As duas Bolívias em confrontação

Miguel Urbano Rodrigues

19 de outubro de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


"Os manifestantes indígenas podem ser pobres e falar mal e com sotaque o espanhol, mas eles têm uma mensagem poderosa. É esta: não à exportação do gás e outros recursos naturais; não ao livre comércio com os Estados Unidos, não à globalização de nenhuma forma, que não seja a solidariedade entre os povos oprimidos do mundo em desenvolvimento".
(New York Times, 17/Out/03).

Uma grande e inesperada derrota foi infligida na Bolívia ao sistema de poder imperial dos EUA. O sujeito dessa vitória, festejada pela América Latina e pela humanidade progressista, é o povo boliviano.

De longe acompanhei com emoção o subir da maré do levantamento popular cujo desfecho foi a fuga do procônsul de Washington que ocupava o Palácio Quemado.

A pergunta «que irá ocorrer agora?», omnipresente no dilúvio de comentários e análises dedicadas ao acontecimento, fez-me recordar a primeira visita a La Paz.

Foi há 33 anos, quando Juan José Torres, apoiado pelo povo, assumiu a Presidência, derrotando uma intentona de generais reaccionários. Mais tarde, tornei-me quase seu amigo. Mas não foi logo.

Ao cruzar os píncaros nevados dos Andes e avistar La Paz tive a sensação de que iria descer noutro planeta.

A paisagem tinha algo de lunar. A mancha azul do Titicaca, um lago do tamanho do Distrito de Évora, rompia a uniformidade de uma planura que corria para um horizonte sem fim. Minúsculos pueblos semeavam uma terra entre o amarelo e o cinza. O grande lago, apertado entre os gigantes da Cordilheira Real, reflectia para um céu límpido a luz intensa daquele tecto do mundo.

No centro de uma taça, La Paz. A cidade, fundada num buraco, ali ficou. Foi um acampamento mineiro do qual a história fez a capital do país.

El Alto, cenário das confrontações das últimas semanas, era então um conjunto misérrimo de favelas a 4000 metros de altitude, na borda da concha onde nasceu La Paz. Desenvolveu-se como um cogumelo; revia-a depois, em épocas diferentes. Hoje é uma cidade satélite com 750 mil habitantes, metade da população da capital. Paupérrima como antes.

ENTRE A TRAGÉDIA, A EPOPEIA E A FARSA

Vivi na Bolívia acontecimentos importantes, que me marcaram para sempre. Impossível esquecer os debates na Asamblea del Pueblo, em Junho de 71, pouco antes do sangrento golpe de Banzer. Da descida à mina Siglo XX e da confraternização com os mineiros guardo também lembrança inapagável, como de intermináveis conversas com alguns dos revolucionários mais autênticos que encontrei no caminhar pela vida, como Marcelo Quiroga Santa Cruz e René Zabaleta, mortos, e Simon Reyes, René Rocabado e Marcos Domich, vivos.

Tentando compreender, descobri com o rodar dos anos, duas Bolívias antagónicas, irreconciliáveis. Coexistem em choque permanente, desde os tempos da colónia e da revolução libertadora ate à actualidade.

Uma é a Bolívia da rebelião indígena de Tupaj Katari, em 1780, a da Universidade de Charcas, como grande centro cultural do século XVIII, a de Pedro Murillo, prócer e mártir da independência, a dos guerrilheiros alto-peruanos, a da Revolução de 1952, quando os mineiros e camponeses se levantaram em armas e, em combates de ruas, destruíram o Exército, levando à vitoria a primeira revolução progressista da América do Sul.

Essa Bolívia, revolucionária e humanista, é mal conhecida. Incomoda o imperialismo. De Washington a Londres, os governos do primeiro mundo e os meio de comunicação por eles controlados fazem o possível para lhe apagar a história e a imagem, como se ela fosse ficcional.

