê-la resgatado entrou num hospital onde ela se encontrava. Nele somente havia médicos, enfermeiros e doentes. Não houve ali qualquer combate. O filme é uma invenção do começo ao fim. Mas Jessica deu entrada no panteão das heroínas dos EUA. Hoje o acesso do cidadão estadunidense a notícias objectivas é cada vez mais difícil. "O que existe — a opinião é ainda de Peter Phillips — é um sistema noticioso complexo, concebido para entreter as pessoas, que protege a sua própria essência, servindo o complexo militar-industrial mais poderoso do mundo."

Num país onde um abismo cultural separa as elites do cidadão médio, a militarização da sociedade civil, em desenvolvimento, assume proporções inquietantes.

Segundo John Gillis — um analista militar conceituado — a militarização das consciências tornou-se imprescindível ao bom funcionamento do sistema. O establishment está empenhado em preparar a sociedade civil para a aceitação como fenómeno natural da produção de violência. Enquanto o militarismo era tradicionalmente encarado "como uma série de crenças circunscritas a grupos sociais específicos, a militarização abrange uma série de mecanismos que envolvem todo o edifício social".

Jorge Mariscal, membro do projecto Yano que combate a militarização do ensino, lembrou em artigo recente divulgado por Rebelión que a vida quotidiana, nas suas infinitas formas, é marcada por esse fenómeno. A militarização avança nas escolas. Contamina a juventude. Uma publicidade chocante na televisão, na imprensa, na rádio, em cartazes afixados nas paredes apresenta as Forças Armadas como escola de virtudes. O Corpo de Marines cultiva o auto-elogio, apresentando-se como uma tropa de super-homens. O candidato a recruta, ao atravessar o portão do quartel, detém o olhar numa estranha mensagem: "No coração de cada marine palpita o espírito do guerreiro, uma pessoa imbuída do espírito especial que durante séculos definiu a grandeza e o êxito. E nesta organização serás considerado parte da família. És especial, és um lutador, vamos cuidar de ti".

O primarismo da mensagem reflecte bem a mentalidade predominante na tropa de elite da US Navy.

A militarização da sociedade é acompanhada de um discurso político que transforma a dureza, a insensibilidade e um conceito prussiano da disciplina em virtudes. A tese do "letal e solidário" ilumina bem as contradições de uma mentalidade patológica. Rumsfeld afirma que as Forças Armadas dos EUA são as mais eficazes e "destruidoras" da história, mas simultaneamente as mais preocupadas em "evitar mortes de civis".

A realidade desmente a afirmação. Peter Mass, em artigo publicado em The New York Times, conta que, perto de Bagdad, o comandante de um esquadrão, quando os seus homens dispararam contra veículos civis, gritou: "Os meus homens não tiveram clemência. Formidável". O sargento Jeff Lujan, que ordenou aos seus soldados que abrissem fogo contra um carro em que viajavam uma mulher e duas meninas, matando as três, comentou: "Não tenho má consciência. Agimos correctamente, embora cometêssemos um erro". O episódio, como muitos outros, similares, foi também relatado pelo The New York Times.

O lema do «letal e solidário» inspirou uma subliteratura de guerra orientada para a apologia do «humanismo americano». O caso do menino iraquiano, amputado dos braços, que foi levado para o Koweit para lhe colocarem próteses é bem expressivo da hipocrisia subjacente a esse falso humanismo. Toda a família do garoto pereceu no bombardeamento, mas isso foi logo esquecido.

Nas grandes cidades, entre a juventude dos bairros da classe média, um divertimento que está na moda é o painball — um jogo durante o qual os participantes lutam com selvajaria. Do choque faz parte a morte simulada. Em San Diego, os adeptos do painball pagam 50 dólares para intervir nos jogos realizados na Base dos Marines.

O Presidente Bush considera "viris" esses jogos violentos. Não é por acaso que, para estimular o espírito marcial, gosta muito de discursar em bases militares, em fábricas de armas e em porta-aviões.

Um intelectual sério, James Carroll, publicou no Boston Globe, na edição de 22 de Abril pp, um artigo lúcido, intitulado "Uma Nação Perdida", em que alerta os seus compatriotas para as consequências dramáticas da política que desinforma e tenta manipular as consciências para apresentar uma guerra criminosa como acto legítimo e necessário.

"As celebrações fotográficas — escreveu então – dos nossos jovens guerreiros, as glorificações dos prisioneiros estadunidenses libertados, os heróicos rituais dos mortos na guerra assumem o carácter de uma estúpida exploração dos homens e mulheres de uniforme. Primeiro foram levados a actuar em circunstâncias duvidosas e agora eles próprios são convertidos em mitos como principal justificação post-facto — como se os EUA tivessem ido ao Iraque não para capturar Sadam Hussein (desaparecido), ou para eliminar armas de destruição maciça (que não havia ali) ou para salvar o povo iraquiano (caos), mas sim para ‘apoiar os seus soldados’. Assim se converte a guerra na sua própria justificação. Tal confusão sobre um ponto de tamanha gravidade, como as demais, revela uma nação perdida."