É o retracto da outra Bolívia, também real, que o mundo conhece. A Bolívia que expulsou Sucre, seu primeiro presidente e o mais puro dos heróis bolivarianos, a Bolívia de Melgarejo e Barrientos, dos barões do estanho, a Bolívia que perdeu grande parte do território em guerras alucinatórias contra o Chile, o Brasil e o Paraguai, o país dos cuartelazos, dos assassinos do Che, dos narcotraficantes, dos presidentes lacaios da Casa Branca.

Amo a primeira, abomino a segunda, consciente de que fronteira entre a Bolívia da epopeia e a da opereta nem sempre aparece com nitidez.

GONI, O CHICAGO BOY

Nestas semanas mais uma vez a tragédia e a farsa apareceram entrelaçadas.

Os acontecimentos são inseparáveis de uma exacerbada luta de classes. Sanchez de Losada, para responder, neste segundo mandato, à resistência crescente que a sua estratégia de submissão enfrentava, resistência expressa no fortalecimento da combatividade das massas, optou por uma política de terrorismo de Estado. As matanças do Chapare, em Janeiro pp, e de La Paz em 12 e13 de Fevereiro pp (o pacenazo), assinalaram essa escalada de violência que contou com a cumplicidade da OEA e o apoio ostensivo dos EUA. Goni gabava-se, com arrogância, de ser o empresário mais rico do país e proclamava que somente pela força o poderiam tirar do Palácio Quemado.

O povo assim fez.

O Presidente que fugiu para os EUA, carregando a responsabilidade das matanças dos últimos dias — 74 cidadãos — viveu ali grande parte da vida, estudou na Universidade de Chicago, fala um castelhano deficiente com sotaque norte-americano e define-se a si próprio, orgulhosamente, como um chicago boy para dissipar dúvidas sobre a sua fidelidade à matriz imperial. Isso apesar de ser licenciado em filosofia e não em economia. No seu primeiro mandato, entre 93 e 97, privatizou quase tudo o que faltava privatizar, desde as telecomunicações aos hidrocarbonetos, e acumulou uma fortuna colossal ao assumir o controlo de minas estatais mediante contratos fraudulentos.

El gringo Goni, como é conhecido, foi o mais zeloso executor da política da destruição das plantações de coca, sem a contrapartida de culturas alternativas, o que lançou na miséria centenas de milhares de camponeses. Clinton elogiou-o por ter implantado uma caricatura de capitalismo popular que, através da entrega simbólica de acções aos trabalhadores, teria por objectivo redistribuir a riqueza. Na prática a concentração do capital acentuou-se e o abismo entre os ricos e os pobres aprofundou-se.

Tendo recebido apenas 22% dos votos na ultima eleição, em 2002, o Congresso designou-o Presidente por força de uma dessas alianças espúrias, tradicionais na Bolívia da farsa. O seu corrompido Movimento Nacional Revolucionário, herança da força política que traiu a Revolução de 52, formou para o efeito uma coligação que incluía a direita reaccionária, a Nueva Fuerza Republicana (NFR), e o Movimiento de Izquierda Revolucionário (MIR), cujos dirigentes em dias distantes afirmavam ser marxistas...

Para atender uma exigência do FMI, Sanches Lozada, que se havia comprometido a lutar contra a exclusão social, não hesitou em criar um imposto de 12% sobre os salários dos trabalhadores para «reduzir o défice do orçamento». A medida, provocatória, desencadeou uma primeira explosão social. Mas o homem não parou.

Ao decidir exportar o gás, a preço vil, via Chile, para os EUA, este presidente títere fez transbordar a taça das humilhações acumuladas.

Esgotada a prata, esgotado o estanho, o gás, cujas reservas ascendem a 55 milhões de milhões de pés cúbicos, aparece hoje como o futuro salário da Bolívia, para usar a expressão celebrizada por Salvador Allende para definir a importância do cobre no Chile.

O gás natural é olhado como o motor da industrialização de um pais cujo PIB per capita não ultrapassa 950 dólares. Somente o Haiti, no continente, figura hoje abaixo na Bolívia na escala da pobreza.

O Exercito sustentou o Presidente até ao momento em que o viu só, abandonado pelos seus aliados da Nueva Fuerza e do MIR. O embaixador dos EUA, David Greenlee, que falava e agia como um vice-rei, teria visto com agrado o prosseguimento da repressão. Washington manifestava apreensão com o futuro do gás. Mas o alto comando, perante as proporções do levantamento popular, optou por uma atitude de expectativa. Apoiar um presidente totalmente isolado colocaria as Forças Armadas numa posição insustentável, muito perigosa. A memória dos confrontos do ano 52 também terá pesado. E o Exército quase emudeceu nas horas que antecederam a capitulação de Sanchez Losada.

O NOVO PRESIDENTE

O político que chegou ao Palácio Queimado, substituindo Sanchez Losada, apresentou-se a si mesmo como um Presidente de transição. Foi muito aplaudido.

O seu discurso de posse foi prudente e na aparência desambicioso. Pretende convocar uma Constituinte e eleições presidenciais. Ambas as posições são positivas.

Mas quem o ovacionou? Um Congresso no qual a maioria apoiou até há poucos dias a política criminosa de Goni.

É útil não esquecer que Carlos Mesa, como vice-presidente, se comportou até há poucos dias como aliado de Sanchez Losada. Nunca escondeu a sua adesão às políticas neoliberais do consenso de Washington.

A CNN já principiou a traçar-lhe um perfil adequado à circunstancia e aos interesses da Administração Bush. Apresenta-o como um historiador de prestigio, respeitado. O perfil é fantasista. Mesa publicou uma biografia dos Presidentes da Bolívia. Não conheço a obra, mas afigura-se-me improvável que retracte com perspectiva de cientista uma galeria de figuras onde predominam tiranos, aventureiros e inimigos do povo. O livro mais vendido do actual presidente tem por tema ´«a epopeia do futebol boliviano», o que também suscita duvidas quanto ao seu talento como escritor.

Cabe perguntar como chegou à vice-presidência um historiador que, afinal, não parece sê-lo?

A sua popularidade resultou da actividade desenvolvida como jornalista, primeiro na radio, e depois como entrevistador de um programa de televisão intitulado «De cerca».

Ao ser investido na Presidência pediu uma trégua e lançou um apelo à unidade.

Sobram perguntas sem resposta. Que tipo de unidade tem na mente ?

INCÓGNITAS

Num primeiro comunicado emitido em La Paz, a Comissão Política do Partido Comunista da Bolívia sublinha que as vitoriosas mobilizações dos últimos dias demonstram um grande aprofundamento da consciência política das massas populares. Mas numa advertência contra o triunfalismo lembra que a investidura na Presidência de Carlos Mesa não traz a solução para os graves problemas do país.

O derrubamento de Sanchez Lozada resultou de um poderoso movimento de protesto nacional que durante a luta assumiu características quase espontâneas. O povo levantou-se para derrubar um presidente genocida e traidor, não para tomar o Poder.

Poderia talvez ter ocupado o Palácio, mas o movimento de massas, desprovido de organicidade, não teria condições mínimas para controlar o Pais.

No momento em que escrevo, é minha convicção que a evolução da situação na Bolívia é imprevisível. A unidade nacional reclamada por Marcos Domich, primeiro-secretário do PC da Bolívia não é a unidade de que falam os deputados e senadores nem a pedida pelo Presidente Carlos. A primeira contempla a diversidade étnica e cultural do povo boliviano. Não é possível sem a participação dos mineiros, dos camponeses, dos fabris, dos intelectuais progressistas, da juventude, dos indígenas. A outra unidade, falsa, é, afinal, a da burguesia.

O panorama da crise — que persiste — vai permanecer confuso. O exército e a polícia regressaram aos quartéis, os estabelecimentos reabriram as portas, a greve geral indefinida de El Alto terminou.