Denúncias corajosas como a de James Carroll são felizmente numerosas nos EUA. Uma parcela ponderável do seu povo opôs-se à guerra e combate em defesa da paz contra a política de militarização do planeta.

A contribuição de norte-americanos progressistas e corajosos como Ramsey Clark e Noam Chomsky — dois exemplos expressivos — tem sido, aliás, muito importante para a compreensão do perigo fascista e o funcionamento de um sistema de poder que não hesita em tripudiar sobre a Constituição para limitar ou suprimir direitos e liberdades.

Mas que não haja ilusões. O capitalismo não entrou ainda na fase da agonia. Precisamente por não ter soluções para a crise, tornou-se mais agressivo e procura, através do recurso às chamadas "guerras preventivas", evitar um colapso sistémico que desencadearia um espantoso caos. Incapazes de inverter por meios clássicos o brutal enfraquecimento da sua economia, os EUA, motor do capitalismo, optam, no âmbito da sua política de dominação planetária, por aventuras guerreiras de pilhagem de recursos naturais como as do Afeganistão e do Iraque, que lhes permitiram simultaneamente assumir o controlo de áreas da Ásia de grande importância estratégica. Os epígonos da Casa Branca tentam encontrar uma lógica nos actos da Administração Bush condenados pela consciência dos povos. Mas buscam o impossível, porque a irracionalidade marca já o funcionamento do sistema.

O grupo dito da Cabala, que hoje controla o Poder nos EUA, comporta-se já como os aprendizes de feiticeiro. Desencadeou tempestades de efeitos imprevisíveis. Mas o espectáculo do caos iraquiano não lhe travou a agressividade. Ameaça a Síria, a insurreição colombiana, a Coreia do Norte, Cuba.

O Irão sobretudo é alvo de ameaças insistentes. As acusações repetem, sem imaginação, as que precederam a agressão ao Iraque. O governo da milenária terra de Dario e Cosroes é acusado de desenvolver capacidades nucleares, de possuir armas de extermínio maciço e de cumplicidades com a Al Qaeda. O disco traz à memória os produzidos pela propaganda nazi quando Hitler, em vésperas de os invadir, apresentava pequenos países como ameaças ao III Reich.

A realidade é invertida. Uma organização tão prudente como a Amnistia Internacional acaba de salientar no seu Relatório Anual que a insegurança no mundo aumentou perigosamente desde o 11 de Setembro e que a responsabilidade cabe aos EUA. A sua política de combate ao terrorismo, em vez de o reduzir contribuiu decisivamente para o disseminar e estimular.

No tocante aos direitos humanos, os EUA, que teimam em se apresentar como os campeões da sua defesa, violam-nos permanentemente, como também o sublinha a Amnistia Internacional. A Base de Guantanamo foi convertida num campo de prisioneiros no qual o emprego da tortura passou a ser tema de denúncias constantes.

De Washington chegam notícias de choques pessoais na própria equipa presidencial. Demissões como a de Ari Flescher, o porta-voz da Casa Branca, suscitaram uma vaga de especulações. No triângulo Departamento de Estado-Cia-Pentágono, a estratégia das "guerras preventivas" teria deixado de ser consensual.

Por ora, estamos perante boatos. Não merecem a atenção que lhes tem sido prestada. Mas é natural que, em Washington, as forças que controlam o poder comecem a compreender que a ocupação das grandes cidades do Iraque não pôs fim à guerra. Nos últimos dias militares estadunidenses foram abatidos a tiro, com frequência, em diferentes províncias. A resistência do povo iraquiano organiza-se contra o invasor. Para ele, uma longa guerra está a principiar.

O fantasma de um Vietnam árabe perturba já o sono dos generais do Pentágono.

Perigos enormes anunciam-se num horizonte de lutas. Mas o gigante americano tem pés de barro. Os mecanismos predatórios da globalização neo-liberal não bastam para resolver a crise estrutural de um capitalismo doente. Até porque o mal é incurável.

Entretanto, a tarefa prioritária e permanente para as forças progressistas, em todo o mundo, é fazer frente, com firmeza e lucidez, à ameaça que representa para a humanidade a estratégia neofascista de um sistema de poder que aspira a militarizar o planeta, transformando-o num protectorado.

O processo de militarização e fascização da sociedade norte-americana prossegue. E essa realidade não pode ser ignorada.

Havana, 30 de Maio de 2003


Inclusão: 01/08/2021