Mas o movimento não tinha, nem podia ter, um Programa. Falta um Plano de Emergência.

As reivindicações do deputado indígena Filipe Quispe são, por maximalistas, pouco realistas. Evo Morales, lider do MAS, também não expôs até agora, com um mínimo de clareza, a sua atitude perante a fase de «transição» que se inicia. O seu movimento cumpriu um importante papel nas lutas que levaram à queda de Goni. Mas, o que é, afinal, o MAS? Ouvi Evo no México e em Havana varias vezes. E o seu discurso, tal como a sua visão da historia, reflectem a ausência de uma opção ideológica definida.

A Central Obrera Boliviana, a mais influente organização de massas, dialoga no momento com o novo Presidente, cujo governo não incluirá representantes de qualquer partido.

Seria desejável que um eventual acordo incidisse sobre as grandes reivindicações do povo, secundarizando as que podem acabar por romper a unidade das massas que tende, agora, a fragilizar-se. Cabe recordar que as grandes mobilizações de Setembro principiaram e cresceram com quatro bandeiras de luta: «Não à venda do gás», «recusa do novo código tributário», « revogação da lei da segurança dos cidadãos» e «rejeição da Alca». A sua defesa intransigente é absolutamente indispensável, tal como a convocação da Constituinte. Ampliar muito o leque pode oferecer ao imperialismo os pretextos que ele procura para privar o povo boliviano dos benefícios da sua grande vitória. Washington, que sustentou o seu chicago boy até ao último quarto de hora, tentará intervir de múltiplas formas no processo em curso, para o sabotar. As provocações já estão nas ruas. O fascismo, a ultra esquerda e o regionalismo exacerbado mais uma vez, aparecem juntos.

A extrema heterogeneidade das forças que derrubaram Sanchez de Losada não facilita a elaboração de um Programa de governo consensual a ser apresentado ao presidente da transição.

Exigir o impossível nestas horas é prestar um serviço aos inimigos da Bolívia.

O levantamento popular não abriu a porta a uma mudança revolucionária. A relação de forças existente não a viabilizaria. Não estavam reunidas as condições mínimas. As Forças Armadas voltaram aos quartéis, mas o corpo de oficiais é no fundamental constituído por militares modelados pela mentalidade profundamente anticomunista dos ideólogos do Comando Sul dos EUA. É significativo que um grupo de oficiais desse Comando tenha viajado imediatamente para La Paz. Não se deve também esquecer que não há revolução possível sem uma organização de vanguarda poderosa,, fortemente implantada entre as massas. E essa organização não existe na Bolívia.

★ ★ ★

A vida proporcionou-me a oportunidade de ser testemunha de alguns acontecimentos que deixaram marcas na historia contemporânea.

A Bolívia foi um dos países onde isso ocorreu. Teria sido para mim gratificante estar presente ali, na semana passada, marchar ombro a ombro com amigos e camaradas de muitas batalhas, serenos, inquebrantáveis na fidelidade ao compromisso revolucionário.

Isso não foi possível, mas senti que a actual luta do povo boliviano é também minha. Acompanhei, hora a hora, pela Internet, o desenvolvimento da crise. A familiaridade com o cenário permitia-me imaginar a repressão em El Alto, rever as minas, acompanhar o avanço dos destacamentos de camponeses pelos vales e páramos da Cordilheira Real, as grandes manifestações em La Paz.

Quase via como pano de fundo das multidões as neves eternas do Illimani, a mais bela montanha dos Andes, o cerro mágico que para os aymarás fala, sente e ama como se humano fora.

Festejei como se ali estivera a derrota de Sanchez Losada e do imperialismo. Até porque as lutas do povo boliviano se inserem no combate da humanidade progressista contra o monstruoso projecto de sociedade imposto por um sistema de poder imperial que ameaça a própria continuidade da vida na Terra.

Havana, 19 de Outubro de 2003


Inclusão: 01/08/2021